sábado, 1 de abril de 2023

A representação iconográfica da mitologia grega na Idade Média

É muito comum vermos imagens dos mitos gregos na Antiguidade, no Renascimento, no Romantismo do século XIX, no século XX, em si. Mas alguns devem se perguntar: na Idade Média havia representações iconográficas dos deuses e monstros dos mitos gregos? A resposta é sim. Se considerarmos o período medieval indo de 476 a 1453, e até expandindo para ele para a chamada "Idade Média tardia" que foi até 1500, houve produções de alguns artistas com temáticas da mitologia grega. Vale acrescentar que em algumas localidades como a Grécia, a Itália e o Império Bizantino, esses mitos ainda eram lidos, mesmo que por uma pequena fração da população. 

Por sua vez, nos séculos XIII e XIV, temos relatos de autores da Espanha, França, Alemanha, Inglaterra, Dinamarca, Islândia, Rússia de Quieve, fazendo menções aos mitos greco-romanos, o que mostra que esses escritores e poetas tinham acesso a algumas narrativas gregas. 

Sendo assim, o presente texto foi baseado no estudo do historiador da arte Erwin Panofsky e Fritz Saxl que há quase cem anos publicaram o artigo intitulado Classical Mythology in the Medieval Art (1933), comentando sobre a presença dos mitos gregos principalmente em obras de astronomia e algumas publicações de filósofos e escritores. Todavia, decidi acrescentar outras fontes que ficaram de fora desse estudo, no caso, os bestiários, abordando assim alguns monstros. No entanto, é importante salientar que Panofsky e Saxl salientaram que é possível encontrar obras alvusas que abordavam algum mito grego específico, porém, eles decidiram abordar alguns temas mais gerais. 

Personagens gregos na astronomia e astrologia

No período medieval astronomia e astrologia ainda se confundiam, não estavam separadas. Por conta disso, tratar a respeito do zodíaco, mesclando os signos com as constelações era algo comumente feito. Por conta do principal zodíaco que hoje utilizamos ser de origem grega, logo, os povos europeus da Idade Média também faziam uso deles. E, no caso, as constelações que existiam naquele tempo eram baseadas nos mitos gregos, sendo assim, era comum pegar alguns livros de astronomia contendo ilustrações dos signos zodiacais e das constelações apresentando os personagens mitológicos. 

A Constelação de Hércules no livro Aratea, datado de entre 830 e 840. 

É preciso considerar também que a Astronomia era uma das Sete Artes Liberais da Europa medieval, compondo o grupo do Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia). Por conta dessa preferência, autores gregos que estudavam essa ciência (chamada de arte na época) era privilegiada. Assim, livros de estudiosos como Ptolomeu, Aristóteles, Pitágoras, Tales de Mileto etc. eram referências, embora que as obras ptolomaicas do Almagesto, o Tetrabiblos e as Hipóteses planetárias, formavam a tríade de livros astronômicos na Europa, servindo de base pelos séculos seguintes. (FRIAÇA, 1999). 

Mas além desses autores gregos, estudiosos romanos como Calcídio (séc. IV), Macrobio (395-423), Martianus Capella (séc. V), Boécio (480-524), Cassiodoro (c. 485 - c. 580), e o hispânico Isidoro de Sevilha (c. 560-635), se tornaram referências nos estudos astronômicos medievais na Europa. A ponto que seus trabalhos ganharam novas edições, comentários e críticas. Eventualmente algumas das obras eram até mesmo ilustradas com as constelações e os corpos celestes. (FRIAÇA, 1999). 

Representação da Constelação de Andrômeda com cenas de seu mito. Ilustração feita para um estudo astrológico escrito em latim na França. O livro não tem título e autoria definida, e seria datado por volta do ano 1000.

No entanto, não foram apenas os europeus medievais que deram continuidade aos estudos gregos em astronomia, alguns povos asiáticos como os árabes, os sírios e os persas também foram influenciados pela astronomia grega, fazendo seus estudos, contestações e inovações. O astrônomo persa Al-Sufi (903-986) redigiu um importante livro de astronomia no século X, que se tornou referência para os séculos seguintes. 

A constelação de Pégaso desenhada pelo astrônomo Al-Sufi, para o Livro das Estrelas Fixas (964). 

As alegorias dos deuses gregos

Durante o medievo, autores europeus, asiáticos e africanos de origem cristã e muçulmana consideravam os deuses dos antigos gregos e romanos como falsos deuses, todavia, alguns deles se interessavam em ler e estudar os mitos, por conta do fascínio dessas narrativas, mas outros enxergavam nesses deuses e personagens míticos alegorias e parábolas que poderiam ser adaptadas para os ensinamentos cristãos e muçulmanos. Fato esse que no Fisiólogo (que foi citado no tópico seguinte), temos a interpretação simbólica de animais reais e fantásticos associados as ideias de virtude e pecado no cristianismo. 

A deusa Atena ou Minerva para os romanos, foi uma divindade que acabou sendo ressignificada por alguns filósofos cristãos. Ela tornou-se a alegoria da "donzela guerreira" e da "mulher sábia". No século IX, os clérigos irlandeses João Escoto Erígina (810-877) e Remígio de Auxerre (c. 841-908), os quais pertenciam a tradição escolástica irlandesa, conhecida pelos estudos do grego antigo e traduções, escreveram comentários e pequenos ensaios sobre os mitos, destacando Atena como personificação da sabedoria, da virgindade, da honra, da prudência etc. Para esse dois clérigos e outros do período, Atena não teria sido uma deusa real, mas uma alegoria para falar sobre a sabedoria. 

Ilustração de Atena para o livro De Nuptis Philologiae et Mercurii et de septem Artibus liberabilus libri novem, séc. IX. 

No século XIV a ideia de Atena como uma "donzela guerreira", que expressaria a sabedoria, a prudência, a estratégia e outras virtudes marciais, começou a ganhar destaque entre filósofos e escritores franceses e ingleses. O clérigo Pierre Bersuire (c. 1290-1362) em seu livro Ovidius Moralizatus, em que realizou uma análise sobre mitos greco-romanos, destacava Atena como símbolo da sabedoria, da virgindade, a conselheira de reis e a musa inspiradora dos cavaleiros. 

Atena segurando uma lança e entregando uma cota de malha a um cavaleiro. Ilustração para uma edição da Epístola de Heitor, c. 1460. 

Afrodite na sua versão romana Vênus, foi outra divindade grega que foi ressignificada na Idade Média, mas a deusa do amor enquanto manteve seu principais atributos: amor e beleza, perdeu várias outras características como a sensualidade, a sexualidade, a luxúria, a vaidade. No final do medievo europeu, uma versão mais honrada e recatada de Vênus passou a figurar em algumas ilustrações, geralmente mostrando as pessoa segurando corações como personificando o amor. Nesse sentido, Vênus se tornou uma alegoria para o amor, em alguns casos até assumindo a função de Eros (ou Cupido). 

Ilustração de Vênus para a Epístola de Heitor, séc. XV. 

Entretanto, Vênus nem sempre foi apresentada de forma casta, como uma donzela que simbolizava o amor. Alguns autores do século XIV e XV também resgataram o lado mais carnal e luxurioso da deusa, com direito a ilustrá-la nua, no intuito de usar sua imagem para comentar sobre o pecado da luxúria, ou para exaltar a própria sexualidade, pois a ideia de na Idade Média as pessoas eram totalmente conservadoras nos costumes, não é bem assim, isso variava de lugar, cultura e época. 

Ilustração de Vênus à esquerda, entre os signos de Touro e Libra, à direita representações da sexualidade. Codex Berol, c. 1447, Berlim. Autoria desconhecida. 

O caso de Cronos ou Saturno é interessante pelas mudanças associadas a esse deus. Na mitologia grega Cronos é o deus do tempo, que é principalmente lembrado por desafiar seu pai Urano e aprisionar seus próprios filhos, devorando-os, até que ele foi enganado por sua esposa e vários anos depois Zeus o desafiou, resgatando os irmãos e banindo o pai junto aos demais titãs para a prisão no Tártaro. Entretanto, para os antigos romanos Saturno tinha funções diferentes. Ele era um deus associado também com o tempo, mas ligado a agricultura, a prosperidade, aos festejos etc. 

Logo, quando Cronos é retratado na Idade Média, ele costuma absorver os valores concedidos a Saturno, por sua vez, na Idade Moderna tivemos já um destaque maior para Cronos como presente nos mitos gregos, retratando-o como um pai cruel. 

Mural representando o tema dos Filhos de Saturno. Datado de 1420, feito numa igreja em Pádua. 

No mural acima vemos na última imagem no lado direito e inferior o deus Saturno (Cronos), já as demais cenas mostram diferentes momentos da vida rural, pois esse mural evoca Saturno como a divindade do tempo associado com os trabalhos do campo. Aqui o deus torna-se uma alegoria para o ciclo do plantio e colheita e outros afazeres rurais. 

Um último exemplo citado nessa parte diz respeito a Hermes ou Mercúrio. Embora na mitologia grega ele fosse lembrado como o mensageiro dos deuses, deus dos comerciantes, ladrões e viajantes, na Idade Média evocou-se a associação de Hermes com o conhecimentos e os mistérios, especialmente sua ligação com a alquimia e o gnosticismo através do chamado Hermes Trismegisto. É importante salientar que a alquimia gozava de certo respeito no período medieval em detrimento de outras práticas mágicas que eram repudiadas e até caçadas pelas inquisições. Condição essa que no medievo tivemos alguns renomados clérigos alquimistas como Roger Bacon e Alberto Magno. Por conta disso, a partir do século XII encontramos representações de Mercúrio como uma alegoria ao conhecimento e mistérios alquímicos. 

Hermes Trismegisto representando como um alquimista árabe. Ilustração do século XII. 

Monstros gregos nos bestiários

Por volta do século II d.C, foi escrito um livro chamado de Fisiólogo, de autoria anônima, que acabou ganhando outras versões até o século IX, mais ou menos. Esse livro consistia num antecessor aos bestiários, livros que abordavam animais reais e fantásticos, e as vezes alguns monstros também. Por conta do Fisiólogo ter sido escrito talvez em Alexandria, uma das cidades gregas do conhecimento, seu autor ou autores acabaram por inserir elementos dos mitos gregos nesse livro, e nas edições seguintes alguns dos animais fantásticos ali citados, foram mantidos, enquanto outros foram removidos. (VARANDAS, 2006). 

No entanto, o Fisiólogo ganhou um caráter moralista, associando os animais com ensinamentos cristãos, fossem eles usados para representar virtudes ou pecados. Observa-se assim o uso do simbolismo animal para fins doutrinários. Todavia, nos bestiários, gênero medieval que se desenvolveu entre os séculos XII e XIV, o caráter moralista foi reduzido, prezando-se mais por informações sobre o comportamento desses animais, sua localização e alguma curiosidade. De qualquer forma, os monstros dos mitos gregos que apareciam em ambas as obras, em geral personificavam pecados. (VARANDAS, 2006)

Vale lembrar que dependendo da versão do Fisiólogo ou do bestiário, nem sempre monstros gregos estariam presentes, mas os que normalmente apareciam eram: centauros, hidras, harpias, sereias, sátiros, hipocampos, sirenas e a fênix. Com exceção da fênix que tinha um simbolismo positivo, associando-se a ideia de renovação e ressureição, os demais monstros gregos eram personificações de pecados. E um ponto interessante a ser mencionado, é que esses livros os consideravam como animais e seres reais, os quais ainda existiriam, ou teriam existido. A seguir citei alguns exemplos. 

Os sátiros (ou faunos para os romanos) eram considerados "homens-bodes" ou "homens-macacos", seres bestiais, selvagens e perigosos. Eles personificavam o primitivismo, os aspectos animalescos, a violência e a luxúria. Em alguns dos bestiários eles teriam existido na Europa, mas foram caçados até a extinção, mas ainda continuariam a existir em partes da África e da Ásia. 

Um sátiro segurando uma clava. Ilustração do Bestiário Ashmole, séc. XIII. 

Os centauros foram um dos monstros gregos que ganharam novas variações na Idade Média. Por exemplo, tivemos o surgimento de centauro fêmea, do bucentauro (corpo de touro), do onocentauro (corpo de jumento), do ictiocentauro (centauro marinho). Essas criaturas eram consideras raças selvagens e perigosas, as quais causavam malefícios as pessoas. Eram seres traiçoeiros, imorais e agressivos. Acreditava-se que esses animais ainda existiriam na Ásia. 

Um centauro fêmea amamentando seu filhote. Uma invenção medieval. Ilustração do bestiário Rutland Psalter, c. 1260. 

As harpias que nos mitos eram duas ou três irmãs, nos bestiários eram considerados monstros híbridos que existiriam em algumas partes selvagens do mundo. Seriam seres perversos associados com ataques aos viajantes, além de simbolizarem a avareza, pois no mito grego as harpias protegiam um banquete, atacando qualquer um que tentasse pegar comida de uma mesa farta que se encontrava numa caverna. Curiosamente em alguns bestiários as harpias eram confundidas com as sirenas e até com as esfinges. 

Uma harpia em forma de esfinge, atacando um homem adormecido. Ilustração do bestiário de Pierre de Beauvoir, séc. XIII. 

A Guerra de Troia

A famosa guerra dos gregos contra os troianos foi um tema popular no medievo, por exemplo, no Império Bizantino dos séculos IX e X era leitura obrigatória a Ilíada e a Odisseia na educação dos nobres. Inclusive havia poetas especializados em cantar passagens desses poemas. Além disso, para algumas pessoas era "chique" você saber recitar trechos famosos desses poemas e conversar a respeito. A Eneida também passou a ser considerado como um dos clássicos poemas, já que era uma continuação do ciclo troiano, focando a narrativa no herói troiano Enéas. Por conta disso, esse poema esteve em alta no período medieval, já que se ligava também ao mito de fundação de Roma. (RUNCIMAN, 1977). 

Os troianos conduzindo o cavalo de madeira. Ilustração de Benoit de Saint-Maure, c. 1340-1350. 

Por sua vez, nos séculos XII e XIII temos autores de diferentes localidades citando a Guerra de Troia, considerando-a ora um acontecimento real ou ora apenas um mito. É preciso salientar que os que consideravam essa guerra como um evento real a interpretavam por um viés evemerista, considerando que os deuses gregos e os heróis semideuses na verdade foram apenas homens e mulheres enaltecidos pelos antigos pagãos gregos. Isso pode ser encontrado em algumas obras mesmo no Norte da Europa como no prólogo da Edda em Prosa e a Saga dos Ynglingos, ambas as obras datadas do século XIII. 

Como a narrativa da guerra troiana é vasta, os pintores e ilustradores geralmente retratavam algumas cenas icônicas como a luta de Aquiles e Heitor, o julgamento de Páris, o sacrifício de Ifigênia, a fuga ou resgate de Helena, a morte de Pátroclo, a morte de Aquiles, o cavalo de madeira, a viagem de Odisseu etc., ou simplesmente pintavam um campo de batalha representando o conflito em si. (PANOFSKY; SAXL, 1933).

Ilustração mostrando o saque de Troia. Autoria desconhecida, datada do século XV

Referências bibliográficas: 
FRIAÇA, Amâncio [et. al]. Trivium e quadrivium: as artes liberais na Idade Média. Cotia, Íbis, 1999. 
PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. Classical Mythology in Medieval Art. Metropolitan Museum Studies, v. 4, n. 2, 1933, p. 228-280. 
RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. 2a ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977. 
VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Revista Medievalista, ano 2, n. 2, 2006, p. 1-53. 

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