domingo, 17 de maio de 2020

O herói contra o dragão, entre o Oriente e o Ocidente


O herói contra o dragão, entre o Oriente e o Ocidente


Fábio Fonseca



Imagem, palavra e memória

Na medida em que a sobrevivência de certos temas na arte permite estabelecer uma série de conexões entre os diversos lugares e períodos nos quais esses temas foram representados, também possibilita um estudo, a partir das obras de arte, sobre as sociedades nas quais parte da produção artística dialoga com algum desses temas. Essa sobrevivência se verifica no mito da luta do herói contra o dragão. Na cultura cristã esse mito é encontrado, entre outras representações literárias e visuais, na hagiografia de São Jorge, santo de origem oriental amplamente difundido entre a cristandade ocidental. A fé e a devoção a esse santo atravessou o oceano com a colonização das Américas, está presente na religiosidade do povo brasileiro e se manifesta em formas variadas, estabelecendo um processo de interconexão entre a arte e as esferas de produção cultural.

O objetivo desse texto é demonstrar a representação da luta do herói contra o dragão considerando seu deslocamento entre diferentes condições de espaço e tempo. Para isso são utilizadas obras produzidas em suportes, processos e técnicas diversas, com funções distintas e em lugares e épocas diferentes. Procura-se considerar os processos de transmissão dos temas, das formas, dos conteúdos, das tradições, considerando o que se mantém, as semelhanças, mas principalmente o que se modifica, o que se transforma, na medida em que estabelece uma permeabilidade com o ambiente ao qual se integra.

Inicialmente procura-se demonstrar como um tema mitológico da antiguidade foi incorporado pela cristandade e passou por um processo de expansão, quanto às formas de representação, verbal e visual, dos suportes utilizados e dos lugares alcançados. Em seguida, por meio desse tema, procura-se explicar como esse processo de expansão atuou na formação de um imaginário no ocidente, e sua contribuição com a produção cultural e artística brasileira.

Nesse texto parte-se da hipótese de que os temas sobrevivem na memória coletiva, conceito de Maurice Halbwachs (1877 – 1945). O sociólogo propõe que a memória dos indivíduos, ao se apoiar na memória coletiva, na memória de um grupo, provoca uma lembrança mais sólida dos acontecimentos vividos. Segundo, Halbwachs, a memória também se apoia na lembrança dos espaços, que são percebidos em comum por cada indivíduo de um grupo. O conceito de sobrevivência desenvolvido ao longo do trabalho é uma apropriação da leitura que Georges Didi-Huberman faz do conceito de nachleben de Aby Warburg (1866 – 1929). Segundo Didi-Huberman o tempo das imagens escapa das classificações estilísticas da narrativa da história da arte. As sobrevivências das imagens não estão submetidas ao modelo de transmissão que supõe a imitação do ideal. As imagens não cessam de sobreviver e o retorno na memória acontece de modo anacrônico, como imagens fora de seu tempo.1

A legenda de São Jorge e a mitologia antiga

Na tradição cristã a vitória de São Jorge sobre o dragão é uma alegoria da luta do bem contra o mal e está narrada na hagiografia do santo. A fonte iconográfica utilizada é o códice de São Jorge que se situa na Biblioteca Apostólica do Vaticano. A iluminura com a representação da luta está no fólio 17R (recto) (fig. 01).

O códice pertenceu ao cardeal franciscano Jacopo Stefaneschi. O autor das miniaturas foi chamado, no século XX, de Mestre do códice de São Jorge. Produzido em aproximadamente 1325 – 1330, a iluminura foi pintada com têmpera e ouro sobre pergaminho e tem as dimensões de 373 x 263 mm. Contém uma parte do sanctorale, uma história de São Jorge e os hinos escritos em honra do santo pelo cardeal. Tem dezoito iniciais historiadas e uma miniatura na parte inferior da página, que é a representação do momento da luta entre o santo e o dragão.

Iluminura do códice de São Jorge, 1325 – 1330.
Têmpera e ouro sobre pergaminho, 37,3 x 26,3 cm. Biblioteca Apostólica do Vaticano

Na miniatura, o santo montado em seu cavalo está no centro, voltado para o dragão à esquerda, que está na margem de um lago. À direita, atrás do santo, está a princesa em pé. Sobre uma elevação de terra, na margem direita da página, há uma cidade, representada como a Jerusalém Celestial, de onde o rei e seus súditos observam a disputa.

O cavalo, as vestes azuis, mas principalmente o escudo com a cruz dos cavaleiros cruzados, identifica o santo com a aristocracia militar que combatia nas cruzadas na luta contra o islamismo. Com a ajuda de seu cavalo branco, o santo golpeia o dragão com sua lança. O dragão é representado nas margens de um lago, local onde o réptil vivia, segundo a lenda.

À direita, a princesa tem os cabelos curtos, usa um vestido longo e está com as mãos em sinal de oração. As linhas verticais formadas pelas roupas da princesa se direcionam para cima, onde está a cidade. Os muros e torres da cidade descrevem uma ascensão escalonada, cuja torre principal encimada por um coruchéu, elemento arquitetônico típico das construções góticas, projeta a cidade para um espaço celestial.

Observa-se que o movimento de ascensão iniciado com a prece da princesa corresponde a uma verticalidade que se direciona para cima, contrastando com a luta do santo com o dragão, que está estruturada horizontalmente. Limitada por uma margem ornamentada, a água é a parte baixa. A margem da iluminura é adornada com motivos vegetais e limita a extremidade esquerda do lago e a parte inferior da iluminura. À direita é representada com uma fluidez que se integra na paisagem.

A hagiografia de São Jorge foi compilada pelo dominicano Jacopo de Varazze em aproximadamente 1260 – 1264, aproximadamente sessenta anos antes da miniatura estudada. Sua legenda foi considerada apócrifa pelo concílio de Nicéia por haver discrepâncias entre os relatos dos martírios. Segundo Hilário Franco Júnior, o objetivo principal da compilação era fornecer uma material teologicamente correto e compreensível aos leigos que ouviriam a pregação. Os dominicanos e franciscanos, apesar de grande saber erudito, atuavam entre os leigos e recorriam mais às línguas vulgares que ao latim e às narrativas folclóricas que aos textos teológicos.2

Além da versão traduzida para o português por Hilário Franco Júnior e da versão traduzida para o francês pelo abade J.-B. M. Roze, disponível na página da internet da Abadia de São Bento de Port-Valais, na Suíça, foi consultada uma versão digitalizada da Encyclopédie Théologique, publicada em 1855, pelo Abade Migne, em Paris, disponibilizada na internet.

Segundo a Encyclopedie Théologique, a narrativa da luta de São Jorge contra um dragão é encontrada em grande parte das legendas apócrifas. Parece ser de origem oriental e foi transportada apenas no século XII para o Ocidente, onde a Legenda áurea contribuiu com sua difusão. Seria constituída de lembranças do paganismo modificadas pela piedade popular, que foram espalhadas, diversificadas e transmitidas pelos cantadores, pelos jograis e pelo clero.

A narrativa pode ser dividida em duas partes: a primeira que apresenta o santo, a ameaça do dragão à cidade de Silena, na Líbia, o combate do santo com o dragão e a conversão do rei e seu povo ao cristianismo; e a segunda na qual são narrados os martírios sofridos pelo santo. Segundo a legenda:

“O bem-aventurado Jorge passava casualmente por lá, e vendo-a chorar perguntou a razão. Ela respondeu: “Bom rapaz, monte depressa em seu cavalo e fuja, se não quiser morrer como eu”. Jorge: “Não tenha medo, minha filha, e diga-me o que toda aquela gente está esperando ver”. [...] Depois que a moça explicou tudo, Jorge disse: “Minha filha nada tema, porque, em nome de Cristo, vou ajudá-la”. [...]

Enquanto conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago e foi se aproximando. Toda trêmula, a moça falou: “Fuja, meu bom senhor, fuja depressa”. Jorge montou imediatamente em seu cavalo, protegeu-se com o sinal da cruz, e com audácia atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a lança com vigor, recomendou-se a Deus, atingiu o monstro com força, jogando-o ao chão, e disse à moça: “Coloque sem medo seu cinto no pescoço do dragão, minha filha”. Ela assim o fez e o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso”.3

Observa-se uma semelhança entre a descrição da cena da luta com a representação na iluminura. Essa semelhança nem sempre é encontrada nas representações do combate de São Jorge com o dragão.

Em algumas representações do santo, ele está montado no cavalo, que se posiciona sobre o dragão, não lateralmente a ele, e o evento é representado não nas margens de um lago, mas na frente de uma caverna, como se observa em algumas pinturas tanto no ocidente como no oriente. Como é o caso do ícone de Novgorod (fig. 02), situado no Museu Russo de São Petersburgo, aproximadamente do primeiro quarto do século XIV.

Ícone de Novgorod, 1300 – 1325.
Têmpera sobre madeira, 89 x 63 cm. Museu Russo de São Petersburgo.

O ícone no centro representa a luta contra o dragão. Nas margens, em todo o entorno do centro, ocupando lugares menores, estão representadas cenas do martírio do santo. Na cena com o dragão, São Jorge, em seu cavalo branco, está no centro, acima, como se flutuasse sobre a terra, onde a princesa mantém o dragão domesticado com seu cinto. Diferente da iluminura no códice o dragão está em frente a uma gruta, não nas margens de um lago.

Essa forma de posicionar o santo sobre o dragão, não lateralmente a ele, mesmo em um combate terrestre, é mais encontrada nas representações artísticas e populares do santo. Também remete a representações de divindades pagãs da antiguidade. Como no mosaico encontrado no piso de uma construção em Palmira, na Síria, datada de 260 a.C. (fig. 03), no qual figura Belerofonte montado no Pégaso, matando a Quimera.



Considerando a adoção dos modelos da antiguidade pela cristandade e o processo de produção das imagens no ocidente medieval, que era feito a partir da reprodução de modelos, porque a iluminura do códice de São Jorge não segue esse modelo, se havia um a partir do qual algumas representações da luta do santo com o dragão se assemelhavam?

Na maioria das representações anteriores ao códice, o santo não figura na cena da luta. Também, como foi apontado anteriormente, segundo a Encyclopedie Théologique, a lenda ter sido acrescida da narrativa da luta no Ocidente apenas no século XII, indica que essa parte da narrativa não era totalmente difundida anteriormente. É possível, todavia, que essa versão circulasse antes entre as narrações orais, pela característica fluídica dessa forma de transmissão, e tenha passado posteriormente para a escrita. Por outro lado, mesmo que o artista conhecesse um modelo, deve se levar em conta o fato do códice ter sido produzido por um franciscano, que assim como o dominicano Jacopo de Varazze, tinha a preocupação em produzir um material teologicamente correto. Visavam uma aproximação com o mundo laico, tornar o conhecimento acessível ao mundo secular. Logo, a representação deveria ser compatível não apenas com a narrativa escrita, mas também se aproximar das histórias contadas oralmente, para que houvesse uma identificação com as versões populares.

Entre as diferenças encontradas pode se observar a posição do santo em relação ao dragão; enquanto na iluminura do códice de São Jorge o santo combate o dragão lateralmente, e ambos se situam sobre a terra. No ícone russo o santo não apenas figura, posicionado sobre o dragão, como está no ar, praticamente sem contato com a terra. O local no qual o dragão vivia; no códice, bem como na Legenda áurea, ele sai de um lago, no ícone ao invés da representação de um lago na parte inferior esquerda, há uma gruta. Deve-se considerar que esse tema foi transportado de maneira oral, logo apresenta variações quanto à forma e principalmente ao espaço onde ocorre a cena. Sua sobrevivência se dá por sua capacidade de adaptação, pela possibilidade de se modificar conforme se apresenta em condições locais e temporais distintas.

No oriente cristão as imagens funcionavam como objetos de culto e os ícones eram venerados por trazerem um testemunho da pessoa representada, seguindo na tradição da filosofia platônica4. No ocidente, as imagens tinham, principalmente, as funções de instruir, rememorar e emocionar. O culto não era prestado à própria imagem, mas à figura representada5. A iluminura foi pintada com a função principal de esclarecer o texto. De tornar visível a vitória de São Jorge sobre o dragão, como alegoria da vitória do cristianismo sobre o islã, do bem sobre o mal.

Quanto à representação da luta no códice, entendemos que a fidelidade com o texto da Legenda áurea está relacionada com a recepção da filosofia aristotélica feita pela escolástica. Para Platão existe um protótipo, no mundo ideal, do qual as imagens que vemos são derivadas. Segundo o filósofo, na memória há um conhecimento que são idéias das realidades que a alma conheceu antes de passar do plano espiritual para o plano material. Essa foi uma parte do pensamento recebido pela patrística, que passou para a idade média em seu início. Para Aristóteles as imagens formuladas na imaginação passaram pelos sentidos, assim, as coisas gravadas na memória são resultado das experiências sensoriais6. A imagem da cena da luta no códice se aproxima da representação de uma realidade terrena. Se contemporaneamente entendemos o dragão como uma criatura mítica, para os medievais era um animal real, pois era representado nos bestiários junto com animais reais. Logo, por mais que nunca tivessem visto um dragão, acreditavam na existência dessas criaturas.

São Jorge e a expansão da cristandade

O tema da luta do herói contra o dragão pode ser encontrado não apenas na hagiografia de São Jorge. Uma narrativa que apresenta uma relação com o tema é “Juvenal e o dragão”. A história se assemelha à narrativa de São Jorge, porém o tema ocorre na história narrada no folheto de cordel “A história de Juvenal e o dragão”, do pernambucano Leandro Gomes de Barros (1865-1918). A edição fac-similar utilizada está em domínio público, disponível em mídia digital , foi editada por João Martins de Athayde e está datada do ano de 1974.

A história narra as peripécias de Juvenal. Um rapaz pobre que herda três carneiros com a morte de seu pai deixa sua irmã aos cuidados do padrinho e parte. Logo troca os carneiros por três cachorros mágicos que o acompanham em sua busca por aventuras e o ajudam a vencer um dragão, libertando assim uma princesa de ser devorada pelo monstro. Ao desposar a princesa no final da história, Juvenal manda um cortejo buscar sua irmã e então finalmente seus cães, considerando sua missão terminada, transformam-se em pássaros e partem.

A gravura “Juvenal e o dragão” (fig. 04), de Gilvan Samico, foi elaborada a partir da epopeia narrada por Leandro Gomes de Barros. A luta do herói contra o dragão para libertar a princesa é o tema central da narrativa. Na gravura, um jovem luta contra uma serpente alada, com cauda de peixe, diante de um rochedo que divide a imagem horizontalmente entre o espaço do céu e o terrestre.

Juvenal e o Dragão, Gilvan Samico, 1962. Xilogravura, 45 x 51,5 cm. 
A luta ocorre na terra, no primeiro plano estão dois de seus cães e, no segundo plano, Juvenal combate o dragão enquanto seu outro cachorro está posicionado atrás do dragão, em oposição ao herói, à esquerda da gravura. No céu, sobre a cabeça de Juvenal, três pombas voam em formação triangular como se fossem sair da gravura à direita.

No centro, o dragão parece saltar de dentro da caverna, se projetando na direção de Juvenal, quase o tocando com sua língua, mas também parece se contorcer ao ser golpeado pelo jovem. Para as primeiras gerações cristãs, o dragão representa a incorporação do princípio do mal. É identificado com a serpente que vive nas águas. São bastante difundidas as representações nas quais o dragão é vencido pelo arcanjo Miguel, por São Jorge ou por Cristo7. As asas membranosas do dragão, grandes e coloridas, o sustentam no ar. As linhas que preenchem as áreas coloridas das asas geram pontos de convergência que impulsionam o movimento do dragão no ataque.

Contrastando com o dinamismo do dragão, Juvenal mantém a sobriedade e golpeia a criatura grande e ameaçadora com uma de suas facas. Com a mão direita, segura uma faca, ou talvez um chifre do dragão e, com a esquerda, golpeia o dragão com um facão, chamado de peixeira pelo sertanejo, também usado como arma. No entanto, Juvenal não é representado como um cangaceiro. Se aplicarmos a lógica medieval a essa narrativa, de divisão das atividades da sociedade entre os que rezam, os que guerreiam e os que trabalham, poderíamos situar Juvenal entre os que trabalham, identificado com os camponeses, não com o clero nem com as milícias, o que, contudo, não diminui sua fé, muito menos sua bravura.

Os cães não interferem na luta, mas, posicionados em torno do corpo do dragão, parecem prestar auxílio ao jovem. Por ser considerado um animal impuro no Antigo Testamento, o cachorro teve uma conotação negativa, mas, na arte cristã, por sua fidelidade, é relacionado à virtude teológica da fé8. Por serem três cães, fazem uma alusão à Trindade. Nos versos finais da narrativa escrita, os cães irão se transformar nas pombas que voam sobre a cabeça de Juvenal. Na arte cristã, a pomba aparece como símbolo do Espírito Santo9, e sua formação triangular parece reforçar o significado da Santíssima Trindade. Porém, na imagem, ela indica algo mais que uma passagem temporal. Situadas no espaço celeste sobre a cabeça de Juvenal, sugere um apoio Divino ao jovem.
Outra representação da história de São Jorge é a de Paolo Uccello (fig. 05), datada no ano de 1455. Na obra de Uccello, o cavaleiro, o dragão e a princesa ocupam o primeiro plano sobre a terra em frente à gruta.

São Jorge e o Dragão, Paolo Ucello, 1458-1460. Óleo sobre madeira, 57 x 73 cm. Galeria Nacional de Londres. 
Observamos que a gravura de Samico se apresenta de forma homóloga à pintura do florentino. Tanto Juvenal como São Jorge enfrentam o dragão lateralmente, da esquerda para a direita, golpeando-o. Montado em seu cavalo branco, o santo rende o dragão com sua lança. Oposta ao dragão, transmitindo para o santo o apoio que Juvenal encontra em seus cães, a princesa participa do acontecimento como é descrito na lenda do santo, colocando seu cinto em torno do pescoço do dragão tornando-o manso. O movimento em espiral formado pelas nuvens posicionadas sobre o santo, em contraste com o resto do céu azul, confere um apoio celestial Divino ao ato de São Jorge, assim como as asas-brancas no céu apoiam Juvenal. A pintura de Uccello indica um período de busca de uma realidade natural na representação do espaço que é formulado no final da Idade Média.

A “história de Juvenal e o dragão” adquire uma função didática ao vincular a moral cristã na narrativa e reflete a preocupação da sociedade que, assim como os medievais, procura uma vida religiosa guiada pelas virtudes como caminho para a salvação de suas almas. O tema da luta contra o dragão para libertar a princesa na história de Juvenal, que corresponde ao tema de São Jorge, remete à oposição entre o bem e o mal, encontrada na hagiografia do santo e ambas tem o mesmo sentido moral.

As histórias se opõem na medida em que o santo era um nobre, um guerreiro, enquanto Juvenal é filho de um camponês pobre, mas que por meio de suas virtudes, e em nome de Deus, adquire reconhecimento e respeito da sociedade e busca seu caminho para a salvação. Diferente dos santos aristocratas, Juvenal é um herói com o qual os ouvintes podem se identificar, alguém que, além da sua coragem, tem apenas seus cachorros, que por serem mágicos remetem os acontecimentos a um plano metafísico, de crença no sagrado.

Sobrevivência e memória

A gravura “Juvenal e o dragão” reflete uma lembrança de Samico, da narrativa que ouvia na infância cantada por um empregado de sua casa. A narrativa também reflete a forte religiosidade do povo impregnada no tema, que sobrevive na memória dos grupos, das sociedades.

Em “A Arte da Memória”, Frances Yates demonstra como a arte de memorizar discursos, ou conteúdos, estimulou, no ocidente medieval, a formação de um sistema de imagens. Para a autora, a expansão no conjunto de novas imagens nos séculos XIII e XIV, está relacionada com o interesse da escolástica pela memória.

O poeta grego Simônides de Ceos propôs que para treinarmos a faculdade da memória deveríamos escolher lugares e formarmos imagens mentais a partir desses lugares, em seguida criar imagens das coisas que devem ser lembradas e colocá-las ordenadamente nesses lugares10. A formulação do poeta sobre o aperfeiçoamento da memória levou a um modo de construção de imagens inseridas em lugares ordenados e não permaneceu reservada aos seus contemporâneos. Ela ecoou por diversos momentos na arte da memória e na arte, passando por modificações conforme a época e a interpretação feita, mas manteve sua essência.

Os escolásticos Alberto Magno e Tomás de Aquino utilizaram a arte da memória visando ensinar os pregadores dominicanos a memorizar seus sermões e ensinar aos fiéis a se afastar do caminho do Inferno evitando os vícios, e buscar as virtudes como caminho para o Paraíso. Tais ensinamentos tiveram alcance além da memorização dos sermões, eram utilizados também para a decoração das paredes das igrejas, de modo que os fiéis, quando estivessem no local de culto recebendo os ensinamentos por meio dos sermões, pudessem também memorizar a oposição entre as virtudes o os vícios ao visualizar nos afrescos as imagens inseridas em lugares correspondentes ao bem e ao mal, criando imagens mentais11. Assim, as formulações do poeta grego para memorização, foram impregnadas de uma moral cristã, que foi passada para os fiéis, para os grupos religiosos.

Nas cidades, enquanto a aparência das ruas e das construções não muda, o grupo tem a impressão de não mudar, a estabilidade das imagens gera uma sensação de continuidade em um grupo social. Para Halbwachs, uma das condições de unidade de um grupo é por estarem reunidos em um mesmo espaço. É no ambiente, na fonte dos estímulos sensoriais, onde criam suas relações sociais, assim a memória coletiva acontece em um contexto espacial. As religiões que estão fortemente instaladas sobre o solo, participam da memória dos grupos. As lembranças de um grupo religioso ocorrem pela visão de determinados lugares, localizações ou disposições de objetos. Os sentimentos experimentados pelos fiéis ao entrar em uma igreja, ou outro lugar santificado, possuem lembranças comuns com os estados de espíritos experimentados por outros fiéis, pensamentos e lembranças que se formaram em épocas anteriores, nesse mesmo lugar.12

Podemos considerar que as igrejas estão inseridas dentro do contexto espacial da cidade, mas também podemos imaginar cada igreja como um contexto espacial. Na infância Samico morava em Recife, uma cidade com grande quantidade de igrejas, com uma arquitetura imponente, monumental. Construções que impressionam pelas dimensões e pelos ornamentos, pelas imagens e objetos. Não apenas vivia em uma cidade com uma forte religiosidade, sua família era religiosa, frequentava uma igreja, um local propício para formar a unidade de um grupo.

Assim, o artista estava integrado a um grupo religioso, e sua memória participava da memória do grupo. Se a igreja, como contexto espacial, pode ser um elemento de estabilidade para a reconstrução de pensamentos e sentimentos, é provável que contribua com a formulação de uma série de pensamentos e sentimentos religiosos integrados por meio de uma rede social com as formas e conteúdos artísticos. Dessa maneira a arte reflete características do indivíduo que a produziu, mas também do ambiente no qual esse indivíduo se insere socialmente, como agente e como receptor.

Considerações finais

A análise das obras apresentadas permitiu entender o processo de sobrevivência das imagens segundo a proposta de Didi-Huberman. A investigação de conteúdos religiosos ocorreu por uma aproximação com o passado, gerando um movimento anacrônico no qual se insere o processo criativo. Um anacronismo que encontra imagens na memória e cria imagens fora do tempo. Nessa circulação entre passado e presente, ocorre uma repetição de temas e formas oriundos de um contexto religioso, mas que seguem reformulados, recontextualizados e ressignificados. Imagens onde se misturam várias temporalidades e apresentam uma heterogeneidade conforme o ambiente no qual se manifesta13.

A forma de transmissão oral da poesia medieval possibilitou a difusão e a circulação de histórias e formas literárias que carregavam um conteúdo moral cristão. Não há uma continuidade temporal entre as épicas medievais e as narradas pelos poetas populares nordestinos, contudo identifica-se a sobrevivência, das formas e dos temas medievais nas poesias populares do Nordeste brasileiro. Nesse sentido, a oralidade contribui com a transmissão dos temas, pois possibilita uma recepção coletiva e permite uma flexibilidade no uso.

Referências: 
1 DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’Art et temps des fantomes selon Aby Warburg. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002.
2 FRANCO Jr, Hilário. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo de, Arcebispo de Gênova. Legenda Áurea: Vidas de Santos/Jacopo de Varazze. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003. p. 11-13.
3 VARAZZE, Jacopo de, Arcebispo de Gênova. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003. p. 366 – 367.
4 BELTING, Hans. Semelhança e Presença. A história da imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro: Petrobrás/Ministério da Cultura, 2010. p. 187 – 188.
5 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 485.
6 YATES, Frances A. A Arte da Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p. 56 – 58.
7 HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994. p. 138.
8 Ibidem, p. 66 – 67.
9 Ibidem, p. 294.
10 YATES. op. cit. p. 17 – 18.
11 Ibidem, p. 80 – 84.
12 HALBWACHS. op. cit. p. 170 – 171.
13 DIDI-HUBERMAN. op. cit. p. 11 – 50


Fonte: FONSECA, Fábio. O herói contra o dragão, entre o Oriente e o Ocidente. 22o Encontro Nacional ANPAP: Ecossistemas estéticos, Belém, Pará, 2013, p. 3796-3810. 

domingo, 10 de maio de 2020

Leonardo e Michelangelo: a batalha dos pintores

Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonaroti foram dois dos maiores artistas da Renascença, sendo contemporâneos e rivais. E o ápice dessa rivalidade ocorreu no ano de 1504, quando os dois receberam contratos do governo de Florença para realizar pinturas em um dos seus palácios. Na época, se existissem jornais, o assunto teria sido tema de capa, pois aquela disputa entre os dois gênios virou assunto comentado por semanas pelos florentinos, ainda mais, pelo fato de que publicamente Leonardo e Michelangelo já tinha trocado ironias e até ofensas no meio da rua. O presente texto conta um pouco dessa inusitada "batalha dos pintores". 

Dois gênios: 

Em 1504, Leonardo da Vinci contava com seus 51 anos, já era um pintor respeitado, apesar de ter a fama de ser teimoso e não cumprir com os prazos. Leonardo era então pintor, engenheiro, inventor, urbanista e anatomista, além de ter atuado como decorador também do palácio do Duque de Milão, seu então mecenas. Leonardo possuía uma vida agradável em Milão, apesar de ser criticado por sua falta de palavra com os prazos de suas obras, além de ter quebrado contratos várias vezes, e ser até inadimplente com seus clientes. Ainda assim, ele era considerado um mestre e já visto como grande artista. 

Por sua vez, Michelangelo Buonarroti tinha seus 29 anos, já era renomado como pintor e escultor, tendo feito Pietá (1499) e Davi (1501-1504). Michelangelo era descrito como sendo antissocial, embora tivesse poucos amigos (a antissocialidade deveria ser por causa do fato de ele não gostar de ir a festas e bailes, mesmo que a negócios ou convite de seus mecenas), era de aspecto descuidado, o que tornou malfalado, inclusive sendo considerado como louco; bastante magro, alimentando-se pouco, além de usar roupas sujas e até velhas, não ligando para aparência, o que favoreceu opiniões negativas sobre ele. Porém, era descrito como caridoso e um mestre atencioso. Michelangelo também como Leonardo era viciado no trabalho, apesar de em geral ser mais responsável com os prazos, embora que alguns de seus projetos poderiam levar anos para ficarem concluídos. 

Leonardo da Vinci e Michelangelo Bunarroti.

A proposta: 

Em 1503, o gonfaloneiro (magistrado) Piero Soderini enviou uma proposta para Leonardo, que vivia no Ducado de Milão, propondo que ele pintasse um mural na Sala do Grande Conselho ou Sala dos Quinhentos, no Palazzo Vecchio. A proposta solicitava que a pintura abordasse algum tema histórico de Florença, e naquela época em geral os temas históricos diziam respeito a história da guerra, sendo assim,  o gonfaloneiro Soderini sugeriu a Batalha de Anghiari (1440), na qual o comandante florentino Giampaolo Orsini derrotou as tropas milanesas de Filippo Maria Visconti. Tal pintura que seria algo enorme, ficaria situada na parede direita a cadeira do gonfaloneiro, cuja parede media 18x7m, embora não se saiba qual teria sido o tamanho da pintura, pois Leonardo não era obrigado a preencher a parede toda. (ABRIL, 2011, p. 118).

Em outubro de 1503, Leonardo visitou Florença e recebeu as chaves da Sala do Grande Conselho e foi com dois assistentes, Rafael d'Antonio di Biagio e Fernando Spagnolo, averiguar o local e começar a planejar os esboços. De dezembro aos primeiros meses de 1504, os três retornaram mais algumas vezes e até chegaram a preparar a parede para receber os primeiros esboços, até então desenhados no papel; mas como Leonardo era um homem cheio de pedidos e ele tinha o costume de demorar mais do que o habitual para concluir suas pinturas, nada foi feito até o final de 1504. (ABRIL, 2011, p. 118).

O gonfaloneiro Piero Soderini provavelmente irritado com o descaso de Leonardo em ter passado meses e nem começado a pintar o afresco, decidiu contratar outro pintor para pintar um segundo afresco, dessa vez, na parede oposta. O escolhido foi Michelangelo, que havia executado novas obras em Florença, Siena e Roma, e no ano de 1504, estava concluindo a escultura de Davi, além de ter concluído um baixo-relevo para a Igreja de Santa Maria del Fiori em Florença, e trabalhava numa pintura da Sagrada Família na ocasião, quando recebeu o convite para pintar a segunda batalha que deveria enfeitar o Salão do Grande Conselho. Na ocasião sugeriu-se a Batalha de Cascina (1364), um conflito travado entre Florença e Pisa. A parede onde o afresco seria pintado, possuía dimensões similares a parede que Leonardo deveria realizar sua pintura. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007a, p. 20). 

Assim, quando Leonardo soube que teria que dividir espaço como seu rival Michelangelo Buonarroti, aquilo não agradou a ambos, pois, anteriormente quando se encontraram pelas ruas de Florença, eles já haviam trocado sarcasmos, pois Leonardo considerava Michelangelo um péssimo pintor, apesar de reconhecer que ele tivesse talento para a escultura, embora ele desdenha-se da aparência de Michelangelo e o fato de ele as vezes estar com as mãos e sapatos sujos por causa de sua oficina. Já Michelangelo considerava Leonardo um pintor, esnobe e invejoso, o qual não era tão mais famoso e agora tinha inveja de que o nome Michelangelo se sobressaia ante o nome Leonardo. 

Todavia, infelizmente não temos relatos da época que narrem como teria sido tais encontros. Provavelmente Leonardo evitava de estar presente na Sala do Grande Conselho, quando soubesse que Michelangelo estaria ali fazendo suas medições e esboços, sendo possível que alguns casos ambos mandassem seus ajudantes fazer as medições e preparar as massas para as paredes receberem a pintura. Mas eventualmente eles teriam se encontrado em algumas ocasiões, apesar que o ano de 1504 passou e nenhum dos dois artistas concluíram suas pinturas, embora Leonardo estivesse mais avançado nesse quesito. 

As duas pinturas: 

Hoje em dia somente conhecemos alguns esboços que são cópias de outros pintores baseados nos esboços originais ou cópias dos originais, pois tais afrescos nunca foram concluídos. Ainda assim, antes de chegar ao motivo de não terem sido concluídos, se faz necessário comentar um pouco dos esboços conhecidos. 

No caso da Batalha de Anghiari que estava sendo pintada por Leonardo, são conhecidos alguns esboços que mostram guerreiros lutando a pé e com espadas, mas também guerreiros lutando a cavalo. Outros dos esboços temos rascunhos dos cavalos e de alguns rostos dos guerreiros, os quais mostram suas feições bastante agressivas, com bocas gritando e caras ferozes. A ideia supõe-se que era mostrar toda a ação e violência do conflito. 

Um dos esboços da Batalha de Anghiari feito por Leonardo da Vinci, talvez entre 1504 e 1505. Hoje guardado na Galeria da Academia de Veneza.

Na época Leonardo estava interessado em cavalos, tendo feito vários desenhos desses e até projetado uma estátua equestre para o Duque de Milão. Em sua pintura da batalha, haveria cenas de cavaleiros em ferrenho conflito, empunhando suas espadas e lanças, disputando um estandarte, algo que inclusive um século depois influenciou o pintor Peter Paul Rubens a fazer uma homenagem a esta cena, criando sua própria versão do roubo do estandarte. (ABRIL, 2011, p. 121).

Informações da época apontam que Leonardo chegou a iniciar a pintura, aplicando uma técnica a óleo, experimental, pois seu gênio criativo o levava a fazer vários experimentos, mesmo que nem todos fossem exitosos. A tinta óleo por ele aplicada não reagiu bem ao material da parede, da massa e a temperatura ambiente, e o esboço começou a deteriorar-se após alguns meses, surgindo algumas rachaduras, aquilo teria irritado bastante Leonardo, o frustrando. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007b, 66). 

Quanto a Michelangelo, até onde se sabe, ele não teria iniciado a pintura na parede. O esboço mais famoso da sua Batalha de Cascina é uma cena um tanto inusitada. Enquanto Leonardo focava em seus cavaleiros para contrastar a robustez de corpos equinos com as faces enrugadas e agressivas de seus soldados, Michelangelo pelo que se conhece de seus esboços quis também destacar as formas físicas, e como ele era expert nisso, algo visto principalmente em suas estátuas e mais tarde em outras pinturas, Michelangelo escolheu uma cena relatada nos livros da época que falam que os soldados florentinos após uma longa marcha num dia quente e por uma estrada empoeirada, decidiram banhar-se num rio e na ocasião foram surpreendidos pelo soldados de Pisa. 

Esboço de Aristotele da Sangallo, discípulo de Michelangelo, baseado no esboço original de seu mestre. 

Na imagem acima vemos uma das cenas imaginadas por Michelangelo, onde os soldados florentinos, enquanto banhavam-se em um rio, tinham que vestir-se as pressas e pegar suas armas para confrontar os soldados de Pisa que os cercaram. Provavelmente a ideia de Michelangelo de retratar tão peculiar momento fosse apenas para ele destacar seu talento em retratar a musculatura de corpos masculinos, algo visto em suas esculturas como comentado. Aqui ele mostrava toda a robustez dos guerreiros florentinos. Todavia, essa pintura nunca chegou a ser pintada na parede, apenas foi copiada de um cartão de esboço que um de seus discípulos teve acesso. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007a, p. 21). 

Uma batalha perdida: 

Entre 1505 e 1506, Leonardo frustrado com os danos causados a sua pintura, e provavelmente já impaciente e sendo cobrado pelos atrasos de outros projetos, decidiu abandonar tudo e voltou para Milão. De acordo com Vasari, o esboço ainda continuou pintado na parede direita da Sala do Grande Conselho por vários anos até ser apagado para dar espaço para novas pinturas, já que o trabalho de Leonardo ficou inconcluído. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007b, p. 66). 

Com Michelangelo a situação foi um pouco pior. Se por um lado, Leonardo já estava a mais de dois anos sem concluir seu trabalho, mesmo tendo já iniciado a pintura, por sua vez, Michelangelo nem ao menos começou seu trabalho. Era o começo de 1505 quando ele desistiu de continuar com aquele projeto e seguiu para Roma, pois havia recebido o convite do papa Júlio II para realizar dois projetos para esse: o primeiro seria esculpir em mármore o túmulo papal, e o segundo foi pintar o teto da Capela Sistina, ambos os projetos lhe tomaram vários anos de trabalho, e foram concluídos entre 1513 e 1514, aumentando ainda mais o renome de Michelangelo. 

Dessa forma, ambos gênios da pintura desistiram de pintar os dois temas das batalhas florentinas, abandonando as propostas, e tendo deixado o governo de Florença a ver navios. Se por um lado isso foi ruim para a imagem de Leonardo e Michelangelo, por outro, os projetos que eles conseguiram em 1505 e 1506 ajudaram a apagar aquele momento problemático em Florença, sem contar que infelizmente nunca poderemos ter noção de como teria ficado ambas as pinturas se os dois tivessem as concluído. Além disso, a história do porque do longo atraso de iniciar as pinturas, também está cheia de lacunas, embora saibamos que os dois artistas eram homens atarefados, que executavam vários trabalhos de vez, ainda assim, é estranho o fator de terem levados meses para iniciar os desenhos, lembrando que Michelangelo nem teria chegado a começar a pintar de fato. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007a, p. 22). 

E assim, a batalha dos pintores em Florença de 1504-1505 foi um capítulo inusitado da história da arte renascentista, onde dois gênios com seus egos inflamados tiveram a oportunidade de provocar e tentar mostrar ao rival quem seria o melhor, mas eles acabaram desistindo. 

O Grande Salão do Conselho ou Salão dos Quinhentos, no Palazzo Vecchio, em Florença. Nestas paredes deveriam estar pinturas das batalhas que deveriam ter sido pintadas por Leonardo e Michelangelo, mas tais projetos nunca se concretizaram, então nos anos seguintes outros artistas preencheram as paredes e o teto com suas artes. 

Referências bibliográficas: 

ABRIL. Leonardo da Vinci. Tradução de José Ruy Gandra. São Paulo, Abril, 2011. 
COLEÇÃO Gênios da Arte. Leonardo. Tradução de Mathias Abreu Lima Filho. Barueri, Girassol, 2007b. 
COLEÇÃO Gênios da Arte. Michelangelo. Tradução de Mathias Abreu Lima Filho. Barueri, Girassol, 2007a. 

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quinta-feira, 7 de maio de 2020

A grande invasão viking à Inglaterra (866-878)

A segunda metade do século IX foi marcada na história da Inglaterra medieval como um período problemático, pois as incursões vikings à ilha acentuaram-se ao ponto de exércitos invadirem a região no intuito não apenas de saquear, mas de ocupação, de conquista de território. E essa ideia de conquista realmente veio a se concretizar, originando o território do Danelaw, o qual ocupou quase metade do atual território inglês, que passou a estar sob domínio de chefes e reis dinamarqueses e noruegueses por quase um século. No presente artigo, o objetivo foi abordar essa grande invasão que levou a origem do Danelaw. 

Antecedentes 

Até o fatídico ano da grande invasão ocorrer, os nórdicos já frequentavam a Inglaterra, Escócia e Irlanda desde o século VIII pelo menos, indo como comerciantes, visitantes, ou mapeando a costa para possíveis incursões de pirataria. O ano de 793 entrou para a História devido ao ataque viking realizado ao mosteiro de Lindisfarne, situado na costa do antigo Reino da Nortúmbria. O breve relato contido nas Crônica Anglo-saxã não fornece detalhes sobre o ocorrido, informando que:

“793: neste ano apareceram presságios terríveis na Nortúmbria, que assustaram muito as pessoas. Consistiam em imensos torvelinhos e relâmpagos, e viam-se dragões chamejantes voando pelo ar. Aqueles sinais foram imediatamente seguidos por uma época de grande fome, e pouco depois, em 8 de junho do mesmo ano, os homens pagãos destruíram a igreja de Deus em Lindisfarne, saqueando e matando”. (OLIVEIRA, 2018a, p. 

Tal ocorrido é até hoje considerado por alguns historiadores como o marco de início da Era Viking (793-1066). No entanto, nos anos seguintes novos ataques ou avistamentos de embarcações nórdicas continuaram a ser relatados nas Crônica Anglo-saxã, onde informa-se que entre 794 e 799, avistou-se possivelmente (as vezes os relatos não confirmam a origem do povo) o que seriam navios vikings rondando as águas da Inglaterra, Escócia e Irlanda. Todavia, do ano 800 a 850, ou seja, um período longo de cinquenta anos, novas incursões continuaram a ocorrer àquelas ilhas, as quais aconteciam durante os meses de verão e primavera, pois os invasores não tinham o costume de atacar no outono e inverno devido aos empecilhos climáticos. No entanto, ressalva-se que em alguns momentos podia-se passar anos sem nenhum novo ataque, pois não significou que em todo ano houvesse ataques. 

Por volta do ano 850, registra-se o primeiro acampamento de inverno conhecido. Ele foi montado na ilha de Yahnet, no rio Tâmisa. A ideia com aquele acampamento era, ao invés dos nórdicos retornarem para seus lares e aguardar o inverno passar e depois ter que preparar nova tripulação, navio e unir suprimentos, algo que levaria meses, optou-se em permanecer aquartelado em território inimigo, aguardando o inverno passar. A questão era assegurar que houvesse lenha e comida para manter a permanência ali. Se desconhece de quem teria sido a ideia para esse acampamento, mas sabe-se que outros acampamentos de inverno foram realizados nos anos seguintes. (OLIVEIRA, 2018b, p. ).

No entanto, a partir desses acampamentos de inverno, a presença escandinava sobretudo na Inglaterra, tornou-se mais recorrente nos quinze anos seguintes, ao ponto que alguns chefes começaram a cobrar o danegeld (tributo danês ou "ouro danês"), um tributo de extorsão que teria sido iniciado na França, e aplicado na Inglaterra, onde basicamente um grupo de invasores ameaçava a população de uma vila, aldeia ou até cidade, para que não fossem atacados, saqueados e mortos, deveriam pagar uma taxa geralmente em ouro e prata, mas as vezes em outras mercadorias, para que os invasores os deixassem em paz. Essa taxa em alguns casos era cobrada até anualmente, pois via-se que era mais proveitoso ficar extorquindo os moradores do que guerrear contra eles. (HOLMAN, 2003, p. 73-74). 

Entretanto o pagamento do danegeld nem sempre assegurava que não haveria novos ataques. A Crônica Anglo-saxã relata que no ano de 865, a população da cidade de Kent, na Ânglia Oriental, havia pago o tributo naquele ano, mesmo assim o local foi atacado. Não se sabe os invasores eram os mesmos que cobravam o danegeld ou teria sido outro grupo. Somente sabe-se que o ataque ocorreu à noite, onde a cidade foi saqueada e parte da população foi assassinada. Porém, no ano seguinte, o povo da Ânglia Oriental aguardava que os vikings retornassem como de costume, de fato, eles voltaram, mas não com o intuito de cobrar o danegeld, mas de conquistar aquelas terras. 

A chegada do Grande Exército Pagão (866)

A Crônica Anglo-saxã usa o termo mycel heathen here que costuma ser traduzido como "grande exército pagão", embora haja dúvidas qual seria o tamanho desse exército, pois a fonte não aponta valores, ainda assim, sabe-se que teria sido uma força de ataque considerável para iniciar uma série de conflitos que duraram meses, inclusive resultando na conquista do Reino da Nortúmbria. Marcando assim a ocorrência de uma guerra que se estendeu por doze anos. (OLIVEIRA, 2018, p. 

Entretanto, as fontes do período não apresentam explicações sobre como teria começado essa invasão. Quem teriam sido seus líderes, os responsáveis por planejar ousado ataque, de onde partiram os navios, quais reinos participaram. Porém, existem duas versões para compreender como essa invasão teve início: a versão histórica com poucas informações, e a versão literária a qual fornece mais informações, no entanto, seu caráter lendário põe em dúvida sua veracidade. 

a) Versão histórica

Na versão histórica não há registros de nomes de quem foram os líderes que arquitetaram o plano de enviar um exército para conquistar territórios na Inglaterra. Pois naquele período do século IX, a Escandinávia era um conjunto de pequenos territórios governados por reis e chefes. Ainda não havia os reinos da Dinamarca, Noruega e Suécia. Não obstante, relatos dos monarcas desse período são escassos e o que se conhece é de caráter duvidoso, pois são nomes mencionados em listagens reais escritas séculos depois, não se sabendo se realmente foram governantes reais ou lendários. 

Normalmente considera-se que a maior parte dos nórdicos que participaram desse conflito, fossem de origem dinamarquesa, mas tendo contato com guerreiros da noruegueses e talvez suecos. O problema é que nas fontes anglo-saxãs e inglesas, os nórdicos eram genericamente chamados de daneses, e não necessariamente significasse que viriam da Dinamarca. Além disso, não tem como se saber se todos os guerreiros vieram ao na mesma frota saída da Escandinávia, ou vieram de outras localidades como França e Irlanda, onde ocorriam simultaneamente invasões. Alguns historiadores trabalham com a segunda hipótese de que navios e tropas localizadas em diferentes lugares foram coordenados para se unirem e invadirem a Ânglia Oriental no ano de 866. 

Um outro aspecto desconhecido é o motivo ou motivos para essa invasão. Pois como assinalado anteriormente, desde 793 ocorriam ataques à Inglaterra, Escócia e Irlanda, durante a primeira metade do século IX, várias incursões se sucederam, e a partir de 850 teve início os acampamentos de inverno, mas em 866 temos um ousado plano de realizar ataques para se saquear ou extorquir os moradores cobrando o danegeld, mas de conquistar terras, fixar domínios. O porque dessa mudança ter surgido, não se sabe. As especulações são muitas, mas nada certo. 

b) versão literária 

A versão literária costuma agradar mais o público, pois nos fornece líderes e motivos para explicar porque o grande exército pagão decidiu invadir os reinos anglo-saxões naquele ano de 866. Nessa versão temos o lendário rei Ragnar Lothbrok como estopim para essa invasão iniciar. Segundo as sagas, poemas e crônicas que narram os feitos de Ragnar, como Saga de Ragnar Lothbrok (XIII), o poema Krákumál (XII), a Saga dos Filhos de Ragnar (XIII), e as crônicas Gesta Danorum (XII), Libellus de exordio (XII), Historia Regum Britanniae (XII) e a Floris Historarium (XIII), dizem que Ragnar foi executado pelo rei Aella II da Nortúmbria em um poço de cobras, e assim, seus filhos decidiram realizar uma vingança. E a invasão teria sido ordenada por Ivar, o Sem-Ossos Halfdan. (HADLEY, 2000, p. 8). 

Tais fontes não sugerem datas para tal acontecimento, mas como a invasão se deu em 866, Ragnar se tivesse existido, teria que ter morrido no ano anterior, pelo menos. De qualquer forma, segundo os relatos acima citados, os filhos de Ragnar (dependendo da fonte, o nome deles mudam), Ivar, Ubbe, Sigurd, Halfdan e as vezes Bjorn, Flanco de Ferro, derrotaram Aella II e o executaram com o uso da "águia de sangue". Historicamente Aella teria morrido no começo de 867. Com a vingança tendo sido executada, os filhos de Ragnar deram continuação a invasão, partindo para conquistar territórios. 


Cena da série Vikings mostrando os Ragnarson em uma das batalhas do grande exército pagão. A série popularizou essa versão para a origem da invasão. 

Observa-se que a versão literária nos fornece várias respostas que historicamente não possuímos: a) motivo: morte do Ragnar Lothbrok e vingança dos seus filhos; b) planejadores e líderes: os Ragnarson; c) origem das tropas: Dinamarca ou Noruega. Porém, ressalvo que essa versão não deve ser considerada como real, pois tais personagens são lendários ou semilendários, pois embora hajam menções a chefes chamados Ivar e Ubbe não se pode afirmar que fossem os tais filhos de Ragnar Lothbrok, até porque cronologicamente a data de seu reinado não confere com os acontecimentos históricos, e Ubbe somente destaca-se anos depois nos conflitos na Inglaterra, e Ivar é reportado realizando campanhas na Irlanda. Além disso, tais homens podem ter sido posteriormente associados com Ragnar Lothbrok, pois as sagas e crônicas que falam sobre suas façanhas datam dos séculos XII e XIII, mais de 400 anos depois de tais acontecimentos. 

A primeira fase da invasão (866-869)

Historicamente não temos relatos de como tais campanhas ocorreram, apenas sabemos os anos onde algumas batalhas teriam ocorrido, ainda assim, não se sabe em que data, quem foram os envolvidos ou como ocorreu o conflito, assim, nas linhas a seguir veremos por alto esses marcos cronológicos, pois sublinha-se que Crônica Anglo-saxã embora seja nomeada dessa forma, ela foi escrita em formato de anais, formato que preza por informações breves e sem detalhes, limitando-se a citar o ano, e alguma informação sobre local e alguém envolvido de destaque. 


No ano de 867 as tropas do grande exército pagão invadiram o Reino da Nortúmbria, como isso ocorreu não se sabe, todavia, o então rei, Aella II foi morto, e no local elegeu-se um rei fantoche chamado Ecgberth I, o qual passou a estar a serviço dos escandinavos. A cidade de Eoforwic foi capturada e posteriormente renomeada para Jorvik, tornando-se a capital do Reino de Jorvik, um dos territórios nórdicos surgidos com o Danelaw. (HALL, 2008, p. 379). 

Até o século IX, o Reino da Nórtumbria ocupava os atuais territórios do norte da Inglaterra e sul da Escócia. Suas fronteiras mudaram com o tempo. Em 867 o reino foi conquistado por invasores escandinavos que permaneceram ali até 954. 

A cidade de Jorvik que era chamada pelos ingleses de York, era uma importante cidade mercante no norte da Inglaterra, conhecida pela produção de calçados, ferramentas, objetos de metal, acessórios etc. além de exportar produtos agrícolas. Katherine Holman (2003) observa que Jorvik tornou-se um importante polo manufatureiro, ao ponto de que o nome de algumas ruas refletia os produtos ali fabricados. Assim encontramos ruas cujos nomes se referiam a produção de vidro, metal, joalheria com âmbar, prata e ouro, carpintaria, tecelagem, etc. Uma das ruas mais conhecidas era a chamada rua Coppergate, escavada entre 1976-1981.

Não se sabe como ocorreu a capitulação do reino da Nórtumbria, mas pelo que parece, quando isso estabilizou-se o inverno havia chegado, e as campanhas militares foram suspensas como de costume. No ano seguinte as tropas do grande exército pagão estavam espalhadas pelos territórios da Nórtumbria, Ânglia Oriental e agora adentravam o Reino da Mércia, que na época era o reino mais extenso, o que gerou dificuldades para mobilizar as tropas, fato esse que os chefes desse exército tentaram promover acordos com o rei Burgredo da Mércia (r. 852-874), o qual buscou apoio dos reinos da Ângila Oriental e Wessex para formar uma aliança contra os invasores nórdicos. De fato, a aliança veio a se formar, não como o esperado, e a Mércia ainda demorou alguns anos para ser subjugada. 

Mas enquanto a Mércia resistia as pressões do exército viking, a Ânglia Oriental foi conquistada no ano de 869, em que o rei Edmundo foi morto em combate. Os relatos apontam que dois chefes teriam sido responsáveis pela vitória, Hingwar e Ubbe, o qual mais tarde a tradição literária creditou Ubbe como sendo um dos filhos de Ragnar Lothbrok. E essa primeira fase de campanhas, encerrou-se no ano de 870 com dois reinos anglo-saxões conquistados. 

A segunda fase da invasão (870-874)

O segundo momento da guerra nórdica pela conquista dos reinos anglo-saxões foi marcado pelas batalhas para se conquistar o Reino da Mércia, consolidar os domínios na Ânglia Oriental e Nortúmbria e tentar se conquistar o reino de Wessex. Assim, as fontes que pouco comentam sobre esse período, assinalam várias batalhas ocorreram, mas tais fontes não fornecem detalhes, as vezes apenas informando que a vitória foi anglo-saxã ou danesa. 

No ano de 871 destacam-se duas batalhas importantes, a primeira foi a Batalha de Reading, ocorrida em território de Wessex, o segundo maior reino anglo-saxão. Ainda era inverno quando o conflito ocorreu, apesar de normalmente não se travar batalhas durante essa estação do ano, o então rei de Wessex, Etereldo (r. 865-871) decidiu atacar de surpresa o acampamento viking situado em Reading. Na ocasião o rei marchou com seu exército e acompanhando ele estava seu irmão, o príncipe Alfredo. A Crônica Anglo-saxã relata sobre o ocorrido informando que o exército viking era liderado por dois reis, Begseac e Halfdan (não se sabe se eram realmente reis, pois os cronistas anglo-saxões tinham o hábito de nomear muitos chefes militares como sendo reis), o qual cada um comandava uma parte do exército. A batalha foi acirrada e houve muitas mortes, no entanto, as forças de Wessex foram derrotadas e Etereldo ordenou que recuassem, mas Begsec e Halfdan decidiram persegui-los e quatro dias depois em Ashdown ocorreu a Batalha de Ashdown, que resultou na vitória de Wessex. 

Ilustração retratando a Batalha de Ashdown (871), que resultou na vitória anglo-saxã de Wessex contra o exército viking invasor. 

Nesse momento a crônica informa que um impasse foi gerado e ambos os lados suspenderam os ataques. Etereldo e Alfredo retornaram para casa, mas o exército viking ficou mais alguns meses em Reading e depois marchou para Londres. Durante a época da Páscoa de 871, Etereldo adoeceu e faleceu, sendo sucedido por seu irmão Alfredo. 

No ano de 872, a cidade de Londres foi atacada a primeira vez pelos vikings, sendo saqueada. Enquanto as tropas de Begsec e Halfdan saqueavam Londres, em outras localidades, outros chefes lideravam novas investidas. Novamente os relatos da época são sucintos e a Crônica Anglo-saxã informa que acampamentos foram erguidos próximos a Torksey e Lindsay, ambos no território da Mércia, cujas cidades seriam próximos alvos de ataques. Assim, no ano de 873, ambas as cidades foram atacadas por tropas vindas da Nortúmbria. Naquele período o rei Burgredo da Mércia tentou propor um acordo de paz, mas não se sabe se o acordo foi concretizado, pois no ano seguinte, a crônica informa que a Mércia sofreu novos ataques e o rei Burgredo foi assassinado e em seu lugar assumiu Ceowulf, o qual fez acordo com os daneses. 

Para o ano de 875 novos ataques à Wessex ocorreram, o qual havia se tornado o último reino anglo-saxão a não ter sido conquistado, apesar que nesse período, o País de Gales, a Escócia e a Irlanda também continuavam a resistir. Halfdan deixou a região de Londres e voltou para a Nortúmbria indo enfrentar os pictos na Escócia. Porém, outros três chefes chamados Gudrum, Oschetel e Anund a partir de Cambridge deram início as suas tentativas de conquistar Wessex

A terceira fase da invasão (875-878)

O rei Alfredo de Wessex (849-899), o qual estava a frente do reino apenas cerca de um ano, ordenou que tropas fossem treinadas e mobilizadas, assim como, ordenou a construção de fortificações para proteger os domínios de Wessex. Ao longo de seu reinado vários buhrs foram construídos, os quais consistiam em vilas e cidades fortificadas com muralhas, torres, paliçadas e em alguns casos, fossos. Embora tais fortificações não mantiveram os nórdicos longe, no entanto, fora úteis em evitar que tais vilas e cidades em Wessex fossem conquistadas. 

Desenho retratando um burh anglo-saxão. 

A Crônica Anglo-saxã não dá muita atenção a Wessex no que se refere aos anos de 865 e 866, ocupando-se mais em falar de Halfdan em sua campanha no que hoje seria na Escócia. Porém, em 877, a crônica retoma a Wessex, informando que os chefes Gudrum, Oscetel e Anund realizaram ataques naquele reino, sendo que Gudrum ocupou a cidade de Exeter, o que levou o rei Alfredo, o Grande a propor uma trégua para Gudrum. A trégua permitia que o chefe viking continuasse com o domínio de Exeter, mas ordenasse que suas tropas parecessem de atacar outras partes do reino, além disso, Gudrum também deveria convencer seus aliados a suspender os ataques. Todavia, essa trégua durou alguns meses, pois no ano seguinte ele invadiu a cidade de Chippeham, levando Alfredo a lhe declarar guerra novamente.

Mapa mostrando as possíveis rotas e principais batalhas dos exércitos nórdicos durante a fase de conquista dos reinos anglo-saxões entre 866 a 878. 

Porém, Gudrum não estava interessado em guerra, mas em forçar um novo tratado entre ele e o rei Alfredo. Gudrum propôs a Alfredo que sairia de Wessex, levando consigo seu exército, caso o rei o ajudasse a obter os domínios do antigo Reino da Ânglia Oriental. Historicamente não se sabe ao certo como isso foi feito, mas ainda em 878, Gudrum foi reconhecido por Alfredo como rei legítimo da Ânglia Oriental, e com isso, o novo governante nórdico encerrou seus ataques a Wessex pelos anos seguintes, apesar que outros chefes escandinavos continuaram invadindo o reino anglo-saxão. 

O ano de 878 foi marcado pelo fim das contínuas guerras iniciadas doze anos antes pelo grande exército pagão. Isso não significou que cessaram-se todos os conflitos, pois chefes ainda continuaram a atacar os territórios de Wessex, Gales, Mércia, Escócia e Irlanda, obtendo vitórias ou derrotas. Fato esse como dito antes, durante o seu longo reinado, Alfredo, o Grande teve que lidar com a constante ameaça dos nórdicos ao seu reino, por isso, a construção de burhs se manteve até mesmo após a sua morte. 

Não obstante, com a consolidação dos domínios nórdicos na Nortúmbria, Mércia oriental e a Ânglia Oriental, isso originou o território que ficou mais tarde conhecido como Danelaw, conjunto de territórios governados por reis e chefes, o qual perdurou até 954. 

NOTA: O pagamento do danegeld durou por mais de um século, pois no século XI, ainda tinha-se relatos do pagamento desse tributo. 
NOTA 2: A série Vikings baseia-se na vida de Ragnar Lothbrok e retrata a invasão à Inglaterra como contado nas sagas sobre ele, usando sua morte e motivo de vingança como fator para aquela invasão ter ocorrido. 
NOTA 3: A série O último reino que é baseada nos livros das Crônicas Saxônicas de Bernard Cornwell retrata a formação do Danelaw e os conflitos contra o rei Alfredo, o Grande. Todavia, nos primeiros livros há menções sutis a Ragnar Lothbrok, valendo-se do motivo que aquelas batalhas começaram por ato de vingança promovido pelos filhos dele. 
NOTA 4: Gudrum, Alfredo, Ubbe e outros personagens históricos, aparecem nas Crônicas Saxônicas e no seriado O último reino
NOTA 5: O jogo Assassin's Creed: Valhala (2020) aborda invasões vikings à Inglaterra, Irlanda e França, além de trazer elementos da mitologia nórdica. 

Referências bibliográficas: 
THE ANGLO-saxon Chronicle. Translation Rev. James Ingram. London: Everyman Press Edition, 1912. 
HADLEYDawn M. The Creation of Danelaw. In: BRINK, Stefan (ed.). The Viking World. London/New York: Routledge, 2008, p. 375-378.
HALL, Richard. York. In: BRINK, Stefan (ed.). The Viking World. London/New York: Routledge, 2008. p. 379-384.  HOLMAN, Katherine. Historical Dictionary of the Vikings. Lanham, The Scarecrow Press Inc, 2003. 
OLIVEIRA, Leandro Vilar. Grande armada danesa (866-878). In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de história e cultura da Era Viking. São Paulo, Hedra, 2018b, p. 323-325. 
OLIVEIRA, Leandro Vilar. Lindisfarne. In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de história e cultura da Era Viking. São Paulo, Hedra, 2018a, p. 476-477. 

Referência da internet:
VILAR, Leandro. Ragnar Lothbrok: entre a lenda e a história. Disponível em: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com/2017/11/ragnar-lothbrok-entre-lenda-e-historia.html