sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

As Inquisições

Se por um lado pensamos que houvera apenas a "Inquisição" e a mesma foi algo apenas da Idade Média, na realidade houveram Inquisições, e nesse caso, os três grandes tribunais surgiram na Idade Moderna e permaneceram em atividade até o século XIX, perfazendo mais de trezentos anos de operação, num período que conveniou-se a se acreditar que as "trevas do medievo" já haviam sido esquecidas, haviam sido "clareadas" pela luz do Renascimento, das Ciências e do Iluminismo. 

Nesse trabalho procurei relatar a constituição institucional das Inquisições Romana, Portuguesa e Espanhola, as quais foram as maiores, e mais poderosas e longevas entidades inquisitoriais da História, atuando não apenas na Europa, mas nas Américas, África e Ásia, no caso das colônias portuguesas e espanholas.

Me prenderei a contar um pouco da história da formação destes órgãos da Igreja Católica e descrever algumas de suas características, como os cargos, processos, relatórios, julgamentos, enfim, a burocracia destes tribunais.

ORIGENS

Inquisições medievais

De fato as inquisições surgiram na Idade Média, a primeira vez que se tem notícia sobre a criação de um conselho munido com direitos papais para se combater a heresia, perseguir, prender e julgar, data do ano de 1184, quando o papa Lúcio III expediu uma bula autorizando que os bispos detivessem o direito de inquisidor, ou seja, pudessem com a permissão outorgada pelo Santo Padre, perseguir, prender, atuar e julgar os condenados que cometeram as mais diversas heresias.

Nesse caso, pelo fato de os bispos serem os responsáveis pela coordenação das inquisições, passou-se a chamar tais organizações de Inquisições Episcopais, geridas por bispos, mas, no entanto, deveriam se reportarem ao papado.

A iniciativa do papa Lúcio III de criar a inquisição deu-se após rumores chegarem a Roma, dizendo que povos do sul da França, chamados de albigenses estavam pregando um culto distorcido do cristianismo tradicional, misturando até mesmo antigas crenças pagãs de origem celta. A inquisição episcopal agiu sobre tais práticas heréticas, e a partir daí, a Igreja expediu investigações em outros locais da Europa, procurando por evidências de heresia, nesse caso o intuito principal das inquisições era combater a expansão da heresia, punir os heréticos, manter a ordem e a boa conduta vigentes pelos direitos e leis outorgados pela Igreja, contidos nas Sagradas Escrituras.

Em 1233 o papa Gregório IX outorgou duas bulas, criando a Inquisição Papal, a qual posteriormente daria origem a Inquisição Romana. A Inquisição Papal agia no mesmo intuito das episcopais, mas ficava sediada em Roma, e passou posteriormente a contar com um tribunal, o chamado Tribunal do Santo Ofício.

As inquisições episcopais continuaram agir pelos séculos seguintes. De fato, Santa Joana d'Arc (1412-1431) foi julgada e condenada por uma inquisição episcopal localizada na província francesa da Normandia.

Inquisição Espanhola (1478-1834)

"No dia 1 de novembro de 1478, o papa Sisto IV assinou a bula Exigt sincerae devotionis affectus, através da qual fundou a nova Inquisição na Espanha. Redigida como resposta às petições dos Reis Católicos, essa bula reproduzia os argumentos régios sobre a difusão das crenças e dos ritos mosaicos entre os judeus convertidos ao cristianismo em Castela e Aragão, atribuía o desenvolvimento dessa heresia à tolerância dos bispos e autorizava os reis a nomear três inquisidores (entre os prelados, religiosos ou clérigos seculares com mais de quarenta anos, bacharéis ou mestres em teologia, licenciados ou doutores em direito canônico) para cada uma das cidades ou dioceses do reino". (BETHENCOURT, 2000, p. 17).

Escudo da Inquisição Espanhola. O símbolo da cruz, da espada e do ramo de oliveira eram compartilhados pelas três inquisições.

No século VIII os cristãos ainda combatiam os visigodos pelo controle das terras da Península Ibérica, nessa época, vindos do Marrocos chegaram os árabes, os quais ficaram conhecidos também como mouros (nesse caso, o termo mouro possuí outros significados). Os árabes se estabeleceram na península onde hoje perfazem os territórios de Espanha e Portugal, e ali ficaram até o século XV. Os visigodos e outros povos ditos "bárbaros" foram catequizados, no entanto, os árabes trouxeram uma nova religião a qual crescia no Oriente Médio, o Islã.

Por mais de cinco séculos os cristãos combateram os mulçumanos e os judeus na Península Ibérica, no que ficou conhecido como a Reconquista, onde os cristãos tentavam expulsar os árabes da península e retomarem as terras usurpadas. No século XV, Portugal, já era um reino unificado, mas a Espanha não existia como nação unificada, era formada por vários pequenos reinos, sendo Aragão e Castela os mais poderosos. Foi a partir do casamento do rei Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, os chamados Reis Católicos, foi que a Espanha se tornou um reino unificado. Mesmo assim, a ameaça dos muçulmanos, dos judeus, e dos cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo) eram indicativos de heresia, daí os monarcas pedirem ao papa que instaurassem uma Inquisição para o reino.

Naquela época os muçulmanos e os judeus eram chamados de infiéis, termo utilizado comumente durante o período das Cruzadas entre o século XI e XIII. Aqueles que não profetizavam que Jesus Cristo era o seu salvador, era visto como um herege, logo os judeus não viam Jesus como sendo o aguardado Messias de seu povo, e os muçulmanos consideravam Jesus como um dos grandes profetas de Alá, mas não o "Filho de Deus" e o "Filho do Homem". Sendo assim, muçulmanos e judeus eram perseguidos por serem considerados infiéis, ou eles se convertiam ou as consequências seriam drásticas.

Inquisição Portuguesa (1536-1821)

Em 23 de maio de 1536 o papa Paulo III assinou a bula Cum ad nihil magis oficializando a criação da Inquisição Portuguesa. A bula nomeava três bispos para assumirem o cargo de inquisidor-geral, assim foram nomeados um bispo da cidade de Ceuta, Coimbra e Lamego, dando direito ao rei D. João III de nomear um quarto inquisidor-geral. A criação da inquisição em Portugal, seguia fatores similares aos vistos na Espanha, algumas décadas antes. Tais fatores ficam mais claros, quando se lê um dos documentos expedidos por um dos inquisidores-gerais, onde este reafirma alguns crimes de heresia descritos na bula que concedia a formação e a jurisdição da inquisição no reino de Portugal e em todas as suas possessões no além-mar, ou seja, suas colônias. O documento reafirmava o que foi dito na bula:

"A bula designava o judaísmo dos cristãos-novos, acrescentando o luteranismo, o islamismo, as proposições heréticas e sortilégios. No monitório esses 'delitos' são especificados e ampliados: encontramos aí a caracterização das cerimônias judaicas e islâmicas, das opiniões heréticas (entre as quais os "erros" luteranos, a incredulidade, a rejeição dos dogmas e dos sacramentos), da feitiçaria e da bigamia (talvez o único delito que não estava compreendido na bula)". (BETHENCOURT, 2000, p. 25).

Diferente da Espanha, a qual criou tribunais inquisitoriais em algumas de suas colônias, como foi o caso do México, Peru e Colômbia, os portugueses só criaram um tribunal inquisitorial foi do reino, e este se encontrava em Goa na Índia. Devido a distância da metrópole, isso resultava em uma viagem de quase um ano. Nesse caso, o Brasil e as colônias na África com exceção de Moçambique, estavam sob a tutela e as ordens do Tribunal de Lisboa. Já Moçambique, Timor Leste, Macau na China, e outros territórios na Ásia, estavam sob tutela e as ordens do Tribunal de Goa, o qual se reportava ao de Lisboa.

Nesse caso, graças aos impérios ultramarinos de Portugal e Espanha a inquisição se expandiu pelos quatro cantos do mundo, embora fossem mais atuantes na Europa. 

Inquisição Romana (1542-1800)

A Inquisição Romana foi a última a ser formada, sendo substituta da Inquisição Papal que atuava sobre os Estados Italianos. Diferente de Espanha e Portugal, os quais eram reinos unificados, a Itália era um aglomerado de cidades-estados e cidades-servis, as quais as últimas estavam sujeitas as ordens das grandes cidades italianas. Nesse caso, a Inquisição Romana, operou de forma não unanime temporalmente sobre a Itália. Em alguns Estados, essa foi implantada tardiamente após a data de 1542 e em outros ela foi abolida antes de meados do século XVIII, embora tenha sido abolida definitivamente do território italiano no vigente último ano do século XVIII. 

"A Inquisição romana não foi objeto de uma verdadeira refundação, mas sim de uma reorganização, em 4 de julho de 1542, através da bula Licet ab initio. Ao contrário dos motivos invocados para o estabelecimento das Inquisições na Espanha e em Portugal, onde a difusão do judaísmo justificava a organização do tribunal, aqui era a heresia protestante o alvo da nova configuração do 'Santo Ofício'. No preâmbulo da constituição papal, encontramos explicitadas as seguintes motivações: o desejo de conservar a pureza da fé contra a heresia; a paralisia das instituições de controle devido às expectativas de abjuração e de regresso dos hereges á igreja católica; o atraso da realização do Concílio devido ás guerras entre príncipes cristãos; o progresso da heresia e as ameaças constantes de ruptura da unidade da Igreja". (BETHENCOURT, 2000, p. 27).

"Nessa bula, o papa nomeava uma comissão de seis cardeais investido do estatuto de inquisidores-gerais sobre toda a cristandade, cardeais que tinham a possibilidade de delegar seus poderes a religiosos ou clérigos formados em teologia ou em direito canônico. Essa comissão - conhecia como Congregação do Santo Ofício - adquirias assim plenos poderes a instrução e a conclusão dos processos de heresia, mesmo na ausência dos bispos competentes, reservando para si a decisão final sobre o recurso dos processos de primeira instância". (BETHENCOURT, 2000, p. 27).

Neste caso, o papa Paulo III reorganizou as instâncias da Inquisição em solo italiano. No entanto, embora todos os tribunais localizados nas cidades-estados tivessem que se reportar ao Tribunal do Santo Ofício em Roma, tais tribunais possuíam certa autonomia em alguns aspectos, podendo realizar julgamentos e condenações, sem o consenso total de Roma, desde que não inferissem na desaprovação das leis. Daí, o fato de que algumas cidades-estados mantiveram seus tribunais em tempos diferentes.

ESTRUTURA

Pelo fato de que muitas características da estrutura dos tribunais serem semelhantes, irei decorrer aqui como um texto corrido, denotando apenas algumas particularidades entre os tribunais, já que na essência suas estruturas e organizações eram bem próximas.

COMUNICAÇÃO

Uma das questões fundamentais na constituição dos três tribunais dizia respeito a comunicação, a eficiência dos funcionários de se reportarem aos seus superiores de forma que os mesmos pudessem resolver os mais diversos assuntos sem precisar demandar tempo em demasia para se resolver problemas. Não obstante, a comunicação era importante para se agilizar os processos, já que alguns se encontravam em outros tribunais do Estado e deveriam ser encaminhados para o local onde o acusado estava preso ou seria julgado. Além de se tratar de outros assuntos ligados ao funcionamento do sistema.

"A comunicação entre os tribunais de distrito e os organismos centrais não se limitava às consultas sobre o processo penal ou sobre a conclusão dos processos, embora esses aspectos desempenhassem um papel decisivo. Encontramos igualmente consultar e instruções regulares sobre a preparação dos autos de fé, sobre a forma de resolver conflitos de jurisdição com as autoridades civis e eclesiásticas, sobre os problemas de etiqueta suscitados pela participação dos inquisidores nas cerimônias locais, sobre as visitas de distrito e sobre a situação financeira dos tribunais". (BETHENCOURT, 2000, p. 39).

No caso de Portugal e Espanha que possuíam tribunais em suas colônias ou enviavam inquisidores para as mesmas, a eficiência tinha que ser ainda melhor, os tribunais nas colônias levavam meses para se reportarem ao reino devido as viagens de navio, no caso do Tribunal de Goa, chegava a levar até um ano ou mais para se chegar os relatórios até Lisboa. Quando a demora era grande nestes tribunais, o inquisidor-geral se reportava ao Conselho, então este decidia enviar inquisidores para tais locais a fim de averiguar por que da demora do envio dos processos e relatórios.

A maioria dos processos e casos julgados nos tribunais foram arquivados ao longo dos séculos, embora que em alguns locais tais documentos se perderam. Uma boa forma de se compreender os procedimentos de como eram julgados as pessoas é lendo-se tais livros que contem os processos.

"Um dos traços mais importantes que permite distinguir a Inquisição medieval das Inquisições do Antigo Regime encontra-se na diferença de estrutura dos fluxos de comunicação que irrigam as respectivas organizações. Com efeito, todas as informações de que dispomos sobre a Inquisição medieval revelam uma comunicação predominantemente horizontal, compreendendo uma troca frequente de cartas entre inquisidores de uma mesma província, que praticavam a consulta recíproca sobre problemas processuais ou sobre formas de agir perante casos específicos. (BETHENCOURT, 2000, p. 34).

Os tribunais portugueses e espanhóis verticalizaram suas comunicações, tudo era reportado ao inquisidor, deste ao inquisidor-geral, este se reportava ao Conselho e se fosse o caso, o Conselho se reportava ao rei e ao papa. A verticalização ajudou a equilibrar as ações dos inquisidores os tornando menos arbitrários e autônomos, no  entanto tal fato não foi predominante na Inquisição Romana, onde ainda se mantivera a comunicação horizontal, especialmente na República Veneziana.

"Para os inquisidores que operavam na República veneziana existia, apesar de tudo, uma rede hierárquica informal, estabelecida em torno do inquisidor de Veneza, apenas porque este estava próximo do núncio apostólico, cuja intervenção nos assuntos do tribunal era bastante importante". (BETHENCOURT, 2000, p. 35).

CARGOS

Entre os três grandes tribunais de fé, como também se referi as três inquisições, havia uma forte hierarquização dentro de sua estrutura, cada cargo possuía funções especificas, desde o inquisidor-geral até os chamados familiares. Haviam etiquetas para a conduta nos cargos e até mesmo para se portar diante das investigações, julgamentos, condenações, e até no ato de se vestir e comparecer em locais públicos, tudo isso girava através de etiquetas ditadas pelas regras da instituição postas aos seus funcionários.

Trabalhar nos tribunais inquisitoriais era uma honra para alguns e sinal de prestígios para outros. Você estaria servindo ao Rei, ao Papa e ao próprio Deus, como eles salientavam em dizer. Servir nos tribunais, era poder combater o mal espalhado por Satã e seus demônios, que corrompiam as almas dos homens e mulheres.

"A atração pelos ofícios da Inquisição deve-se, em grande medida, aos privilégios concedidos pelo papa e pelos reis hispânicos. Os privilégios papais situam-se no âmbito da proteção simbólica mas não menos importantes do que os privilégios temporais: lembremos das indulgências plenárias concedidas, em certas circunstâncias, aos crocesignati envolvidos nas Cruzadas e nas guerras da Itália, investidos como assistentes civis dos inquisidores". (BETHENCOURT, 2000, p. 138).

"Os privilégios reais concedidos na Espanha e em Portugal, ao longo do século XVI, aos oficiais e familiares da Inquisição tornavam seus cargos e títulos ainda mais interessantes. Em geral, esses privilégios caracterizavam-se pela isenção de impostos, obrigações comunitárias, serviço militar ou alojamento de tropas, pela autorização de usar vestuário de seda mesmo sem ser cavaleiro, pela licença de portes de armas defensivas e ofensivas, pelo reconhecimento de jurisdição privada na maior parte dos crimes e disputas judiciárias em que se pudesse estar envolvido". (BETHENCOURT, 2000, p. 139).

No entanto, me prenderei aqui a falar de três cargos: inquisidor-geral, inquisidor e os familiares. Já que houveram vários cargos na hierarquia das Inquisições e demandaria tempo e linhas para falar acerca de toda a estrutura em si e a funcionalidade de seus ofícios. No entanto, dentre estes cargos, estavam os procuradores, juízes (os quais necessariamente não eram inquisidores), secretários, notários do fisco, notários das confissões, investigadores, qualificadores, etc.

Inquisidor-geral: Era o cargo mais alto comumente na instituição. No caso português e espanhol, era o rei que nomeava o inquisidor, no tribunal romano, tal designação cabia ao papa e aos cardeais. No entanto, nos três tribunais, existiam algumas especificidades para se eleger um inquisidor-geral, tais especificações eram: Este teria que ter mais de 40 anos, ser um bispo, arcebispo, cardeal, doutor em direito canônico ou teólogo. Sob tais especificações um inquisidor-geral poderia ser escolhido para assumir o cargo.

No caso do tribunal espanhol existia o chamado Consejo de la Suprema General Inquisición, tal conselho era o órgão máximo da Inquisição Espanhola, estando apenas abaixo do rei e do papa. Sem o consentimento do Conselho, o rei não poderia decretar que o inquisidor escolhido assumisse o cargo. Para isso, ele enviava uma carta ao Conselho dizendo quem foi o nome escolhido, e o Conselho por sua vez se reportava ao papa, depois que este desse o consentimento a favor da escolha, o Conselho notificava o rei, e assim o inquisidor-geral escolhido ia participar da cerimônia para tomar posse do cargo. Em Portugal, existia o Conselho Geral da Inquisição, em moldes similares ao espanhol.

"A principal diferença entre o Conselho da Inquisição português e o Conselho da Inquisição espanhol reside na competência de nomeação dos conselheiros. No caso português, são os inquisidores-gerais que nomeiam os membros de seu Conselho após uma consulta ao rei; no caso espanhol é o inverso, isto é, são os reis que escolhem os conselheiros após uma consulta ao inquisidor-geral em exercício". (BETHANCOURT, 2000, p. 119).

No caso romano, o inquisidor-geral era nomeado ou pelo papa ou pela Sacra Congregazione (ou Congregação Romana), organização similar ao Conselho espanhol e português. A Congregação detinha a autoridade de nomear os inquisidores-gerais, os inquisidores, os comissários, além de intervir em outros assuntos do funcionamento dos tribunais.

O cargo de inquisidor-geral não possuía duração especificada, poderia até mesmo ser vitalício em alguns casos. No entanto, o inquisidor-geral poderia renunciar, ser afastado devido motivos de doenças ou ser demitido, em caso de não estivesse atuando como o esperado.

Ao seu cargo eram atribuídos as funções de nomear os inquisidores e outros cargos, de coordenar processos, de participar de julgamentos se fosse o caso; enviar inquisidores para as colônias (no caso de Portugal e Espanha) ou enviar inquisidores para as visitas nos distritos; cuidar da parte burocrática, supervisionando como estava o andamento dos processos, o funcionamento dos tribunais, a publicação de éditos, a organização dos autos-de-fé, etc.

Em Portugal houveram casos de que alguns inquisidores-gerais, foram parentes do rei ou da rainha. Fato este que o primeiro inquisidor-geral de Portugal foi o franciscano d. Diogo da Silva, bispo de Ceuta e confessor do rei D. João III. O mesmo assumiu o cargo em 1536 e permaneceu neste por apenas três anos, renunciado aos ofícios por motivos de saúde. O rei D. João III escolheu para sucedê-lo, o seu irmão d. Henrique. Dom Henrique tornou-se arcebispo de Braga, de Évora e de Lisboa, posteriormente foi elevado a cardeal, assumiu o cargo de inquisidor-geral de 1540, permanecendo neste até a sua morte em 1580. Chegou a ser regente e tornou-se em 1578 rei de Portugal, governando por apenas dois anos. O exemplo de D. Henrique I, mostra que o cargo de inquisidor-geral era um cargo profundamente ligado aos interesses dos monarcas e do papado.

No entanto, nos três tribunais, alguns inquisidores-gerais e até mesmo inquisidores normais, que eram bispos, foram promovidos a cardeais. Mas, o fato mais interessante ocorreu na Inquisição Romana, onde no século XVI, três papas, haviam sido cardeais que atuaram como inquisidores, estes cardeais se tornaram os papas, Paulo IV, Pio V e Sisto V. A atuação como inquisidor era uma oportunidade de conseguir subir de cargo na hierarquia eclesiástica.

Inquisidor: Os inquisidores existiam em maior quantidade do que os inquisidores-gerais, a estes cabiam obrigações similares, no entanto estavam suscetíveis as ordens de seus superiores. Os inquisidores, atuavam como juízes, participavam de interrogatórios e julgamentos, compondo a mesa julgadora; eram encarregados de supervisionar os tribunais mais distantes, tendo que viajar para estes se fosse o caso, no caso do Brasil, foram enviados três inquisidores a colônia (1591, 1618, 1774); despachavam documentos, assinavam éditos, reportavam relatórios, compareciam e chefiavam os autos-de-fé; compareciam as celebrações de feriados religiosos, etc.

A nomeação dos inquisidores seguia as mesmas especificidades pelas quais o inquisidor-geral era nomeado, mas nesse caso, era o mesmo que nomeava os inquisidores, no entanto essa não era uma regra definitiva, no caso da Inquisição Romana, os cardeais da Congregação podiam eleger os inquisidores.

O inquisidor passava tempo indeterminado no ofício, podendo ficar meses ou vários anos, dependendo de sua atuação no cargo. O mesmo poderia renunciar ou ser demitido. Em caso de ficasse doente era afastado de seus afazeres até recobrar a saúde e a disposição. Tanto o inquisidor-geral como os inquisidores, faziam nomeações para distintos cargos, além de formarem seus gabinetes com seus secretários e outros funcionários.

Familiares: Os familiares era um cargo de baixa hierarquia, na Inquisição Romana era chamado de crocesdignati. Em si a eleição para tal cargo era feita pelo inquisidor, nesse caso o homem ou mulher, deveria se reportar ao inquisidor local de sua cidade, diocese ou região, a fim de averiguar a necessidade de seu emprego. Um familiar para ser empregado deveria passar por uma avaliação de seus antecedentes, o inquisidor cobrava um relatório sobre a procedência familiar do mesmo, além de uma ficha criminal. Não era necessário pertencer a Igreja ou confraria ligada a esta, os familiares eram pessoas comuns (fidalgos, agricultores, mercadores, artesãos, artistas, escritores, jornaleiros, etc), que buscavam servir a Inquisição. Em alguns casos os familiares formavam uma rede de espionagem a serviço das inquisições.

Os familiares não possuíam uma tarefa certa, eles podiam servir em várias tarefas que lhe fossem designadas, podendo atuar como médicos, se fosse o caso do mesmo ser um médico; podiam atuar como mensageiros, como investigadores, representantes, secretários, guardas, "policiais", confiscadores, etc.

Os familiares era o cargo com o maior número de empregados, tendo de centenas até mesmo milhares, no caso de se leva-se em consideração o número de empregados em todo o reino ou cidade-estado. Em muitos casos, muitos dos familiares eram membros da própria família do inquisidor, daí o nome familiar. No entanto o cargo já existia desde a época medieval. Mesmo assim, os familiares recebiam um salário por parte da instituição, embora fosse bem baixo, no entanto e alguns locais eles dispunham de certos privilégios. Não obstante, as três inquisições possuíam relatórios com o nome de todos os membros empregados e a quantidade de cada um em cada região, sendo que no caso da Inquisição Romana, havia maior rigidez no emprego dos familiares, e uma maior fiscalização sobre as atividades do mesmo.  

Pirâmide da hierarquia dos cargos da Inquisição Espanhola

REGULAMENTOS

Como foi visto, as três inquisições foram fundadas por bulas papais que designavam a criação de tribunais e a nomeação dos inquisidores-gerais, os quais por sua vez nomeariam seus funcionários. No entanto, a organização dos tribunais fazia-se seguindo vários regulamentos, dentre os quais já existiam desde a época medieval e foram conservados, no entanto no caso dos tribunais hispânicos, houveram a elaboração de novos regulamentos, entre os quais diziam respeito a atuação da inquisição sobre as colônias e os colonos.

"A rede inquisitorial estabeleceu-se e foi modelada pelas formas e comunicação, cuja estrutura de fluxos nos revela as características e os níveis de responsabilidade no seio da organização. Contudo, o funcionamento dessa rede impunha a formulação de regulamentos e de instruções internas, não apenas para o enquadramento e a orientação dos fluxos de comunicação, mas também para a "alimentação" de todo o aparelho". (BETHANCOURT, 2000, p. 41).

No caso espanhol, em 1484 ano da fundação da Inquisição Espanhola, o primeiro inquisidor-geral nomeado, Tomás de Torquemada, foi o responsável por elaborar os regulamentos que seriam vigentes na Inquisição Espanhola. Ele reuniu vários inquisidores, dois letrados e dois membros do conselho do Rei, assim produziram o regulamento. O regulamento foi ampliado e atualizado mais duas vezes enquanto Torquemada ainda era vivo, as novas modificações aconteceram em 1488 e 1498. Quando a Inquisição Portuguesa e Romana foram criadas, décadas depois, já possuíam como base não apenas os regulamentos medievais, mas os regulamentos modernos expedidos pelos espanhóis desde 1484.

Inquisidor-geral Tomás de Torquemada.

Em Portugal, embora os portugueses tivessem adotado como base os regulamentos espanhóis, eles realizaram suas próprias modificações assim como ditavam seus interesses e o contexto da época. Em 1563, o inquisidor-geral d. Henrique oficializou o confisco dos bens dos acusados, na Espanha isso já acontecia há vários anos. Os acusados que eram culpados, tinham seus bens confiscados pela Inquisição, desde imóveis a propriedades. Tal fator foi uma das questões que levaram a população a posteriormente questionar até onde ia a autoridade da Inquisição de se confiscar os bens dos culpados, e em alguns casos tais bens não eram devolvidos aos herdeiros.

Não obstante, em 1552, d. Henrique havia ordenado a elaboração de um novo manual inquisitorial. A nova edição possuía 141 capítulos, e representava uma sistematização e condensação dos manuais anteriores. Em tal regulamentos havia as diretrizes que presidiam a organização da estrutura dos tribunais, as visitas aos distritos, a publicação de éditos, as formas de reconciliação, a detenção, as maneiras de agir e tratar os penitentes e os acusados, a instrução de como se proceder com os processos, os recursos as condenações e sentenças, a organização dos autos de fé, etc. Dentre estes regulamentos se encontrava o Manual do Inquisidor, o guia pelo qual o inquisidor deveria se basear enquanto estivesse no cargo.

Em 1774 foi publicado o último regimento da Inquisição Portuguesa durante o governo do rei D. José I e de seu primeiro-ministro, o Marquês de Pombal. Nesse último regimento o mesmo abordava quatro questões em si:

"Assim, o regimento introduz quatro grandes alterações: a) o segredo do processo é suprimido, isto, é as denúncias deviam ser apresentadas integralmente aos presos, com os nomes das testemunhas, bem como com as circunstâncias espaciais e temporais; b) é proibida a condenação à pena capital com uma só testemunha; c) é criticada e condenada a tortura, como uma prática perversa que estimula as falsas confissões, mantendo-se em aberto, contudo, sua utilização no caso dos heresiarcas dogmáticos; d) é suprimida a inabilitação dos condenados e de seus descendentes". (BETHANCOURT, 2000, p. 48).

A alteração "c" proposta no novo regulamento é algo bem interessante a ser avaliado. Até a presente data de 1774 era comum o uso de torturas para que os acusados confessassem seus crimes, tal prática foi amplamente utilizada nos século XV e XVI em todas as três inquisições e até mesmo antes, nas inquisições episcopais. Não obstante, no limiar do final do século XVIII as inquisições estavam perdendo sua autoridade por diversos motivos, nesse caso, a prática da tortura já não condizia como uma forma útil de condizer com a atitude "salvadora" que se propunha a Inquisição. Ora, se os tribunais estavam para combater o mal, por que necessariamente eles deveriam se valer de práticas tão horríveis como a tortura para fazê-lo? Até o presente momento, tais práticas por mais que indignassem alguns, eram vistas como necessárias para que os acusados falassem a verdade. A alegação era simples, o mal é bem persuasível quando queria ser, no entanto, a inquisição estava lá para salvar sua alma, não o seu corpo.

BUROCRACIA

Os melhores dados acerca da burocracia dos tribunais inquisitoriais advêm dos arquivos hispânicos já que por muito tempo os arquivos italianos se mantiveram fechados, e não obstante mesmo hoje, parte destes arquivos estão fechados e alguns documentos se encontram na Biblioteca do Vaticano, exclusivamente restrita ao acesso de historiadores e outros pesquisadores. Não obstante, parte dos arquivos dos tribunais de algumas cidades-estados italianas foram destruídos, depois que seus tribunais foram fechados. Assim, o caso hispânico é o mais rico em documentação.

No caso da Sacra Congrezazione como foi visto, os cardeais presidiam a Congregação, no entanto suas tarefas estavam mais ligadas as nomeações e tomar decisões acerca de questões sobre finanças, jurisdição e as relações com as autoridades civis. O trabalho nos tribunais era feito pelos inquisidores e os de mais funcionários que se reportavam diretamente aos seis cardeais da Congregação.

Embora a burocracia romana fosse centralizada e vertical em alguns casos, um dos problemas apontados nas pesquisas do historiador Francisco Bethencourt foi que não há relatos a respeito de visitas aos tribunais, ou seja, não havia total controle de como os tribunais e seus funcionários estavam trabalhando nos vários tribunais por toda a península, não obstante, outro ponto fraco na organização burocrática romana, era que só havia um inquisidor para cada tribunal, isso sobrecarregava o mesmo de trabalho.

"Existia apenas um inquisidor para cada tribunal, encarregado de geria a rede dos vigários e dos familiares, de instruir os processos  de proceder a inquéritos, de distribuir trabalho aos consultores para a classificação das proposições suspeitas, de concluir os processos com o representante do bispo e,  por fim, de enviar relatórios regulares á Congregação Romana". (BETHANCOURT, 2000, p. 67-68).

Com a sobrecarga de trabalho sobre os inquisidores algumas inadimplências não eram vistas, logo isso comprometia a estrutura e a eficiência do sistema. Não obstante, o armazenamento da documentação da Inquisição Romana, era outro problema, como ponderado por Bethencourt em suas pesquisas.

"No caso da Inquisição Romana, a organização dos processos é frequentemente confusa, os inquéritos misturam-se com as denúncias, não existem registros específicos segundo tipo de delito ou o tipo de documento, ao contrário ao contrário do que aconteciam com as inquisições ibéricas". (BETHANCOURT, 2000, p. 68).

Se por um lado a burocracia romana apresentava estes problemas, a burocracia dos tribunais espanhóis dizia respeito a divisão de hierarquias, havia uma grande necessidade de se reportar tudo ao Consejo de la Suprema, o qual foi criado em 1488 para cuidar das questões legais, financeiras e administrativas da Inquisição Espanhola.

"O Consejo é constituído por seis membros, cinco conselheiros eclesiásticos e um fiscal - os conselheiros são nomeados pelo rei a partir de três nomes propostos pelo inquisidor-geral e qual nomeia diretamente o fiscal -, que desempenham suas funções junto com um corpo burocrático de secretários e de oficiais de justiça ampliado ao longo dos séculos XVII e XVIII". (BETHANCOURT, 2000, p. 69-70).

"O poder do Consejo foi se construindo ao longo do tempo, graças à absorção de diversas competências reservadas ao inquisidor-geral e à imposição de várias formas de controles aos tribunais de distrito. Evidentemente, a estratégia de apropriação dos mecanismos de poder por parte do Conselho beneficiou-se das ausências do inquisidor-geral, dos períodos de vazio que mediavam entre a morte um e a nomeação de outro, da impossibilidade deste de manter o monopólio de competências. A complexidade crescente do trabalho administrativo e judiciário dos tribunais implicava uma divisão de tarefas e uma intervenção do Conselho na gestão e na conclusão dos assuntos". (BETHANCOURT, 2000, p. 71).

No caso português e espanhol, os tribunais de distrito possuíam de dois a três inquisidores cuidando da administração do mesmo. Já os tribunais das grandes cidades como Lisboa, Évora, Coimbra, Sevilha, Madrid, Barcelona, podiam contar com quatro ou mais inquisidores. Não obstante, ambas as inquisições tinham costume de enviar funcionários para verificar o funcionamento dos tribunais, e em alguns casos um inquisidor escolhido pelo inquisidor-geral realizava a chamada "visita" a fim de averiguar pessoalmente a realidade e o andamento das coisas naquele distrito ou nas colônias. Assim, o sistema evitava que inadimplências passassem despercebidas e tratavam de resolver os problemas que acometiam aquela região.

"A estrutura intermediária tem um poder extraordinário, sendo constituída por dois ou três inquisidores à frente de cada tribunal de distrito, controlando uma máquina burocrática composta pelo promotor fiscal, secretários, meirinho, alcaide, porteiro, solicitador consultores, qualificadores, juiz de bens, receptor, contador, notário dos sequestros, sem falar dos comissários e dos familiares da circunscrição. A estrutura burocrática de cada tribunal teria, no mínimo, vinte funcionário remunerados, podendo avaliar-se em cerca de quinhentos indivíduos, entre magistrados com jurisdição e oficiais".  (BETHANCOURT, 2000, p. 73).

ÉDITOS

"Os éditos da Inquisição desempenham um papel fundamental no conjunto da atividade dos tribunais, pois tornam públicos o campo de intervenção, impõem períodos de denúncia ou concedem períodos de graça, pontuando a vida cotidiana da população com proibições e avisos. A amplitude dos assuntos cobertos pelos éditos é espantosa, pois eles difundem as classificações dos delitos submetidos à jurisdição inquisitorial, essas classificações são regularmente atualizadas a partir da análise de novos movimentos heterodoxos; os caos de maior impacto podem ser objeto de um aviso especial, sobretudo por meio da impressão da sentença ou das proposições condenadas; os catálogos de livros proibidos são completados pela emissão regular de novas proibições". (BETHANCOURT, 2000, p. 148).

Há uma variedade de tipos de éditos, mas comumente havia três tipos em comum para as três inquisições, os éditos de graça, os éditos de fé e os éditos particulares. A respeito de cada um destes falarei um pouco mais a frente.

A publicação do édito seguia regulamentos específicos, alguns como no caso dos éditos de fé só eram publicados em feriados religiosos ou períodos religiosos, como a Quaresma e a semana de Páscoa, no entanto os de mais éditos era publicados em qualquer outro dia. A respeito da publicação dos éditos, na Inquisição Portuguesa e Espanhola, inicialmente era o rei que aprovava a publicação de algum édito, posteriormente tal função passou aos Conselhos e aos inquisidores-gerais e até mesmo há alguns inquisidores. Os éditos eram documentos oficiais que transmitiam pareceres da própria instituição.

No caso da Inquisição Romana, não havia uma uniformidade na publicação dos éditos, na teoria a Congregação e os inquisidores-gerais é que expediriam a autorização para a publicação de tais documentos, no entanto as autoridades civis contestavam a publicação de alguns dos éditos, como foi visto na República de Veneza. Alguns éditos teriam que serem avaliados pelas autoridades civis e te o aval destas para poder ser publicado e aplicado, de fato isso chegou a acontecer e o Conselho dos Dez (órgão máximo da República de Veneza) em alguns momentos chegou a entrar em desentendimento com o inquisidor-geral e a Congregação.

"Os outros Estados italianos, contudo, suportaram essa forma de exercício da jurisdição inquisitorial de uma forma mais conciliadora;: apenas na segunda metade do século XVII em Gênova e na segunda metade do século XVIII em Florença e Modena vemos desenhar-se uma política 'jurisdicionalista' próxima da seguida pelo Estado veneziano". (BETHANCOURT, 2000, p. 150).

Os chamados éditos de graça já existiam desde a época medieval, faziam parte dos procedimentos corriqueiros dos julgamentos, das visitas dos inquisidores, nos sermões, etc. Na época medieval, alguns éditos ou eram lidos nas praças ou eram posteriormente pregados nas portas das igrejas, a fim de quem soubesse ler, estivesse ciente de que a Inquisição estava na cidade naquele momento. Os éditos de graça podiam abordar vários assuntos, mas o nome "de graça" referia-se ao chamado "tempo de graça".

O "tempo de graça" consistia num período de até um mês onde os inquisidores concediam benefícios aos culpados que se apresentassem por livre espontânea vontade nos tribunais. Nesse caso, as sentenças seriam amenizadas, dependendo da violação cometida. Tal prática se mantivera ao longo da Idade Moderna.

"A eficácia do édito de graça deve ser examinada em dos níveis: do ponto de vista da obtenção de confissões e de denúncias, constata-se um primeiro momento de grande sucesso, com a apresentação de centenas de penitentes em cada tribunal; do ponto de vista simbólico, a misericórdia dos novos tribunais é sublinhada e ostentada por esse ato de fundação". (BETHANCOURT, 2000, p. 150).

No entanto, os éditos de graça podiam serem utilizados para casos específicos. Inicialmente na Inquisição Espanhola, tais éditos eram mais voltados para os cristãos-novos, e em 1522 o tribunal de Saragoça expediu um édito de graça dirigido as bruxas e feiticeiras que comparecessem aos tribunais de forma deliberada. De fato, 22 acusadas de bruxaria compareceram, mas minhas fontes não indicam se alguma foi poupada de ser queimada ou foi absolvida da acusação.

"A estrutura dos éditos de fé é composta, em geral, de um protocolo inicial, um texto e um protocolo final. O interesse do protocolo inicial reside na titulação, na qual os autores do édito se identificam, explicitando seus títulos e o quadro geográfico de sua ação. As diferenças práticas entre a Inquisição romana e as Inquisições hispânicas são imediatamente visíveis: na Itália, os inquisidores indicam os seus nomes, ordem religiosa a que pertencem e títulos acadêmicos, enquanto no mundo ibérico os inquisidores são quase anônimos, permanecendo escondidos por detrás da designação plural do coletivo do tribunal". (BETHANCOURT, 2000, p. 150).

Os éditos de fé abordavam distintos assuntos: anunciavam a visita de um inquisidor a um distrito ou colônia se fosse o caso; anunciava a ocorrência de um auto de fé; a nomeação de um novo inquisidor-geral ou inquisidor; anunciava a abertura de um tribunal; compunha parte de sermões públicos e privados; anunciava a inspeção dos tribunais, o controle dos livros, os delitos e práticas proibidas, etc.

Nos éditos de fé, podia-se ler algumas práticas consideradas heréticas, isso servia de duas maneiras: uma, para que as pessoas ficassem ciente do que era proibido ou não; segundo, se alguém soubesse de alguma pessoa que estava praticando tais delitos, poderia delatá-la ao tribunal.

"O édito publicado no momento da fundação da Inquisição portuguesa, em 1536, embora se situe em um contexto um pouco diferente, apresenta uma tipologia de crimes bastante extensa - ritos e cerimônias do judaísmo e do islamismo, opiniões heréticas e erros luteranos, sortilégios e feitiçaria -, que não é caracterizada de uma forma aprofundada". (BETHANCOURT, 2000, p. 150).

Outro ponto que deve ser destacado em relação aos éditos de fé era que se o prazo estipulado nesses dependendo do evento prenunciado no documento, fosse desrespeitado e não seguido pelo povo, o protocolo final do édito dizia que o inquisidor detinha o direito de excomungar qualquer pessoa que se mostrasse contra as diretrizes da Inquisição. Nesse caso, se uma testemunha de acusação e defesa não  comparecesse no tribunal na data estipulada ou se um delator estivesse mentindo, estes seriam considerados traidores e defensores dos hereges e suspeitos de também serem hereges, logo eles seriam censurados e seria realizada a cerimônia de declaração do anátema.

O anátema era uma cerimônia exclusiva da Inquisição espanhola, os portugueses e italianos não quiseram adotar tal prática, embora que excomungassem pessoas em outras ocasiões. A excomunhão do anátema era proferida em uma cerimônia aos domingos, onde um padre ou abade seguido por outros membros da sua igreja realizavam uma procissão breve onde recitavam m canto em latim chamado Kyrie eleison. A procissão se passava  dentro da igreja, de onde o padre e seus seguidores atravessavam a nave, saindo da entrada até o altar-mor, lá ele leria o anátema e excomungaria os acusados. Se um católico for excomungado, quando ele morrer, sua alma vai direito para o Inferno, já que o mesmo apresentou conduta indigna de compaixão pela Igreja e pelas palavras do Senhor.

Por fim os chamados éditos particulares ou éditos gerais, consistiam em documentos dirigidos a população abordando questões mais inerentes ao cotidiano, como a anunciação da proibição de livros, a inserção de novos delitos no regulamento, avisos sobre eventos da instituição que iriam decorrer, etc. Em suma, os éditos particulares possuíam questões similares aos éditos de graça e fé, porém, este eram inicialmente dirigidos as autoridades clericais, os quais posteriormente repassavam o assunto para a população. Já os éditos particulares eram dirigidos diretamente ao povo. Como exemplo falarei da censura dos livros, onde vários éditos particulares foram publicados acerca deste tema.

Em 1559 durante o Conselho de Trento (1545-1563) o papa e os doutores da Igreja decidiram criar o Index Librorum Prohibitorum (Lista de Livros Proibidos), um dos motivos para a criação desta lista era uma tentativa de se combater os ensinamentos do protestantismo que se espalhavam pela Europa, não obstante, a lista demarcava todos os livros que eram considerados impróprios para os leitores cristãos.


A censura literária não era algo novo em 1559, vários anos antes na Inquisição Espanhola e Portuguesa ambas já haviam expedido éditos particulares proibindo a comercialização, impressão e leitura de alguns livros. No caso dos espanhóis nos anos de 1521, 1530 e 1531 foi publicados éditos que anunciavam uma fiscalização da Inquisição a livrarias, bibliotecas, imprensas, jornais, navios e depósitos onde pudessem está armazenados tais livros. Os éditos não apenas anunciavam a censura, mas também oficializavam as visitas e inspeções dos qualificadores a tais estabelecimentos. Tais éditos continuaram a serem expedidos até próximo aos últimos anos de cada uma das três inquisições, já que as listas eram constantemente atualizadas.

As obras que foram proibidas pela Igreja passaram das centenas, e principalmente dizia respeito a trabalhos de cunho filosófico, exotérico, científico, histórico e até mesmo ficcional, como romances e poesias, os quais foram considerados abusivos aos olhos da Igreja.

Filósofos como Casanova, Voltaire, Rousseau, Hume, Kant, Giordano Bruno, Descartes tiveram alguns de seus livros proibidos. Homens das letras ou filósofos naturais (o termo cientista não era utilizado antes do século XIX) como Copérnico, Galileu, Francis Bacon, Diderot, La Fontaine, Vico, etc, também tiveram obras proibidas. No caso dos poetas e romancistas, autores consagrados como Dante Alighieri, Boccaccio, Victor Hugo, Stendhal, Alexander Dumas, Rabelais, Balzac e outros também estiveram com a "ficha suja".

Por um lado tais livros não eram apenas confiscados, eles também poderiam serem queimados. Um dos casos mais marcantes, aconteceu no México, onde no século XVI milhares de livros maias foram queimados, por terem sido considerados obras heréticas que faziam apologia ao Diabo. Hoje, existem apenas fragmentos de alguns desses livros ou cópias bem raras em língua espanhola.

Pintura retratando o queimamento de livros maias.

"Se os éditos particulares desempenham um papel importante na atividade das Inquisições hispânicas, seu peso no funcionamento da Inquisição romana é esmagador. Com efeito, os tribunais italianos publicam éditos sobre os assuntos mais diversos respeitantes à sua jurisdição, intrometendo-se também nos casos de sacrilégio, falsos milagres ou santidade não consagrada pela Igreja". (BETHANCOURT, 2000, p. 180).

AUTO DE FÉ

Antes de descrever a cerimônia dos autos de fé, primeiro devemos compreender por quais motivos os autos de fé eram realizados e o impacto que isso causava na sociedade. Como foi dito já ao longo deste texto, existia uma lista de vários delitos considerados como heresias pelos olhos da Igreja, nesse caso farei menção há alguns destes delitos, e posteriormente adentrarei ao fato das condenações e julgamentos, embora não me prenderei a descrever um julgamento, já que é algo extenso e me falta mais fontes acerca do mesmo.

Acerca dos delitos considerados heréticos pelas inquisições entre alguns, estavam:
  • Bruxaria/Vampirismo/ Licantropia;
  • Práticas de adivinhação;
  • Blasfêmias;
  • Judaísmo;
  • Islamismo;
  • Protestantismo;
  • Ortodoxia grega;
  • Paganismo;
  • Ateísmo/Apostasia;
  • Livros proibidos;
  • Abuso sacramental;
  • Atos contra a inquisição;
  • Bigamia/Concubinato;
  • Fornicação;
  • Adultério;
  • Sodomia/Homossexualismo;
  • Solicitação;
  • Falso testemunho em defesa dos acusados de heresia;
  • Proteger e ajudar os acusados de heresia.
No entanto havia outros delitos que eram classificados como heresias diversas. Porém, nem todos os delitos era passíveis de morte, em alguns as pessoas ficavam alguns meses ou anos preso, em outros eles apanhavam ou eram torturados e depois soltos, em outros eram repreendidos e humilhados publicamente e assim por diante. No entanto, nos casos mais graves as pessoas, era queimadas, enforcadas e garroteadas.

Instrumentos de tortura do conjunto "dama de ferro".

Vou dá dois exemplos bem famosos. Em 1600 o filósofo, teólogo e ex-frade dominicano Giordano Bruno foi sentenciado pela Inquisição Romana a ser queimado na fogueira. Seus livros foram considerados heréticos e proibidos. Mas embora tenha sido preso em 1592 e terem decorrido vários sessões de seu julgamento e sessões de tortura para que confessasse os crimes, foi oferecido a Giordano o perdão, no entanto ele se negou todas as vezes, argumentando que não havia feito nada de errado. Giordano foi queimado em 17 de fevereiro em Roma, morrendo aos 52 anos.

Alto relevo retratando o julgamento de Giordano Bruno.

Outro caso diz respeito a outro italiano famoso, Galileu Galilei (1564-1642). Embora não tenha sido morto pela Inquisição Romana, Galileu foi acusado duas vezes por crimes de heresia, pelo fato de descordar da palavra da Igreja, defendendo a veracidade do modelo heliocêntrico proposto por Nicolau Copérnico, em ambas as vezes o mesmo compareceu ao tribunal, mas negou as acusações para se salvar. No entanto após a segunda acusação de heresia dada em 1633, Galileu novamente negou que estava defendendo a veracidade do heliocentrismo, embora fosse realmente no que ele acreditava ser real. Mesmo assim, a Inquisição o sentenciou a prisão domiciliar. O mesmo passou alguns anos morando em Roma, até que pediu para ir para Florença, onde vivia uma das suas filhas. Em Florença ele passou os últimos anos de sua vida em prisão domiciliar, embora não tivesse tanto efeito assim, Galileu já estava cego e bem doente.

Pintura retratando o julgamento de Galileu Galilei.

Mas se por um lado Galileu conseguiu se salvar da morte das mãos da Inquisição negando-se a si mesmo, outros não tiveram a mesma sorte. Milhares de mulheres foram acusadas de bruxaria, embora necessariamente não fossem bruxas, mas mesmo assim morreram queimadas nas fogueiras tanto das Inquisições como em outros países onde não havia inquisição. Supostos vampiros e vampiras e lobisomens também foram perseguidos, capturados, torturados nos tribunais se fosse o caso, o eram diretamente queimados, enforcados, degolados (no caso dos vampiros).

Gravura medieval retratando bruxas sendo queimadas vivas.

Mas passamos para a questão dos auto de fé em si. Os autos de fé eram grandes eventos cerimoniais onde alguns condenados pela Inquisição seriam expostos a humilhação pública, nesse caso, os condenados de morte, teriam seu fim e outros condenados de crimes menos graves teriam que realizar a "caminhada" da humilhação, utilizando trajes que indicavam seus crimes. Tais pessoas trajavam mantos brancos e carregavam uma vela acesa na mão, usavam um chapéu alto e cônico chamado de mitra, com desenhos ou símbolos que indicavam o crime por qual foi acusado. Tais homens e mulheres teriam que depois se ajoelharem aos inquisidores e fazerem abjuração pelos seus crimes, a fim de receberem o perdão por estes. Não obstante, os autos de fé, eram uma prática mais comum nas Inquisições hispânicas, tendo ocorrido até mesmo na América Latina, no México e no Peru como foi o caso.

Condenados em uma procissão do auto de fé, trajando mantos e o mitra.

O inquisidor-geral expedia uma declaração solicitando ao Conselho sobre a realização de um auto de fé, ele explicava as necessidades, e se o Conselho concordasse com seus argumentos eles o avisavam que o auto poderia ser realizado. Assim o inquisidor-geral despachava um édito de fé e éditos particulares avisando os inquisidores de um determinado tribunal sobre a ocorrência de um auto de fé. O povo era avisado também sobre o acontecimento. O aviso era dado pelo menos com três semanas ou um mês de antecedência para que tudo pudesse ser preparado e estivesse pronto para a data marcada.

Os autos de fé inicialmente eram cerimônias simples, arquibancadas eram armadas, um palco ou palanque, de onde os inquisidores leriam os sermões para a abertura e encerramento da cerimônia, além de ler as sentenças e os nomes dos acusados que seriam executados naquele momento. Os locais de execução ficavam ou em locais onde se realizavam execuções comuns pelas autoridades civis, geralmente em praças próprias para isso, ou eram feitos foi da cidade, onde se armavam as fogueiras, forcas, cadafalsos, etc.

Nesse caso, na cerimônia havia a presença de centenas e até mesmo de milhares de pessoas, entre os funcionários da inquisição, autoridades civis, clérigos, a população em si e em alguns casos a nobreza e a realeza compareciam. Houveram alguns reis de Portugal e Espanha que participaram de alguns autos de fé.

Pintura representado um auto de fé. Na parte cima ao centro, pode-se ver o rei e a rainha.

"A cerimônia de anúncio público do auto de fé conheceu, portanto, um grande desenvolvimento relacionado a circunstâncias de momento e local. Nesse processo, a proximidade do poder central, sobretudo a participação do rei no rito, introduziu novas exigências cerimoniais, que se refletiram nos procedimentos de publicação". (BETHANCOURT, 2000, p. 223).

"No início, o auto realizava-se durante a semana, sem uma sincronia clara com o calendário religioso. O excepcional era procurado não apenas nas características da cerimônia, mas também no tempo de celebração, pois o inquisidor impunha um dia feriado com assistência obrigatória. Posteriormente, com a normalização e o enraizamento do rito, constata-se um esforço para fazer coincidir o dia da cerimônia com um domingo, cuja excepcionalidade é criada por uma série de interditos: os padres da cidade não podiam celebrar missas cantadas, os sermões não eram permitidos e as pessoas não podiam circular com armas em ser transportados por cavalos, sendo toda a cidade colocada sob o controle da Inquisição para a organização do espetáculo de fé". (BETHANCOURT, 2000, p. 227-228).

No dia anterior ao auto de fé, ocorria no caso da Inquisição Espanhola, a procissão da cruz verde, onde os inquisidores e outros funcionários realizavam uma procissão pela cidade, acompanhados dos condenados, na qual eles saíam do tribunal e seguiam carregando a cruz verde até o local onde seria sediado o auto de fé.

Procissão de um auto de fé em Lima, Peru.

"A cruz tinha grandes dimensões (cerca de dois metros de envergadura) e simbolizava a redenção de Cristo, supostamente posta em causa pelos hereges. A simbologia da cor é relativamente evidente: o verde era utilizado como cor litúrgica em dias de festa normais e está ligado à idéia de esperança". (BETHANCOURT, 2000, p. 235).

Não podemos esquecer que a ideia de esperança tinha dois pontos de vista; a abjuração e arrependimento dos condenados e a salvação da alma dos condenados a pena de morte.

"Os autos de fé podiam durar por vezes dois ou três dias, não apenas por causa da complexidade do cerimonial, mas também devido ao número de condenados (que podia atingir, nas vagas de repressão mais intensa, 150 ou mesmo 200 pessoas). Tudo isso tornava mais difícil e morosa a cerimônia, exigindo um aparelho de apoio contínuo e complexo, assim como um sistema que desse conta da circulação das pessoas no inicio e no fim da jornada". (BETHANCOURT, 2000, p. 235).

Após a leitura dos sermões, das acusações, das abjurações, éditos de fé ocorriam as execuções. Pessoas eram enforcadas, garroteadas e queimadas vivas ou posteriormente tinha o corpo queimado após terem morrido por enforcamento ou garroteamento.

Curiosamente, tentava-se ao máximo se evitar as execuções, já que as mesmas eram vistas como um fracasso por alguns, ou seja, se aquela pessoa seria executada por heresia, era porque os servos do Senhor não conseguiram salvá-la em vida das tentações do Diabo, sendo assim, se uma pessoa pedisse abjuração e se arrependesse profundamente do que fizera e consentisse que seria justo com o próximo assim como Cristo determinou, era um grande ganho. No entanto, nem sempre todos enxergavam por esse lado, a execução era a forma mais sensata de salvar a alma do condenado embora este viesse a morrer, e ao mesmo tempo servia de exemplo para que isso não voltasse a se repetir. Milhares morreram nas mãos das inquisições ao longo destes séculos.

O FIM DAS INQUISIÇÕES

Inquisição Romana

No século XVIII a Inquisição Romana a que começou mais tardiamente, foi a primeira a ser abolida. Por volta de 1718 alguns Estados italianos começaram os processos para abolir a pratica da inquisição em seus territórios e fechar de uma vez os tribunais. Após 1748 o processo foi definitivo, até 1800, todos os tribunais da península itálica haviam encerrado suas atividades.

Embora a Inquisição Romana tenha sido rígida em alguns preceitos burocráticos, a desunião entre os Estados italianos, a heterogenia do funcionamento dos tribunais, a intervenção das entidades civis sobre os estatutos da inquisição, contribuíram para que a Inquisição Romana não fosse tão coesa e poderosa como visto em Portugal e Espanha.

Os franceses os quais chegaram a ocupar partes do território italiano durante vários anos, eram contrários aos tribunais inquisitoriais, os mesmos haviam abolido as inquisições episcopais de seu território há várias décadas, além do mais, a França nessa época era o berço do Iluminismo, movimento que atacava vários dogmas e práticas impostas pela Igreja Católica.

A abolição do Tribunal da Sicília, foi promovida pela vontade do rei Ferdinando III, senhor das Duas Sicilias, o mesmo com apoio de seu vice-rei e vários membros do governo enviaram uma petição a Congregação solicitando o fim das atividades inquisitoriais em seus domínios. No documento alegava uma série de fatores que tornavam inviáveis a continuidade do tribunal. O pedido foi aceito e o fechamento se deu de forma pacífica, algo que não ocorrera da mesma forma em outros locais, onde houveram confrontos armados. O Tribunal da Sicília foi encerrado em 1782.

"A supressão da Inquisição na Sicília não foi um fenômeno isolado no quadro italiano não apenas porque o processo de abolição utilizou, em uma primeira fase, o capital de práticas de resistência constituído por outros Estados, mas também porque esse processo se inseriu numa cadeia de outros atos de extinção, talvez bastante importantes para a derrocada do tribunal". (BETHANCOURT, 2000, p. 389).

Outros tribunais que fecharam por volta da mesma época foram: Nápoles, em 1746; Parma, em 1768; Milão, em 1775; Toscana, em 1782; Modena, em 1785. Veneza, Gênova e Turim foram os últimos juntamente com Roma a abolir a inquisição, tendo o processo ocorrido entre 1796 e 1800.

Os papas Clemente VI, Clemente VII e Pio VI viram que a derrocada dos tribunais era eminente. Os governos dos Estados italianos pressionavam pela abolição dos tribunais em suas terras, os franceses faziam pressão externa, até mesmo o povo estava indignado e revoltado em alguns casos, o que levou a conflitos armados em alguns locais. Persistir com a inquisição poderia levar a uma guerra entre o papado e os Estados Italianos. O mais sensato era por fim ao sistema e manter a dignidade e a autoridade intactos.

Inquisição Portuguesa:

O primeiro tribunal a ser abolido foi o de Goa o qual foi fechado em 1774, embora que oficialmente seu encerramento só foi legalizado em 1812, já que o mesmo havia voltado a funcionar em 1778. Os motivos que levaram o encerramento das operações do tribunal de Goa, era que primeiro, a distância era um problema, levasse cerca de um ano para se comunicar-se com o tribunal, já que a viagem era feita contornando-se a África, o caminho das índias de Vasco da Gama. Não obstante, os ingleses nessa época já possuíam forte influência sobre partes do território indiano e até mesmo no Império Chinês, e a Coroa Britânica era contra as práticas da inquisição. Além disso, os próprios indianos, os quais em sua maioria formavam a grande quantidade de cristãos no Oriente, também não viam com bons olhares a inquisição, fossem indianos cristãos ou não. Isso contribuiu para enfraquecer a autoridade do tribunal nestas terras, levando a Coroa a decidi-lo aboli-lo, antes que o pior acontecesse.

Não obstante, durante o governo do primeiro-ministro, o Marquês de Pombal, o qual atuou no cargo de 1750 a 1777, o próprio despachou leis e reformas que interferiam na autonomia da Inquisição Portuguesa, por um tempo a censura da Inquisição foi incumbida pela Real Mesa Censória, órgão criado pelo ministro, não obstante, um dos irmãos do ministro chegou a ser inquisidor e diretor, nomeado pelo próprio. Com a demissão de Pombal em 1777, a Inquisição recobrou sua autonomia e as mudanças e alguns dos órgãos criados pelo marquês foram abolidos.

Quanto ao Brasil e aos territórios na costa ocidental da África, estes ainda se mantiveram submetidos ao Tribunal de Lisboa até sua abolição em 1821, no entanto, nenhum outro inquisidor visitou as colônias após o século XVIII, a Inquisição, de fato só estava operante no reino. Para entendermos melhor o processo que levou ao fim da Inquisição Portuguesa, devemos falar um pouco da História do Brasil.

Em 1808, a Família Real Portuguesa se estabeleceu com a corte, na cidade do Rio de Janeiro, então capital da colônia do Brasil. Foi a partir do Rio que o príncipe-regente e posteriormente rei, D. João VI governava o império ultramarino português. Portugal estava sob a administração de um interventor britânico, já que os ingleses eram aliados dos portugueses. Enquanto Napoleão prosseguia com suas guerras, a Europa não era um lugar seguro.

D. João VI ficou no Brasil até 1820, quando tumultos iniciados na cidade do Porto prediziam o anúncio de uma possível revolução que viesse a tomar o reino. Temendo perder o controle de Portugal, e pressionado pelas elites brasileiras e portuguesas para retornar a metrópole, D. João VI deixou seu filho como príncipe-regente do Brasil, e retornou com parte da corte para Portugal, lá em 1821 ele ora pressionado pela Cortes (designação dada ao conselho de nobres de várias províncias do reino) e a Assembleia Constituinte (a assembleia foi criada por liberais por em 1819-1820, embora a proposta fosse mais antiga) a aprovar uma constituição para o reino, até então o Estado português não possuía uma constituição. O rei relutou muito, mas acabou assinando a constituição, e uma das prerrogativas contidas no documento dizia respeito a abolição da Inquisição Portuguesa no reino e nas colônias. Tal prerrogativa era defendida por alguns inquisidores e tinha até mesmo o apoio do próprio inquisidor-geral na época, embora que o Conselho estivesse dividido acerca do final de suas atividades.

"O decreto final, enviado pelas cortes para a regência do Reino em 31 de março e publicado em 5 de abril, não introduziu muitas modificações no projeto de Margiocchi: o primeiro artigo reproduz a argumentação das cortes de Cádiz, considerando o 'Santo Oficio' incompatível com as bases da Constituição; em seguida a jurisdição (apenas espiritual) sobre os delitos de heresia é restituída à Justiça episcopal, sendo revogadas as leis e ordens do tribunal da fé, os bens são integrados ao Tesouro Nacional, os livros, processos e manuscritos, incorporados á Biblioteca Pública de Lisboa, e são atribuídas pensões de reforma aos funcionários". (BETHANCOURT, 2000, p. 388).

O processo de finalização em Portugal foi pacífico se comparado ao espanhol o qual foi o mais tumultuoso das três inquisições. A aprovação da Constituição pusera fim as práticas cruéis da Inquisição como foram designadas.

Inquisição Espanhola:

A Inquisição Espanhola foi a mais poderosa e longeva das três grandes inquisições. Foi a primeira a começar e a primeira a terminar. No entanto, durante a ocupação dos exércitos de Napoleão no reino, a Inquisição foi suspensa temporariamente, até as tropas deixarem o território e o funcionamento voltar ao normal. Se Napoleão tivesse mantido por mais tempo o controle sobre Portugal e Espanha provavelmente teria abolido de vez as inquisições, ou as suprimidas por maior tempo. O próprio não era a favor de tais práticas, embora que em suas campanhas militares ele causou a morte de mais de 1 milhão de pessoas.

"A tranquilidade da abolição do "Santo Ofício" na Sicília contrasta com a turbulência do processo de supressão do tribunal na Espanha. Trata-se, nesse caso, de um processo dinâmico e não de um ato definitivo, tomado na sequência de uma madura reflexão da elite política. Processo turbulento, também, pois constatamos no curto prazo a tomada de decisões contraditórias, fruto de uma relação de forças políticas instável, que coloca o futuro do tribunal no centro do conflito entre liberais e absolutistas". (BETHANCOURT, 2000, p. 380).

O processo de abolição da Inquisição Espanhola tivera inicio propriamente dito em 1808, após as tropas de Napoleão ocuparem o reino, o próprio nomeou seu irmão mais velho, José Bonaparte (1768-1844) como rei de Espanha. Decretou o fim da inquisição, de fato ele chegou até mesmo a aprovar os documentos que oficializava o fim da inquisição. No entanto, José Bonaparte tivera que abandonar o poder após revoltas dos espanhóis contra o domínio dos franceses, ele deixou o trono em 1813. A abolição proferida pelo rei francês não foi levada a sério e nem considerada, os tribunais ainda se mantinham em funcionamento.

Após a retomada do país pela coroa espanhola, um novo processo de supressão da inquisição ocorreu em 1823, baseada na Constituição de Cádiz. Em 1808, José Bonaparte por meio de sua Constituição abolira a inquisição, mas com sua derrocada, a entidade permaneceu e uma nova Constituição foi elaborada.

"Contudo, a nova supressão da Constituição de Cádiz, em 1823, tinha criado uma situação de ambiguidade em relação ao tribunal, apesar do decreto específico de abolição. Essa situação foi explorada pelos bispos mais nostálgicos do antigo sistema, que em 1824 e 1825 criaram juntas de fé para perseguir os delitos de heresia, organizações que pretendiam retomar o processo inquisitorial". (BETHANCOURT, 2000, p. 384).

Nesse ponto a situação era complicada. O rei Fernando VII cogitava abolir de vez a Inquisição Espanhola, contudo ameaças e embates na justiça, pelos defensores da inquisição faziam ele relutar em tomar a decisão final. Não obstante, alguns clérigos eram contrários a permanência da inquisição, e organizaram manifestos e protestos contra a mesma.

O debate pela abolição da Inquisição Espanhola ainda perdurou por mais dez anos, até que em 1833 o rei veio a falecer, nesse contexto, o rei nos últimos anos estava se preocupando e garantir o trono a para sua filha. No entanto o irmão do rei D. Carlos Maria Isidoro de Bourbon, cogitava tomar o trono para si. Tais confrontos foram chamados de Guerras Carlistas, no entanto, a filha de Fernando conseguiu assumir o trono após a morte do pai, se tornando a rainha Isabel II de Espanha.

Foi nesse conturbado episódio, temendo as ameaças de seu tio que ainda tentava-lhe usurpar o poder, os protestos dos grupos liberais e absolutistas os quais a apoiavam, a rainha decretou em 15 de julho de 1834 a abolição da Inquisição Espanhola de forma definitiva, pondo fim nos problemas que o seu pai enfrentava acerca de dez anos a respeito destes assuntos.

A inquisição foo abolida do reino após 350 anos de funcionamento. Já as colônias, estas já haviam ganhado suas independências há alguns anos, e logo, por sua vez aboliram a inquisição em seus territórios. A inquisição espanhola pusera um fim no legado inquisitorial iniciado a quase sete séculos.

Referência Bibliográfica:
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - séc. XV-XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

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