O herói contra o dragão, entre o Oriente e o Ocidente
Fábio Fonseca
Imagem,
palavra e memória
Na
medida em que a sobrevivência de certos temas na arte permite estabelecer uma
série de conexões entre os diversos lugares e períodos nos quais esses temas
foram representados, também possibilita um estudo, a partir das obras de arte,
sobre as sociedades nas quais parte da produção artística dialoga com algum
desses temas. Essa sobrevivência se verifica no mito da luta do herói contra o
dragão. Na cultura cristã esse mito é encontrado, entre outras representações
literárias e visuais, na hagiografia de São Jorge, santo de origem oriental
amplamente difundido entre a cristandade ocidental. A fé e a devoção a esse
santo atravessou o oceano com a colonização das Américas, está presente na religiosidade
do povo brasileiro e se manifesta em formas variadas, estabelecendo um processo
de interconexão entre a arte e as esferas de produção cultural.
O
objetivo desse texto é demonstrar a representação da luta do herói contra o
dragão considerando seu deslocamento entre diferentes condições de espaço e
tempo. Para isso são utilizadas obras produzidas em suportes, processos e
técnicas diversas, com funções distintas e em lugares e épocas diferentes.
Procura-se considerar os processos de transmissão dos temas, das formas, dos
conteúdos, das tradições, considerando o que se mantém, as semelhanças, mas
principalmente o que se modifica, o que se transforma, na medida em que
estabelece uma permeabilidade com o ambiente ao qual se integra.
Inicialmente
procura-se demonstrar como um tema mitológico da antiguidade foi incorporado
pela cristandade e passou por um processo de expansão, quanto às formas de
representação, verbal e visual, dos suportes utilizados e dos lugares
alcançados. Em seguida, por meio desse tema, procura-se explicar como esse processo
de expansão atuou na formação de um imaginário no ocidente, e sua contribuição
com a produção cultural e artística brasileira.
Nesse
texto parte-se da hipótese de que os temas sobrevivem na memória coletiva,
conceito de Maurice Halbwachs (1877 – 1945). O sociólogo propõe que a memória
dos indivíduos, ao se apoiar na memória coletiva, na memória de um grupo,
provoca uma lembrança mais sólida dos acontecimentos vividos. Segundo,
Halbwachs, a memória também se apoia na lembrança dos espaços, que são
percebidos em comum por cada indivíduo de um grupo. O conceito de sobrevivência
desenvolvido ao longo do trabalho é uma apropriação da leitura que Georges
Didi-Huberman faz do conceito de nachleben de Aby Warburg (1866 – 1929).
Segundo Didi-Huberman o tempo das imagens escapa das classificações
estilísticas da narrativa da história da arte. As sobrevivências das imagens
não estão submetidas ao modelo de transmissão que supõe a imitação do ideal. As
imagens não cessam de sobreviver e o retorno na memória acontece de modo
anacrônico, como imagens fora de seu tempo.1
A
legenda de São Jorge e a mitologia antiga
Na
tradição cristã a vitória de São Jorge sobre o dragão é uma alegoria da luta do
bem contra o mal e está narrada na hagiografia do santo. A fonte iconográfica
utilizada é o códice de São Jorge que se situa na Biblioteca Apostólica do
Vaticano. A iluminura com a representação da luta está no fólio 17R (recto)
(fig. 01).
O
códice pertenceu ao cardeal franciscano Jacopo Stefaneschi. O autor das
miniaturas foi chamado, no século XX, de Mestre do códice de São Jorge.
Produzido em aproximadamente 1325 – 1330, a iluminura foi pintada com têmpera e
ouro sobre pergaminho e tem as dimensões de 373 x 263 mm. Contém uma parte do
sanctorale, uma história de São Jorge e os hinos escritos em honra do santo pelo
cardeal. Tem dezoito iniciais historiadas e uma miniatura na parte inferior da
página, que é a representação do momento da luta entre o santo e o dragão.
Iluminura do códice de São Jorge, 1325 – 1330.
Têmpera e ouro sobre pergaminho, 37,3 x 26,3 cm. Biblioteca Apostólica do Vaticano
Na
miniatura, o santo montado em seu cavalo está no centro, voltado para o dragão
à esquerda, que está na margem de um lago. À direita, atrás do santo, está a
princesa em pé. Sobre uma elevação de terra, na margem direita da página, há
uma cidade, representada como a Jerusalém Celestial, de onde o rei e seus
súditos observam a disputa.
O
cavalo, as vestes azuis, mas principalmente o escudo com a cruz dos cavaleiros
cruzados, identifica o santo com a aristocracia militar que combatia nas
cruzadas na luta contra o islamismo. Com a ajuda de seu cavalo branco, o santo
golpeia o dragão com sua lança. O dragão é representado nas margens de um lago,
local onde o réptil vivia, segundo a lenda.
À
direita, a princesa tem os cabelos curtos, usa um vestido longo e está com as
mãos em sinal de oração. As linhas verticais formadas pelas roupas da princesa
se direcionam para cima, onde está a cidade. Os muros e torres da cidade
descrevem uma ascensão escalonada, cuja torre principal encimada por um
coruchéu, elemento arquitetônico típico das construções góticas, projeta a
cidade para um espaço celestial.
Observa-se
que o movimento de ascensão iniciado com a prece da princesa corresponde a uma
verticalidade que se direciona para cima, contrastando com a luta do santo com
o dragão, que está estruturada horizontalmente. Limitada por uma margem
ornamentada, a água é a parte baixa. A margem da iluminura é adornada com
motivos vegetais e limita a extremidade esquerda do lago e a parte inferior da
iluminura. À direita é representada com uma fluidez que se integra na paisagem.
A
hagiografia de São Jorge foi compilada pelo dominicano Jacopo de Varazze em
aproximadamente 1260 – 1264, aproximadamente sessenta anos antes da miniatura
estudada. Sua legenda foi considerada apócrifa pelo concílio de Nicéia por
haver discrepâncias entre os relatos dos martírios. Segundo Hilário Franco
Júnior, o objetivo principal da compilação era fornecer uma material
teologicamente correto e compreensível aos leigos que ouviriam a pregação. Os
dominicanos e franciscanos, apesar de grande saber erudito, atuavam entre os
leigos e recorriam mais às línguas vulgares que ao latim e às narrativas
folclóricas que aos textos teológicos.2
Além
da versão traduzida para o português por Hilário Franco Júnior e da versão
traduzida para o francês pelo abade J.-B. M. Roze, disponível na página da
internet da Abadia de São Bento de Port-Valais, na Suíça, foi consultada uma
versão digitalizada da Encyclopédie Théologique, publicada em 1855, pelo Abade
Migne, em Paris, disponibilizada na internet.
Segundo
a Encyclopedie Théologique, a narrativa da luta de São Jorge contra um dragão é
encontrada em grande parte das legendas apócrifas. Parece ser de origem
oriental e foi transportada apenas no século XII para o Ocidente, onde a
Legenda áurea contribuiu com sua difusão. Seria constituída de lembranças do
paganismo modificadas pela piedade popular, que foram espalhadas,
diversificadas e transmitidas pelos cantadores, pelos jograis e pelo clero.
A
narrativa pode ser dividida em duas partes: a primeira que apresenta o santo, a
ameaça do dragão à cidade de Silena, na Líbia, o combate do santo com o dragão
e a conversão do rei e seu povo ao cristianismo; e a segunda na qual são
narrados os martírios sofridos pelo santo. Segundo a legenda:
“O
bem-aventurado Jorge passava casualmente por lá, e vendo-a chorar perguntou a
razão. Ela respondeu: “Bom rapaz, monte depressa em seu cavalo e fuja, se não
quiser morrer como eu”. Jorge: “Não tenha medo, minha filha, e diga-me o que
toda aquela gente está esperando ver”. [...] Depois que a moça explicou tudo,
Jorge disse: “Minha filha nada tema, porque, em nome de Cristo, vou ajudá-la”.
[...]
Enquanto
conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago e foi se aproximando. Toda
trêmula, a moça falou: “Fuja, meu bom senhor, fuja depressa”. Jorge montou
imediatamente em seu cavalo, protegeu-se com o sinal da cruz, e com audácia
atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a lança com vigor,
recomendou-se a Deus, atingiu o monstro com força, jogando-o ao chão, e disse à
moça: “Coloque sem medo seu cinto no pescoço do dragão, minha filha”. Ela assim
o fez e o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso”.3
Observa-se
uma semelhança entre a descrição da cena da luta com a representação na
iluminura. Essa semelhança nem sempre é encontrada nas representações do
combate de São Jorge com o dragão.
Em
algumas representações do santo, ele está montado no cavalo, que se posiciona
sobre o dragão, não lateralmente a ele, e o evento é representado não nas
margens de um lago, mas na frente de uma caverna, como se observa em algumas
pinturas tanto no ocidente como no oriente. Como é o caso do ícone de Novgorod
(fig. 02), situado no Museu Russo de São Petersburgo, aproximadamente do
primeiro quarto do século XIV.
Ícone de Novgorod, 1300 – 1325.
Têmpera sobre madeira, 89 x 63 cm. Museu Russo de São Petersburgo.
O
ícone no centro representa a luta contra o dragão. Nas margens, em todo o
entorno do centro, ocupando lugares menores, estão representadas cenas do
martírio do santo. Na cena com o dragão, São Jorge, em seu cavalo branco, está
no centro, acima, como se flutuasse sobre a terra, onde a princesa mantém o
dragão domesticado com seu cinto. Diferente da iluminura no códice o dragão
está em frente a uma gruta, não nas margens de um lago.
Essa
forma de posicionar o santo sobre o dragão, não lateralmente a ele, mesmo em um
combate terrestre, é mais encontrada nas representações artísticas e populares
do santo. Também remete a representações de divindades pagãs da antiguidade.
Como no mosaico encontrado no piso de uma construção em Palmira, na Síria,
datada de 260 a.C. (fig. 03), no qual figura Belerofonte montado no Pégaso,
matando a Quimera.
Considerando
a adoção dos modelos da antiguidade pela cristandade e o processo de produção
das imagens no ocidente medieval, que era feito a partir da reprodução de
modelos, porque a iluminura do códice de São Jorge não segue esse modelo, se
havia um a partir do qual algumas representações da luta do santo com o dragão
se assemelhavam?
Na
maioria das representações anteriores ao códice, o santo não figura na cena da
luta. Também, como foi apontado anteriormente, segundo a Encyclopedie
Théologique, a lenda ter sido acrescida da narrativa da luta no Ocidente apenas
no século XII, indica que essa parte da narrativa não era totalmente difundida
anteriormente. É possível, todavia, que essa versão circulasse antes entre as
narrações orais, pela característica fluídica dessa forma de transmissão, e
tenha passado posteriormente para a escrita. Por outro lado, mesmo que o
artista conhecesse um modelo, deve se levar em conta o fato do códice ter sido
produzido por um franciscano, que assim como o dominicano Jacopo de Varazze,
tinha a preocupação em produzir um material teologicamente correto. Visavam uma
aproximação com o mundo laico, tornar o conhecimento acessível ao mundo
secular. Logo, a representação deveria ser compatível não apenas com a
narrativa escrita, mas também se aproximar das histórias contadas oralmente,
para que houvesse uma identificação com as versões populares.
Entre
as diferenças encontradas pode se observar a posição do santo em relação ao
dragão; enquanto na iluminura do códice de São Jorge o santo combate o dragão
lateralmente, e ambos se situam sobre a terra. No ícone russo o santo não
apenas figura, posicionado sobre o dragão, como está no ar, praticamente sem
contato com a terra. O local no qual o dragão vivia; no códice, bem como na
Legenda áurea, ele sai de um lago, no ícone ao invés da representação de um
lago na parte inferior esquerda, há uma gruta. Deve-se considerar que esse tema
foi transportado de maneira oral, logo apresenta variações quanto à forma e
principalmente ao espaço onde ocorre a cena. Sua sobrevivência se dá por sua
capacidade de adaptação, pela possibilidade de se modificar conforme se
apresenta em condições locais e temporais distintas.
No
oriente cristão as imagens funcionavam como objetos de culto e os ícones eram
venerados por trazerem um testemunho da pessoa representada, seguindo na
tradição da filosofia platônica4. No ocidente, as imagens tinham,
principalmente, as funções de instruir, rememorar e emocionar. O culto não era
prestado à própria imagem, mas à figura representada5. A iluminura foi pintada
com a função principal de esclarecer o texto. De tornar visível a vitória de
São Jorge sobre o dragão, como alegoria da vitória do cristianismo sobre o
islã, do bem sobre o mal.
Quanto
à representação da luta no códice, entendemos que a fidelidade com o texto da
Legenda áurea está relacionada com a recepção da filosofia aristotélica feita
pela escolástica. Para Platão existe um protótipo, no mundo ideal, do qual as
imagens que vemos são derivadas. Segundo o filósofo, na memória há um
conhecimento que são idéias das realidades que a alma conheceu antes de passar
do plano espiritual para o plano material. Essa foi uma parte do pensamento
recebido pela patrística, que passou para a idade média em seu início. Para
Aristóteles as imagens formuladas na imaginação passaram pelos sentidos, assim,
as coisas gravadas na memória são resultado das experiências sensoriais6. A
imagem da cena da luta no códice se aproxima da representação de uma realidade
terrena. Se contemporaneamente entendemos o dragão como uma criatura mítica, para
os medievais era um animal real, pois era representado nos bestiários junto com
animais reais. Logo, por mais que nunca tivessem visto um dragão, acreditavam
na existência dessas criaturas.
São
Jorge e a expansão da cristandade
O
tema da luta do herói contra o dragão pode ser encontrado não apenas na
hagiografia de São Jorge. Uma narrativa que apresenta uma relação com o tema é
“Juvenal e o dragão”. A história se assemelha à narrativa de São Jorge, porém o
tema ocorre na história narrada no folheto de cordel “A história de Juvenal e o
dragão”, do pernambucano Leandro Gomes de Barros (1865-1918). A edição
fac-similar utilizada está em domínio público, disponível em mídia digital ,
foi editada por João Martins de Athayde e está datada do ano de 1974.
A
história narra as peripécias de Juvenal. Um rapaz pobre que herda três
carneiros com a morte de seu pai deixa sua irmã aos cuidados do padrinho e
parte. Logo troca os carneiros por três cachorros mágicos que o acompanham em sua
busca por aventuras e o ajudam a vencer um dragão, libertando assim uma
princesa de ser devorada pelo monstro. Ao desposar a princesa no final da
história, Juvenal manda um cortejo buscar sua irmã e então finalmente seus
cães, considerando sua missão terminada, transformam-se em pássaros e partem.
A
gravura “Juvenal e o dragão” (fig. 04), de Gilvan Samico, foi elaborada a
partir da epopeia narrada por Leandro Gomes de Barros. A luta do herói contra o
dragão para libertar a princesa é o tema central da narrativa. Na gravura, um
jovem luta contra uma serpente alada, com cauda de peixe, diante de um rochedo
que divide a imagem horizontalmente entre o espaço do céu e o terrestre.
Juvenal e o Dragão, Gilvan Samico, 1962. Xilogravura, 45 x 51,5 cm. |
A
luta ocorre na terra, no primeiro plano estão dois de seus cães e, no segundo plano,
Juvenal combate o dragão enquanto seu outro cachorro está posicionado atrás do
dragão, em oposição ao herói, à esquerda da gravura. No céu, sobre a cabeça de
Juvenal, três pombas voam em formação triangular como se fossem sair da gravura
à direita.
No
centro, o dragão parece saltar de dentro da caverna, se projetando na direção
de Juvenal, quase o tocando com sua língua, mas também parece se contorcer ao
ser golpeado pelo jovem. Para as primeiras gerações cristãs, o dragão
representa a incorporação do princípio do mal. É identificado com a serpente
que vive nas águas. São bastante difundidas as representações nas quais o
dragão é vencido pelo arcanjo Miguel, por São Jorge ou por Cristo7. As asas
membranosas do dragão, grandes e coloridas, o sustentam no ar. As linhas que
preenchem as áreas coloridas das asas geram pontos de convergência que
impulsionam o movimento do dragão no ataque.
Contrastando
com o dinamismo do dragão, Juvenal mantém a sobriedade e golpeia a criatura
grande e ameaçadora com uma de suas facas. Com a mão direita, segura uma faca,
ou talvez um chifre do dragão e, com a esquerda, golpeia o dragão com um facão,
chamado de peixeira pelo sertanejo, também usado como arma. No entanto, Juvenal
não é representado como um cangaceiro. Se aplicarmos a lógica medieval a essa
narrativa, de divisão das atividades da sociedade entre os que rezam, os que
guerreiam e os que trabalham, poderíamos situar Juvenal entre os que trabalham,
identificado com os camponeses, não com o clero nem com as milícias, o que,
contudo, não diminui sua fé, muito menos sua bravura.
Os
cães não interferem na luta, mas, posicionados em torno do corpo do dragão,
parecem prestar auxílio ao jovem. Por ser considerado um animal impuro no
Antigo Testamento, o cachorro teve uma conotação negativa, mas, na arte cristã,
por sua fidelidade, é relacionado à virtude teológica da fé8. Por serem três
cães, fazem uma alusão à Trindade. Nos versos finais da narrativa escrita, os
cães irão se transformar nas pombas que voam sobre a cabeça de Juvenal. Na arte
cristã, a pomba aparece como símbolo do Espírito Santo9, e sua formação
triangular parece reforçar o significado da Santíssima Trindade. Porém, na
imagem, ela indica algo mais que uma passagem temporal. Situadas no espaço
celeste sobre a cabeça de Juvenal, sugere um apoio Divino ao jovem.
Outra
representação da história de São Jorge é a de Paolo Uccello (fig. 05), datada
no ano de 1455. Na obra de Uccello, o cavaleiro, o dragão e a princesa ocupam o
primeiro plano sobre a terra em frente à gruta.
São Jorge e o Dragão, Paolo Ucello, 1458-1460. Óleo sobre madeira, 57 x 73 cm. Galeria Nacional de Londres. |
Observamos
que a gravura de Samico se apresenta de forma homóloga à pintura do florentino.
Tanto Juvenal como São Jorge enfrentam o dragão lateralmente, da esquerda para
a direita, golpeando-o. Montado em seu cavalo branco, o santo rende o dragão
com sua lança. Oposta ao dragão, transmitindo para o santo o apoio que Juvenal
encontra em seus cães, a princesa participa do acontecimento como é descrito na
lenda do santo, colocando seu cinto em torno do pescoço do dragão tornando-o
manso. O movimento em espiral formado pelas nuvens posicionadas sobre o santo,
em contraste com o resto do céu azul, confere um apoio celestial Divino ao ato
de São Jorge, assim como as asas-brancas no céu apoiam Juvenal. A pintura de
Uccello indica um período de busca de uma realidade natural na representação do
espaço que é formulado no final da Idade Média.
A
“história de Juvenal e o dragão” adquire uma função didática ao vincular a
moral cristã na narrativa e reflete a preocupação da sociedade que, assim como
os medievais, procura uma vida religiosa guiada pelas virtudes como caminho
para a salvação de suas almas. O tema da luta contra o dragão para libertar a
princesa na história de Juvenal, que corresponde ao tema de São Jorge, remete à
oposição entre o bem e o mal, encontrada na hagiografia do santo e ambas tem o
mesmo sentido moral.
As
histórias se opõem na medida em que o santo era um nobre, um guerreiro,
enquanto Juvenal é filho de um camponês pobre, mas que por meio de suas
virtudes, e em nome de Deus, adquire reconhecimento e respeito da sociedade e
busca seu caminho para a salvação. Diferente dos santos aristocratas, Juvenal é
um herói com o qual os ouvintes podem se identificar, alguém que, além da sua
coragem, tem apenas seus cachorros, que por serem mágicos remetem os acontecimentos
a um plano metafísico, de crença no sagrado.
Sobrevivência
e memória
A
gravura “Juvenal e o dragão” reflete uma lembrança de Samico, da narrativa que
ouvia na infância cantada por um empregado de sua casa. A narrativa também
reflete a forte religiosidade do povo impregnada no tema, que sobrevive na
memória dos grupos, das sociedades.
Em
“A Arte da Memória”, Frances Yates demonstra como a arte de memorizar
discursos, ou conteúdos, estimulou, no ocidente medieval, a formação de um
sistema de imagens. Para a autora, a expansão no conjunto de novas imagens nos
séculos XIII e XIV, está relacionada com o interesse da escolástica pela
memória.
O
poeta grego Simônides de Ceos propôs que para treinarmos a faculdade da memória
deveríamos escolher lugares e formarmos imagens mentais a partir desses lugares,
em seguida criar imagens das coisas que devem ser lembradas e colocá-las
ordenadamente nesses lugares10. A formulação do poeta sobre o aperfeiçoamento
da memória levou a um modo de construção de imagens inseridas em lugares
ordenados e não permaneceu reservada aos seus contemporâneos. Ela ecoou por
diversos momentos na arte da memória e na arte, passando por modificações
conforme a época e a interpretação feita, mas manteve sua essência.
Os
escolásticos Alberto Magno e Tomás de Aquino utilizaram a arte da memória
visando ensinar os pregadores dominicanos a memorizar seus sermões e ensinar
aos fiéis a se afastar do caminho do Inferno evitando os vícios, e buscar as
virtudes como caminho para o Paraíso. Tais ensinamentos tiveram alcance além da
memorização dos sermões, eram utilizados também para a decoração das paredes
das igrejas, de modo que os fiéis, quando estivessem no local de culto
recebendo os ensinamentos por meio dos sermões, pudessem também memorizar a
oposição entre as virtudes o os vícios ao visualizar nos afrescos as imagens
inseridas em lugares correspondentes ao bem e ao mal, criando imagens
mentais11. Assim, as formulações do poeta grego para memorização, foram
impregnadas de uma moral cristã, que foi passada para os fiéis, para os grupos
religiosos.
Nas
cidades, enquanto a aparência das ruas e das construções não muda, o grupo tem
a impressão de não mudar, a estabilidade das imagens gera uma sensação de
continuidade em um grupo social. Para Halbwachs, uma das condições de unidade
de um grupo é por estarem reunidos em um mesmo espaço. É no ambiente, na fonte
dos estímulos sensoriais, onde criam suas relações sociais, assim a memória
coletiva acontece em um contexto espacial. As religiões que estão fortemente
instaladas sobre o solo, participam da memória dos grupos. As lembranças de um
grupo religioso ocorrem pela visão de determinados lugares, localizações ou
disposições de objetos. Os sentimentos experimentados pelos fiéis ao entrar em
uma igreja, ou outro lugar santificado, possuem lembranças comuns com os
estados de espíritos experimentados por outros fiéis, pensamentos e lembranças
que se formaram em épocas anteriores, nesse mesmo lugar.12
Podemos
considerar que as igrejas estão inseridas dentro do contexto espacial da
cidade, mas também podemos imaginar cada igreja como um contexto espacial. Na
infância Samico morava em Recife, uma cidade com grande quantidade de igrejas,
com uma arquitetura imponente, monumental. Construções que impressionam pelas
dimensões e pelos ornamentos, pelas imagens e objetos. Não apenas vivia em uma
cidade com uma forte religiosidade, sua família era religiosa, frequentava uma
igreja, um local propício para formar a unidade de um grupo.
Assim,
o artista estava integrado a um grupo religioso, e sua memória participava da
memória do grupo. Se a igreja, como contexto espacial, pode ser um elemento de
estabilidade para a reconstrução de pensamentos e sentimentos, é provável que
contribua com a formulação de uma série de pensamentos e sentimentos religiosos
integrados por meio de uma rede social com as formas e conteúdos artísticos.
Dessa maneira a arte reflete características do indivíduo que a produziu, mas
também do ambiente no qual esse indivíduo se insere socialmente, como agente e
como receptor.
Considerações
finais
A
análise das obras apresentadas permitiu entender o processo de sobrevivência
das imagens segundo a proposta de Didi-Huberman. A investigação de conteúdos
religiosos ocorreu por uma aproximação com o passado, gerando um movimento
anacrônico no qual se insere o processo criativo. Um anacronismo que encontra
imagens na memória e cria imagens fora do tempo. Nessa circulação entre passado
e presente, ocorre uma repetição de temas e formas oriundos de um contexto
religioso, mas que seguem reformulados, recontextualizados e ressignificados.
Imagens onde se misturam várias temporalidades e apresentam uma heterogeneidade
conforme o ambiente no qual se manifesta13.
A
forma de transmissão oral da poesia medieval possibilitou a difusão e a
circulação de histórias e formas literárias que carregavam um conteúdo moral
cristão. Não há uma continuidade temporal entre as épicas medievais e as
narradas pelos poetas populares nordestinos, contudo identifica-se a
sobrevivência, das formas e dos temas medievais nas poesias populares do
Nordeste brasileiro. Nesse sentido, a oralidade contribui com a transmissão dos
temas, pois possibilita uma recepção coletiva e permite uma flexibilidade no
uso.
Referências:
1 DIDI-HUBERMAN,
Georges. L’image survivante. Histoire de l’Art et temps des fantomes selon Aby
Warburg. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002.
2
FRANCO Jr, Hilário. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo de, Arcebispo de Gênova.
Legenda Áurea: Vidas de Santos/Jacopo de Varazze. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 2003. p. 11-13.
3
VARAZZE, Jacopo de, Arcebispo de Gênova. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São
Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003. p. 366 – 367.
4
BELTING, Hans. Semelhança e Presença. A história da imagem antes da era da
arte. Rio de Janeiro: Petrobrás/Ministério da Cultura, 2010. p. 187 – 188.
5
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São
Paulo: Globo, 2006. p. 485.
6
YATES, Frances A. A Arte da Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p. 56
– 58.
7
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte
cristã. São Paulo: Paulus, 1994. p. 138.
8
Ibidem, p. 66 – 67.
9
Ibidem, p. 294.
10 YATES. op. cit. p.
17 – 18.
11 Ibidem, p. 80 –
84.
12 HALBWACHS. op.
cit. p. 170 – 171.
13 DIDI-HUBERMAN. op. cit.
p. 11 – 50