terça-feira, 7 de dezembro de 2021

O rei de São Paulo

 O rei de São Paulo

Dr. Rodrigo Bentes Monteiro

Em 1823, o imperador do Brasil, D. Pedro I, comentou os motivos que o levaram a São Paulo em setembro do ano anterior, quando declarou a Independência às margens do Ipiranga: “Foi na pátria do fidelíssimo, e nunca assaz louvado Amador Bueno de Ribeira, onde pela primeira vez fui aclamado Imperador”. No discurso de D. Pedro, São Paulo foi valorizada como cenário do importante momento histórico por ter sido também a terra de Amador Bueno. Pouco mais tarde, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, o “pai” da História no Brasil, escreveria uma peça de teatro evocando o nome de Amador Bueno e seu “dignificante” exemplo. Mas que história é essa, lembrada nos tempos do Império do Brasil, mais de dois séculos depois de acontecida?

Litografia de Amador Bueno (c. 1584 - c. 1645). 

No cenário de meados do século XVII, os espanhóis que estavam no Brasil achavam que a capitania de São Vicente “e quase todo o sertão brasílico” poderiam ficar sob posse da Espanha se os paulistas se desmembrassem de Portugal. Propuseram então aos amigos, parentes e aliados que elegessem um rei paulista, indicando Amador Bueno de Ribeira. Os espanhóis usaram então todos os argumentos para convencer os “paulistas e europeus pouco instruídos” de que eles podiam não reconhecer por soberano um príncipe português a quem ainda não tinham jurado obediência: D. João IV, que acabara de ser aclamado, em 1640. Lembravam ainda, nessa investida, os milhares de índios e escravos que controlavam, podendo formar “exércitos formidáveis”, ajudados pela localização de São Paulo, isolada do mar pela serra. Amador Bueno vinha de próspera família com raízes hispânicas, com participação na Câmara da vila de Piratininga; possuía uma grande fazenda de trigo na qual trabalhavam muitos índios guaranis. Ele ficou pasmo ao ouvir a proposta e lembrou que todos deviam aceitar o destino do reino de Portugal. Mas a recusa do eleito aumentou a vontade do “povo ignorante”, que o ameaçou de morte caso não empunhasse o cetro.

O principal relato da aclamação de Amador Bueno é o de frei Gaspar da Madre de Deus (17151800), um padre que viveu entre Santos, Rio de Janeiro e São Paulo, tendo chegado ao cargo de abade no Rio em 1766. Frei Gaspar foi autor das Memórias para a história da capitania de São Vicente, em que narrou a aclamação de 1641. A narrativa começa quando chega a São Paulo a notícia de que o duque de Bragança tinha sido aclamado rei de Portugal, com o nome de D. João IV. Segundo frei Gaspar, essa novidade foi um duro golpe para os espanhóis que moravam na vila de São Paulo e que queriam que aquelas povoações ficassem obedientes a Castela, e resolveram entre si usar do artifício da nomeação de Amador Bueno.

Amador Bueno teria saído de sua casa escondido, com a espada na mão, caminhando apressado para o Mosteiro de São Bento. Mas todos corriam atrás gritando: “Viva Amador Bueno, nosso rei!”. Ao que ele respondeu muitas vezes, em voz alta: “Viva o senhor D. João IV, nosso rei e senhor, pelo qual darei a vida!” Chegando ao mosteiro, fechou as portas e mandou chamar os padres mais respeitáveis. Juntos, convenceram os rebeldes de que o reino pertencia à dinastia Bragança. E todos, “arrependidos do seu desacordo”, foram aclamar D. João IV, “com mágoa dos espanhóis”, que também prestaram juramento de fidelidade ao novo rei.

Frei Gaspar exaltava nas Memórias o heroísmo dos primeiros povoadores, ligados às principais famílias da capitania de São Vicente. Dessa forma, foi contado o episódio da aclamação de Amador Bueno no século XVIII: obra dos espanhóis que tramaram para iludir os “paulistas e europeus pouco instruídos”. Estes, mesmo apoiando a aclamação rebelde, foram considerados pelo memorialista “honrados e fiéis vassalos”.

Frei Gaspar se correspondia com o amigo e primo Pedro Taques de Almeida Leme (17141777), que escreveu a Nobiliarquia paulistana a partir de informações de cartórios na capitania de São Paulo e suas vizinhas. Como parte desta genealogia, compôs, em 1742, a história dos Bueno, narrando também o feito da aclamação. Os documentos que comprovam os relatos são os mesmos: uma patente militar concedida a Manoel Bueno da Fonseca, neto do aclamado, em 1700, na qual se declara a lealdade de Amador Bueno. A patente foi confirmada pelo rei D. Pedro II de Portugal: “por ser neto de Amador Bueno que, sendo chamado pelo povo para o aclamarem Rei, obrando como leal e verdadeiro vassalo com evidente perigo de vida, exclamou dizendo que vivesse ElRei Dom João o quarto seu Rei e Senhor.

Os dois escritores foram contestados em seus relatos sobre Amador. Mais tarde, Moreira de Azevedo escreveria um artigo afirmando que frei Gaspar falsificou a patente passada ao neto do aclamado, concluindo que “não há documento algum que prove a aclamação e recusa da coroa por Amador Bueno, sendo este fato apenas uma tradição”. Mas por volta de 1926, Afonso Taunay defendeu a validade dos escritos de frei Gaspar, destacando a confusão feita por Moreira de Azevedo ao pesquisar no arquivo da Câmara de São Paulo, quando deveria ter pesquisado em São Vicente.

No entanto, para desvendar melhor toda essa questão que cerca a aclamação de Amador Bueno, é preciso conhecer o contexto paulista no século XVII: desde meados do século XVI, a capitania de São Vicente era a mais próspera das “capitanias de baixo”, que incluía as que se situavam ao sul da capitania do Rio de Janeiro e a própria São Vicente. Os habitantes das capitanias de baixo, principalmente os de São Vicente, eram os maiores caçadores de índios. A fim de conseguirem mãodeobra para suas plantações e casas, os paulistas organizavam expedições que entravam centenas de milhas pelo interior do continente, às vezes ao longo de anos.

Entre 1630 e 1680, época áurea da produção de trigo em São Paulo, o número de escravos índios aumentou, formando uma economia voltada para a população do litoral e para as frotas portuguesas. Amador Bueno, ele próprio, possuía centenas de índios cativos, que trabalhavam em culturas de trigo, milho, feijão e algodão, e também na criação de porcos, gado, cavalos e ovelhas. Eram os jesuítas que, desde o século XVI, se colocavam como intermediários nas negociações entre os índios e os colonos de São Paulo, por meio de um projeto de aldeamentos missionários. Mas era comum que os indígenas se recusassem a trabalhar ou que voltassem para as aldeias assim que recebiam o pagamento, sem terminar os serviços. Além disso, uma série de doenças comprometia o sucesso das missões na região. Os paulistas, portanto, resolveram assumir a gestão do trabalho indígena e começaram a acusar os padres de atrapalharem suas atividades.

A reação dos jesuítas foi imediata: enviaram procuradores a Roma e a Madri e conseguiram a publicação na América, em 1639, de uma antiga bula feita em 1537 a favor dos índios do Peru, que declarava que seriam excomungados os que cativassem, vendessem ou usassem o serviço dos índios. Depois da sua divulgação em São Paulo, os conselhos municipais daquela vila e do Rio resolveram expulsar os jesuítas da capitania de São Vicente. Naquele ano de 1640, na “botada dos padres fora”, as propriedades dos jesuítas foram confiscadas e a administração das aldeias foi transferida para o poder público.

No Rio, com o auxílio do governador Salvador Correia, os jesuítas propuseram uma conciliação, em que cada lado cedesse um pouco. Os habitantes da vila de São Vicente, também por intervenção de Salvador Correia, fizeram como os do Rio: negociaram. Mas em São Paulo, apesar dos esforços do governador, os paulistas enfrentaram suas ameaças, fazendo bloqueios nos caminhos e impedindo sua chegada ao planalto. Os paulistas elaboraram então, em 1642, um longo memorial, enviado por seus procuradores à corte portuguesa. Entre eles estava Amador Bueno.

No documento, queixavamse da “amizade muito especial do governador Salvador Correia pelos reverendos padres” e finalizavam pedindo que o governador fosse substituído, prometendo a descoberta de “outro Peru” dentro dos limites da América portuguesa, caso fosse nomeado um sucessor de maior valia. A aclamação de Amador Bueno como rei de São Paulo juntase, assim, ao episódio da expulsão dos jesuítas em 1640 e aos conflitos com o governador Salvador Correia de Sá. No Rio, com o auxílio do governador Salvador Correia, os jesuítas propuseram uma conciliação, em que cada lado cedesse um pouco.

Os habitantes da vila de São Vicente, também por intervenção de Salvador Correia, fizeram como os do Rio: negociaram. Mas em São Paulo, apesar dos esforços do governador, os paulistas enfrentaram suas ameaças, fazendo bloqueios nos caminhos e impedindo sua chegada ao planalto. Os paulistas elaboraram então, em 1642, um longo memorial, enviado por seus procuradores à corte portuguesa. Entre eles estava Amador Bueno.

No documento, queixavamse da “amizade muito especial do governador Salvador Correia pelos reverendos padres” e finalizavam pedindo que o governador fosse substituído, prometendo a descoberta de “outro Peru” dentro dos limites da América portuguesa, caso fosse nomeado um sucessor de maior valia. A aclamação de Amador Bueno como rei de São Paulo juntase, assim, ao episódio da expulsão dos jesuítas em 1640 e aos conflitos com o governador Salvador Correia de Sá.

No entanto, os estudos de historiadores que mencionam o episódio não consideram que, nessa época, o poder monárquico português era de fato muito fraco, por conta dos conflitos com a Espanha. O Conselho Ultramarino, órgão criado em Lisboa em 1640, logo após a declaração de independência, só contou com sua primeira equipe de trabalho em 1643. Desse modo, a aclamação de Amador Bueno não foi mencionada nas atas daquele Conselho. O conflito já estava resolvido e Portugal tinha problemas mais sérios na Europa, como a sua própria sobrevivência política.

Portanto, a aclamação de Amador Bueno é um símbolo do momento histórico vivido no planalto paulista por volta de 1640. Mas não somente de São Paulo. A restauração da independência portuguesa significava também o surgimento, nos cenários europeu e mundial, de uma nova dinastia régia, cujo poder, no reino e no ultramar, estava longe de se afirmar. O evento paulista de abril de 1641 é o contraponto para o acontecido em dezembro de 1640 em Portugal, considerando as características das duas partes envolvidas, dinastia Bragança e vassalos vicentinos: o rei frágil, os vassalos revoltosos. A presença do próprio Amador Bueno da Ribeira em Lisboa, apresentando o memorial dos paulistas em 1642, e o silêncio sobre o episódio, só lembrado no século seguinte, reforçam este raciocínio.

Assim, na conjugação desses aspectos, devese buscar o sentido da aclamação de Amador Bueno, não com a intenção de avaliar sua importância para a história política do Brasil, como foi sugerido por D. Pedro I e por Varnhagen no século XIX, mas como algo capaz de expressar um contexto histórico. Os conflitos ou insubordinações mencionados aconteceram numa capitania mal dominada pelo poder régio, na verdade nunca controlada, sequer visitada, por seus donatários. E numa região onde o modo de vida dos habitantes mais diferia da lógica assumida pelos portugueses em sua colonização na América. Desse modo, é possível que a primeira sublevação desafiadora do poder monárquico português tenha ocorrido na capitania de São Vicente, justamente a mais frontal, por substituir o corpo régio na figura de um outro personagem. Parece então que os paulistas se mostraram decididos em sua posição, e na aclamação de seu próprio rei.

FONTE: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei de São Paulo. Revista de História, 2007. 


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