quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Utopia despedaçada: o Caso Galápagos

No começo da década de 1930 a ilha de Floreana, uma das ilhas do arquipélago de Galápagos, território equatoriano, ficou mundialmente famosa no Ocidente por conta da empreitada inusitada e ousada de um casal de alemães que partiram para o autoexílio. O médico Friedrich Ritter tinha como pretensão escrever um revolucionário livro de filosofia de vida, que segundo ele, seria o ponta-pé para "salvar" o mundo da crise que ele vivenciava. 

O médico que virou filósofo

O alemão Friedrich Ritter (1886-1934) era um médico em Berlim, até então sem grande relevância, que diante de uma crise existencialista, decidiu mudar de vida completamente. Leitor assíduo das obras do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), Ritter passou a adotar cada vez mais um pensamento niilista (visão cética e pessimista) sobre a vida. Desiludido com a realidade da Alemanha que vivia uma crise política, econômica e social após a tragédia da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a ascensão do Nazismo, somava-se a isso a destruição causada pela guerra em outros países europeus, a expansão do Fascismo, começada na Itália, e mais recentemente a crise econômica que se instaurava nos Estados Unidos após a quebra da bolsa de Valores de Nova York em outubro de 1929

Diante de todos esses problemas, Ritter decidiu abandonar sua carreira e seus familiares, optando em se isolar do mundo (não totalmente), assim, ele procurando pelos mapas, viu o arquipélago de Galápagos no Oceano Pacífico, aquelas ilhas ficaram famosas por conta da visita do naturalista Charles Darwin (1809-1882), todavia, o principal interesse em viajar para aquele arquipélago adveio por conta do livro Galapagos World's End (1924), o qual descreve a expedição científica do biólogo William Beebe (1877-1962), realizada em 1923. O livro ficou bastante popular em países como a Alemanha. 

Assim, Ritter influenciado pelas descrições de Beebe sobre a exuberância de Galápagos e a condição de que Darwin ali esteve e aquilo contribuiu para ele escrever parte da sua teoria da evolução, Ritter também concebia para si o "nobre dever" de escrever um livro revolucionário, uma nova filosofia de vida. Assim, ele e sua companheira, Dore Strauch (1901-1943), que tinha sido sua paciente, a qual buscava uma cura para sua esclerose múltipla, decidiram se mudar para a distante ilha de Floreana, que eles julgavam ser um bom lugar para viverem como ermitões. 

Dore Strauch e Friedrich Ritter.

Na época da viagem, em meados de 1929, Ritter contava com 43 anos e Strauch tinha 29 anos. Os dois não tiveram filhos e seguiram com equipamentos e mantimentos. Ali estabeleceram uma casa, uma horta e um galinheiro. A propriedade foi nomeada de Friedo. Apesar de buscar o isolamento para compor seu livro de filosofia, Ritter nunca deixou de se comunicar com o exterior. Ele deixava cartas, as quais eram recolhidas por navios que passavam por aquele arquipélago. Sua correspondência chamou a atenção dos jornais alemães e americanos, de forma que em 1930, Ritter e Strauch eram chamados de "Adão e Eva de Galápagos", se tornando subcelebridades. Os dois eram tratados como alemães excêntricos, que abandonaram a civilização para adotar um estilo de vida rural e isolado. Ritter inclusive em sua paranoia, chegou a arrancar os dentes e usar chapas de metal, além de submeter Strauch a uma terapia alternativa que mesclava dieta vegetariana e meditação, sob alegação de que isso ajudaria no tratamento a doença dele. Ritter defendia a ideia de que algumas doenças poderiam serem curadas com meditação e a força do pensamento. 

O arquipélago de Galápagos no Equador. 
Os Wittmers

A popularidade das histórias de Ritter, a partir de suas cartas que eram publicadas em jornais, começou a atrair a curiosidade de algumas pessoas. Condição essa que alguns europeus que viajavam pelo Equador ou próximo a Galápagos, chegaram a ir a Floreana para conhecer o casal e até lhe fornecer recursos. Fato esse que existem fotografias deles, as quais foram depois publicadas nos jornais e livros. Todavia, Ritter acreditava que aquelas visitas esporádicas não seriam um problema para sua vida de isolamento com sua mulher, mas a situação mudou em 1931, quando uma família decidiu se mudar para Floreana. 

Heinz Wittmer era um homem de 41 anos, casado a segunda vez, tendo um filho de 14 anos de nome Harry, o qual tinha problemas de asma. Wittmer trabalhava como secretário do prefeito de Colônia na Alemanha. O cargo pagava mal e ele estava desiludido com o andamento da política de seu país. Fascinado com as cartas e matérias jornalística sobre o Dr. Ritter de Floreana, como era mais conhecido, ele decidiu seguir um estilo de vida similar. Wittmer vendeu tudo e mudou-se com seu filho e sua esposa Margret (1904-2000), a qual estava grávida, para Floreana, indo ser vizinhos de Ritter e Strauch.

De início o médico não aprovou a ideia de ter vizinhos, já que seu objetivo era viver sozinho com sua esposa naquela ilha, sem a presença de outros humanos. Todavia, como Heinz Wittmer estava tão fascinado pelo estilo de vida de Ritter e Strauch, além de ter comprado a ideia de que o médico estava escrevendo um livro de filosofia revolucionário, ele decidiu permanecer na ilha, passando por várias dificuldades até conseguir construir sua casa e plantar uma horta. Meses depois o filho de Margret e Heinz nasceu, sendo chamado de Rolf, tratando-se da primeira pessoa que se tem notícia na História, a ter nascido em Floreana. Anos depois Margret deu à luz a uma menina chamada Floreana Ingeborg

A família Wittmer

A extravagante baronesa

Os Wittmers chegaram a Floreana em agosto de 1931, até então Ritter e Strauch achavam que não teriam mais outros vizinhos, mas isso mudou menos de dois meses depois. Uma misteriosa e extravagante mulher chamada baronesa Eloise Bosquet von Wagner Wehrhorn, chegou em companhia de seus amantes Rudolph Lorenz e Robert  Philippson, os quais se mudaram para Floreana com o projeto de fundar ali um hotel de luxo que seria chamado de Hacienda Paradiso

A presença de Eloise e seus amantes foi um choque para a vida pacata de Ritter, Strauch e a família Wittmer, que até então não tinham tanto problemas entre si e procuravam levar uma vida rural. Eloise era uma mulher extravagante, exibida, petulante, sedutora e ardilosa. Ela era vista como sendo depravada também, já que não escondia ter caso com Lorenz e Philippson. 

De qualquer forma, mais tarde se descobriu que ela era um oportunista e golpista. Inventou uma personagem que dizia ser uma baronesa austríaca muito rica, que estava investindo parte de sua fortuna em Floreana. Todavia, ela era uma francesa, que teria trabalhado em cabarés, aprendendo a dançar, cantar e atuar um pouco. Lorenz era dono de uma loja de roupas em Paris, o qual tomou Eloise como amante. Possívelmente Philippson fosse funcionário de lá também, como sugerem alguns pesquisadores. Os dois passaram a embasar a farsa de Eloise, mais conhecida como Baronesa, que inclusive começou a escrever cartas para os jornais europeus e americanos, gabando-se e apresentando seu magistral projeto de construir um hotel de luxo (ou resort nos padrões de hoje). 

A Baronesa e seus dois amantes em fotografia de 1931. 

No final do ano de 1931 o navio Velero III que conduzia a expedição do biólogo John Hancock (1875-1965) chegou a Floreana. Hancock e sua tripulação decidiu passar por lá para visitar Ritter e os demais moradores. Na ocasião fotografias e filmagens foram feitas. As fotos apresentadas anteriormente advieram dessa visita de Hancock. 

Morte em Floreana

Os três anos seguintes foram turbulentos em Floreana, principalmente por conta das intrigas geradas pela Baronesa, resultando em roubos, mentiras, sabotagens e desentendimentos. Ritter, Strauch e os Wittmers começaram a suspeitar que toda a imagem de nobre austríaca era uma farsa, ainda mais pela condição de que dois anos tinham se passado e as tais obras da Hacienda Paradiso nunca começaram de fato. Ora, se Eloise era tão rica como alegava, porque a construção não tinha início? Além disso, Eloise fomentava a discórdia entre os moradores, fato esse que Dore Strauch disse que a Baronesa era o "diabo" que tinha chegado naquela ilha.

Os desentendimentos foram se agravando em 1933 até que no ano seguinte, mortes ocorreram. Em meados de 1934 o jornalista sueco Rolf Blomberg chegou a Floreana abordo de um barco pesqueiro com o intuito de entrevistar os moradores da ilha. Quando ele ali chegou soube que a Baronesa e Lorenz tinham desaparecido. 

Ao indagar os moradores quanto a paradeiro dos dois, ninguém sabia dizer ao certo o que houve. Blomberg ao investigar o ocorrido, notou que vários pertences da Baronesa permaneceram em seu acampamento, o que era estranho. Margret Wittmer escreveu em seu livro muitos anos depois, que o casal teria viajado para o Taiti. Já Strauch sugeriu que os Wittmer teriam assassinado a Baronesa e Phillippson, mas isso nunca foi comprovado. Por sua vez, Lorenz foi embora da ilha, posteriormente foi achado morto junto ao pescador com o qual pegou carona. Os corpos foram encontrados numa praia da ilha de San Cristóbal, em Galápagos. 

Para completar a situação trágica em Floreana, ainda em 1934, o médico Friedrich Ritter morreu por intoxicação alimentar, após comer um frango podre. Assim, em questão de menos de cinco meses, quatro habitantes da ilha morreram e os fatores que conduziram as suas mortes nunca foram plenamente esclarecidos. Ainda mais a condição de que os corpos da Baronesa e de Phillippson nunca foram encontrados. 

Considerações finais

Blomberg noticiou ao mundo a notícia das misteriosas mortes ocorridas em Floreana no ano de 1934. Rapidamente vários jornais começaram a divulgar tais notícias. O excêntrico Dr. Ritter morreu intoxicado, possívelmente envenenado por sua esposa, embora que formalmente Dore Strauch nunca foi acusada de homicídio. Ela voltou para a Alemanha ainda em 1934, posteriormente publicou um livro de memórias intitulado Satan came to Eden (1936), onde narrava sua aventura com o marido, o sonho utópico de ele escrever um livro filosófico revolucionário, os momentos bons e ruins no sítio de Friedo, a chegada dos Wittmers, até os turbulentos anos convivendo com a Baronesa e seus amantes. 

Em seu livro, Dore Strauch insinuou que Lorenz poderia ter assassinado Eloise e Phillippson, ou até mesmo os Wittmer estariam envolvidos. Quanto a morte de seu marido, ela a descreveu com uma terrível fatalidade. De qualquer forma, Strauch se afastou dos holofotes e seguiu com sua vida, vindo a morrer numa clínica particular (sanatório nos dizeres da época) onde estava internada por conta de sua esclerose múltipla. 

Em 1936 os Wittmers viajaram a Alemanha para dar entrevistas, reencontrar os familiares e conseguir recursos. Eles desistiram de morar no país e voltaram para Floreana, onde decidiram investir no projeto da Baronesa: construir um hotel, embora não fosse de luxo. Assim, eles começaram a construir bangalôs e abriram o Hotel Wittmer (atual Wittmer Lodge), se aproveitando da popularidade da história deles e dos demais colonos de Floreana. A família também passou a atuar como guias na ilha. O hotel ainda hoje existe. 

O hotel Wittmer Lodge em Floriana, Galápagos. 

Em 1959, Margret viajou a Alemanha para publicar Postlagernd Floreana: eine moderne robinsonade auf den Galápagos-inseln, um livro de memórias que narrava sua vida em Floreana desde a chegada a ilha em 1931. Ao abordar as misteriosas mortes de 1934, Margret mencionou que a Baronesa e Philippson teriam ido embora de repente. Já a morte do Dr. Ritter, tratou-se de uma suspeita fatalidade. 

O Casa Galápagos como ficou conhecido ainda nos anos 1930, nunca foi solucionado. Não se sabe quem matou a Baronesa e Phillippson; por sua vez, Strauch, como dito anteriormente, nunca foi formalmente indiciada pela polícia por ser suspeita de "envenenar" o marido. Os Wittmers embora também suspeitos, não foram investigados mais. Já Lorenz e o pescador, não se sabe como eles chegaram a naufragar naquela ilha e por quanto tempo permaneceram lá até morrer. 

Além dos dois livros de memórias, outras obras foram escritas sobre a pequena colônia alemã em Floriana, tratando-se de livros jornalísticos e até de ficção. O Caso Galápagos também rendeu documentários, o mais conhecido deles é o documentário The Galapagos Affair: Satan come to Eden (2013), dirigido por Daniel Geller e Dayane Goldfine. 

NOTA: A Baronesa chegou a gravar um curta-metragem de 4 minutos intitulado The Empress of Floreana (1934), em que interpretava uma pirata. A filmagem foi feita pela tripulação do capitão Hancock, a qual retornou a ilha novamente. 
NOTA 2: O filme Eden (2024) conta de forma resumida a história da colônia alemã em Floreana, além de apresentar sua própria versão da morte da Baronesa e de Phillippson. 

Referência


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