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Leandro Vilar

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A lenda da Serra das Esmeraldas no Brasil

Apesar de realmente existirem jazidas de esmeralda no Brasil, no entanto, no passado, no período Colonial (1500-1816), demorou-se para descobrir jazidas e minas dessa preciosa joia, fato esse que os poucos exemplares encontrados atiçavam a cobiça e expectativas de exploradores, os quais na ausência de ouro e prata, empreendiam expedições pelas selvas e sertões atrás das pequenas pedras verdes. Todavia, essa busca levou ao surgimento de lendas sobre serras que seriam recheadas por minas de esmeraldas a tal ponto que quem as descobrisse, tornar-se-ia o homem mais rico do mundo. 

Desde que os portugueses chegaram em 1500 nas terras que se tornaram o Brasil, havia o interesse de saber se existiriam metais preciosos ou joias naquele território. Os franceses, espanhóis e holandeses também procuraram por jazidas e minas. Mas na maior parte das vezes consistiam de meros boatos, e somente quantidades ínfimas de ouro, esmeraldas e diamantes eram encontradas, já que os povos indígenas do Brasil não tinham o hábito de praticar a mineração, tampouco apresentavam grande interesse por tais bens preciosos; diferente de povos como os Incas, Astecas e Maias. 

Por conta disso, muitos anos se passaram e lendas sobre minas de ouro, prata, esmeraldas e diamantes foram surgindo, além de histórias de cidades perdidas que lembravam a fabulosa El Dorado da tradição difundida pelos espanhóis. No entanto, algumas capitanias ganharam mais destaques do que outras por supostamente serem a localização da lendária serra das esmeraldas. Dessa forma, arrisco a dizer que o Brasil vivenciou uma "corrida das esmeraldas" que durou quase 150 anos, e somente findou-se quando descobriu-se as minas de ouro. Embora que posteriormente jazidas de esmeraldas foram finalmente encontradas, mas o interesse por essa gema já tinha diminuído. 

Assim, o presente texto comentou a respeito desse sonho verde em encontrar a lendária Serra das Esmeraldas, a qual supostamente estaria situada nos sertões da Bahia, do Espírito Santo ou em Minas Gerais. 

A Serra da Piedade, em Caeté, no estado de Minas Gerais, foi considerada no século XVII como podendo ser a lendária serra das esmeraldas. 

Em busca das esmeraldas na Bahia

As menções mais antigas sobre a existência de esmeraldas ainda datam da primeira metade do século XVI. Os capitães donatários de Pernambuco e Bahia, em 1538, ainda nos primórdios da colonização portuguesa, apresentaram interesse em desbravar os sertões atrás de esmeraldas, ouro e prata. Tentou-se solicitar do rei, direito de promover entradas sob patrocínio real, mas D. João III recusou as propostas. Além disso, não se sabe se expedições foram realizadas por outros homens nesse período. (MAGALHÃES, 1978, p. 30). 

Durante as décadas de 1550 e 1560 os governadores-gerais do Brasil ordenaram entradas para desbravar os sertões baianos, mas a maioria foi abortada devido a ataques de indígenas, doenças, acidentes e falta de alimentos; as que tiveram sucesso em explorar o território, não descobriram nenhuma mina ou jazida. 

Todavia, em 1571 ou 1572 ocorreu a entrada comandada por Sebastião Fernandes Tourinho, a qual partiu de Porto Seguro e passou meses em campo. Tourinho e seus homens teriam percorrido os sertões baianos e alcançado o que hoje são terras de Minas Gerais. Nessa longa expedição ele e seus homens acharam pedras verdes e retornaram para Porto Seguro, apresentando o relativo sucesso obtido. A ideia de que poderia haver uma mina de esmeraldas em algum lugar no interior das Capitanias da Bahia ou de Porto Seguro, levou o governador enviar Antônio Dias Adorno para realizar nova missão a fim de encontrar possíveis minas, no entanto, Adorno retornou em 1574, não obtendo sucesso, apesar que localizou jazidas de cobre e ferro. (DELVAUX, 2009, p. 117-118). 

A entrada de Tourinho repercutiu consideravelmente na época, fato esse que o cronista Pero de Magalhães Gândavo (c. 1540 - c. 1580) comentou a respeito da existência de uma serra de esmeraldas nos sertões da Capitania de Porto Seguro. Seu livro foi publicado em 1576 e dizia o seguinte: 

"A esta Capitania de Porto Seguro chegaram certos índios do sertão a dar novas dumas pedras verdes que havia numa serra muitas léguas pela terra dentro, e traziam algumas delas por amostra, as quais eram esmeraldas, mas não de muito preço. E os mesmos índios diziam que daquelas havia muitas, e que esta serra era muito formosa e resplandecente. Tanto que os moradores desta capitania disto foram certificados, fizeram-se prestes cinqüenta ou sessenta portugueses com alguns índios da terra e partiram pelo sertão dentro com determinação de chegar a esta serra onde estas pedras estavam". (GÂNDAVO, 2008, p. 75). 

Os governadores da Bahia e de Porto Seguro continuariam a enviar entradas para os sertões atrás de minas de esmeraldas, ouro e prata, inclusive nessa época a lenda da serra de Sabarabuçu passou a ser difundida, em que alguns diziam ser uma serra com minas de prata, situada em Sergipe del Rey ou no interior da Bahia, mas outros falavam que era uma serra com minas de esmeraldas, situada no Espírito Santo

A serra das esmeraldas no Espírito Santo

Ainda no século XVI a lenda de que haveria minas de esmeraldas no Espírito Santo passou a ser difundida, embora não se saiba exatamente quando ela começou. Fato esse que entradas e expedições particulares foram realizadas pelos sertões daquela capitania. Em alguns casosm alguns exemplares foram encontrados, atestando em parte a veracidade da lenda, até porque como foi visto posteriormente, alguns exploradores mentiram a respeito de terem achado esmeraldas no intuito de ganharem patrocinadore; também ocorreu a condição de alguns homens confundirem cristais e outras gemas verdes como sendo esmeraldas. 

Apesar disso, as tentativas de buscar essas gemas preciosas não pararam. Exemplo esse que no Espírito Santo, a família Coutinho que detinha controle daquela capitania, alguns de seus membros dedicaram-se a caça de esmeraldas por até três gerações consecutivas como o caso de Marcos de Azeredo Coutinho, o Velho, seu filho Domingos de Azeredo Coutinho (1596-1664) e o neto Marcos de Azeredo Coutinho (1619-1680), foram alguns membros dessa família que dedicaram-se as bandeiras em busca de esmeraldas. 

Segundo informações dadas pelo Conselho Ultramarino, em 1611, Marcos de Azeredo teria sido um dos descobridores da "terra das esmeraldas", o problema é que nem ele mesmo sabia onde exatamente ficava essa localidade, e as pedras verdes achadas eram turmalinas, que naquele tempo não era consideradas tão preciosas como hoje em dia. Na ocasião, Marcos foi com amigos, parentes e criados explorar os sertões da capitania da sua família. Apesar de não terem encontrado esmeraldas de verdade, ainda assim, seus filhos e neto dariam continuidade as expedições atrás desse lugar. Além de que outras pessoas também passariam a se interessar por isso.

Turmalinas verdes são facilmente confundidas com esmeraldas.

Na década de 1630 outras bandeiras foram armadas para explorar o sertão capixaba atrás das jazidas de esmeraldas que os Coutinho alegavam existir. E isso incluiu até mesmo os jesuítas como o padre Inácio de Siqueira que conseguiu da Coroa portuguesa um alvará de crédito de 4 mil cruzados para montar uma bandeira atrás das esmeraldas. A expedição se prolongou de 1634 a 1641, havendo várias viagens, as quais todas resultaram infrutíferas. No entanto, os Coutinho tentaram em 1644, encontrar definitivamente a tal serra lendária, na ocasião, Domingos, seu irmão Antônio e o filho Marcos de Azeredo, viajaram naquela época, mas também falharam em encontrar as esmeraldas. (REIS, 2010, p. 6). 

Apesar do fracasso, Domingos Coutinho não desistiu e recorreu ao patrocínio real, e em 1647, ele, seu irmão e filho realizaram nova entrada, seguindo com muitos indígenas na missão para desbravar o território e se proteger de tribos rebeldes. A expedição daquele ano encontrou algumas pedras verdes, possivelmente turmalinas, já que na prestação de contas com a Coroa, constatou-se não se tratarem de esmeraldas. 

Após novo fracasso, Domingos, Antônio e Marcos adiaram por muitos anos novas tentativas de buscar esmeraldas, fato esse que somente em 1660, pai e filho empreenderam nova tentativa, partindo de Vila Velha do Espírito Santo, navegando pelo Rio Doce, o Rio Coarici-Mirim, o Rio Veado e outras localidades. Na ocasião, gemas foram achadas o que teria incluído supostamente um diamante, embora haja dúvidas quanto a isso. No entanto, as gemas encontradas foram enviadas à Lisboa, atestando-se terem valor significativo, mesmo não sendo esmeraldas. 

Expedições atrás de esmeraldas continuaram através dos anos, mas sendo infrutíferas e com o tempo a família Coutinho desistiu da ideia. Fato esse que em 1674, o capitão donatário Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, vendeu a capitania para Francisco Gil de Araújo, embora que esse somente assumiu o cargo de governo em 1678, antes dele o capitão-mor João Gonçalves de Oliveira governou de forma interina. (REIS, 2012, p. 4-5). 

Durante o governo de Francisco Gil, o qual deu atenção a questões mais concretas e urgentes, como reformar a capital Vila Velha e realizar obras nas fortificações da capitania e até construir novos fortes, o capitão interino João Gonçalves passou a deter por decreto real, o direito de armar bandeiras para capturar indígenas e explorar os sertões capixabas, indo até mais além. No entanto, João Gonçalves também era homem que sonhava com a serra de esmeraldas, fato esse que numa carta redigida por ele, informava que em 1672 havia ouvido dizer as esmeraldas ficava na serra do Sabarabuçu, uma localização lendária que ficaria situada em território hoje correspondente a Minas Gerais, tendo sido confundida com a Serra da Piedade. Em 1675, ele organizou os preparativos para uma bandeira até essa serra, o que o levou a se desentender com o capitão donatário Francisco Gil, que conseguiu impedir a bandeira atrás de esmeraldas. (REIS, 2012, p. 7). 

Fernão Dias: o caçador de esmeraldas

Fernão Dias Paes (c. 1608-1681) foi um dos mais famosos bandeirantes da história brasileira, tendo dedicado sua vida a essa ocupação, participando de várias expedições por São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e talvez o Uruguai, para caçar indígenas, guerrear, mapear territórios e procurar por riquezas minerais. 

Em 1671 o governador-geral do Brasil, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, recomendou ao bandeirante Fernão Dias que armasse bandeira para encontrar a lendária Sabarabuçu, a qual seria a serra das esmeraldas que os capixabas procuravam desde o começo do século XVII. Lisonjeado por ter sido a escolha principal do governador-geral (alguns historiadores apontam que na verdade, ele teria apresentado a ideia a Mendonça), Dias aceitou a proposta. Em 1672 o governador-geral nomeou o bandeirante como "governador das esmeraldas", caso ele obtivesse sucesso em sua bandeira, passando a deter posse sobre aquelas terras e sua exploração, e evidentemente tendo que negociar com o governo. (DELVAUX, 2009, p. 154). 

Estátua do bandeirante Fernão Dias Paes, alcunhado de o "caçador de esmeraldas". 

Em 1673 os bandeirantes Matias Cardoso de Almeida e Bartolomeu da Cunha Gago partiram na frente, para preparar rotas, postos de parada, hortas e estoques de suprimentos. Assim, em 1674 foi a vez de Fernão Dias iniciar a bandeira, no entanto, a empresa demorou mais do que imaginado. Até hoje não se tem certeza quais caminhos as três bandeiras realizaram pelo interior de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais, já que normalmente as bandeiras não costumavam serem registradas de forma regular e com detalhes. Além disso, pelo fato de não encontrarem minas de esmeraldas, nem de ouro e prata, com o tempo alguns bandeirantes abandonaram as expedições, o que levou Fernão Dias ter que retornar a São Paulo várias vezes e postergar novas expedições. Em 1675 o governador-geral Mendonça faleceu em Salvador, mas Dias estava confiante de que o novo governador manteria a palavra sobre os títulos e mercês caso a serra das esmeraldas fosse encontrada. 

Os anos se passaram e em 1681, Fernão Dias redigiu em carta que havia encontrado pedras verdes que ele julgava serem esmeraldas. Mas não havia sinal da tal serra ou jazidas, apesar de que ele estivesse confiante que Sabarabuçu estivesse por perto, no entanto, ele faleceu devido a uma forte febre, no meio da expedição, em território hoje pertencente a Minas Gerais, em data incerta. Na época ele já era um homem idoso e morreu tentando encontrar as esmeraldas que sonhava. (MAGALHÃES, 1978). 

Com a descoberta de jazidas de ouro na década de 1690, a busca por esmeraldas foi deixada de lado, pois no XVIII teve início a corrida do ouro. 

NOTA: Fernão Dias tornou-se popular nas artes, sendo tema de poemas, romances e filmes. Destaco: O poema O caçador de esmeraldas (1902) de Olavo Bilac; a peça O Governador das Esmeraldas (1911) de Carlos Góes; os romances A bandeira de Fernão Dias (1928) e O sonho das esmeraldas (1936), ambos de Paulo de Setúbal; o filme O Caçador de Esmeraldas (1979). 

Referências bibliográficas:

DELVAUX, Marcelo Motta. As minas imaginárias: o maravilhoso geográfico nas representações sobre o sertão da América Portuguesa - séculos XVI a XIX. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. 

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos de Brasil. Brasília, Senado Federal, 2008. 

MAGALHÃES, Basílio de. Expansão geográfica do Brasil Colonial. 4a ed. São Paulo, Nacional, 1978. (Coleção Brasiliana, vol. 45). 

REIS, Fabio Paiva. O imaginário metalista luso-brasileiro colonial: a Serra das Esmeraldas na segunda metade do século XVII. Revista Cordis, n. 4, 2010, p. 1-12.

REIS, Fabio Paiva. Disputas administrativas na periferia do Império Português: o Espírito Santo nas buscas pela serra das esmeraldas. Revista Onis Ciência, Braga, v. 1, ano 1, n. 1, maio/agosto 2012, p. 5-17. 

Links relacionados: 

Uma breve história das Entradas e Bandeiras

Os bandeirantes

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

A Rainha de Sabá

Citada brevemente na Bíblia e no Corão, descrita como uma bela, rica e poderosa rainha, a qual teria sido amante do famoso rei Salomão, ainda hoje a misteriosa Rainha de Sabá nunca teve sua identidade identificada com certeza, inclusive nem se sabe exatamente a vastidão de seus domínios, e há quem sugira que ela teria sido apenas uma lenda.

Menções na Bíblia:

Na Bíblia, as informações sobre a rainha de Sabá aparecem principalmente no Antigo Testamento, nos livros de Reis e Crônicas, sendo que em ambos os relatos o texto é o mesmo. Para este caso, utilizei a tradução presente na versão da Bíblia de Jerusalém

1 Reis 10: 1-13 e 2. Crônicas 9: 1-12

1. A rainha de Sabá ouviu falar da fama de Salomão, por ordem do nome de Iahweh, e veio pô-lo à prova por meio de enigmas. 

2. Chegou a Jerusalém com numerosa comitiva, com camelos carregados de aromas, grande quantidade de ouro e de pedras preciosas. Apresentou-se diante de Salomão e lhe expôs tudo que tinha no coração. 

3. Mas Salomão a esclareceu sobre todas as suas perguntas e nada houve por demais obscuro para ele, que não pudesse solucionar. 

4. Quando a rainha de Sabá viu toda a sabedoria de Salomão, o palácio que fizera para si,

5. As iguarias de sua mesa, os aposentos de seus oficiais, as funções e vestes de seus domésticos; seus copeiros, os holocaustos que ele oferecia ao Templo de Iahweh, perdeu o fôlego ficou fora de si,

6. E disse ao rei: "Realmente era verdade quanto ouvi na minha terra a respeito de ti e da tua sabedoria!

7. Eu não queria acreditar no que diziam antes de vir e ver com meus próprios olhos, mas de fato não me havia contando nem a metade: tua sabedoria e tua riqueza excedem tudo quanto ouvi.

8. Feliz a tua gente, felizes destes teus servos, que estão continuamente na tua presença e ouvem a tua sabedoria! 

9. Bendito seja Iahweh teu Deus, que te mostrou sua benignidade, colocando-te sobre o trono de Israel. e porque Iahweh ama Israel para sempre que ele te constituiu rei, para exerceres o direito e a justiça.

10. Ela deu ao rei cento e vinte talentos de ouro, uma grande quantidade de aromas e de pedras preciosas; a rainha de Sabá trouxe ao rei Salomão uma tal abundância de aromas, que jamais se viu em tanta quantidade. 

11. Por sua vez, a frota de Hiram, que trouxe ouro de Ofir, trouxe também madeira de sândalo em grande quantidade e pedras preciosas.

12. Com esse sândalo o rei fez balaustradas para o Templo de Iahweh e para o palácio real, liras e harpas para os músicos. nunca mais se transportou dessa madeira de sândalo e não se viu mais dela até hoje. 

13. Por sua vez, o rei Salomão ofereceu a rainha de Sabá tudo o que ela desejou e pediu além dos presentes que lhe deu com munificência digna do rei Salomão. Depois ela partiu e voltou para sua terra, ela e seus servos. 

Por esses versículos observa-se que pouco se comenta sobre a soberana de Sabá, apenas destacando que ela era bastante rica e viajou até Jerusalém para conhecer o famoso rei Salomão, descrito como homem muito sábios e rico. De fato, tais versículos servem mais para exaltar a fama de Salomão do que falar sobre a rainha propriamente. 

Posteriormente em Mateus 12:42 a rainha é mencionada novamente, sendo referida como a "Rainha do Sul", que há muito tempo visitou o rei Salomão. 

A rainha de Sabá e Salomão. Robert Leinweber, 1925. 

Menções no Corão: 

Na Sura A Forminga (An Naml), a qual expõe sobre o rei Salomão (Suleyman) que conversa com os pássaros e os gênios (jinn), pois no Corão, o monarca recebeu de Allah o dom de entender a linguagem dos pássaros e de outros animais. Na ocasião, um dos pássaros informa ao soberano a respeito de uma rainha de Sabá. Devido a sura ser extensa, peguei apenas alguns versículos que falam diretamente da rainha, já que após Salomão saber sobre ela, ele enviou uma carta convidando-a a visitá-lo, com isso, vários versículos abordam essa troca de correspondência e presentes até que a rainha viajou a Jerusalém. 

22 Porém, ela não tardou muito em chegar, e disse: Tenho estado em locais que tu ignoras; trago-te, de Sabá, uma notícia segura.

23 Encontrei uma mulher, que me governa (o povo), provida de tudo, e possuindo um magnífico trono.

24 Encontrei-a, e ao seu povo, e se prostrarem diante do sol, em vez de Deus, porque Satã lhes abrilhantou as ações e os desviou da senda; e por isso não se encaminham.

25 De sorte que não se prostram diante de Deus, Que descobre o obscuro nos céus e na terra, e conhece tanto o que ocultais como o que manifestais.

26 Deus! Não há mais divindade além d’Ele! Senhor do Trono Supremo!

27 Disse-lhe (Salomão): Já veremos se dizes a verdade ou se és mentirosa.

28 Vai com esta carta e deixa-a com eles; retrai-te em seguida, e espera a resposta.

42 E quando (a rainha) chegou, foi-lhe perguntado: O teu trono é assim? Ela respondeu: Parece que é o mesmo! E eis que recebemos a ciência antes daquilo, e nos submetemos (à vontade divina).

43 Desviaram-na aqueles a quem ela adorava, em vez de Deus, porque era de um povo incrédulo.

44 Foi-lhe dito: Entra no palácio! E quando o viu, pensou que no piso houvesse água; e, (recolhendo a saia), descobriu as suas pernas; (Salomão) lhe disse: É um palácio revestido de cristal. Ela disse: Ó Senhor meu, em verdade fui iníqua; agora me consagro, com Salomão, a Deus, Senhor do Universo!

No Corão, a rainha é chamada de Bilqis e ela é descrita como uma mulher rica, bela, pagã e imoral. Salomão ao ouvir a respeito do próspero reino que ela governava ao sul de Jerusalém, lhe enviou uma carta, a convidando ir a sua cidade para se converter a fé de Deus. Todavia, Bilqis decidiu testar se o monarca era realmente sábio como dizia, e lhe propôs enigmas e engodos para ele decifrar. Enquanto na Bíblia não se descreve o que ela mandou fazer, no Corão, se comenta a respeito das tentativas de ela enganar Salomão. Além disso, o rei utilizou-se dos gênios e pássaros para também impressionar Bilqis, realizando o que ela considerou como milagres (como transportar o trono dela para Jerusalém), a qual quando chegou ao palácio do monarca, ficou deslumbrada com o que viu. Por conta disso, ela exaltou o soberano, lembrando que no Islão, Salomão é considerado um dos grandes profetas. Por fim, ela decidiu se converter a Allah. 

Bilqis, a rainha de Sabá. Pintura de autoria desconhecida, c. 1595. 

Diferente a versão bíblica em que a rainha apenas comprova a sabedoria e riqueza de Salomão, e encantada com aquilo, retornou para seu reino, na versão corônica, ela além de atestar tudo o que foi dito, ainda converteu-se a fé do monarca. Nota-se aqui o acréscimo de um exemplo religioso, em que Bilqis mediante os poderes concedidos por Allah ao profeta Salomão, decidiu reconhecer a grandiosidade de Deus. 

Tradição etíope: 

A Etiópia, também chamada de Abissínia e por outros nomes, teve contato com o Cristianismo Primitivo a partir de viajantes, mercadores e missionários, vindos do Egito e da Núbia. Depois missões enviadas pelos romanos e bizantinos. Nos séculos VII-VIII o Islão chegou a região, no entanto, diferentes religiões conviviam naquele território que hoje compreende a Etiópia. Entretanto, surgiu em época ainda não precisada, a tradição de que alguns monarcas etíopes seriam descendentes de Salomão e Bilqis, os quais teriam tido um filho chamado Manelique I

A tradição etíope mescla o relato da visita de Bilqis a Salomão, principalmente a partir da versão corônica, a qual dá fornece mais informações, além de dizer que ela converteu-se ao Islão. Na Bíblia não temos essa condição da conversão. Além disso, lendas surgiram a partir desse encontro, em que narram que Bilqis teria se tornado uma das esposas de Salomão. E a partir daí tomou forma a tradição etíope. (VENCHI, 2008, p. 17). 

O encontro de Makeda, a rainha de Sabá, com o rei Salomão. Ícone etíope de autoria desconhecida, c. XVII. 

No livro Kebra Negast (Glória aos Reis) narra a origem da família real etíope, informando que há muito tempo, a rainha Makeda da Etiópia viajou a convite do rei Salomão de Jerusalém. Nota-se que tal obra identifica Sabá como estando na Etiópia. A monarca interessada na fama de rico e sábio de Salomão viajou até lá e teria sido seduzida por ele (outras versões dizem que foi a rainha que o seduziu), e com isso ele foram para cama. Makeda retornou ao seu reino e nove meses depois deu à luz a um menino, que ela chamou de Bayna-Lekhem (mais conhecido como Menelique na versão árabe)

Com 12 anos de idade o príncipe descobriu que Salomão era seu pai e pediu para mãe permissão para ir conhecê-lo, mas Makeda recusou. Dez anos depois, o jovem finalmente realizou sua viagem e ao encontrar-se com seu pai, foi reconhecido como filho legítimo e coroado Rei da Etiópia (ou Sabá). Salomão deu muitos presentes ao filho, incluindo a Arca da Aliança, a qual foi conduzida pelo jovem rei com a ajuda do Arcanjo Miguel até a Etiópia. Dessa forma, Menelique teve um governo longo, justo e próspero e muitos reis daquele país descendiam de sua linhagem. 

O rei Menelique I em pintura na Igreja de Axum, na Etiópia. 

Lendas arábes 

"Lassner estuda dois tipos de versões árabe-islâmicas: aquela do Livro Sagrado e algumas narrativas de juristas medievais que interpretam os cânones dos versos nos quais ela aparece ao lado do rei. As versões medievais são mais detalhadas porque constroem interpretações e ficções a partir da versão alcorânica. Nas versões escritas do comentador Al-Thalabi, há uma complexa reconstrução narrativa da relação entre Bilqis e Suleyman, a começar pela genealogia da rainha. Seu pai teria sido al-Bashrakh, um rei poderoso, governador de todos os reinos sabeus do Iêmen, membro de linhagem considerada superior às dinastias de outras províncias, recusando-se a casar com os clãs de seu povo. Diz a lenda que ele casou-se com a filha do rei dos jinni, Rayhanah bint Al-Shukr, e teve uma única filha, Bal‘amah ou Bilqis". (VENCHI, 2008, p. 17). 

"Com a morte de al-Bashrakh, Bilqis herda o trono, mas uma dissidência palaciana recusa-se a aceitá-la como rainha, por ser uma soberana mulher e descender de uma linhagem “perigosa”. Ela é preterida por um jovem dos círculos palacianos que se revela um rei tirânico. Ao ocupar o trono, ele a exila, exigindo a posse das mulheres de seus subalternos e matando uma a uma. O reino se divide. Ardilosa, Bilqis tem uma estratégia para destronar o tirano: manda uma carta oferecendo sua própria mão em casamento. Surpreso, ele diz ter pensado no assunto, mas mostrara-se recalcitrante em propor-lhe a união, sendo ela de origem nobre e filha de uma jinni. Ela aceita oficialmente o pedido de casamento, dizendo aos diplomatas “Eu amava esse rapaz. Não respondi a ele antes porque preferia não me casar, mas agora dou meu consentimento a ele.” Na noite de núpcias, embebeda o noivo e decepa sua cabeça, pendurando-a no portão  principal do palácio, com a qual os súditos se deparam, assombrados, na manhã seguinte. Ela recupera seu título de rainha legítima por direito de sucessão e ocupa o poder, cujo status é simbolizado por um suntuoso trono e descrições extravagantes de seu palácio lendário. Só a sala do trono possuía sete antecâmaras, cada qual era protegida por um portão trancado". (VENCHI, 2008, p. 17-18). 

O Rei Salomão e a Rainha de Sabá. Pintura de Giovanni Demin, 1824. 

Existem alguns relatos que também traziam versões apócrifas ao texto corônico apresentando outras decisões tomadas por Bilqis para testar se Salomão era mesmo sábio. Uma dessas situações foi disfarçar escravos homens vestidos como mulheres e depois escravas vestidas de homens e enviá-los como uma embaixada para entregar presentes a Salomão. Apesar dos disfarces terem sido bem elaborados e a condição dos homens falarem com voz fina e as mulheres com voz grossa, ainda assim, Salomão descobriu o engodo. (VENCHI, 2008, p. 18). 

Outra lenda comenta que Bilqis teria problemas físicos. Num relato diz que ela teria pés de mulas, mas Salomão constatou que aquilo era mentira, no entanto, ele viu que ela era coxa; porém, em outra narrativa ela não seria coxa, mas teria pernas cabeludas, pois não as depilava. Salomão e sua corte considerou aquilo um comportamento de bárbaros. (VENCHI, 2008, p. 19). Realmente é preciso lembrar que na tradição bíblica e corônica, a rainha era vista como uma monarca pagã, e no caso, o paganismo desde os tempos antigos era associado com ideias de barbárie e falta de civilidade. A condição de Bilqis aparecer coxa ou com pernas peludas ressaltava esse imaginário bárbaro. E o interessante que depois que ela se converteu, teve seu problema curado; ou depilou as pernas, mostrando que agora além de convertida, ela estava civilizada. 

Mas além da tradição etíope, algumas lendas islâmicas falam que Salomão e Bilqis teriam se casado ou ela tornou-se sua concubina. Por outro lado, algumas versões diziam que ela passou a morar em Jerusalém, outras apontam que ela retornou para Sabá, reino situado na península arábica, em que Salomão ia visitá-la. 

Informações históricas

Mas após vermos relatos religiosos e lendários, afinal, o que se sabe historicamente sobre essa rainha? 

Historicamente não há certezas sobre o reinado dessa rainha, onde ela realmente governou e quando isso ocorreu. Tradicionalmente acredita-se que Salomão teria reinado no século X a.C, logo, Bilqis teria que ter vivido nessa período também. A historiadora Naomi Lucks (2008) assinala que Salomão teria reinado por volta de 980 a 940 a.C, sendo que a Rainha de Sabá teria visitado ele entre 955 e 945 a.C. No entanto, Lucks aponta que o reinado de Bilqis poderia ter ocorrido entre 970 e 940 a.C, o que sugeriria um governo de três décadas bastante longevo. O problema é que tais datas são apenas hipotéticas, não havendo evidências exteriores para sustentar esses períodos.

Mas quanto a localização do tal Reino de Sabá, ainda hoje é motivo de controvérsias. As hipóteses mais aceitas são que esse reino ficaria situado no sul da península arábica, onde hoje é o Iêmen. Esse reino teria sido fundado por volta do século XII a.C pelos Sabeus, povo de origem semita que migrou do norte, do que poderia ser hoje o Iraque, mas na época, poderiam ser terras associadas a Mesopotâmia ou Assíria. O reino dos sabeus ou Reino de Sabá, teria existido entre os séculos XII e X a.C, talvez até durado mais algum tempo, como sugerem inscrições assírias. (LUCKS, 2008). 

Localização do reino de Sabá no atual Iêmen, e reinos vizinhos. 

Os sabeus foram um povo próspero, tendo se firmado sobre a agricultura, pastoril e principalmente no comércio, fazendo negócios pela península arábica, Israel, Egito, Etiópia, Índia e possivelmente a Mesopotâmia. A posição estratégica no sul da península, permitia acesso as rotas marítimas entre o Egito e a Índia. Por conta disso, os sabeus tinham acesso a ouro, joias, especiarias, perfumes e outros produtos de luxo, os quais alguns foram ofertados ao rei Salomão, como dito nos relatos bíblico e corônico. (LUCKS, 2008). 

Embora os sabeus possuíssem sua língua e alfabeto, no entanto, poucos relatos escritos foram descobertos, o que ainda torna grande parte da história desse povo e seu reino, desconhecidos, condição essa que os relatos encontrados, pouco ou nada informam sobre os monarcas, não permitindo ter acesso a uma cronologia dos reis e rainhas. (LUCKS, 2008). 

O historiador hebreu Flávio Josefo (c. 37-100 a.C), escreveu que Nicolis, que era Rainha do Egito e Etiópia, decidiu conhecer a fama de Salomão, como rei muito sábio e rico, e assim viajou a Jerusalém. Tal afirmação é interessante, pois respalda a tradição etíope de situar ali o reino de Sabá. (JOSEFO, 2004, p. 336).

Além disso, alguns historiadores contestam se Bilqis realmente seria uma rainha que governava de forma independente, pois as sociedades daquele tempo eram predominantemente patriarcais. Todavia, as lendas árabes apontam que ela seria viúva, tendo assumido o trono há pouco tempo. Por outro lado, essas lendas também dizem que Bilqis casou-se com Salomão, ou tornou-se uma de suas concubinas, e tal fato teria assegurado sua posição como governante de Sabá. Mas isso são apenas especulações das quais não temos como responder devido a falta de mais evidências para análise. 

Fontes:

Alcorão online. Disponível em: https://alcorao.com.br/

BÍBLIA de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. 12a reimpressão. São Paulo, Paulus, 2017. 

JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus: de Abraão à queda de Jerusalém. Tradução de Vicente Pedroso. 8a ed. Rio de Janeiro, Casa Publicadora da Assembleia de Deus, 2004. 

THE QUEEN of Sheba and Her Only Son Menyelek (Kebra Nagast). Translated by Sir E. A. Wallis Budge. Cambridge/Ontario, Parentheses Publications, 2000. 

Referências bibliográficas: 

LUCKS, Naomi. Queen of Sheba. New York, Chelsea Publishing, 2008. (Ancient World Leaders). 

VENCHI, Mariane. Seduções e traições de gênero no Islã: a rainha de Sabá e o corpo feminino circuncidado. Cadernos Pagu, v. 30, n. 1, 2008, p. 139-197. 


terça-feira, 2 de novembro de 2021

Santa Morte, a santa esquelética no México e nos Estados Unidos

Santa Morte, a santa esquelética no México e nos Estados Unidos


Dr. R. Andrew Chesnut

Trad. Karina Kosicki Bellotti


Obs: as imagens utilizadas aqui, foram escolhidas por mim para ilustrar a obra do autor.  

Chamado pela Senhora Ossuda, a Santa Morte

Algumas pessoas se tornam devotas por iniciativa própria, apelando para a Santa Morte sob recomendação de amigos ou de familiares. Outros recebem um chamado ou uma visita inesperada da Magrinha (la flaquita, um dos seus vários apelidos), no qual ela se oferece para resolver seus problemas. Foi nesse contexto que, no início da primavera de 2009, a Ossuda (la huesuda, outro apelido conhecido) apareceu no meu laptop e meu chamou para contemplá-la. Mais especificamente, foi a notícia de um ataque militar contra ela na fronteira entre os Estados Unidos e o México que me levou a substituir a figura de Guadalupe pela imagem de algo que parecia, à primeira vista, a sua antítese, uma espécie de anti-Virgem. No final de março, o exército mexicano demoliu perto de quarenta santuários da Santa Morte na fronteira mexicana com o Texas e a Califórnia, na sua maioria na periferia de Tijuana e Nuevo Laredo. Eu me perguntava o que teria feito a Santa Morte para merecer um ato tão agressivo de sacrilégio em seus lugares santos, perpetrado pelo governo mexicano, que a declarou um inimigo de Estado?

Estátuas de Santa Morte num altar. 

Este texto traz algumas considerações sobre uma pesquisa mais ampla, que buscou desvendar por que em menos de uma década a devoção à santa cresceu a tal ponto que sua popularidade ofusca a de outras santas no México, com exceção de Guadalupe. Seu culto se transformou de uma prática oculta, desconhecida de boa parte dos mexicanos, para se tornar um crescente culto público que contabiliza milhões de devotos no México e nos Estados Unidos.

A Morte encontrada

Como seu nome indica, Santa Morte é uma santa popular mexicana que personifica a morte. Seja na forma de uma estátua de gesso, em uma vela votiva, um medalhão de ouro ou um cartão de oração, ela é representada como uma Ceifadora, manejando a mesma foice e usando uma mortalha semelhante à do Ceifador. Diferente de outros santos, que foram canonizados pela Igreja Católica, os santos populares são espíritos de mortos que são considerados santos pelos seus poderes milagrosos. No México e na América Latina em geral, tais santos, como Nino Fidencio, Jesus Malverde, Maximon e San La Muerte (a similar argentina da Santa Morte) mobilizam uma ampla devoção e frequentemente apelam para mais do que os santos oficiais.

A grande maioria dos santos populares, diferente dos oficiais, nasceu e morreu em solo latino-americano. Nino Fidencio, por exemplo, era um curandeiro popular no início do século XX no México, enquanto Pedro Batista liderou uma comunidade religiosa no interior do Brasil durante o mesmo período. Assim, os santos populares são unidos aos seus devotos pela nacionalidade e frequentemente pela localidade e classe social. Um vendedor de rua da Cidade do México explicou o apelo da Santa Morte: “Ela nos entende porque é uma pessoa de gênio forte (cabrona) como nós”. Em contraste, os mexicanos nunca se refeririam à Virgem de Gaudalupe como megera. Onde a Ossuda se difere de outros santos populares, incluindo os santos esqueléticos da Argentina (San La Muerte) e da Guatemala (Rey Pascual), é que, para a maioria de seus devotos, ela é personificação da morte em si, e não de um ser humano morto.

Niño Fidencio (1898-1938) era um popular curandeiro mexicano que tornou-se santo popular. 

O seu próprio nome, Santa Morte, diz muito sobre sua identidade. La muerte – a morte – é um substantivo feminino, assim como em todas as línguas românicas. Por isso, alguns observadores casuais da Branquinha atribuíram erroneamente a sua identidade feminina por conta do substantivo “La muerte”. Entretanto, o fato de os dois santos da morte da Argentina e da Guatemala serem figuras masculinas aponta para outras explicações sobre a identidade feminina da santa mexicana. Em todo caso, ela e San La Muerte são os únicos santos nas Américas que incluem a palavra “morte” em seus nomes. Tanto para devotos como para os descrentes, é óbvio que o olhar vazio da santa esquelética é o olhar da morte.

São Morte é o equivalente argentino da Santa Morte. 

A palavra “Santa”, a primeira parte do seu nome, é também reveladora. A Santa Morte é primeira e principalmente uma santa não oficial que cura, protege e livra seus devotos de seus destinos após a morte. Devotos costumam chamá-la de “Santíssima Morte” em rituais como o rosário. Assim, seu nome, Santa Morte, e sua miríade de apelidos revelam nitidamente sua identidade como santa popular que personifica a morte.

Nenhuma introdução à Santa Morte ficaria completa sem uma breve consideração sobre uma de suas mais peculiares características – sua identidade de gênero. Enquanto os santos populares são abundantes nas Américas e outros esqueletos sobrenaturais operam milagres na Guatemala e na Argentina, a Santa Morte permanece como a única santa da morte, do Chile ao Canadá. Sua forma esquelética assexuada não contém nenhum traço de feminilidade. São seus trajes e, em menor medida, seu cabelo que definem esta santa como mulher. Os devotos e fabricantes de imagens produzidas em massa da Ossuda comumente a vestem como freira, Virgem, noiva ou rainha. Túnicas medievais vermelhas e pretas, véus de noiva brancos e túnicas de cetins coloridas normalmente cobrem seu corpo esquelético, deixando à vista somente suas mãos, pés e face ossudos.

Tal como os santos da morte, San La Muerte e Rey Pascual, a Madrinha exibe um típico crânio calvo. Contudo, seguindo a trilha de uma grande pioneira devocional, Enriqueta Romero (carinhosamente conhecida como Dona Queta), muitos devotos adornam suas estatuetas com perucas pretas e castanhas. Aliás, uma devota empreendedora dirige uma próspera loja na Cidade do México onde devotos trazem suas estatuetas para serem vestidas e penteadas para que se pareçam com a Menina Bonita (la nina bonita, outro de seus codinomes). Porém, mais do que apenas uma menina bonita, a Santa Morte é principalmente a Poderosa (la dama poderosa), cujas habilidades milagreiras fizeram dela o mais potente dos santos populares mexicanos e uma rival da padroeira nacional, Guadalupe.

Origens

As origens do culto à Santa Morte remetem a diferentes matrizes. Enquanto sua figura pode evocar uma versão feminina do Ceifador na cultura americana e europeia ocidental (Grim Reaper), com raízes no catolicismo medieval, na cultura espanhola católica a morte é identificada com a figura de La Parca. Já na cultura mexicana, a santa esquelética seria uma versão adaptada de uma deusa indígena da morte, geralmente asteca ou maia. Para muitos mexicanos, as realidades da história indígena e os mitos do nacionalismo convergem para dar à Irmã Branca um nascimento nativo no México Pré-Colombiano.

A versão mais comum da identidade indígena da santa remete às suas supostas origens astecas, isto é, a deusa da morte Mictecacihuatl, que, juntamente com seu marido, Mictlantecuhtli, governava o submundo, Mictlan. Assim como a Ossuda, o casal mortífero era representado como esqueletos ou corpos humanos com crânios no lugar de cabeças. Os astecas não somente acreditavam que os que morriam de causas naturais acabavam em Mictlan, como também evocavam os poderes sobrenaturais dos deuses para causas terrenas. Com a perseguição empreendida pelos conquistadores espanhóis em relação à religião indígena, os espanhóis tornaram clandestina a devoção ao casal asteca e forçaram o sincretismo da crença com o catolicismo. Assim, de acordo com essa versão, é a deusa Mictecacihuatl que ressurgiu publicamente no santuário de Dona Queta, em 2001. Sua túnica e vestido em estilo espanhol e seus acessórios europeus, a foice e as balanças de justiça são uma fachada que cobriria sua verdadeira identidade asteca.

Estátua da deusa asteca Mictecacihuatl, a qual teria sido uma das inspirações para Santa Morte. 

Outra versão é de que a Menina Branca seria de origem Purepecha, o maior grupo indígena no Estado de Michoacan, que nunca foram conquistados pelos vizinhos astecas. Em entrevista, o líder de culto da Santa Morte Vicente Perez Ramos traçou as origens da santa a Santa Ana Chapitiro, uma pequena cidade fora de Patzcuaro, onde um dos santuários mais decorados de Santa Morte se situa. Don Vicente alega que a santa da morte nasceu no século XVI, filha de um casal Purepecha de Santa Ana Chapitiro. Ela possuiria o tamanho de uma mulher adulta, com uma compleição suave e cabelo castanho. Com medo de que os espanhóis a roubassem, o casal manteve a filha trancada em sua cabana.

Já os acadêmicos traçaram as origens da santa à Europa ocidental medieval. A antropóloga mexicana Katia Perdigon Castañeda, por exemplo, escreve que: “a história do conceito atual de morte e sua iconografia, refletida na contemporânea Santa Morte, estão mais relacionadas à religião judaico-cristã (com o catolicismo em particular) do que com as vozes esquecidas e desconhecidas dos vencidos, ou seja, dos povos pré-hispânicos”1. David Romo e outros localizam especificamente a gênese da santa na figura do Ceifador do catolicismo europeu medieval, por conta da peste bubônica, que tornou a morte uma presença constante e familiar no século XIV. Foi nesse período, no qual ao menos um terço dos europeus foi levado pela doença, que a morte apareceu personificada pela primeira vez como a figura esquelética conhecida até hoje. Pintores, escultores e padres começaram empregar a representação esquelética da morte em seu trabalho.

A figura também foi empregada pelo clero espanhol nas Américas. Alguns grupos indígenas, como os maias no Estado de Chiapas e Guatemala, e os Guaranis na Argentina e Paraguai, transformaram a figura da morte em uma santa e, a partir de suas próprias tradições de ossos ancestrais sagrados, interpretaram o cristianismo por meio de seus filtros culturais. Isso é mais evidente na Guatemala e em Chiapas, onde o franciscano espanhol do século XVI São Pascual Bailon foi sincretizado com a religião maia e tornou-se popularmente, mas não oficialmente, representado como Rey Pascual, um esqueleto com uma coroa em cima de seu crânio. Embora nunca tenha visitado os maias do México e da Guatemala em vida, surgiu a crença de que ele tenha aparecido em uma visão para um maia em torno de 1650, no meio de uma praga virulenta que o frei teria ajudado a encerrar2. Durante o período colonial espanhol, os esforços da igreja em erradicar a veneração a tais santos esqueléticos tornaram a devoção oculta durante muito tempo, até ser tornada pública recentemente.

Ilustração do Rey Pascual ou San Pascualito, um santo popular da morte, na Guatemala. 

Referências específicas à Santa Morte apareceram primeiramente nos registros coloniais espanhóis por volta de 1790, quase um século e meio depois da menção ao Rey Pascual. Um documento de 1797 dos arquivos da Inquisição, intitulado “Sobre as superstições de vários indígenas da cidade de San Luis de la Paz”, menciona a Santa Morte pela primeira vez. Focalizando o povo Chichimeca, situado no atual Estado de Guanajuato, o registro da igreja fala de trinta índios que “à noite se reúnem em sua capela para beber peiote até perderem o sentido, eles acendem velas de ponta cabeça, algumas delas são pretas, eles dançam com bonecas de papel, eles chicoteiam cruzes sagradas e também uma figura da morte que eles chamam de Santa Morte, e eles amarram-na com uma corda molhada ameaçando chicotear-lhe e queimá-la se não operar um milagre.” O milagre em questão era aparentemente relacionado ao controle político local e, lembrando a demolição dos santuários da Santa Morte na fronteira, ocorridos recentemente, o castigo para tais “superstições” foi a destruição da capela onde a efígie da Ossuda era mantida3.

Em seu sagaz estudo sobre santos populares latino-americanos, Frank Graziano menciona dois codinomes para o santo argentino da morte, San La Muerte, que associa o santo esquelético a Jesus. O primeiro, San Justo, e o segundo, o Senhor da Paciência, relacionam-se diretamente com a imagem do Senhor da Humildade e da Paciência, que no México e na América Central é mais conhecido como a figura de Cristo, o Juiz Justo4. Essa é a representação do Cristo derrotado após o açoitamento e antes de sua morte na cruz. Portanto, grupos indígenas no centro do México e no noroeste da Argentina e Paraguai fizeram a mesma associação sincrética entre as duas maiores figuras da evangelização católica – o Ceifador e Jesus. Curiosamente, o argentino San La Muerte sobreviveu à perseguição da Igreja e permanece até hoje, enquanto o mexicano Juiz Justo foi eclipsado pela sua contrapartida feminina, Santa Morte.

Em resposta à perseguição da Igreja, os devotos da Magrinha tornaram sua veneração ainda mais clandestina, a ponto de ela desaparecer do registro histórico mexicano pelos 150 anos seguintes, nos quais os mexicanos declaram sua independência da Espanha, perdem uma guerra contra os Estados Unidos e lutam na sua primeira revolução no século XX. Sem dúvida, a Poderosa continuava junto aos seus discípulos, testemunhando tais eventos e inúmeros outros, mas a sua presença só foi voltar a ser registrada a partir dos anos 1940. E a Santa Morte que ressurge a partir de então até o final do século XX é quase exclusivamente a Poderosa Senhora do Amor, simbolizada pela vela votiva vermelha.

Na década de 1940, Santa Morte era associada com o amor. 

Quatro antropólogos, um mexicano e três americanos, mencionaram seu papel como feiticeira do amor em sua pesquisa entre os anos 1940 e 1950. Juntamente com Frances Toor e Oscar Lewis, Gonzalo Aguirre Beltran, no final dos anos 1940, refere-se a orações de amor para Santa Morte entre uma comunidade predominantemente de descendentes de africanos no Estado de Guerrero, na costa do Pacífico. Com as referências de Isabel Kelly e Oscar Lewis ao seu papel na mágica do amor, fica evidente que pelo final dos anos 1950 a cobertura geográfica da Menina Linda é extensa, se não plenamente nacional. Toor e Lewis redescobriram a santa da morte na Cidade do México, Aguirre a encontrou na costa sul do Pacífico e Kelly cruza com suas orações amorosas nas partes norte e central do México.

Em pesquisas realizadas nas décadas de 1960 e 1970, foi descoberta a devoção à santa em outros lugares do país. Em seu livro Mitos y magos mexicanos, Maria de la Luz Bernal é uma das primeiras pesquisadoras do período a documentar a devoção organizada à Careca (La Pelona). Ela escreve sobre grupos de mulheres vestidas de preto, que se ajoelhavam diante do altar da santa esquelética, segurando velas acesas, cantando em uníssono orações para a dominação de homens em suas vidas. Com gritos de “Santíssima Morte, torture-o, mortifique-o”, as devotas buscavam a ajuda sobrenatural da Poderosa para controlar seus maridos e namorados errantes5.

Enquanto isso, devotos no Estado central de Hidalgo iniciaram o que parece ter sido a mais antiga devoção a Santa Morte. Como os santos esqueléticos sincréticos, o Juiz Justo, Rey Pascual e San La Muerte, São Bernardo (Clairvaux), da pequena cidade de Tepatepec, é a imagem do homem santo medieval francês que os católicos associaram com a figura esquelética da morte. Uma das mais antigas e exclusivas representações da Santa Morte é uma estátua de madeira, que agora é venerada no templo da família Cruz, tem cerca de 4 pés de altura e é geralmente vestida de rainha com um robe de cetim, uma coroa e um cetro em sua mão esquerda. Diferente da maioria das estátuas da santa, que a retrata de pé, nesta ela está sentada em uma cadeira de madeira. Particularmente impressionante é a sua face carnuda, com uma boca alongada que parece estar costurada.

A família Cruz aparentemente tinha a imagem de 200 anos em sua posse por diversas gerações, datando pelo menos desde o final do século XVII. A matriarca octogenária da família relatou que seus tataravós costumavam emprestar a imagem para as procissões da Semana Santa, na qual ela ficava sentada em uma carroça juntamente com as imagens de Cristo do Santo Sepulcro e da Virgem Maria. Acreditando ser a imagem de São Bernardo, devotos desfilavam com a estátua pela cidade no dia 20 de agosto em celebração à festa do santo. Embora os devotos não mais desfilem com ela na Semana Santa, eles continuam a celebrar a mesma festividade de agosto. Longe do olhar público, a santa esquelética fica a maior parte do seu tempo no santuário familiar no lar dos Cruz, onde muitos vizinhos a veneram.

Em uma reviravolta estranha de eventos, em algum momento dos anos 1950, um padre local da cidade invadiu a casa dos Cruz e roubou-lhes a efígie. Alegando que os devotos rezavam para a estátua com propósitos malignos, tais como assassinatos, o clérigo levou a estátua para sua igreja paroquial, a principal de Tecatepec, onde ele a exibiu para o público em uma capela lateral próxima à imagem da Virgem de Guadalupe! Conforme a matriarca, o padre pediu auxílio de seu sobrinho, que era parente do marido de Dona Cruz. Parece que os dois esperavam lucrar com o grande número de doações que “São Bernardo” lhes traria. Por mais de 40 anos, Dona Cruz e o resto da família foram forçados a venerar sua santa roubada no seu próprio cativeiro6.

Para a família Cruz, o retorno de sua santa sequestrada em 2000 era um milagre. Dona Cruz afirmou enfaticamente que “a imagem retornou para casa por conta própria”7. Um advogado apareceu inesperadamente na casa dos Cruz, sem que a família o tivesse contatado, oferecendo-se para trabalhar de graça em troca do retorno de sua querida santa. Em um encontro com o arcebispo do Estado de Hidalgo naquele ano, Dona Cruz prometeu a ele que não celebraria “missas” ou qualquer tipo de culto para a sua Santa Morte em sua casa. O clérigo concordou com os termos da soltura e então, após mais de três décadas de cativeiro, a santa da morte retornou ao altar da família. Pelos últimos dez anos, a capela da família Cruz tornou-se um dos santuários mais populares da Santa Morte no México e nos Estados Unidos, ficando atrás somente do santuário de Dona Queta, em Tepito. Todos os anos, em meados de agosto, milhares de mexicanos e até mesmo estrangeiros fazem peregrinação para pedir por bênçãos de uma das mais antigas imagens existentes da Poderosa.

Procissão para Santa Morte, em Tepito. 

Os devotos da Morte

É precisamente à sua reputação como milagreira rápida e eficaz que se deve o crescimento meteórico de seu culto desde 2001. Um breve perfil dos devotos da Santa Morte traz à luz sua tremenda popularidade. Como seu culto é geralmente informal e desorganizado e tornou-se público somente há dez anos, é impossível saber exatamente quantos mexicanos e imigrantes mexicanos e da América Central nos Estados Unidos estão entre seus devotos. Outro grande pioneiro devocional, “Pai” David Romo, fundador da primeira igreja de Santa Morte, na Cidade do México, disse a mim e a membros da imprensa mexicana, em entrevistas separadas, que cerca de cinco milhões de mexicanos veneram o Anjo da Morte. Quando o questionei sobre como ele chegou a tal número, ele explicou que está em contato com os crentes no México e nos Estados Unidos, que lhe deram estimativas do tamanho do culto em suas cidades e regiões.

O fato de cerca de que cinco por cento da população mexicana, composta de 100 milhões de habitantes, pudesse ser devota da santa não parece absurdo perto de outra evidência de sua popularidade: as vendas de sua parafernália (velas votivas, figurinos, cartões de oração etc.) nas milhares de lojas (hierberias e tiendas esotericas) e barracas de mercado que vendem artigos religiosos, poções, pós mágicos e ervas medicinais por todo o México e em muitas cidades grandes dos Estados Unidos reduzem as vendas dos artigos de outros santos.

Um dono de loja após o outro me disse que por volta dos últimos cinco anos seus clientes compraram mais produtos da Santa Morte do que qualquer outra coisa, incluindo os artigos de São Judas Tadeu, um dos santos mais populares do país. Em Morelia, Guillhermina, cujo pai possui três lojas esotéricas na cidade, afirmou que desde 2004 a Ossuda contabilizou cerca de metade do total de vendas em seus três estabelecimentos. Ela ocupou mais estantes e espaços que qualquer outro santo das dezenas de lojas e barracas que visitei nos verões de 2009 e 2010. E os vendedores de rua que vendem uma gama colorida de bens aos motoristas parados no trânsito, esperando para cruzar a fronteira dos Estados Unidos, oferecem muito mais figurinos da Santa Morte do que de qualquer outro santo, mesmo de Guadalupe. Finalmente, o culto mensal, denominado “rosário”, atrai muitos milhares de devotos ao santuário localizado no violento e decadente bairro de Tepito, na Cidade do México.

Pelos últimos cinco anos, a Ossuda tem acompanhado seus devotos em suas viagens cruzando a fronteira dos Estados Unidos e estabeleceu-se ao longo da fronteira de duas mil milhas e nas cidades com comunidades de imigrantes mexicanos. Não de forma surpreendente, é em cidades de fronteira, como El Paso, Brownsville e Laredo, que a evidência de seu culto é mais forte. Sua imagem de Ceifadora, na forma de decalques em preto e branco, situa-se nas janelas traseiras (quase sempre escurecidas) de inúmeras picapes e SUVs, anunciando tanto a devoção de seus ocupantes como a sua própria presença crescente. Nas mesmas lojas de parafernália religiosa encontradas no México, comerciantes ao longo da fronteira movimentam um intenso negócio ao vender incensos da Santa Morte, loções e, sobretudo, velas votivas. Quase a maioria da cobertura televisiva sobre o rápido crescimento do seu culto nos Estados Unidos foi fornecida por estações locais dessas cidades fronteiriças. Tais notícias tendem a ser sensacionalistas, explorando os supostos laços entre a Santa Morte com tráfico de drogas, assassinatos e até sacrifício humano.

O comércio de estátuas, velas, incensos, entre outros objetos religiosos de Santa Morte, é bastante popular e lucrativo no México. 

Na parte norte da área fronteiriça, a Madrinha ouve as orações e petições dos mexicanos e, em menor medida, de imigrantes da América Central, que lhe pedem para interceder a favor do seu sucesso na nova terra. Los Angeles, Houston, Phoenix e New York, com suas grandes comunidades mexicanas e de imigrantes da América Central, são locais evidentes para se encontrar a Poderosa protegendo seus fiéis. Lar da maior comunidade de imigrantes mexicanos nos Estados Unidos, Los Angeles é a Meca americana do culto da santa esquelética. Além de pelo menos duas lojas de artigos religiosos que carregam seu nome (Botanica Santa Morte e Botanica de la Santa Morte), a Cidade dos Anjos oferece aos devotos dois templos onde podem agradecer ao Anjo da Morte pelos milagres alcançados ou pedir a ela saúde, prosperidade e amor. A Casa de Oracion de la Santissima Muerte e o Templo Santa Morte são os dois únicos templos dedicados ao seu culto nos Estados Unidos. O último oferece “missas”, casamentos, batismos, rosários e cultos de cura. O seu templo virtual, inspirado em motivos góticos (<www.templosantamuerte.com>) transmite música devocional e algumas de suas missas. Curiosamente, a maior parte do conteúdo do site bilíngue está em inglês.

Capela do Templo de Santa Morte, em Los Angeles. 

Em Houston, onde vivi por onze anos, ainda não existe nenhum lugar público de adoração, mas a Irmã Branca aparece em velas votivas e em pacotes de incenso, dentre outros produtos, em centenas de estantes em supermercados locais e lojas de artigos religiosos. Em junho de 2009, enquanto eu saía do estacionamento do supermercado Fiesta, voltado para o público latino, em especial mexicano, no centro de Houston, avistei uma estátua branca da santa medindo quatro pés de altura, sendo levada no bagageiro de um antigo modelo de picape Ford. A janela traseira pintada da caminhonete exibia um decalque de sua Santíssima Morte. Tal como em Los Angeles, os devotos da Bayou City (cidade do rio pantanoso, um dos apelidos de Houston - NT) podem escolher entre pelo menos três lojas de artigos religiosos que possuem o nome da Santa Morte.

Para além dessas grandes cidades, devotos e curiosos podem até encontrar a santa esquelética em cidades com comunidades relativamente diminutas de imigrantes mexicanos, tais como em Richmond, no Estado de Virginia (norte dos Estados Unidos). Nos últimos cinco anos, a Ossuda acompanhou dezenas de milhares de seus seguidores devotos através das fronteiras até as cidades grandes e municípios menores dos Estados Unidos, por onde eles decidiam tentar iniciar uma nova vida por seus próprios meios.

Santa Morte possui devotos seguidores de todos os estratos sociais, tais como estudantes de ensino médio, donas de casa de classe média, motoristas de táxi, traficantes de droga, políticos, músicos, médicos e advogados. Rodrigo é um bem-sucedido advogado, de pouco mais de vinte anos, que encontrei no famoso santuário de Dona Queta, em Tepito. Ele foi para lá com uma vela branca a fim de agradecer à Menina Branca por libertá-lo de sequestradores. Lá também se encontrava Claudia, uma contadora de trinta e poucos anos, que se tornou crente dos poderes milagrosos da santa na mesa de cirurgia. Antes de sua operação de pulmão infeccionado, seu cirurgião deu a ela uma estatueta da Poderosa e sugeriu que Claudia evocasse seus poderes de cura. Tal como vários que vão ao santuário de Tepito, Claudia estava lá para agradecer à Santa Morte por ter sido curada de uma enfermidade.

Por conta de sua associação com o crime organizado, especialmente com traficantes de droga e sequestradores, além da condenação por parte das igrejas Católica e protestantes, crentes mais abastados tendem a manter sua devoção no âmbito privado. De fato, desde sua primeira menção em registros históricos, em 1797, até 2002, Santa Morte era venerada de forma clandestina. Altares domésticos são onde os devotos prósperos preferem realizar os rituais que evocam a santa para agir em seu favor. De acordo com o intelectual e romancista mexicano Homero Aridjis, o Anjo da Morte possui uma ampla gama de seguidores entre os políticos de alto escalão, estrelas de cinema, senhores da droga e mesmo na alta cúpula da Igreja Católica nos anos 1990, antes de seu culto tornar-se público! Aridjis transformou em ficção seu relato de ter participado de uma festa de aniversário orgíaca em 2000, com tais devotos, no seu mais recente romance, La Santa Morte8. O casamento da estrela da TV mexicana Niurka Marcos, em 2004, corrobora as alegações de Aridjis. A cerimônia foi conduzida por David Romo, fundador da primeira igreja de Santa Morte, em uma fazenda exclusiva situada fora da cidade do México9.

Romance que alude o culto a Santa Morte, trazendo elementos reais e ficcionais. 

Ainda assim, em um país com nível educacional que vai até a oitava série, a grande maioria de devotos se encontra entre os motoristas de táxi, prostitutas, vendedores de rua, donas de casa e criminosos. Uma devota típica é a madrinha do culto da Santa Morte, Dona Queta. Antes de seu ato histórico de exibir uma estátua de tamanho real da Ceifadora na frente de sua casa no Dia de Todos os Santos, em 2011, Enriqueta Romero complementava a renda familiar vendendo quesadillas para vizinhos e para quem passasse na rua. Sempre trajando um avental quadriculado azul e branco, que é praticamente o uniforme das mulheres trabalhadoras no México, Dona Queta não possui mais do que nível escolar básico. Seu colorido sotaque espanhol da classe trabalhadora, apimentado de vulgaridades, reflete o violento bairro de Tepito, na Cidade do México, onde as gangues de drogas, sequestradores, prostitutas e contrabandistas mandam nas ruas. Dona Queta começou sua cerimônia de rosário da Santa Morte em agosto de 2009, com um aviso para que os fiéis retornassem rapidamente para suas casas ao final do ritual, se não seriam importunados por “todos os malditos ladrões e bandidos das redondezas”. Um de seus sete filhos cumpriu pena na prisão e sua soltura foi atribuída por Dona Queta à intervenção divina da sua Menina Linda (la nina hermosa).

Dona Queta e sua popular loja dedicada a Santa Morte. 

A jovem desempregada de dezenove anos Raquel, que largou os estudos do ensino médio e que mora na periferia da Cidade do México, é outra devota típica. Aparentando uma magreza anoréxica quando a entrevistei no santuário de Dona Queta, Raquel tornou-se devota depois que a Poderosa apareceu no meio de uma briga de gangues e a puxou uns poucos passos, antes que um canivete atingisse seu estômago. Raquel, tal como muitos outros crentes, estava no famoso santuário de Tepito com uma vela votiva dourada de Santa Morte. Antes de conversar comigo sobre sua devoção, ela colocou a vela acesa na base do altar junto a muitas outras e pediu por um milagre de emprego à grande estátua da santa esquelética por trás do vidro de proteção.

De acordo com meus registros, Raquel se enquadra no perfil normal dos devotos em termos de gênero e idade. Diferente dos Estados Unidos, o México é um país jovem, com faixa etária média de 24 anos. Os padrinhos do culto (Dona Queta e David Romo) confirmam que a maioria dos crentes são adolescentes e jovens adultos, entre seus vinte e trinta anos. De mesma forma, ambos afirmam que veem mais mulheres e garotas do que homens em seus santuários. Pai Romo disse que mais de dois terços dos que participam semanalmente dos cultos em sua igreja são mulheres. Durante os muitos dias em que permaneci no santuário de Dona Queta entrevistando devotos, notei também que havia cerca do dobro de garotas e mulheres que vinham ver a santa vestida de forma régia.

Contudo, os cultos mensais de rosário de Dona Queta eram praticamente uma ocupação masculina. Não mais que vinte por cento dos devotos presentes no culto de agosto de 2009 eram mulheres. A explicação mais provável para a ausência feminina é a notoriedade de Tepito como o bairro mais violento e criminoso da capital do México. As palavras de alerta de Dona Queta no início do culto só confirmam tais medos. A preocupação com a segurança no verão de 2009 fez a madrinha do culto mudar os cultos do fim da noite para o fim da tarde. Dessa forma, os devotos poderiam sair antes do anoitecer, evitando os assaltantes noturnos do bairro.

A morte do crime e castigo

De forma não tão paradoxal, a Santa Morte possui um apelo especial para assaltantes e outros que vivem à margem das leis mexicana e americana. Afinal de contas, as próprias origens do culto público estão ligadas ao crime. A efígie de larga escala da santa de Dona Queta, que é objeto de devoção para dezenas de milhares de chilangos (gíria que nomeia os residentes da Cidade do México), foi um presente para ela dado por um de seus filhos, que agradeceu à Poderosa por sua rápida soltura da prisão por um crime não especificado. Dentre as mulheres enfermas e grávidas, “aqueles na prisão” são o objeto de orações coletivas especiais no culto mensal do rosário.

Em penitenciárias mexicanas, texanas e californianas, o culto da Ossuda é tão difundido que em muitos ele é o objeto principal de devoção, superando Guadalupe e até São Judas, o padroeiro das causas perdidas. Meu sobrinho, Roberto, trabalhou como guarda na prisão estadual de segurança máxima em Morelia nos últimos três anos. Em junho de 2009, Roberto não só detalhou a devoção à Santa Morte entre os prisioneiros, mas também pintou um retrato de um sistema penal inteiro envolvido em sua veneração. Das 150 celas na prisão, Roberto estimou que aproximadamente 40 presos ergueram altares feitos à mão à Poderosa, a quem confiam que possa libertá-los mais cedo. Carreiras de cocaína, uísque feito na prisão (turbo), cigarros e maconha estão entre as oferendas mais comuns nesses altares. Há oferendas também tatuadas nas costas, peito e braços dos prisioneiros, num trabalho feito por três detentos que cobram entre quatro e trinta dólares por tatuagem. De acordo com Roberto, as tatuagens do Anjo da Morte são mais populares do que de qualquer outro santo.

Além dos que cumprem pena, muitos guardas, assistentes sociais e até advogados pertencem ao culto da Santa Morte. Roberto disse que dez de seus 48 colegas são devotos e que não é incomum ver advogados e assistentes sociais na prisão exibindo medalhões dourados da santa em seu peito. Em um ambiente de trabalho tão perigoso, cheio de drogas e armas rústicas, pode-se imaginar o apelo da proteção sobrenatural oferecida pela Poderosa. Em menos de uma década, ela se tornou a santa padroeira do sistema penal mexicano e é também popular de uma forma crescente nas prisões americanas, em especial no sudoeste e na Califórnia.

Muitos daqueles que correm o risco de serem pegos por seus crimes pedem à Magrinha por proteção sobrenatural de seus inimigos. A vela votiva da Santa Morte que exclama “lei, fique longe!” (geralmente impressa de forma bilíngue em espanhol e inglês) é encontrada nas lojas por todo o México e Estados Unidos. Da mesma forma, “morte aos meus inimigos”, a vela de sete cores, vende bem entre aqueles cujo trabalho os coloca em contato direto e constante com a morte. De fato, mesmo antes do crescimento astronômico do culto iniciado por Dona Queta, o primeiro contato que os mexicanos tiveram com a Santa Morte foi nas páginas policiais dos tabloides diários. Depois de sequestrar mais de vinte pessoas na década de 1990 e coletar mais de 40 milhões de dólares de resgate, Daniel Arizmendi Lopez foi preso em sua casa em agosto de 1998. Conhecido com o Cortador de Orelhas (Mocheorejas), por seu horrível hábito de enviar as orelhas cortadas de suas vítimas para seus familiares, Arizmendi atraiu mais atenção nas manchetes pela sua devoção à então quase desconhecida santa da morte. Os agentes da lei mexicanos descobriram um altar para a Santa Morte em sua casa e, curiosamente, permitiram que levasse sua estatueta para a prisão, onde pudesse continuar sua devoção atrás das grades10. Assim, três anos antes de Dona Queta começar seu culto público, um dos mais famosos sequestradores na história do país apresentou de forma violenta a Santa Morte para o público mexicano.


Desde então, a Irmã Branca tornou-se presença regular nas páginas policiais dos tabloides mexicanos e frequentemente aparece nas reportagens das redes locais de TV na fronteira. As polícias do México e, crescentemente, dos Estados Unidos descobrem rotineiramente altares e parafernália devocional da Santa Morte nas casas e em posse de criminosos suspeitos, especialmente traficantes. A polícia mexicana prendeu Angel Jacome Gamboa em março de 2009, acusando-o de assassinar doze policiais em Rosarito Beach, a mando de seu renomado chefe, um dos maiores líderes do crime organizado de Tijuana. Uma das armas do assassino mostradas à imprensa era um revólver com uma imagem dourada da Santa Morte gravada em relevo na coronha. A santa da morte não poderia ter ficado mais perto do matador à medida que ele apertava o gatilho e despachava suas vítimas para o seu abraço ossudo.

Santa Morte ainda conserva o estigma negativo de ser uma "santa de criminosos e marginais", devido a sua popularidade em presídios mexicanos. 

A violência também visitou as maiores figuras no culto. Nascido e criado em Tepito, o Comandante Pantera era uma estrela em ascensão entre os seguidores da Irmã Branca. Na periferia miserável da Cidade do México, em Ecatepec, o jovem líder de culto e motociclista entusiasta, conhecido também como Jonathan Legaria Vargas, ergueu uma estátua preta gigante de 72 pés de altura da santa. Mesmo antes de a construção terminar, a efígie gigantesca e seu patrono viram-se em uma controvérsia. Funcionários municipais, alegando que ela violava as leis de zoneamento, ordenaram que o Comandante Pantera removesse a impressionante estátua, que podia ser vista de uma das maiores avenidas que atravessava a cidade. Ignorando as reclamações de pais na vizinhança, que diziam que suas crianças estavam tão assustadas com a imensa santa esquelética que não podiam dormir à noite, Legaria não só recusou a acatar as ordens municipais, como sugeriu que a violência poderia emergir se a polícia tentasse retirar à força a estátua. Tanto a mídia mexicana como a americana deram ampla cobertura para a controvérsia e seu carismático protagonista. Devotos e residentes curiosos foram ao terreno do templo de Ecatepec para olhar em primeira mão a “maior estátua de Santa Morte do mundo”.

Uma violência diferente da que o Comandante Pantera tinha em mente o pegou de surpresa no início da manhã de 31 de julho de 2008. A Ossuda veio para um dos seus devotos mais proeminentes apenas alguns minutos após ele terminar seu programa de rádio de fim de noite dedicado à sua devoção. Vários atiradores alvejaram o Cadillac Escalade de Legaria’s com quase duzentas balas, cinquenta das quais mataram na hora o líder de culto de 26 anos. A Santa Morte poupou suas duas acompanhantes, que foram criticamente feridas, mas sobreviveram. Tal matança é típica de assassinatos relacionados a drogas, mas, como muitos casos de homicídio no México, mais de um ano se passou sem nenhuma resolução11.

No início de 2007, três homens algemados foram executados a mando do Cartel do Golfo em frente a uma imagem da Santa Morte, na periferia de Nuevo Laredo. Após alguns meses, David Romo tratou de desvincular qualquer associação entre as execuções e o culto à santa. Para isso, desvelou uma imagem radicalmente nova da Santa Morte em seu templo, no distrito de Morelos, na Cidade do México. Uma estátua em tamanho real de um anjo feminino de cabelos castanhos, com uma compleição de porcelana e asas de penas, substituiu a tradicional santa esquelética no santuário principal. Romo batizou o novo ícone de “Anjo da Morte” e pediu aos membros da igreja que substituíssem suas imagens da Ossuda por esta, a nova e linda face da morte. Após três anos, a igreja permanece repleta de figuras, pinturas e velas votivas com a forma esquelética da santa, enquanto que as barracas de venda, dentro e fora do templo, oferecem quase somente imagens da Ceifadora retratada em sua forma tradicional! Romo culpou os vendedores pela falta de parafernália do Anjo da Morte, que não estariam interessados em oferecer a nova imagem enquanto a antiga vendesse tão bem.

Vela de sete cores da morte

Enquanto não há como negar seu apelo especial para aqueles que vivem, trabalham e morrem no mundo criminoso, incluindo agentes da lei, minha pesquisa tem como objetivo considerar a santa da morte em sua fascinante totalidade. Se focalizássemos somente na vela votiva preta, representando o lado obscuro da devoção, estaríamos ignorando as velas mais populares – vermelha, branca e dourada – que são acesas pelos devotos para propósitos muitos diferentes dos relacionados ao crime e castigo.

Com suas sombras de arco-íris, a poderosa vela de sete cores captura precisamente a identidade multicolorida da Poderosa. Essa vela, dentre as mais vendidas, é oferecida por devotos quando estão à procura de intervenção sobrenatural em múltiplas frentes. Por exemplo, a que comprei em Morelia é estruturada dentro de uma borda de quatorze crânios brancos e, à semelhança/retrato da Santa Morte, na parte da frente do vaso da vela possui balanças equilibradas, representando justiça e estabilidade. Em caracteres grosseiramente gotejados, lembrando mensagens escritas a sangue nos muros de filmes de horror americanos, na base da vela, logo abaixo de sua túnica, lê-se MORTE AOS MEUS INIMIGOS (MUERTE CONTRA MIS ENEMIGOS).

As velas para Santa Morte. 

A oração à Linda Menina na parte de trás da vela exibe uma petição específica para trazer de volta um marido ou namorado que se foi e um pedido geral para proteção e benefício. Tendo em mente companheiros infiéis, o início da oração segue-se: “Quero que a senhora (Santa Morte) entregue (Fulano de Tal) humilde aos meus pés para que ele cumpra as suas promessas”. A oração termina em grande nível: “Peço que a senhora concorde em ser minha padroeira e que me conceda todos os benefícios que Lhe pedir até meu último dia, hora e minuto.” Em um único objeto ritualístico das cores do arco-íris, a Madrinha despacha justiça, restaura o equilíbrio, neutraliza os inimigos, devolve homens infiéis e concede uma miríade de favores. A consideração ao espectro completo de cores das velas votivas, e não somente da cor preta, permitirá um rico entendimento da ascensão dramática do culto da Santa Morte na última década.

A vela marrom serve para assuntos de esclarecimento, discernimento e sabedoria, ainda que esta não esteja entre as velas mais populares. O santo argentino San La Muerte parece dedicar muito mais tempo e energia que a Santa Morte para ajudar seus devotos a encontrar objetos roubados e perdidos. Membros do culto mexicano e da América Central parecem não apelar à santa para a recuperação de pertences perdidos. Contudo, quando o fazem, uma vela cor de café é a recomendada para o serviço.

Em contraste com a vela marrom, a vela branca é uma das mais vendidas nas barracas de mercado e nas lojas “esotéricas”. É também a vela mais comum nos santuários do México, tais como os de Dona Queta e de David Romo. Pureza, proteção, gratidão e consagração são os mais frequentes atributos da vela sem cor, isso combinado com o fato de que o esqueleto da Ossuda e de dois de seus apelidos mais comuns referirem-se à ausência de cor (Menina Branca e Irmã Branca).

A vela preta está associada a trabalhos de vingança, dano e proteção contra a “magia negra” e os inimigos. Ela é a que mais demora a vender e raramente aparece em lugares devocionais nas beiras de estradas e calçadas. Obviamente, por conta de sua associação entre o público geral com a “magia negra” e bruxaria, muitos devotos que regularmente ou até ocasionalmente usam essas velas provavelmente preferem acendê-las na privacidade de seus lares, longe de olhos críticos. Não obstante, nos muitos altares domésticos que visitei pessoalmente e nos que vi por fotos, incluindo locais de crimes, a mais negra das velas está entre as menos populares. De qualquer forma, nas economias religiosas competitivas do México e dos Estados Unidos, a vela votiva preta serve como um dos produtos do culto mais exclusivos.

Devotos que buscam neutralizar inimigos, se vingar de erros imaginários e reais ou proteger um carregamento de cocaína destinada a Houston ou Atlanta podem tentar alistar a Santa Morte para sua causa ao fazer-lhe uma oferta de vela preta. Criados como católicos, praticantes ou não, a maioria dos devotos sente-se muito mais confortável ao pedir à santa popular, que não vai julgá-los para realizar milagres não cristãos do que dirigirem-se aos santos tradicionais que, provavelmente, recusarão uma bênção a um carregamento de drogas ou outros atos ilícitos.

O vermelho, junto com o branco e o preto, figura entre uma das cores históricas do culto e é uma das velas votivas que mais vendem, segundo minha pesquisa com os comerciantes nos dois países. Como pesquisador, deparo-me com surpresas intrigantes ao longo do trabalho de campo. Antes de partir para o México, no verão de 2009, não fazia a menor ideia da importância suprema das velas vermelhas e do propósito a que serviam. Nada do que havia sido publicado dentro e fora da academia sobre a Santa Morte dava pista alguma sobre o seu papel como doutora sobrenatural do amor, especialmente para mulheres mexicanas e da América Central. Entrevistas com devotos, líderes de culto e vendedores de artigos religiosos revelaram uma Poderosa que provavelmente gasta mais tempo atendendo aos assuntos do coração do que qualquer outro assunto. Rosa, uma faxineira de 32 anos, de Patzcuaro, Michoacan, por exemplo, coloca uma vela vermelha acesa no seu altar doméstico para que a Irmã Branca mantenha seu ex-marido abusivo longe dela e de seus quatro filhos.

Simbolizando paixão, amor e fortes emoções, a cera vermelha queima em altares de Chiapas a Chicago, onde amantes dispensados e namoradas ciumentas pedem à santa, que está geralmente vestida de noiva, para consertar seu coração partido ou dobrar e trazer de volta seu marido ou namorado inconstante. De fato, as primeiras referências escritas à santa esquelética no século XX a mencionam nesse contexto. No livro, Treasury of Mexican Folkways, publicado em 1947, Francis Toor menciona diversas orações à Santa Morte envolvendo a domesticação de homens que se comportavam mal.

No clássico estudo antropológico de Oscar Lewis, publicado no final dos anos 1950, The Children of Sanchez, Marta, residente em Tepito, diz ao antropólogo americano que sua irmã Antonia tinha pedido à Santa Morte o fim dos casos extramaritais de seu marido Crispin. “Da primeira vez que minha irmã Antonia me contou sobre os desvios de Crispin, ela me aconselhou para rezar para a Santa Morte à meia-noite por nove noites seguidas, com a foto de Crispin e uma vela feita de sebo na minha frente. Ela prometeu que, antes da nona noite, meu marido esqueceria outras mulheres. Comprei a oração de novena de um homem que me vendeu essas coisas no bairro e a decorei.” A oração que Antonia recitou é a mesma citada acima, a petição para o retorno do marido “humilde aos meus pés”.

Além das três cores tradicionais, as velas douradas de Santa Morte competem com as velas brancas pelo segundo lugar em vendas nas barracas de mercado e lojas de produtos religiosos e são, junto com as velas sem cor, a cera colorida mais comum em santuários públicos, incluindo os de Dona Queta e David Romo. O dourado é a cor do dinheiro, da prosperidade e da abundância no culto. Sofrendo as demissões e subempregos na pior recessão econômica dos Estados Unidos e México desde a Grande Depressão, centenas de milhares, se não milhões, deixam uma vela votiva dourada aos pés ossudos da Santa Morte em troca de bênçãos financeiras. Muitos devotos no santuário histórico de Dona Queta estão lá com velas douradas em mãos para pedir emprego à Poderosa.

A santa, que tem a reputação de “quebrar o galho”, tornou-se a padroeira oficial de numerosos donos de pequenos negócios por todo o México e em partes dos Estados Unidos. Yolanda, de 34 anos, clamou à Madrinha ajuda para começar seu próprio salão de beleza na Cidade do México e até ergueu um altar no seu estabelecimento para garantir um fluxo constante de clientes. Yolanda é tão grata a sua padroeira que, a cada dois anos, ela contrata um conjunto de mariachis por 160 dólares para fazer um tributo musical à Magrinha no culto mensal do rosário. Curiosamente, a enérgica cabeleireira pediu tanto a Guadalupe quanto a São Judas para auxiliá-la a montar seu negócio antes de recorrer à Santa Morte. Yolanda disse que sua nova padroeira era mais confiável que os outros. A santa não atua somente como agenciadora de empregos e filantropa divina, mas também ocupa uma importante posição na economia comercial, na qual as vendas de seus retratos em objetos ritualísticos e mesmo camisetas, agasalhos e tênis representam um negócio multimilionário.

Além de atuar no mercado, a Santíssima Morte realiza um papel indispensável como curandeira divina. Em meu trabalho anterior sobre Pentecostalismo e Catolicismo Carismático, mostrei como a cura divina é a força motora por trás do impressionante crescimento dessas formas de cristianismo centradas no Espírito Santo12. De forma similar, um dos grandes paradoxos do culto é que uma santa que personifica a própria morte é encarregada de preservar e prolongar a vida por meio de seus incríveis poderes curativos. Aqui a Santa Morte não é a Ceifadora que colhe as almas com sua foice, mas a Mãe de todos os médicos, consertando corpos partidos e ossos fraturados. A vela roxa é a que simboliza essa cura sobrenatural.

Uma disparidade curiosa do culto reside entre a grande ênfase depositada pelos devotos sobre a cura e a relativa ausência de velas cor de lavanda nos santuários e nas lojas. Pode ser que seja uma das cores mais novas que ainda está para ser mais adotada pelos fiéis ou, ainda, que muitos dos que buscam uma cura milagrosa preferem a cobertura extensa da vela de sete cores, que inclui o roxo no seu arco-íris. Qualquer que seja o caso, a vela púrpura iluminará os caminhos nos quais a santa da morte age para preservar e estender a vida humana no contexto dos agentes patológicos da pobreza no México e Estados Unidos.

A Santa Morte, no espírito do tempo, é um formidável ser multitarefas. Se os papéis de médica, agenciadora de empregos, doutora do amor e anjo vingador não são suficientes, ela também serve como a padroeira da justiça. Devotos com problemas legais e que buscam uma solução justa para seus problemas oferecem velas devocionais verdes para a Poderosa, que é geralmente representada com as balanças da justiça em sua mão direita. Ela não exerce tanto o papel de juíza, mas de advogada sobrenatural. Os juízes julgam, e um dos grandes atrativos da santa entre os fiéis é sua atitude de não julgamento. Como advogada divina, Santa Morte é mais interessada em conseguir o melhor acordo para seus clientes devocionais do que estabelecer sua inocência ou culpa. Em um país onde a justiça e a igualdade perante a lei são frequentemente um artigo em falta, milhões de mexicanos sentem que somente pela intervenção divina eles teriam uma chance de resolver seus problemas legais. E se sua defensora sobrenatural não está apta a ajudá-los a vencer o seu caso, devotos podem encontrar consolação na ideia de que mais cedo ou mais tarde os perpetradores da injustiça, junto com todos os mexicanos, sentirão a foice igualadora da Ceifadora.

Obviamente, é a vela de sete cores que melhor representa esses grandes poderes multitarefas da Santa Morte. É fácil entender por que essa, a mais nova das velas coloridas, é uma das que melhor vendem, juntamente com a vermelha, a branca e a dourada. Provavelmente baseada na vela dos sete poderes (siete potencias) da Santería, a principal religião derivada da diáspora africana em Cuba, o instrumento devocional com as cores do arco-íris reúne todos os poderes da santa em uma só vela. Em um país assaltado por uma das piores recessões econômicas em décadas, violência pandêmica, uma mortal guerra contra as drogas, muitos mexicanos voltam-se para a Madrinha para ajudá-los em múltiplas frentes.

NOTAS:

1 PERDIGÓN CASTANEDA, J. Katia. La Santa Muerte: Protectora de los hombres. Mexico City: Conaculta, 2008. p. 21.

2 FELDMAN, Lawrence H. The War Against Epidemics in Colonial Guatemala, 151-1821. Raleigh, NC: Boson Books, 199, p. 23-26.

3 PERDIGÓN CASTANEDA, J. K. Op. cit., p. 33.

4 GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. New York: Oxford University Press, 2007. p. 78.

5 BERNAL, Maria de la Luz. Mitos y magos mexicanos. Mexico City: Grupo Editorial Gaceta, 1982. p. 27.

6 PERDIGÓN CASTANEDA, J. K. Op. cit., p. 127.

7 PERDIGÓN CASTANEDA, J. K. Op. cit., p. 128.

8 Homero Aridjis, entrevista com o autor em 16 janeiro de 2011.

9 FERRIS, Susan. Saint Death Calls to the Living in Mexico City. Atlanta Journal-Constitution , 9 de março de 2004; David Romo, entrevista com o autor em 5 julho de 2009.

10 La Revista Peninsular. Detienen al peligroso secuestrador Daniel Arizmendi. 18 de agosto de 1998.

11 NAVARRO, Juan Manuel. Sepultan hoy a líder del templo de la Santa Muerte. El Universal, 1 de agosto de 2008. Disponível em: <http://www.eluniversal.com.mx/notas/526952.html>.

12 CHESNUT, R. Andrew. Competitive Spirits: Latin America’s New Religious Economy. New York: Oxford University Press, 2003.

FONTE: CHESNUT, R. Andrew. Santa Morte, santa esquelética no México e nos Estados Unidos. Tradução de Karina Kosicki Bellotti. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 55, p. 195-217, jul./dez. 2011.