Por mais de três séculos os janízaros foram uma importante tropa de elite à serviço dos sultões otomanos. O sistema de escolha desses homens era baseado no sequestro ou convocação forçada de crianças e adolescentes dos povos conquistados, os quais desde cedo eram treinados para lutar, mas também para a administração pública, ascendendo em postos e cargos dentro da hierarquia dos janízaros. Essa tropa também se especializou no combate com armas de fogo, numa época na qual tais armas ainda estavam sendo introduzidas na Europa.
A Nova Força
No século XIV o Império Otomano já dominava quase toda a atual Turquia, tendo reduzido o Império Bizantino a alguns territórios aos arredores de Constantinopla, sua capital, situada no Estreito de Bósforo, cercada por três anéis de muralhas. Apesar disso, os sultões otomanos ambicionavam derrotar os bizantinos e se apossarem de sua preciosa capital, uma das maiores e mais ricas cidades do mundo medieval.
Assim, havia a necessidade de sempre manter um exército crescente, ainda mais devido a condição de que o número de mortos e feridos por batalha costumavam serem elevados. Soma-se a isso também, ameaças de complôs e traições que vitimavam nobres e até mesmo os sultões. Sendo assim, o sultão Murade I (1326-1389), o qual governava desde 1362, empreendeu várias conquistas pela região dos Bálcãs, o que compreende o sudeste europeu. Por conta disso, os otomanos invadiram territórios que hoje compreendem a Bulgária, a Sérvia e a Romênia, conquistas efetuadas principalmente entre 1382 e 1389. (PALMER, 2013).
A conquista desses reinos cristãos ortodoxos foi crucial para o surgimento dos janízaros, uma força militar cujo nome em turco yeniçeri significa "nova força". O governo tinha necessidade de recrutar regularmente homens para recompor as altas perdas sofridas nas guerras. Assim, o sultão Murade I teve como alvo de recrutamento forçado, os territórios cristãos que se tornaram seus vassalos. (PALMER, 2013).
![]() |
| Ilustração alemã do século XVII, representando janízaros. |
O tributo de sangue
Chamado oficialmente de forma simples devshirme (coleta), tratava-se de um tributo obrigatório criado pelo sultão Murade I e mantido por outros sultões ao longo de séculos, em que meninos entre seus 8 e 18 anos deveriam ser obrigatoriamente recrutados ("coletados") para servir no exército ou como funcionários públicos. (GOODWIN, 2001).
A ideia de que apenas meninos órfãos seriam recrutados para isso, é incorreta. As ordens eram categóricas em se capturar crianças e adolescentes saudáveis. No geral o tributo era realizado na zona rural onde se concentrava a população naquela época. Assim, anualmente os responsáveis pelo devshirme percorriam os territórios da Anatólia, Bulgária, Sérvia e Romênia atrás de meninos saudáveis para serem recrutados à força. As famílias que resistiam eram punidas por conta disso. Em alguns casos, os jovens eram incentivados a fugirem e se esconder durante a época do recrutamento. (GOODWIN, 2001).
Após serem recrutados, tais garotos eram forçados abandonar suas crenças e costumes, passando a aprender a língua turca (as vezes o grego e o árabe), além de se converterem ao Islão. Eles também eram educados no combate e afazeres militares, mas alguns que mostravam aptidões para a administração, eram conduzidos a cargos públicos. (GOODWIN, 2001).
![]() |
| Recrutamento de meninos cristãos para o devshirme. Pintura otomana de 1558. |
Assim, os sultões buscavam se resguardar de intrigas palacianas e conspirações das famílias nobres, formando sua guarda pessoal e funcionários mais leais, a partir de homens fora da sociedade turca (mesmo que fossem estranhos e provenientes de outros povos e culturas), mas eles não tinham ligação com a nobreza e a aristocracia. Condição essa que alguns sultões barravam os casamentos dos janízaros com determinadas mulheres para evitar que fossem corrompidos pelos interesses das famílias delas.
Por outro lado, o tributo também era um meio de manter a vassalagem dos reinos subjugados e o temor sobre seus povos. Caso houvesse descumprimento quanto ao tributo de sangue, as consequências seriam graves.
Apesar disso, a cobrança do tributo e sangue não durou por todo a época na qual os janízaros existiram. A tropa existiu formalmente entre 1363 a 1826, perfazendo mais de quatrocentos anos de atividades, no entanto, no final do século XVII, o devershime entrou em declínio, pressionado por fatores externos (revoltas dos Estados vassalos nos Bálcãs) e fatores internos (indignação da nobreza e da aristocracia), somando-se tais fatores, os sultões da época começaram a permitir que os janízaros fossem escolhidos entre a população local, e evidentemente os cargos mais prestigiados eram disputados pelas elites. (GOODWIN, 2001).
As funções dos janízaros
Como salientado anteriormente, tais homens não eram apenas guerreiros, mas exerciam funções burocráticas e até serviçais também. Os cargos e funções dos janízaros mudaram ao longo dos séculos, mas veremos alguns deles.
O primeiro e principal deles era o de ser guerreiro. Os janízaros eram treinados no uso de diferentes armas. Inicialmente eles treinavam com espadas, lanças e arco e flecha. Acrescentava também o combate a cavalo. A partir do século XV eles começaram a serem treinados no uso de armas de fogo como mosquetes, pistolas, canhões e explosivos. Isso reflete a ideia de serem uma tropa de elite, já que formavam a guarda pessoal dos sultões e de sua família, mas também protegiam a corte. (GOODWIN, 2001).
![]() |
| Diferentes trajes dos janízaros. |
Os homens que se destacavam na escrita, na matemática, na cartografia, na história, na geografia, no direito, na administração etc., eram designados a cargos públicos distintos. Além disso, os janízaros também poderiam ser encarregados de treinarem as tropas e os recrutas. Curiosamente, alguns sultões valorizavam outras habilidades como a música, a pintura, a poesia e a culinária, em que alguns dos janízaros chegavam a apresentar seus talentos em festas e eventos. (GOODWIN, 2001).
A depender da sua patente e função, seus trajes variavam de cor e estilo, para indicar isso. Além disso, em festivais e cerimônias, os janízaros poderiam usar trajes mais belos para realizar desfiles militares, o que incluía portar estandartes, bandeiras e outros adornos.
Conquista de direitos e poder
Os janízaros ainda no começo não tinham permissão de se casarem e constituir famílias, mesmo a maioria sendo estrangeiros, os quais foram recrutados à força e obrigados a adotar uma nova cultura e religião, além de se submeterem aos seus juramentos ao sultão. Eles também eram sujeitos a morarem nos quartéis, estarem disponíveis para exercícios militares a qualquer momento, faziam voto de obediência, poderiam ser castigados fisicamente e até receber pena de morte. Também não poderiam exercer outras profissões, restringir contato com parentes (na maioria das vezes, nunca voltavam a ver suas famílias). Também eram proibidos de consumir bebidas alcoólicas e em algumas épocas não podiam usar barba. (PALMER, 2013).
Todavia, no final do século XVI, o Corpo dos Janízaros constituíam uma poderosa classe militar no Império Otomano, alguns tinham sido prefeitos e governadores e até paxá (grão-vizir ou primeiro-ministro). Por conta da influência política que conquistaram, sua classe passou a requisitar melhorias em suas vidas e carreiras. Isso inclusive se tornou um problema para alguns sultões, pois tinham que ceder a pressão de sua guarda de elite. (GOODWIN, 2001).
O sultão Selim II (1524-1574) durante seu reinado de 1566 até sua morte em 1574, cedeu a pressão dos janízaros. Diferente de seu pai, o famoso Solimão, o Magnífico (1494-1566), um dos mais ricos e poderosos sultões otomanos, que dispunha da lealdade e admiração dos janízaros, Selim II não herdou o mesmo ímpeto, firmeza e moral de seu pai. Fato esse que ele teve que realizar algumas reformas nas normas que regiam o Corpo dos Janízaros. Um dos pedidos que foram atendidos era a autorização de que os filhos deles pudessem ingressar na ordem militar, até então isso era proibido. (GOODWIN, 2001).
Dessa forma, o recrutamento dos janízaros após duzentos anos foi mudado. Manteve-se o devshirme, mas abriu-se precedente para que os filhos dos janízaros pudessem se alistar voluntariamente ou indicados por seus pais, tios, avós e responsáveis. A contragosto o sultão teve que ceder isso e a outras pressões que diminuíam a burocracia como ampliar a autorização para se casarem, possuírem propriedades rurais e comerciais, poderem morar em seus lares (isso pelo menos para os de patente e cargos altos) e visitar suas famílias com mais frequência, receber licenças etc. Isso inclusive abriu caminho para jogos de interesses na corte entre a ordem militar, já que a carreira de janízaro era prestigiada e almejada por algumas famílias. (GOODWIN, 2001).
Fato esse que a importância deles cresceu no século XVII e se tornou um problema para alguns sultões, pois quando eles não gostavam dos mesmos, agiam como uma oposição indireta e até poderiam traí-lo, como ocorreu com o sultão Osmã II (1603-1622), o qual governou num momento instável do império. Seu pai Amade I faleceu em 1617, mas Osmã tinha seus 14 anos, idade até vista como possível para assumir o trono, no entanto, a sucessão foi passada para seu tio Mustafá I que governou entre 1617 e 1618, porém, por sofrer de problemas psicológicos, foi deposto pelo sobrinho, que alegou a sucessão por direito (nem sempre o primogênito assumia o trono, no Império Otomano a disputa pelo sultanato foi bem comum, havendo assassinatos entre irmãos, tios e primos). (GOODWIN, 2001).
![]() |
| O sultão Osmã II foi deposto e assassinado pelos janízaros. |
Seu tio Mustafá I foi posto no trono como governante fantoche até 1623, sendo removido para ser sucedido por Murade IV (1612-1640), que passou a governar sob os olhares dos janízaros também como um governante fantoche. Havia uma lei que não foi quebrada pela ordem de que era respeitar a manutenção da Dinastia Otomana, assim, nenhum janízaro poderia assumir o trono. Porém, isso não impedia de eles escolherem os membros da realeza que lhe fossem obedientes, isso ocorreu com Mustafá I, com Murade IV e outros sultões também. Inclusive estendendo-se para outros cargos. Por exemplo, em 1631, a campanha desastrosa contra os persas, levou os janízaros a matarem o paxá, acusando-o de ter parte da culpa. (KINROSS, 1977).
O fim dos janízaros
Entre os séculos XVII e XVIII a ordem dos janízaros alcançou incrível poder e influência, mas isso a corrompeu profundamente também. A validade dos juramentos foi se perdendo, surgiram facções com seus jogos de interesse. Os homens almejavam entrar na ordem não para servir o seu país, mas seus próprios interesses, ambicionando poder e riqueza. Os janízaros passaram a se envolver com a corrupção na política e no exército. Alguns usavam sua posição e cargos como forma de ganhar favores, intimidar, extorquir e chantagear. Fato esse que alguns janízaros se tornaram opressivos, atuando como milicianos no sentido que normalmente usamos no Brasil.
Em termos políticos e sociais, os janízaros se tornaram cada vez mais conservadores (ironicamente eles lutaram pela autonomia da ordem anteriormente, mas alcançada essa, decidiram privar o povo disso), se posicionando contrários a reformas administrativas, tributárias, sociais e militares que eles viam como uma ameaça ao estilo de vida turco, alegando que tais modernizações subverteriam os valores do povo. De fato, alguns sultões e paxás tentaram implementar reformas baseadas nas vistas na Europa e mais tarde nos Estados Unidos, mas os janízaros foram contrários a maioria delas. Por sua vez, os governantes que eram contrários a eles, os mesmos realizavam revoltas, motins, sabotagens e até chegaram a matar alguns políticos. (KINROSS, 1977).
![]() |
| O sultão Mamude II |
Evidentemente que os janízaros não gostaram de saber disso, sendo chamados de incompetentes, além de que pois que seriam substituídos de suas funções, além de perderem alguns de seus privilégios como mais poderosa classe militar otomana. Então eles marcharam em protesto até o Palácio de Topkapi em Istambul, porém, a emboscada estava preparada.
Mamude II ordenou que as tropas leais a sua pessoa, algumas inclusive odiavam os janízaros, atacassem os quartéis, rendendo os mesmos e até tendo ordens de matá-los, fato esse que os quartéis e fortes sob comando dos janízaros, foram bombardeados. Já o grupo que marchou até o palácio foi atacado. Os que se renderam foram poupados, mas o orgulho janízaro os levou a entrar em conflito. O sultão anunciou ao povo que os janízaros tinham se rebelado contra ele e o país e pretendiam efetuar um golpe de estado, então aquele ataque que ele ordenou era em "legítima defesa". (GOODWIN, 2001).
Estima-se que de 4 mil a 6 mil janízaros foram mortos durante os dias de conflito por Istambul e em outras cidades do império. Os altos cargos da ordem foram mortos ou rendidos, sendo feito prisioneiros e forçados a ordenar a rendição de suas tropas. Apesar de uma abordagem sanguinária, vitimando milhares de homens, Mamude II conseguiu aplacar os ânimos, já que parte da população odiava os janízaros e acreditavam que realmente eles eram culpados de vários problemas na nação (de fato, eles tinham parcela nos problemas políticos, sociais e econômicos), além de acreditarem que eles tramavam um golpe de estado. (GOODWIN, 2001).
O Acontecimento Auspicioso teve início em junho, mas a perseguição aos janízaros se estendeu pelos meses seguintes. Guerreiros que estavam amotinados em seus quartéis, fortes e em outras localidades mesmo tendo se rendido, não foram poupados, sendo condenados a pena de morte por enforcamento, decapitação ou fuzilamento. A destituição da Ordem dos Janízaros foi comparada a destruição da Ordem dos Templários ocorrida na Idade Média. Pelo menos no tocante a brutalidade exercida contra eles, incluindo o confisco de seus bens. (GOODWIN, 2001).
Com a vitória implacável sobre os janízaros, o sultão Mamude II decretou que oficialmente a ordem estava dissolvida. Os que sobreviveram perderam seus cargos, patentes e soldos. Alguns até mantiveram alguns de seus bens e foram readmitidos no exército e na administração pública, após jurarem lealdade ao sultão. Outros conseguiram fugir e desaparecer. Uma parcela foi enviada para prisões, exílio ou executada. No caso dos comandantes, a maior parte deles foi condenada a pena de morte.
Parte dos janízaros que sobreviveram, seguiram com suas vidas, outros viajaram para outras províncias do império ou deixaram o país. Alguns ainda se uniram a grupos rebeldes contrários o governo, buscando vingança. Mas é fato que a ordem definitivamente chegou ao fim após mais de quatro séculos de existência, tendo ido do respeito a decadência. Acabando de forma sangrenta.
NOTA: Na franquia de jogos Age os Empires, os janízaros são uma unidade de elite dos Turcos, aparecendo a primeira vez em Age os Empires 2 (1999). A tropa volta aparecer nos jogos seguintes da série.
NOTA 2: No jogo Assassin's Creed Revelations (2011) o protagonista Ezio Auditore em sua passagem por Istambul, enfrenta janízaros em distintas ocasiões.
NOTA 3: Na série turca Muhtesem Yüzyil (2011-2014), conhecida em alguns países como "O Sultão", aborda o reinado de Solimão, o Magnífico no século XVI, apresentando em alguns episódios os embates do monarca contra a ordem dos janízaros, inclusive a tentativa de motim deles.
NOTA 4: A minissérie russa Yanychar (Janízaro) exibida em 2022, conta a história fictícia do cossaco Alekha, o qual em uma viagem de peregrinação é capturado por tropas otomanas e forçado a se tornar um janízaro devido as suas habilidades marciais. Porém, revoltado por ser escravizado, ele passa a tentar escapar.
Referências bibliográficas:
GOODWIN, Godfrey. The Janissaries. London: Saqi Books, 2001.
KINROSS, Patrick. The Ottoman Centuries: The Rise and Fall of the Turkish Empire London: Perennial, 1977.
PALMER, Alan. Declínio e queda do Império Otomano. São Paulo: Globo Livros, 2013.
.jpg)



las_-_Sultan_Mahmud_II_-_Google_Art_Project.jpg)
Nenhum comentário:
Postar um comentário