Santa Morte, a santa esquelética no México e nos Estados Unidos
Dr. R. Andrew Chesnut
Trad. Karina Kosicki Bellotti
Obs: as imagens utilizadas aqui, foram escolhidas por mim para ilustrar a obra do autor.
Chamado pela Senhora Ossuda, a
Santa Morte
Algumas pessoas se tornam devotas
por iniciativa própria, apelando para a Santa Morte sob recomendação de amigos
ou de familiares. Outros recebem um chamado ou uma visita inesperada da
Magrinha (la flaquita, um dos seus vários apelidos), no qual ela se oferece
para resolver seus problemas. Foi nesse contexto que, no início da primavera de
2009, a Ossuda (la huesuda, outro apelido conhecido) apareceu no meu laptop e
meu chamou para contemplá-la. Mais especificamente, foi a notícia de um ataque
militar contra ela na fronteira entre os Estados Unidos e o México que me levou
a substituir a figura de Guadalupe pela imagem de algo que parecia, à primeira
vista, a sua antítese, uma espécie de anti-Virgem. No final de março, o
exército mexicano demoliu perto de quarenta santuários da Santa Morte na
fronteira mexicana com o Texas e a Califórnia, na sua maioria na periferia de
Tijuana e Nuevo Laredo. Eu me perguntava o que teria feito a Santa Morte para
merecer um ato tão agressivo de sacrilégio em seus lugares santos, perpetrado
pelo governo mexicano, que a declarou um inimigo de Estado?
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Estátuas de Santa Morte num altar. |
Este texto traz algumas
considerações sobre uma pesquisa mais ampla, que buscou desvendar por que em
menos de uma década a devoção à santa cresceu a tal ponto que sua popularidade
ofusca a de outras santas no México, com exceção de Guadalupe. Seu culto se
transformou de uma prática oculta, desconhecida de boa parte dos mexicanos,
para se tornar um crescente culto público que contabiliza milhões de devotos no
México e nos Estados Unidos.
A Morte encontrada
Como seu nome indica, Santa Morte
é uma santa popular mexicana que personifica a morte. Seja na forma de uma
estátua de gesso, em uma vela votiva, um medalhão de ouro ou um cartão de
oração, ela é representada como uma Ceifadora, manejando a mesma foice e usando
uma mortalha semelhante à do Ceifador. Diferente de outros santos, que foram
canonizados pela Igreja Católica, os santos populares são espíritos de mortos
que são considerados santos pelos seus poderes milagrosos. No México e na
América Latina em geral, tais santos, como Nino Fidencio, Jesus Malverde,
Maximon e San La Muerte (a similar argentina da Santa Morte) mobilizam uma
ampla devoção e frequentemente apelam para mais do que os santos oficiais.
A grande maioria dos santos
populares, diferente dos oficiais, nasceu e morreu em solo latino-americano.
Nino Fidencio, por exemplo, era um curandeiro popular no início do século XX no
México, enquanto Pedro Batista liderou uma comunidade religiosa no interior do
Brasil durante o mesmo período. Assim, os santos populares são unidos aos seus
devotos pela nacionalidade e frequentemente pela localidade e classe social. Um
vendedor de rua da Cidade do México explicou o apelo da Santa Morte: “Ela nos
entende porque é uma pessoa de gênio forte (cabrona) como nós”. Em contraste,
os mexicanos nunca se refeririam à Virgem de Gaudalupe como megera. Onde a
Ossuda se difere de outros santos populares, incluindo os santos esqueléticos
da Argentina (San La Muerte) e da Guatemala (Rey Pascual), é que, para a
maioria de seus devotos, ela é personificação da morte em si, e não de um ser
humano morto.
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Niño Fidencio (1898-1938) era um popular curandeiro mexicano que tornou-se santo popular. |
O seu próprio nome, Santa Morte,
diz muito sobre sua identidade. La muerte – a morte – é um substantivo
feminino, assim como em todas as línguas românicas. Por isso, alguns
observadores casuais da Branquinha atribuíram erroneamente a sua identidade
feminina por conta do substantivo “La muerte”. Entretanto, o fato de os dois
santos da morte da Argentina e da Guatemala serem figuras masculinas aponta
para outras explicações sobre a identidade feminina da santa mexicana. Em todo
caso, ela e San La Muerte são os únicos santos nas Américas que incluem a
palavra “morte” em seus nomes. Tanto para devotos como para os descrentes, é
óbvio que o olhar vazio da santa esquelética é o olhar da morte.
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São Morte é o equivalente argentino da Santa Morte. |
A palavra “Santa”, a primeira
parte do seu nome, é também reveladora. A Santa Morte é primeira e
principalmente uma santa não oficial que cura, protege e livra seus devotos de
seus destinos após a morte. Devotos costumam chamá-la de “Santíssima Morte” em
rituais como o rosário. Assim, seu nome, Santa Morte, e sua miríade de apelidos
revelam nitidamente sua identidade como santa popular que personifica a morte.
Nenhuma introdução à Santa Morte
ficaria completa sem uma breve consideração sobre uma de suas mais peculiares
características – sua identidade de gênero. Enquanto os santos populares são
abundantes nas Américas e outros esqueletos sobrenaturais operam milagres na
Guatemala e na Argentina, a Santa Morte permanece como a única santa da morte,
do Chile ao Canadá. Sua forma esquelética assexuada não contém nenhum traço de
feminilidade. São seus trajes e, em menor medida, seu cabelo que definem esta
santa como mulher. Os devotos e fabricantes de imagens produzidas em massa da
Ossuda comumente a vestem como freira, Virgem, noiva ou rainha. Túnicas
medievais vermelhas e pretas, véus de noiva brancos e túnicas de cetins
coloridas normalmente cobrem seu corpo esquelético, deixando à vista somente
suas mãos, pés e face ossudos.
Tal como os santos da morte, San
La Muerte e Rey Pascual, a Madrinha exibe um típico crânio calvo. Contudo,
seguindo a trilha de uma grande pioneira devocional, Enriqueta Romero
(carinhosamente conhecida como Dona Queta), muitos devotos adornam suas
estatuetas com perucas pretas e castanhas. Aliás, uma devota empreendedora
dirige uma próspera loja na Cidade do México onde devotos trazem suas
estatuetas para serem vestidas e penteadas para que se pareçam com a Menina
Bonita (la nina bonita, outro de seus codinomes). Porém, mais do que apenas uma
menina bonita, a Santa Morte é principalmente a Poderosa (la dama poderosa),
cujas habilidades milagreiras fizeram dela o mais potente dos santos populares
mexicanos e uma rival da padroeira nacional, Guadalupe.
Origens
As origens do culto à Santa Morte
remetem a diferentes matrizes. Enquanto sua figura pode evocar uma versão
feminina do Ceifador na cultura americana e europeia ocidental (Grim Reaper),
com raízes no catolicismo medieval, na cultura espanhola católica a morte é
identificada com a figura de La Parca. Já na cultura mexicana, a santa
esquelética seria uma versão adaptada de uma deusa indígena da morte,
geralmente asteca ou maia. Para muitos mexicanos, as realidades da história
indígena e os mitos do nacionalismo convergem para dar à Irmã Branca um
nascimento nativo no México Pré-Colombiano.
A versão mais comum da identidade
indígena da santa remete às suas supostas origens astecas, isto é, a deusa da
morte Mictecacihuatl, que, juntamente com seu marido, Mictlantecuhtli,
governava o submundo, Mictlan. Assim como a Ossuda, o casal mortífero era
representado como esqueletos ou corpos humanos com crânios no lugar de cabeças.
Os astecas não somente acreditavam que os que morriam de causas naturais
acabavam em Mictlan, como também evocavam os poderes sobrenaturais dos deuses
para causas terrenas. Com a perseguição empreendida pelos conquistadores
espanhóis em relação à religião indígena, os espanhóis tornaram clandestina a
devoção ao casal asteca e forçaram o sincretismo da crença com o catolicismo.
Assim, de acordo com essa versão, é a deusa Mictecacihuatl que ressurgiu
publicamente no santuário de Dona Queta, em 2001. Sua túnica e vestido em
estilo espanhol e seus acessórios europeus, a foice e as balanças de justiça
são uma fachada que cobriria sua verdadeira identidade asteca.
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Estátua da deusa asteca Mictecacihuatl, a qual teria sido uma das inspirações para Santa Morte. |
Outra versão é de que a Menina
Branca seria de origem Purepecha, o maior grupo indígena no Estado de
Michoacan, que nunca foram conquistados pelos vizinhos astecas. Em entrevista,
o líder de culto da Santa Morte Vicente Perez Ramos traçou as origens da santa
a Santa Ana Chapitiro, uma pequena cidade fora de Patzcuaro, onde um dos
santuários mais decorados de Santa Morte se situa. Don Vicente alega que a
santa da morte nasceu no século XVI, filha de um casal Purepecha de Santa Ana
Chapitiro. Ela possuiria o tamanho de uma mulher adulta, com uma compleição
suave e cabelo castanho. Com medo de que os espanhóis a roubassem, o casal
manteve a filha trancada em sua cabana.
Já os acadêmicos traçaram as
origens da santa à Europa ocidental medieval. A antropóloga mexicana Katia
Perdigon Castañeda, por exemplo, escreve que: “a história do conceito atual de
morte e sua iconografia, refletida na contemporânea Santa Morte, estão mais
relacionadas à religião judaico-cristã (com o catolicismo em particular) do que
com as vozes esquecidas e desconhecidas dos vencidos, ou seja, dos povos
pré-hispânicos”1. David Romo e outros localizam especificamente a gênese da
santa na figura do Ceifador do catolicismo europeu medieval, por conta da peste
bubônica, que tornou a morte uma presença constante e familiar no século XIV.
Foi nesse período, no qual ao menos um terço dos europeus foi levado pela
doença, que a morte apareceu personificada pela primeira vez como a figura
esquelética conhecida até hoje. Pintores, escultores e padres começaram
empregar a representação esquelética da morte em seu trabalho.
A figura também foi empregada
pelo clero espanhol nas Américas. Alguns grupos indígenas, como os maias no
Estado de Chiapas e Guatemala, e os Guaranis na Argentina e Paraguai, transformaram
a figura da morte em uma santa e, a partir de suas próprias tradições de ossos
ancestrais sagrados, interpretaram o cristianismo por meio de seus filtros
culturais. Isso é mais evidente na Guatemala e em Chiapas, onde o franciscano
espanhol do século XVI São Pascual Bailon foi sincretizado com a religião maia
e tornou-se popularmente, mas não oficialmente, representado como Rey Pascual,
um esqueleto com uma coroa em cima de seu crânio. Embora nunca tenha visitado
os maias do México e da Guatemala em vida, surgiu a crença de que ele tenha
aparecido em uma visão para um maia em torno de 1650, no meio de uma praga
virulenta que o frei teria ajudado a encerrar2. Durante o período colonial
espanhol, os esforços da igreja em erradicar a veneração a tais santos
esqueléticos tornaram a devoção oculta durante muito tempo, até ser tornada
pública recentemente.
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Ilustração do Rey Pascual ou San Pascualito, um santo popular da morte, na Guatemala. |
Referências específicas à Santa
Morte apareceram primeiramente nos registros coloniais espanhóis por volta de
1790, quase um século e meio depois da menção ao Rey Pascual. Um documento de
1797 dos arquivos da Inquisição, intitulado “Sobre as superstições de vários
indígenas da cidade de San Luis de la Paz”, menciona a Santa Morte pela
primeira vez. Focalizando o povo Chichimeca, situado no atual Estado de
Guanajuato, o registro da igreja fala de trinta índios que “à noite se reúnem
em sua capela para beber peiote até perderem o sentido, eles acendem velas de
ponta cabeça, algumas delas são pretas, eles dançam com bonecas de papel, eles
chicoteiam cruzes sagradas e também uma figura da morte que eles chamam de
Santa Morte, e eles amarram-na com uma corda molhada ameaçando chicotear-lhe e
queimá-la se não operar um milagre.” O milagre em questão era aparentemente
relacionado ao controle político local e, lembrando a demolição dos santuários
da Santa Morte na fronteira, ocorridos recentemente, o castigo para tais
“superstições” foi a destruição da capela onde a efígie da Ossuda era mantida3.
Em seu sagaz estudo sobre santos
populares latino-americanos, Frank Graziano menciona dois codinomes para o
santo argentino da morte, San La Muerte, que associa o santo esquelético a
Jesus. O primeiro, San Justo, e o segundo, o Senhor da Paciência, relacionam-se
diretamente com a imagem do Senhor da Humildade e da Paciência, que no México e
na América Central é mais conhecido como a figura de Cristo, o Juiz Justo4.
Essa é a representação do Cristo derrotado após o açoitamento e antes de sua
morte na cruz. Portanto, grupos indígenas no centro do México e no noroeste da
Argentina e Paraguai fizeram a mesma associação sincrética entre as duas
maiores figuras da evangelização católica – o Ceifador e Jesus. Curiosamente, o
argentino San La Muerte sobreviveu à perseguição da Igreja e permanece até
hoje, enquanto o mexicano Juiz Justo foi eclipsado pela sua contrapartida
feminina, Santa Morte.
Em resposta à perseguição da
Igreja, os devotos da Magrinha tornaram sua veneração ainda mais clandestina, a
ponto de ela desaparecer do registro histórico mexicano pelos 150 anos
seguintes, nos quais os mexicanos declaram sua independência da Espanha, perdem
uma guerra contra os Estados Unidos e lutam na sua primeira revolução no século
XX. Sem dúvida, a Poderosa continuava junto aos seus discípulos, testemunhando
tais eventos e inúmeros outros, mas a sua presença só foi voltar a ser
registrada a partir dos anos 1940. E a Santa Morte que ressurge a partir de
então até o final do século XX é quase exclusivamente a Poderosa Senhora do
Amor, simbolizada pela vela votiva vermelha.
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Na década de 1940, Santa Morte era associada com o amor. |
Quatro antropólogos, um mexicano
e três americanos, mencionaram seu papel como feiticeira do amor em sua
pesquisa entre os anos 1940 e 1950. Juntamente com Frances Toor e Oscar Lewis,
Gonzalo Aguirre Beltran, no final dos anos 1940, refere-se a orações de amor
para Santa Morte entre uma comunidade predominantemente de descendentes de
africanos no Estado de Guerrero, na costa do Pacífico. Com as referências de
Isabel Kelly e Oscar Lewis ao seu papel na mágica do amor, fica evidente que
pelo final dos anos 1950 a cobertura geográfica da Menina Linda é extensa, se
não plenamente nacional. Toor e Lewis redescobriram a santa da morte na Cidade
do México, Aguirre a encontrou na costa sul do Pacífico e Kelly cruza com suas
orações amorosas nas partes norte e central do México.
Em pesquisas realizadas nas
décadas de 1960 e 1970, foi descoberta a devoção à santa em outros lugares do
país. Em seu livro Mitos y magos mexicanos, Maria de la Luz Bernal é uma das
primeiras pesquisadoras do período a documentar a devoção organizada à Careca
(La Pelona). Ela escreve sobre grupos de mulheres vestidas de preto, que se
ajoelhavam diante do altar da santa esquelética, segurando velas acesas,
cantando em uníssono orações para a dominação de homens em suas vidas. Com
gritos de “Santíssima Morte, torture-o, mortifique-o”, as devotas buscavam a
ajuda sobrenatural da Poderosa para controlar seus maridos e namorados
errantes5.
Enquanto isso, devotos no Estado
central de Hidalgo iniciaram o que parece ter sido a mais antiga devoção a
Santa Morte. Como os santos esqueléticos sincréticos, o Juiz Justo, Rey Pascual
e San La Muerte, São Bernardo (Clairvaux), da pequena cidade de Tepatepec, é a
imagem do homem santo medieval francês que os católicos associaram com a figura
esquelética da morte. Uma das mais antigas e exclusivas representações da Santa
Morte é uma estátua de madeira, que agora é venerada no templo da família Cruz,
tem cerca de 4 pés de altura e é geralmente vestida de rainha com um robe de
cetim, uma coroa e um cetro em sua mão esquerda. Diferente da maioria das
estátuas da santa, que a retrata de pé, nesta ela está sentada em uma cadeira
de madeira. Particularmente impressionante é a sua face carnuda, com uma boca
alongada que parece estar costurada.
A família Cruz aparentemente
tinha a imagem de 200 anos em sua posse por diversas gerações, datando pelo
menos desde o final do século XVII. A matriarca octogenária da família relatou
que seus tataravós costumavam emprestar a imagem para as procissões da Semana
Santa, na qual ela ficava sentada em uma carroça juntamente com as imagens de
Cristo do Santo Sepulcro e da Virgem Maria. Acreditando ser a imagem de São
Bernardo, devotos desfilavam com a estátua pela cidade no dia 20 de agosto em
celebração à festa do santo. Embora os devotos não mais desfilem com ela na
Semana Santa, eles continuam a celebrar a mesma festividade de agosto. Longe do
olhar público, a santa esquelética fica a maior parte do seu tempo no santuário
familiar no lar dos Cruz, onde muitos vizinhos a veneram.
Em uma reviravolta estranha de
eventos, em algum momento dos anos 1950, um padre local da cidade invadiu a
casa dos Cruz e roubou-lhes a efígie. Alegando que os devotos rezavam para a
estátua com propósitos malignos, tais como assassinatos, o clérigo levou a
estátua para sua igreja paroquial, a principal de Tecatepec, onde ele a exibiu
para o público em uma capela lateral próxima à imagem da Virgem de Guadalupe!
Conforme a matriarca, o padre pediu auxílio de seu sobrinho, que era parente do
marido de Dona Cruz. Parece que os dois esperavam lucrar com o grande número de
doações que “São Bernardo” lhes traria. Por mais de 40 anos, Dona Cruz e o
resto da família foram forçados a venerar sua santa roubada no seu próprio
cativeiro6.
Para a família Cruz, o retorno de
sua santa sequestrada em 2000 era um milagre. Dona Cruz afirmou enfaticamente
que “a imagem retornou para casa por conta própria”7. Um advogado apareceu
inesperadamente na casa dos Cruz, sem que a família o tivesse contatado,
oferecendo-se para trabalhar de graça em troca do retorno de sua querida santa.
Em um encontro com o arcebispo do Estado de Hidalgo naquele ano, Dona Cruz
prometeu a ele que não celebraria “missas” ou qualquer tipo de culto para a sua
Santa Morte em sua casa. O clérigo concordou com os termos da soltura e então,
após mais de três décadas de cativeiro, a santa da morte retornou ao altar da
família. Pelos últimos dez anos, a capela da família Cruz tornou-se um dos
santuários mais populares da Santa Morte no México e nos Estados Unidos,
ficando atrás somente do santuário de Dona Queta, em Tepito. Todos os anos, em
meados de agosto, milhares de mexicanos e até mesmo estrangeiros fazem
peregrinação para pedir por bênçãos de uma das mais antigas imagens existentes
da Poderosa.
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Procissão para Santa Morte, em Tepito. |
Os devotos da Morte
É precisamente à sua reputação
como milagreira rápida e eficaz que se deve o crescimento meteórico de seu
culto desde 2001. Um breve perfil dos devotos da Santa Morte traz à luz sua
tremenda popularidade. Como seu culto é geralmente informal e desorganizado e
tornou-se público somente há dez anos, é impossível saber exatamente quantos
mexicanos e imigrantes mexicanos e da América Central nos Estados Unidos estão
entre seus devotos. Outro grande pioneiro devocional, “Pai” David Romo, fundador
da primeira igreja de Santa Morte, na Cidade do México, disse a mim e a membros
da imprensa mexicana, em entrevistas separadas, que cerca de cinco milhões de
mexicanos veneram o Anjo da Morte. Quando o questionei sobre como ele chegou a
tal número, ele explicou que está em contato com os crentes no México e nos
Estados Unidos, que lhe deram estimativas do tamanho do culto em suas cidades e
regiões.
O fato de cerca de que cinco por
cento da população mexicana, composta de 100 milhões de habitantes, pudesse ser
devota da santa não parece absurdo perto de outra evidência de sua
popularidade: as vendas de sua parafernália (velas votivas, figurinos, cartões
de oração etc.) nas milhares de lojas (hierberias e tiendas esotericas) e
barracas de mercado que vendem artigos religiosos, poções, pós mágicos e ervas
medicinais por todo o México e em muitas cidades grandes dos Estados Unidos
reduzem as vendas dos artigos de outros santos.
Um dono de loja após o outro me
disse que por volta dos últimos cinco anos seus clientes compraram mais
produtos da Santa Morte do que qualquer outra coisa, incluindo os artigos de
São Judas Tadeu, um dos santos mais populares do país. Em Morelia, Guillhermina,
cujo pai possui três lojas esotéricas na cidade, afirmou que desde 2004 a
Ossuda contabilizou cerca de metade do total de vendas em seus três
estabelecimentos. Ela ocupou mais estantes e espaços que qualquer outro santo
das dezenas de lojas e barracas que visitei nos verões de 2009 e 2010. E os
vendedores de rua que vendem uma gama colorida de bens aos motoristas parados
no trânsito, esperando para cruzar a fronteira dos Estados Unidos, oferecem
muito mais figurinos da Santa Morte do que de qualquer outro santo, mesmo de
Guadalupe. Finalmente, o culto mensal, denominado “rosário”, atrai muitos
milhares de devotos ao santuário localizado no violento e decadente bairro de
Tepito, na Cidade do México.
Pelos últimos cinco anos, a
Ossuda tem acompanhado seus devotos em suas viagens cruzando a fronteira dos
Estados Unidos e estabeleceu-se ao longo da fronteira de duas mil milhas e nas
cidades com comunidades de imigrantes mexicanos. Não de forma surpreendente, é
em cidades de fronteira, como El Paso, Brownsville e Laredo, que a evidência de
seu culto é mais forte. Sua imagem de Ceifadora, na forma de decalques em preto
e branco, situa-se nas janelas traseiras (quase sempre escurecidas) de inúmeras
picapes e SUVs, anunciando tanto a devoção de seus ocupantes como a sua própria
presença crescente. Nas mesmas lojas de parafernália religiosa encontradas no
México, comerciantes ao longo da fronteira movimentam um intenso negócio ao
vender incensos da Santa Morte, loções e, sobretudo, velas votivas. Quase a
maioria da cobertura televisiva sobre o rápido crescimento do seu culto nos
Estados Unidos foi fornecida por estações locais dessas cidades fronteiriças.
Tais notícias tendem a ser sensacionalistas, explorando os supostos laços entre
a Santa Morte com tráfico de drogas, assassinatos e até sacrifício humano.
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O comércio de estátuas, velas, incensos, entre outros objetos religiosos de Santa Morte, é bastante popular e lucrativo no México. |
Na parte norte da área
fronteiriça, a Madrinha ouve as orações e petições dos mexicanos e, em menor
medida, de imigrantes da América Central, que lhe pedem para interceder a favor
do seu sucesso na nova terra. Los Angeles, Houston, Phoenix e New York, com
suas grandes comunidades mexicanas e de imigrantes da América Central, são
locais evidentes para se encontrar a Poderosa protegendo seus fiéis. Lar da
maior comunidade de imigrantes mexicanos nos Estados Unidos, Los Angeles é a
Meca americana do culto da santa esquelética. Além de pelo menos duas lojas de
artigos religiosos que carregam seu nome (Botanica Santa Morte e Botanica de la
Santa Morte), a Cidade dos Anjos oferece aos devotos dois templos onde podem
agradecer ao Anjo da Morte pelos milagres alcançados ou pedir a ela saúde,
prosperidade e amor. A Casa de Oracion de la Santissima Muerte e o Templo Santa
Morte são os dois únicos templos dedicados ao seu culto nos Estados Unidos. O
último oferece “missas”, casamentos, batismos, rosários e cultos de cura. O seu
templo virtual, inspirado em motivos góticos
(<www.templosantamuerte.com>) transmite música devocional e algumas de
suas missas. Curiosamente, a maior parte do conteúdo do site bilíngue está em
inglês.
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Capela do Templo de Santa Morte, em Los Angeles. |
Em Houston, onde vivi por onze
anos, ainda não existe nenhum lugar público de adoração, mas a Irmã Branca
aparece em velas votivas e em pacotes de incenso, dentre outros produtos, em
centenas de estantes em supermercados locais e lojas de artigos religiosos. Em
junho de 2009, enquanto eu saía do estacionamento do supermercado Fiesta,
voltado para o público latino, em especial mexicano, no centro de Houston,
avistei uma estátua branca da santa medindo quatro pés de altura, sendo levada
no bagageiro de um antigo modelo de picape Ford. A janela traseira pintada da
caminhonete exibia um decalque de sua Santíssima Morte. Tal como em Los
Angeles, os devotos da Bayou City (cidade do rio pantanoso, um dos apelidos de
Houston - NT) podem escolher entre pelo menos três lojas de artigos religiosos
que possuem o nome da Santa Morte.
Para além dessas grandes cidades,
devotos e curiosos podem até encontrar a santa esquelética em cidades com
comunidades relativamente diminutas de imigrantes mexicanos, tais como em
Richmond, no Estado de Virginia (norte dos Estados Unidos). Nos últimos cinco
anos, a Ossuda acompanhou dezenas de milhares de seus seguidores devotos
através das fronteiras até as cidades grandes e municípios menores dos Estados
Unidos, por onde eles decidiam tentar iniciar uma nova vida por seus próprios
meios.
Santa Morte possui devotos
seguidores de todos os estratos sociais, tais como estudantes de ensino médio,
donas de casa de classe média, motoristas de táxi, traficantes de droga,
políticos, músicos, médicos e advogados. Rodrigo é um bem-sucedido advogado, de
pouco mais de vinte anos, que encontrei no famoso santuário de Dona Queta, em
Tepito. Ele foi para lá com uma vela branca a fim de agradecer à Menina Branca
por libertá-lo de sequestradores. Lá também se encontrava Claudia, uma
contadora de trinta e poucos anos, que se tornou crente dos poderes milagrosos
da santa na mesa de cirurgia. Antes de sua operação de pulmão infeccionado, seu
cirurgião deu a ela uma estatueta da Poderosa e sugeriu que Claudia evocasse
seus poderes de cura. Tal como vários que vão ao santuário de Tepito, Claudia
estava lá para agradecer à Santa Morte por ter sido curada de uma enfermidade.
Por conta de sua associação com o
crime organizado, especialmente com traficantes de droga e sequestradores, além
da condenação por parte das igrejas Católica e protestantes, crentes mais
abastados tendem a manter sua devoção no âmbito privado. De fato, desde sua
primeira menção em registros históricos, em 1797, até 2002, Santa Morte era
venerada de forma clandestina. Altares domésticos são onde os devotos prósperos
preferem realizar os rituais que evocam a santa para agir em seu favor. De acordo
com o intelectual e romancista mexicano Homero Aridjis, o Anjo da Morte possui
uma ampla gama de seguidores entre os políticos de alto escalão, estrelas de
cinema, senhores da droga e mesmo na alta cúpula da Igreja Católica nos anos
1990, antes de seu culto tornar-se público! Aridjis transformou em ficção seu
relato de ter participado de uma festa de aniversário orgíaca em 2000, com tais
devotos, no seu mais recente romance, La Santa Morte8. O casamento da estrela
da TV mexicana Niurka Marcos, em 2004, corrobora as alegações de Aridjis. A
cerimônia foi conduzida por David Romo, fundador da primeira igreja de Santa
Morte, em uma fazenda exclusiva situada fora da cidade do México9.
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Romance que alude o culto a Santa Morte, trazendo elementos reais e ficcionais. |
Ainda assim, em um país com nível
educacional que vai até a oitava série, a grande maioria de devotos se encontra
entre os motoristas de táxi, prostitutas, vendedores de rua, donas de casa e
criminosos. Uma devota típica é a madrinha do culto da Santa Morte, Dona Queta.
Antes de seu ato histórico de exibir uma estátua de tamanho real da Ceifadora
na frente de sua casa no Dia de Todos os Santos, em 2011, Enriqueta Romero
complementava a renda familiar vendendo quesadillas para vizinhos e para quem
passasse na rua. Sempre trajando um avental quadriculado azul e branco, que é
praticamente o uniforme das mulheres trabalhadoras no México, Dona Queta não
possui mais do que nível escolar básico. Seu colorido sotaque espanhol da
classe trabalhadora, apimentado de vulgaridades, reflete o violento bairro de
Tepito, na Cidade do México, onde as gangues de drogas, sequestradores,
prostitutas e contrabandistas mandam nas ruas. Dona Queta começou sua cerimônia
de rosário da Santa Morte em agosto de 2009, com um aviso para que os fiéis
retornassem rapidamente para suas casas ao final do ritual, se não seriam
importunados por “todos os malditos ladrões e bandidos das redondezas”. Um de
seus sete filhos cumpriu pena na prisão e sua soltura foi atribuída por Dona
Queta à intervenção divina da sua Menina Linda (la nina hermosa).
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Dona Queta e sua popular loja dedicada a Santa Morte. |
A jovem desempregada de dezenove
anos Raquel, que largou os estudos do ensino médio e que mora na periferia da
Cidade do México, é outra devota típica. Aparentando uma magreza anoréxica
quando a entrevistei no santuário de Dona Queta, Raquel tornou-se devota depois
que a Poderosa apareceu no meio de uma briga de gangues e a puxou uns poucos
passos, antes que um canivete atingisse seu estômago. Raquel, tal como muitos
outros crentes, estava no famoso santuário de Tepito com uma vela votiva
dourada de Santa Morte. Antes de conversar comigo sobre sua devoção, ela
colocou a vela acesa na base do altar junto a muitas outras e pediu por um
milagre de emprego à grande estátua da santa esquelética por trás do vidro de
proteção.
De acordo com meus registros,
Raquel se enquadra no perfil normal dos devotos em termos de gênero e idade.
Diferente dos Estados Unidos, o México é um país jovem, com faixa etária média
de 24 anos. Os padrinhos do culto (Dona Queta e David Romo) confirmam que a
maioria dos crentes são adolescentes e jovens adultos, entre seus vinte e
trinta anos. De mesma forma, ambos afirmam que veem mais mulheres e garotas do
que homens em seus santuários. Pai Romo disse que mais de dois terços dos que
participam semanalmente dos cultos em sua igreja são mulheres. Durante os
muitos dias em que permaneci no santuário de Dona Queta entrevistando devotos,
notei também que havia cerca do dobro de garotas e mulheres que vinham ver a
santa vestida de forma régia.
Contudo, os cultos mensais de
rosário de Dona Queta eram praticamente uma ocupação masculina. Não mais que
vinte por cento dos devotos presentes no culto de agosto de 2009 eram mulheres.
A explicação mais provável para a ausência feminina é a notoriedade de Tepito
como o bairro mais violento e criminoso da capital do México. As palavras de
alerta de Dona Queta no início do culto só confirmam tais medos. A preocupação
com a segurança no verão de 2009 fez a madrinha do culto mudar os cultos do fim
da noite para o fim da tarde. Dessa forma, os devotos poderiam sair antes do anoitecer,
evitando os assaltantes noturnos do bairro.
A morte do crime e castigo
De forma não tão paradoxal, a
Santa Morte possui um apelo especial para assaltantes e outros que vivem à
margem das leis mexicana e americana. Afinal de contas, as próprias origens do
culto público estão ligadas ao crime. A efígie de larga escala da santa de Dona
Queta, que é objeto de devoção para dezenas de milhares de chilangos (gíria que
nomeia os residentes da Cidade do México), foi um presente para ela dado por um
de seus filhos, que agradeceu à Poderosa por sua rápida soltura da prisão por
um crime não especificado. Dentre as mulheres enfermas e grávidas, “aqueles na
prisão” são o objeto de orações coletivas especiais no culto mensal do rosário.
Em penitenciárias mexicanas,
texanas e californianas, o culto da Ossuda é tão difundido que em muitos ele é
o objeto principal de devoção, superando Guadalupe e até São Judas, o padroeiro
das causas perdidas. Meu sobrinho, Roberto, trabalhou como guarda na prisão
estadual de segurança máxima em Morelia nos últimos três anos. Em junho de
2009, Roberto não só detalhou a devoção à Santa Morte entre os prisioneiros,
mas também pintou um retrato de um sistema penal inteiro envolvido em sua
veneração. Das 150 celas na prisão, Roberto estimou que aproximadamente 40
presos ergueram altares feitos à mão à Poderosa, a quem confiam que possa
libertá-los mais cedo. Carreiras de cocaína, uísque feito na prisão (turbo),
cigarros e maconha estão entre as oferendas mais comuns nesses altares. Há oferendas
também tatuadas nas costas, peito e braços dos prisioneiros, num trabalho feito
por três detentos que cobram entre quatro e trinta dólares por tatuagem. De
acordo com Roberto, as tatuagens do Anjo da Morte são mais populares do que de
qualquer outro santo.
Além dos que cumprem pena, muitos
guardas, assistentes sociais e até advogados pertencem ao culto da Santa Morte.
Roberto disse que dez de seus 48 colegas são devotos e que não é incomum ver
advogados e assistentes sociais na prisão exibindo medalhões dourados da santa
em seu peito. Em um ambiente de trabalho tão perigoso, cheio de drogas e armas
rústicas, pode-se imaginar o apelo da proteção sobrenatural oferecida pela
Poderosa. Em menos de uma década, ela se tornou a santa padroeira do sistema penal
mexicano e é também popular de uma forma crescente nas prisões americanas, em
especial no sudoeste e na Califórnia.
Muitos daqueles que correm o
risco de serem pegos por seus crimes pedem à Magrinha por proteção sobrenatural
de seus inimigos. A vela votiva da Santa Morte que exclama “lei, fique longe!”
(geralmente impressa de forma bilíngue em espanhol e inglês) é encontrada nas
lojas por todo o México e Estados Unidos. Da mesma forma, “morte aos meus inimigos”,
a vela de sete cores, vende bem entre aqueles cujo trabalho os coloca em
contato direto e constante com a morte. De fato, mesmo antes do crescimento
astronômico do culto iniciado por Dona Queta, o primeiro contato que os
mexicanos tiveram com a Santa Morte foi nas páginas policiais dos tabloides diários.
Depois de sequestrar mais de vinte pessoas na década de 1990 e coletar mais de
40 milhões de dólares de resgate, Daniel Arizmendi Lopez foi preso em sua casa
em agosto de 1998. Conhecido com o Cortador de Orelhas (Mocheorejas), por seu
horrível hábito de enviar as orelhas cortadas de suas vítimas para seus
familiares, Arizmendi atraiu mais atenção nas manchetes pela sua devoção à
então quase desconhecida santa da morte. Os agentes da lei mexicanos
descobriram um altar para a Santa Morte em sua casa e, curiosamente, permitiram
que levasse sua estatueta para a prisão, onde pudesse continuar sua devoção
atrás das grades10. Assim, três anos antes de Dona Queta começar seu culto
público, um dos mais famosos sequestradores na história do país apresentou de forma
violenta a Santa Morte para o público mexicano.
Desde então, a Irmã Branca
tornou-se presença regular nas páginas policiais dos tabloides mexicanos e
frequentemente aparece nas reportagens das redes locais de TV na fronteira. As
polícias do México e, crescentemente, dos Estados Unidos descobrem
rotineiramente altares e parafernália devocional da Santa Morte nas casas e em
posse de criminosos suspeitos, especialmente traficantes. A polícia mexicana
prendeu Angel Jacome Gamboa em março de 2009, acusando-o de assassinar doze
policiais em Rosarito Beach, a mando de seu renomado chefe, um dos maiores
líderes do crime organizado de Tijuana. Uma das armas do assassino mostradas à
imprensa era um revólver com uma imagem dourada da Santa Morte gravada em relevo
na coronha. A santa da morte não poderia ter ficado mais perto do matador à
medida que ele apertava o gatilho e despachava suas vítimas para o seu abraço
ossudo.
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Santa Morte ainda conserva o estigma negativo de ser uma "santa de criminosos e marginais", devido a sua popularidade em presídios mexicanos. |
A violência também visitou as
maiores figuras no culto. Nascido e criado em Tepito, o Comandante Pantera era
uma estrela em ascensão entre os seguidores da Irmã Branca. Na periferia
miserável da Cidade do México, em Ecatepec, o jovem líder de culto e
motociclista entusiasta, conhecido também como Jonathan Legaria Vargas, ergueu
uma estátua preta gigante de 72 pés de altura da santa. Mesmo antes de a
construção terminar, a efígie gigantesca e seu patrono viram-se em uma
controvérsia. Funcionários municipais, alegando que ela violava as leis de
zoneamento, ordenaram que o Comandante Pantera removesse a impressionante
estátua, que podia ser vista de uma das maiores avenidas que atravessava a
cidade. Ignorando as reclamações de pais na vizinhança, que diziam que suas
crianças estavam tão assustadas com a imensa santa esquelética que não podiam
dormir à noite, Legaria não só recusou a acatar as ordens municipais, como
sugeriu que a violência poderia emergir se a polícia tentasse retirar à força a
estátua. Tanto a mídia mexicana como a americana deram ampla cobertura para a
controvérsia e seu carismático protagonista. Devotos e residentes curiosos
foram ao terreno do templo de Ecatepec para olhar em primeira mão a “maior
estátua de Santa Morte do mundo”.
Uma violência diferente da que o
Comandante Pantera tinha em mente o pegou de surpresa no início da manhã de 31
de julho de 2008. A Ossuda veio para um dos seus devotos mais proeminentes
apenas alguns minutos após ele terminar seu programa de rádio de fim de noite
dedicado à sua devoção. Vários atiradores alvejaram o Cadillac Escalade de
Legaria’s com quase duzentas balas, cinquenta das quais mataram na hora o líder
de culto de 26 anos. A Santa Morte poupou suas duas acompanhantes, que foram
criticamente feridas, mas sobreviveram. Tal matança é típica de assassinatos
relacionados a drogas, mas, como muitos casos de homicídio no México, mais de
um ano se passou sem nenhuma resolução11.
No início de 2007, três homens
algemados foram executados a mando do Cartel do Golfo em frente a uma imagem da
Santa Morte, na periferia de Nuevo Laredo. Após alguns meses, David Romo tratou
de desvincular qualquer associação entre as execuções e o culto à santa. Para
isso, desvelou uma imagem radicalmente nova da Santa Morte em seu templo, no
distrito de Morelos, na Cidade do México. Uma estátua em tamanho real de um
anjo feminino de cabelos castanhos, com uma compleição de porcelana e asas de
penas, substituiu a tradicional santa esquelética no santuário principal. Romo
batizou o novo ícone de “Anjo da Morte” e pediu aos membros da igreja que
substituíssem suas imagens da Ossuda por esta, a nova e linda face da morte.
Após três anos, a igreja permanece repleta de figuras, pinturas e velas votivas
com a forma esquelética da santa, enquanto que as barracas de venda, dentro e
fora do templo, oferecem quase somente imagens da Ceifadora retratada em sua
forma tradicional! Romo culpou os vendedores pela falta de parafernália do Anjo
da Morte, que não estariam interessados em oferecer a nova imagem enquanto a
antiga vendesse tão bem.
Vela de sete cores da morte
Enquanto não há como negar seu
apelo especial para aqueles que vivem, trabalham e morrem no mundo criminoso,
incluindo agentes da lei, minha pesquisa tem como objetivo considerar a santa
da morte em sua fascinante totalidade. Se focalizássemos somente na vela votiva
preta, representando o lado obscuro da devoção, estaríamos ignorando as velas
mais populares – vermelha, branca e dourada – que são acesas pelos devotos para
propósitos muitos diferentes dos relacionados ao crime e castigo.
Com suas sombras de arco-íris, a
poderosa vela de sete cores captura precisamente a identidade multicolorida da
Poderosa. Essa vela, dentre as mais vendidas, é oferecida por devotos quando
estão à procura de intervenção sobrenatural em múltiplas frentes. Por exemplo,
a que comprei em Morelia é estruturada dentro de uma borda de quatorze crânios
brancos e, à semelhança/retrato da Santa Morte, na parte da frente do vaso da
vela possui balanças equilibradas, representando justiça e estabilidade. Em
caracteres grosseiramente gotejados, lembrando mensagens escritas a sangue nos
muros de filmes de horror americanos, na base da vela, logo abaixo de sua
túnica, lê-se MORTE AOS MEUS INIMIGOS (MUERTE CONTRA MIS ENEMIGOS).
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As velas para Santa Morte. |
A oração à Linda Menina na parte
de trás da vela exibe uma petição específica para trazer de volta um marido ou
namorado que se foi e um pedido geral para proteção e benefício. Tendo em mente
companheiros infiéis, o início da oração segue-se: “Quero que a senhora (Santa
Morte) entregue (Fulano de Tal) humilde aos meus pés para que ele cumpra as
suas promessas”. A oração termina em grande nível: “Peço que a senhora concorde
em ser minha padroeira e que me conceda todos os benefícios que Lhe pedir até
meu último dia, hora e minuto.” Em um único objeto ritualístico das cores do
arco-íris, a Madrinha despacha justiça, restaura o equilíbrio, neutraliza os
inimigos, devolve homens infiéis e concede uma miríade de favores. A
consideração ao espectro completo de cores das velas votivas, e não somente da
cor preta, permitirá um rico entendimento da ascensão dramática do culto da
Santa Morte na última década.
A vela marrom serve para assuntos
de esclarecimento, discernimento e sabedoria, ainda que esta não esteja entre
as velas mais populares. O santo argentino San La Muerte parece dedicar muito
mais tempo e energia que a Santa Morte para ajudar seus devotos a encontrar
objetos roubados e perdidos. Membros do culto mexicano e da América Central
parecem não apelar à santa para a recuperação de pertences perdidos. Contudo,
quando o fazem, uma vela cor de café é a recomendada para o serviço.
Em contraste com a vela marrom, a
vela branca é uma das mais vendidas nas barracas de mercado e nas lojas
“esotéricas”. É também a vela mais comum nos santuários do México, tais como os
de Dona Queta e de David Romo. Pureza, proteção, gratidão e consagração são os
mais frequentes atributos da vela sem cor, isso combinado com o fato de que o
esqueleto da Ossuda e de dois de seus apelidos mais comuns referirem-se à
ausência de cor (Menina Branca e Irmã Branca).
A vela preta está associada a
trabalhos de vingança, dano e proteção contra a “magia negra” e os inimigos.
Ela é a que mais demora a vender e raramente aparece em lugares devocionais nas
beiras de estradas e calçadas. Obviamente, por conta de sua associação entre o
público geral com a “magia negra” e bruxaria, muitos devotos que regularmente
ou até ocasionalmente usam essas velas provavelmente preferem acendê-las na
privacidade de seus lares, longe de olhos críticos. Não obstante, nos muitos
altares domésticos que visitei pessoalmente e nos que vi por fotos, incluindo
locais de crimes, a mais negra das velas está entre as menos populares. De
qualquer forma, nas economias religiosas competitivas do México e dos Estados
Unidos, a vela votiva preta serve como um dos produtos do culto mais
exclusivos.
Devotos que buscam neutralizar
inimigos, se vingar de erros imaginários e reais ou proteger um carregamento de
cocaína destinada a Houston ou Atlanta podem tentar alistar a Santa Morte para
sua causa ao fazer-lhe uma oferta de vela preta. Criados como católicos,
praticantes ou não, a maioria dos devotos sente-se muito mais confortável ao
pedir à santa popular, que não vai julgá-los para realizar milagres não
cristãos do que dirigirem-se aos santos tradicionais que, provavelmente,
recusarão uma bênção a um carregamento de drogas ou outros atos ilícitos.
O vermelho, junto com o branco e
o preto, figura entre uma das cores históricas do culto e é uma das velas
votivas que mais vendem, segundo minha pesquisa com os comerciantes nos dois
países. Como pesquisador, deparo-me com surpresas intrigantes ao longo do
trabalho de campo. Antes de partir para o México, no verão de 2009, não fazia a
menor ideia da importância suprema das velas vermelhas e do propósito a que
serviam. Nada do que havia sido publicado dentro e fora da academia sobre a
Santa Morte dava pista alguma sobre o seu papel como doutora sobrenatural do
amor, especialmente para mulheres mexicanas e da América Central. Entrevistas
com devotos, líderes de culto e vendedores de artigos religiosos revelaram uma
Poderosa que provavelmente gasta mais tempo atendendo aos assuntos do coração
do que qualquer outro assunto. Rosa, uma faxineira de 32 anos, de Patzcuaro,
Michoacan, por exemplo, coloca uma vela vermelha acesa no seu altar doméstico
para que a Irmã Branca mantenha seu ex-marido abusivo longe dela e de seus
quatro filhos.
Simbolizando paixão, amor e
fortes emoções, a cera vermelha queima em altares de Chiapas a Chicago, onde
amantes dispensados e namoradas ciumentas pedem à santa, que está geralmente
vestida de noiva, para consertar seu coração partido ou dobrar e trazer de
volta seu marido ou namorado inconstante. De fato, as primeiras referências
escritas à santa esquelética no século XX a mencionam nesse contexto. No livro,
Treasury of Mexican Folkways, publicado em 1947, Francis Toor menciona diversas
orações à Santa Morte envolvendo a domesticação de homens que se comportavam
mal.
No clássico estudo antropológico
de Oscar Lewis, publicado no final dos anos 1950, The Children of Sanchez,
Marta, residente em Tepito, diz ao antropólogo americano que sua irmã Antonia
tinha pedido à Santa Morte o fim dos casos extramaritais de seu marido Crispin.
“Da primeira vez que minha irmã Antonia me contou sobre os desvios de Crispin,
ela me aconselhou para rezar para a Santa Morte à meia-noite por nove noites
seguidas, com a foto de Crispin e uma vela feita de sebo na minha frente. Ela
prometeu que, antes da nona noite, meu marido esqueceria outras mulheres.
Comprei a oração de novena de um homem que me vendeu essas coisas no bairro e a
decorei.” A oração que Antonia recitou é a mesma citada acima, a petição para o
retorno do marido “humilde aos meus pés”.
Além das três cores tradicionais,
as velas douradas de Santa Morte competem com as velas brancas pelo segundo
lugar em vendas nas barracas de mercado e lojas de produtos religiosos e são,
junto com as velas sem cor, a cera colorida mais comum em santuários públicos,
incluindo os de Dona Queta e David Romo. O dourado é a cor do dinheiro, da
prosperidade e da abundância no culto. Sofrendo as demissões e subempregos na
pior recessão econômica dos Estados Unidos e México desde a Grande Depressão,
centenas de milhares, se não milhões, deixam uma vela votiva dourada aos pés
ossudos da Santa Morte em troca de bênçãos financeiras. Muitos devotos no
santuário histórico de Dona Queta estão lá com velas douradas em mãos para
pedir emprego à Poderosa.
A santa, que tem a reputação de
“quebrar o galho”, tornou-se a padroeira oficial de numerosos donos de pequenos
negócios por todo o México e em partes dos Estados Unidos. Yolanda, de 34 anos,
clamou à Madrinha ajuda para começar seu próprio salão de beleza na Cidade do
México e até ergueu um altar no seu estabelecimento para garantir um fluxo
constante de clientes. Yolanda é tão grata a sua padroeira que, a cada dois
anos, ela contrata um conjunto de mariachis por 160 dólares para fazer um
tributo musical à Magrinha no culto mensal do rosário. Curiosamente, a enérgica
cabeleireira pediu tanto a Guadalupe quanto a São Judas para auxiliá-la a
montar seu negócio antes de recorrer à Santa Morte. Yolanda disse que sua nova
padroeira era mais confiável que os outros. A santa não atua somente como
agenciadora de empregos e filantropa divina, mas também ocupa uma importante
posição na economia comercial, na qual as vendas de seus retratos em objetos
ritualísticos e mesmo camisetas, agasalhos e tênis representam um negócio multimilionário.
Além de atuar no mercado, a
Santíssima Morte realiza um papel indispensável como curandeira divina. Em meu
trabalho anterior sobre Pentecostalismo e Catolicismo Carismático, mostrei como
a cura divina é a força motora por trás do impressionante crescimento dessas
formas de cristianismo centradas no Espírito Santo12. De forma similar, um dos grandes
paradoxos do culto é que uma santa que personifica a própria morte é
encarregada de preservar e prolongar a vida por meio de seus incríveis poderes
curativos. Aqui a Santa Morte não é a Ceifadora que colhe as almas com sua
foice, mas a Mãe de todos os médicos, consertando corpos partidos e ossos
fraturados. A vela roxa é a que simboliza essa cura sobrenatural.
Uma disparidade curiosa do culto
reside entre a grande ênfase depositada pelos devotos sobre a cura e a relativa
ausência de velas cor de lavanda nos santuários e nas lojas. Pode ser que seja
uma das cores mais novas que ainda está para ser mais adotada pelos fiéis ou,
ainda, que muitos dos que buscam uma cura milagrosa preferem a cobertura
extensa da vela de sete cores, que inclui o roxo no seu arco-íris. Qualquer que
seja o caso, a vela púrpura iluminará os caminhos nos quais a santa da morte
age para preservar e estender a vida humana no contexto dos agentes patológicos
da pobreza no México e Estados Unidos.
A Santa Morte, no espírito do
tempo, é um formidável ser multitarefas. Se os papéis de médica, agenciadora de
empregos, doutora do amor e anjo vingador não são suficientes, ela também serve
como a padroeira da justiça. Devotos com problemas legais e que buscam uma
solução justa para seus problemas oferecem velas devocionais verdes para a
Poderosa, que é geralmente representada com as balanças da justiça em sua mão
direita. Ela não exerce tanto o papel de juíza, mas de advogada sobrenatural.
Os juízes julgam, e um dos grandes atrativos da santa entre os fiéis é sua
atitude de não julgamento. Como advogada divina, Santa Morte é mais interessada
em conseguir o melhor acordo para seus clientes devocionais do que estabelecer
sua inocência ou culpa. Em um país onde a justiça e a igualdade perante a lei
são frequentemente um artigo em falta, milhões de mexicanos sentem que somente
pela intervenção divina eles teriam uma chance de resolver seus problemas
legais. E se sua defensora sobrenatural não está apta a ajudá-los a vencer o
seu caso, devotos podem encontrar consolação na ideia de que mais cedo ou mais
tarde os perpetradores da injustiça, junto com todos os mexicanos, sentirão a
foice igualadora da Ceifadora.
Obviamente, é a vela de sete
cores que melhor representa esses grandes poderes multitarefas da Santa Morte.
É fácil entender por que essa, a mais nova das velas coloridas, é uma das que
melhor vendem, juntamente com a vermelha, a branca e a dourada. Provavelmente
baseada na vela dos sete poderes (siete potencias) da Santería, a principal
religião derivada da diáspora africana em Cuba, o instrumento devocional com as
cores do arco-íris reúne todos os poderes da santa em uma só vela. Em um país
assaltado por uma das piores recessões econômicas em décadas, violência
pandêmica, uma mortal guerra contra as drogas, muitos mexicanos voltam-se para
a Madrinha para ajudá-los em múltiplas frentes.
NOTAS:
1 PERDIGÓN CASTANEDA, J. Katia.
La Santa Muerte: Protectora de los hombres. Mexico City: Conaculta, 2008. p.
21.
2 FELDMAN, Lawrence H. The War
Against Epidemics in Colonial Guatemala, 151-1821. Raleigh, NC: Boson Books,
199, p. 23-26.
3 PERDIGÓN CASTANEDA, J. K. Op.
cit., p. 33.
4 GRAZIANO, Frank. Cultures of
Devotion: Folk Saints of Spanish America. New York: Oxford University Press,
2007. p. 78.
5 BERNAL, Maria de la Luz. Mitos
y magos mexicanos. Mexico City: Grupo Editorial Gaceta, 1982. p. 27.
6 PERDIGÓN CASTANEDA, J. K. Op.
cit., p. 127.
7 PERDIGÓN CASTANEDA, J. K. Op.
cit., p. 128.
8 Homero Aridjis, entrevista com
o autor em 16 janeiro de 2011.
9 FERRIS, Susan. Saint Death
Calls to the Living in Mexico City. Atlanta Journal-Constitution , 9 de março
de 2004; David Romo, entrevista com o autor em 5 julho de 2009.
10 La Revista Peninsular.
Detienen al peligroso secuestrador Daniel Arizmendi. 18 de agosto de 1998.
11 NAVARRO, Juan Manuel. Sepultan
hoy a líder del templo de la Santa Muerte. El Universal, 1 de agosto de 2008.
Disponível em: <http://www.eluniversal.com.mx/notas/526952.html>.
12 CHESNUT, R. Andrew.
Competitive Spirits: Latin America’s New Religious Economy. New York: Oxford
University Press, 2003.
FONTE: CHESNUT, R. Andrew. Santa Morte, santa esquelética no México e nos Estados Unidos. Tradução de Karina Kosicki Bellotti. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 55, p. 195-217, jul./dez. 2011.