É muito comum vermos imagens dos mitos gregos na Antiguidade, no Renascimento, no Romantismo do século XIX, no século XX, em si. Mas alguns devem se perguntar: na Idade Média havia representações iconográficas dos deuses e monstros dos mitos gregos? A resposta é sim. Se considerarmos o período medieval indo de 476 a 1453, e até expandindo para ele para a chamada "Idade Média tardia" que foi até 1500, houve produções de alguns artistas com temáticas da mitologia grega. Vale acrescentar que em algumas localidades como a Grécia, a Itália e o Império Bizantino, esses mitos ainda eram lidos, mesmo que por uma pequena fração da população.
Por sua vez, nos séculos XIII e XIV, temos relatos de autores da Espanha, França, Alemanha, Inglaterra, Dinamarca, Islândia, Rússia de Quieve, fazendo menções aos mitos greco-romanos, o que mostra que esses escritores e poetas tinham acesso a algumas narrativas gregas.
Sendo assim, o presente texto foi baseado no estudo do historiador da arte Erwin Panofsky e Fritz Saxl que há quase cem anos publicaram o artigo intitulado Classical Mythology in the Medieval Art (1933), comentando sobre a presença dos mitos gregos principalmente em obras de astronomia e algumas publicações de filósofos e escritores. Todavia, decidi acrescentar outras fontes que ficaram de fora desse estudo, no caso, os bestiários, abordando assim alguns monstros. No entanto, é importante salientar que Panofsky e Saxl salientaram que é possível encontrar obras alvusas que abordavam algum mito grego específico, porém, eles decidiram abordar alguns temas mais gerais.
Personagens gregos na astronomia e astrologia
No período medieval astronomia e astrologia ainda se confundiam, não estavam separadas. Por conta disso, tratar a respeito do zodíaco, mesclando os signos com as constelações era algo comumente feito. Por conta do principal zodíaco que hoje utilizamos ser de origem grega, logo, os povos europeus da Idade Média também faziam uso deles. E, no caso, as constelações que existiam naquele tempo eram baseadas nos mitos gregos, sendo assim, era comum pegar alguns livros de astronomia contendo ilustrações dos signos zodiacais e das constelações apresentando os personagens mitológicos.
A Constelação de Hércules no livro Aratea, datado de entre 830 e 840. |
No entanto, não foram apenas os europeus medievais que deram continuidade aos estudos gregos em astronomia, alguns povos asiáticos como os árabes, os sírios e os persas também foram influenciados pela astronomia grega, fazendo seus estudos, contestações e inovações. O astrônomo persa Al-Sufi (903-986) redigiu um importante livro de astronomia no século X, que se tornou referência para os séculos seguintes.
A constelação de Pégaso desenhada pelo astrônomo Al-Sufi, para o Livro das Estrelas Fixas (964). |
Ilustração de Atena para o livro De Nuptis Philologiae et Mercurii et de septem Artibus liberabilus libri novem, séc. IX. |
No século XIV a ideia de Atena como uma "donzela guerreira", que expressaria a sabedoria, a prudência, a estratégia e outras virtudes marciais, começou a ganhar destaque entre filósofos e escritores franceses e ingleses. O clérigo Pierre Bersuire (c. 1290-1362) em seu livro Ovidius Moralizatus, em que realizou uma análise sobre mitos greco-romanos, destacava Atena como símbolo da sabedoria, da virgindade, a conselheira de reis e a musa inspiradora dos cavaleiros.
Atena segurando uma lança e entregando uma cota de malha a um cavaleiro. Ilustração para uma edição da Epístola de Heitor, c. 1460. |
Afrodite na sua versão romana Vênus, foi outra divindade grega que foi ressignificada na Idade Média, mas a deusa do amor enquanto manteve seu principais atributos: amor e beleza, perdeu várias outras características como a sensualidade, a sexualidade, a luxúria, a vaidade. No final do medievo europeu, uma versão mais honrada e recatada de Vênus passou a figurar em algumas ilustrações, geralmente mostrando as pessoa segurando corações como personificando o amor. Nesse sentido, Vênus se tornou uma alegoria para o amor, em alguns casos até assumindo a função de Eros (ou Cupido).
Ilustração de Vênus para a Epístola de Heitor, séc. XV. |
Entretanto, Vênus nem sempre foi apresentada de forma casta, como uma donzela que simbolizava o amor. Alguns autores do século XIV e XV também resgataram o lado mais carnal e luxurioso da deusa, com direito a ilustrá-la nua, no intuito de usar sua imagem para comentar sobre o pecado da luxúria, ou para exaltar a própria sexualidade, pois a ideia de na Idade Média as pessoas eram totalmente conservadoras nos costumes, não é bem assim, isso variava de lugar, cultura e época.
Ilustração de Vênus à esquerda, entre os signos de Touro e Libra, à direita representações da sexualidade. Codex Berol, c. 1447, Berlim. Autoria desconhecida. |
Mural representando o tema dos Filhos de Saturno. Datado de 1420, feito numa igreja em Pádua. |
No mural acima vemos na última imagem no lado direito e inferior o deus Saturno (Cronos), já as demais cenas mostram diferentes momentos da vida rural, pois esse mural evoca Saturno como a divindade do tempo associado com os trabalhos do campo. Aqui o deus torna-se uma alegoria para o ciclo do plantio e colheita e outros afazeres rurais.
Por volta do século II d.C, foi escrito um livro chamado de Fisiólogo, de autoria anônima, que acabou ganhando outras versões até o século IX, mais ou menos. Esse livro consistia num antecessor aos bestiários, livros que abordavam animais reais e fantásticos, e as vezes alguns monstros também. Por conta do Fisiólogo ter sido escrito talvez em Alexandria, uma das cidades gregas do conhecimento, seu autor ou autores acabaram por inserir elementos dos mitos gregos nesse livro, e nas edições seguintes alguns dos animais fantásticos ali citados, foram mantidos, enquanto outros foram removidos. (VARANDAS, 2006).
No entanto, o Fisiólogo ganhou um caráter moralista, associando os animais com ensinamentos cristãos, fossem eles usados para representar virtudes ou pecados. Observa-se assim o uso do simbolismo animal para fins doutrinários. Todavia, nos bestiários, gênero medieval que se desenvolveu entre os séculos XII e XIV, o caráter moralista foi reduzido, prezando-se mais por informações sobre o comportamento desses animais, sua localização e alguma curiosidade. De qualquer forma, os monstros dos mitos gregos que apareciam em ambas as obras, em geral personificavam pecados. (VARANDAS, 2006)
Vale lembrar que dependendo da versão do Fisiólogo ou do bestiário, nem sempre monstros gregos estariam presentes, mas os que normalmente apareciam eram: centauros, hidras, harpias, sereias, sátiros, hipocampos, sirenas e a fênix. Com exceção da fênix que tinha um simbolismo positivo, associando-se a ideia de renovação e ressureição, os demais monstros gregos eram personificações de pecados. E um ponto interessante a ser mencionado, é que esses livros os consideravam como animais e seres reais, os quais ainda existiriam, ou teriam existido. A seguir citei alguns exemplos.
Os sátiros (ou faunos para os romanos) eram considerados "homens-bodes" ou "homens-macacos", seres bestiais, selvagens e perigosos. Eles personificavam o primitivismo, os aspectos animalescos, a violência e a luxúria. Em alguns dos bestiários eles teriam existido na Europa, mas foram caçados até a extinção, mas ainda continuariam a existir em partes da África e da Ásia.
Um sátiro segurando uma clava. Ilustração do Bestiário Ashmole, séc. XIII. |
Um centauro fêmea amamentando seu filhote. Uma invenção medieval. Ilustração do bestiário Rutland Psalter, c. 1260. |
Uma harpia em forma de esfinge, atacando um homem adormecido. Ilustração do bestiário de Pierre de Beauvoir, séc. XIII. |
A Guerra de Troia
A famosa guerra dos gregos contra os troianos foi um tema popular no medievo, por exemplo, no Império Bizantino dos séculos IX e X era leitura obrigatória a Ilíada e a Odisseia na educação dos nobres. Inclusive havia poetas especializados em cantar passagens desses poemas. Além disso, para algumas pessoas era "chique" você saber recitar trechos famosos desses poemas e conversar a respeito. A Eneida também passou a ser considerado como um dos clássicos poemas, já que era uma continuação do ciclo troiano, focando a narrativa no herói troiano Enéas. Por conta disso, esse poema esteve em alta no período medieval, já que se ligava também ao mito de fundação de Roma. (RUNCIMAN, 1977).
Ilustração mostrando o saque de Troia. Autoria desconhecida, datada do século XV. |
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