segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O medo da peste negra

Por muito tempo a peste bubônica ou peste negra e outras enfermidades assolaram o continente europeu desde a Antiguidade até o século XIX, já na Idade Contemporânea, no entanto, o foco deste texto dirá respeito aos séculos XIV ao XVII, quando os surtos da peste negra assombravam mais rotineiramente as nações europeias causando caos e medo nas pessoas. Neste trabalho foquei não apenas os relatos daquela época sobre a peste, mas como era a concepção de seus contemporâneos sobre a peste, que motivos eles davam para que tais calamidades ocorressem, e como elas ocorriam.

No século XIV a Europa presenciou o auge dos surtos da peste bubônica, uma doença causada pela bactéria Yersinia pestis, transmitida por pulgas, principalmente encontradas nos ratos pretos, que viviam nas cidades. A peste negra teve sua origem na Ásia, em algum lugar próximo as fronteiras da China, e se espalhou pela Ásia Central, e possivelmente para a Índia e o Sudeste Asiático. Devemos nos lembrar que nesta época a Rota da Seda ainda estava em pleno vigor, e era uma das vias mais extensas e principais do continente asiático, que ligava o Extremo Oriente ao Mar Mediterrâneo. Através dos animais, principalmente de ratos e de seres humanos infectados, a peste negra chegou a Europa e se alastrou por esta. Devemos ter em mente que os hábitos higiênicos pessoais e públicos eram bem precários, e isso facilitou a proliferação da doença nas cidades e posteriormente nos campos.

"A peste bubônica caracterizava-se pelo aparecimento de gânglios muitos inchados (bubões) nas virilhas, no pescoço e nas axilas, associadas a febre elevada que ocasiona confusão mental ou delírio, calafrios, dores difusas e vômitos". (Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, p. 4579).

A peste também poderia atacar os pulmões, provocando asfixia, cianose e tosse com sangue, problemas respiratórios que poderiam levar a uma parada pulmonar. Devido a alta proliferação da bactéria, a doença era transmitida pelo ar entre os humanos, através da tosse, saliva e espirro. Sem tratamento a doença levava a morte em poucos dias, mais a frente, veremos que relatos na época diziam que a peste levava a morte em poucas horas.

Pelo fato de não se conhecer nesta época antibióticos, a doença vitimou dezenas de milhões de vidas por toda a Europa, chegando ao ponto de que alguns estudiosos indicam que pelo menos um terço da população europeia tenha perecido.


A praga de Azoth (Die Pest von Azoth). Nicolas Poussin. 1630-1631.

"Em 1347, atingiu Constantinopla e
Gênova e logo toda a Europa, de Portugal e da Irlanda a Moscou. As devastações da 'morte negra' estenderam-se pelos anos 1348-1351, eliminando, assegura Froissart, 'a terça parte do mundo'". (DELUMEAU, 1998, p. 107).

"Em 1359, ei-la na Bélgica e na A
lsácia; em 1360-1361, na Inglaterra e na França. Em 1369, ela ataca novamente a Inglaterra, depois devasta a França de 1370 a 1376, para passar mais uma vez para além da Mancha. A Itália não estava mais bem aquinhoada". (DELUMEAU, 1998, p. 107).

Nos séculos XVI e XVII a peste ainda continuava a ceifar muitas vidas, atacando locais como Londres, Veneza, Milão, Marselha e e vários locais da Espanha.



Mapa da Europa com os locais onde a peste negra ocorreu durante o século XIV. Clique no mapa para ler a legenda.

"Segundo os historiadores britânicos, a Inglaterra teria sido amputada de 40% de seus habitantes entre 1348 e
1377 (tendo 3.757.000 na primeira data e 2.223.375 na segunda)". (DELUMEAU, 1998, p. 109).

Relatos de testemunhas na França, Itália, Espanha, Alemanha e em outros locais, apontam que pelo menos
um terço e em alguns casos até mesmo a metade da população de uma cidade ou região, fora dizimada. Porém é evidente que em alguns relatos as testemunhas exageraram em alguns detalhes e números, mesmo assim, o índice de mortalidade causado pela peste que vai do século XIV ao XVII foi exorbitante, onde em uma única cidade centenas ou até mesmo milhares poderiam perecer em questão de poucos meses. Tal número era assombroso ainda mas pelo fato que as cidades europeias eram pequenas, tendo populações entre 10 a 50 mil habitantes, as vezes mais. No entanto, deparar-se com uma doença que em um mês matava 1% da população da cidade, era algo horrendo e impensável na época. 

Tal fato era tão alarmante que as pessoas viviam constantemente sob o medo de que um surto de peste viesse a surgir. Devemos lembrar que os surtos duravam poucos meses ou em alguns casos, um ano ou até mesmo dois anos, mas depois passava-se alguns anos sem ter sinais da peste, algo que o historiador Jean Delumeau em seu livro A história do medo no ocidente apontou que estes ciclos de infecção, ocorriam pelo menos a cada nove ou oito anos. 

Mas, neste meio tempo, o medo ainda era vivo entre aqueles que sobreviveram, testemunharam os horrores destes tempos, ou perderam parentes e amigos por causa desta enfermidade. Ninguém estava a salvo desta misteriosa doença que aparecia de repente e sumia da mesma forma misteriosa que aparecera. Como seria que as pessoas daquela época entendiam a peste? Que respostas elas davam para aquelas epidemias, para aquela calamidade? Sobre isso veremos a seguir.

Como bem se sabe, a Idade Média e até mesmo a Idade Moderna fora marcada pela influência do cristianismo, seja em sua forma católica, ortodoxa, luterana, anglicana, calvinista, etc. Todos
estes expressavam a fé em Cristo e em Deus, logo a ocorrência da peste por toda a Europa, passou a ser interpretada por alguns como sendo um acontecimento divino.

Uns vinham na peste os atos maléficos de Satã e seus demônios, que espalhavam a calamidade pelos homens, trazendo dor, sofrimento e morte. Em alguns relatos, algumas pessoas sugerem que a peste era causada por uma nuvem escura que saía das profundezas da terra, possivelmente do próprio Inferno, e infectava a todos em seu caminho. Outros diziam que a peste era como um incêndio que se alastrava pela terra e pelo céu, que demônios eram vistos conduzido as chamas. Que tal calamidade era trazida pela própria Morte.


A Praga (The Plague). Arnold Böcklin. 1898.

"Um religioso português do século XVII, evocando por sua vez a peste, descreve-a como um 'fogo violento e impetuoso'". (DELUMEAU, 1989, p. 113).

"É ainda descrita, como um dos cavaleiros do Apocalipse, como um novo 'dilúvio', como um 'inimigo formidável'". (DELUMEAU, 1989, p. 112).


Talvez a ideia de que a peste fosse um "incêndio" advenha do fato que quando uma cidade estava infectada se acendiam fogueiras purificadoras nas encruzilhadas, a fim de espantar os maus espíritos que causassem a peste, e além disso, queimavam-se as roupas e pertences dos cadáveres. Em alguns casos, casas também poderiam ser queimadas.

Em contra partida, se alguns apontavam que a peste poderia s
er um ato de Satã ou de seus seguidores, alguns defendiam que a peste poderia ser um ato de Deus.

"Cleros e fiéis, vendo a Peste Negra e aquelas que a seguiram ao longo dos séculos como punições divinas, assimil
aram naturalmente os ataques do mal aos golpes mortais de flechas lançadas do alto". (DELUMEAU, 1989, p. 113).

Pinturas e afrescos do século XV e XVII nas igrejas retratam imagens de Deus, Jesus, de santos e anjos atirand
o flechas ou lanças "envenenadas" com a peste sobre as cidades. Uma das explicações para isso, era que a peste era um ato de punição de Deus aos homens pelos seus pecados, tal como foi o Dilúvio. Sendo assim, muitos religiosos culpavam os pecadores pela calamidade que era a peste, com isso a Igreja começou a incentivar a penitência religiosa e os atos de boa fé, para tentar redimir-se da ira de Deus. 

Nesta época a seita do Flagelantes  ganhava mais adeptos em algumas partes da Europa. Os flagelantes viam na punição corporal uma forma de se redimir de seus pecados, a fim de conseguirem através do sofrimento sua aceitação no Reino dos Céus. Se por um lado, isso possa parecer um exagero de fanáticos religiosos, outros diziam que a peste era causada pela infelicidade das pessoas.

Dois flagelantes, numa gravura do século XV. 
"Paracelso acredita que o ar corrompido não pode por si só provocar a peste. Ele só produz a doença ao combinar-se em nós com o fermento do pavor. A. Paré ensina que em período de 'febre pestilenta', 'é preciso manter se alegre, em boa e pequena companhia, e às vezes ouvir cantores e instrumentos musicais, e algumas vezes ler e ouvir alguma leitura agradável". (DELUMEAU, 1989, P. 125).

De fato tais ideia trouxeram mais problemas. Em alguns lugares os juízes, prefeitos, autoridade públicas, etc., ordenaram que festividades fossem realizadas a fim de se manter longe o perigo da peste, porém algumas pessoas não acreditando que isso adiantaria, decidiram aproveitar o máximo de seus últimos dias de vida, caindo em bebedeiras e orgias, largados a embriaguez, a devassidão, a baderna, etc. Isso levou as autoridades a repensarem nas medidas tomadas, e até mesmo uma forte crítica por parte dos religiosos criticando estes atos pecaminosos, que contribuiriam para a vinda da praga.

"[Para outros], entregar-se francamente à bebida como os prazeres, dar volta à cidade divertindo-se, e uma canção nos lábios, conceder toda satisfação possível às suas paixões, rir e gracejar dos mais tristes acontecimentos, tal era segundo suas palavras o remédio
mais seguro contra um mal tão atroz". (DELUMEAU, 1989, p. 127).

Se por um lado o dilema entre a felicidade e o excesso representavam problemas para se combater este mal atroz, ou
tros acabavam partindo para um caminho diferente. Ao invés de tentar se alegrar, ou de cair na devassidão, ou se manter em orações, algumas pessoas perante a tanta desgraça, acabavam enlouquecendo e outras chegavam a cometer suicídio.

"O desespero e o abatimento, contudo, le
vavam alguns para além do fatalismo. Um se tornava 'lunático' ou 'melancólico', outro sucumbia ao desgosto após o desaparecimento dos seus, aquele morria de medo, outro ainda se enforcava". (DELUMEAU, 1989, p. 129).

Escritores de
sta época enfatizavam de forma exagerada e cruel tais realidades. Histórias se espalhavam pelas cidades que ainda não haviam sido infectadas pela peste, levando medo aos seus habitantes. Dizia-se que num dia você poderia acordar bem, tomar o desejum e ir trabalhar, voltava para o almoço, mas no cair da noite, você já não estaria mais para o jantar, já que a peste havia lhe levado. Outros relatos mais macabros, diziam que em alguns lugares as pessoas passaram a dormir em covas, aguardando a morte eminente. O número de mortos também era um problema, já que se exageravam na quantidade de vítimas. Como se pode notar no relato do monsenhor de Belsunce (França) ao arcebispo de Arles (França).

"Tive muita dificuldade em mandar retirar cento e cinquenta cadáveres semiputrefatos e roídos pelos cães, que estavam à entrada de minha casa e que nela se punham a infecção, de m
aneira que me via forçado a ir morar em outro lugar. O odor e o espetáculo de tanto cadáveres de que as ruas estão cheias impediram-me de sair há um bom número de dias, não podendo suportar nem um nem outro. Pedi um corpo de guarda para impedir que se ponham mais cadáveres nas ruas à minha volta". (DELUMEAU, 1989, p. 129).

O Triunfo da Morte (The Triumph of Death). Pieter Bruegel. 1562.

Nos séculos XVI e XVII, em algumas cidades as pessoas passaram a sair de casa quando fosse preciso, portando armas de fogo ou armas brancas, para que se encontrassem algum enfermo o mantivessem longe ou o matassem.

"Em Milão, em 1630, alguns só se aventuram na rua armados de uma pistola graças à qual manterão a distância qualquer pessoa suscetível de ser contagiosa. Os sequestros forçados acrescentam-se ao encerramento voluntário para reforçar o vazio e o silêncio da cidade". (DELUMEAU, 1998, p. 122).

Mas, deixando este lado de efervescência religiosa, onde Satã ou Deus eram os culpados por tal calamidade, havia outros motivos que apontavam a origem da peste. Como já fora visto, o fogo era uma destas sugestões, assim como também o ar poluído e os gases do subterrâ
neo, mas além destes supostos motivos, estava também a ideia de que a aparição de cometas eram vistos como sinais de perjúrios, e dizia-se que se um cometa fosse visto sobre uma cidade, algo de ruim poderia acontecer. Em alguns casos que isso ocorreu, a população entrou em pânico, crendo que a peste poderia chegar logo.

Em contra partida, alguns alegavam que a peste era na realidade disseminada por determinadas pessoas, com isso passou-se a se perseguir os judeus, ciganos, e quaisquer estrangeiro misterioso, acreditava-se que estas pessoas traziam a peste consigo. Não obstante, os próprios mendigos, vagabundos, leprosos e outros párias da sociedade foram acusados de envenenar a água, o ar, os alimentos e espalhar este mal. 


Quando se diz envenenar era isso que se tinha em mente na época, a peste poderia ser um tipo de veneno. Assim, estes indivíduos foram perseguidos, mortos, queimados, etc. Por outro lado, também surgiu a ideia que a peste tinha origem em um determinado local e era transmitida pelos viajantes daquele lugar, não sendo necessariamente por judeus ou ciganos.

"Em 1596-1599, os espanhóis do norte da península Ibérica estão convencidos da origem flamenga da epidemia que os acomete. Ela foi trazida, acredita-se, pelos navios vindos dos Países Baixos. Na Lorena, em 1627, a peste é qualificada de 'húngara' e em 1636, de 'sueca': em Toulouse, em 1630, fala-se da 'peste de Milão'". (DELUMEAU, 1989, p. 141).

Mas, após ver tudo isso ainda fica uma pergunta no ar, ninguém fazia nada para se tratar dos enfermos, ou tomar medidas higiênicas e de controle sanitário para se evitar ainda mais a proliferação da doença? A resposta é sim e não.


Nessa época os cuidados higiênicos e com a saúde ainda eram precários, as ruas era estreitas, havia lixo acumulado por estas, dejetos humanos eram jogados pelas janelas, em muitas das cidades não havia esgotos por mais rústico que fosse, animais andavam, dormiam e se alimentavam pelas ruas, era uma verdadeira imundice, e não é por exagero meu. Até o século XIX muitas das grandes cidades do mundo viviam estes problemas; Nova York, Londres, Madrid, Paris, Roma, Berlim, etc. Até mesmo aqui no Brasil, na então capital imperial, o Rio de Janeiro, vivenciou surtos de cólera, febre amarela, dengue, peste espanhola e outras doenças ao longo do século XIX e começo do XX, devido aos problemas de saneamento.

Assim, tais problemas eram generalizados nas cidades do fim da Idade Média e ao longo da Idade Moderna. Mas, se por um lado a imundice facilitava a proliferação de ratos e com estes as pulgas que transmitiam a peste bubônica, e outras doenças, neste época não existia antibióticos, a penicilina só seria descoberta no século XX. Os tratamentos médicos da época era precários se compararmos a outros momentos da história, fato este q
ue a medicina romana e grega da Antiguidade em alguns momentos eram mais sofisticadas do que a medicina medieval e moderna. Não obstante, só havia dois meios de tratar esta doença, um vinha do meio religioso através das orações, e o outro era se submeter aos tratamentos médicos da época. Uma última escolha, seria fugir o quanto antes e para o mais longe possível.

Além das orações, havia também o uso de amuletos, medalhões que supostamente dariam proteção contra a peste. Como fora dito anteriormente, espalhou-se o boato que a peste, seriam flechas lançadas por demônios ou por Deus e seus anjos, logo, as pessoas passaram a utilizar medalhões, amuletos que contivessem a imagem de São Sebastião ou de São Roque, santos que foram mortos com flechadas. Assim, eles invocavam a proteção dos santos para se proteger da doença.

Não obstan
te, fora dos meios religiosos, as medidas tomadas pelos agentes fiscalizadores e pelos médicos para se conter a propagação da doença, visava o uso do fogo de purificação, como fora assinalado anteriormente. Além disso, havia a coleta dos cadáveres e seu enterro em covas coletivas ou cremações. Objetos e roupas dos enfermos eram queimados juntos, ou purificados de outras maneiras. Em alguns casos, matavam-se animais, como cães, gatos e porcos, pois acreditavam que também pudessem está infectados, ou fossem vetores da doença, que de fato não era mentira, pois, as pulgas não ficam apenas em ratos.

Outro problema em vista, estava na elaboração de um cordão sanitário, de se isolar as área
s infectadas, mas isso era um problema naquela época devido a falta de procedimentos mais higiênicos, e até mesmo de organização e cooperação da sociedade. Em algumas cidades fora decretada a suspensão das vendas no mercado e do comércio, mas os comerciantes contra atacaram, dizendo que isso prejudicaria não apenas eles mas a própria população, em meio a este dilema, muito pouco se fora feito. Não obstante, do que se dizer da vestimenta dos médicos durante a Idade Média, e até mesmo depois, nos trajes como este exibido na imagem ao lado, utilizados em épocas de epidemia? Como não bastasse o medo já ocasionado pela doença, até mesmo os médicos e funcionários que assim se vestiam dava medo em quem passasse. Tais trajes eram chamados de traje-médico bico (beak doctor costume). A estranha máscara em forma de bico de pássaro, servia como uma espécie de máscara contra gases que utilizamos hoje em dia. Os olhos desta máscara eram feitos de vidro, e seu bico era utilizado como uma espécie de respiradouro, onde os médicos punham algumas ervas, nas quais supostamente os protegeriam contra a doença. Tais vestimentas ainda continuaram a serem usadas até mesmo no século XVII, como descreveu Galileu Galilei.

Por fim, a peste bubônica ainda não foi erradicada totalmente, em alguns lugares da África e da Ásia, ela ainda traz a morte, no entanto, em um número bem inferior ao que fora no passado, já que hoje temos antibióticos para combatê-la. A peste negra fora uma das maiores pandemias conhecidas na história, vitimando milhões de vidas na Europa e tantas outras pela Ásia e pela África.

NOTA: A penicilina foi descoberta acidentalmente em 1928 pelo médico e bacteriologista inglês Alexander Fleming.
NOTA 2: Napoleão Bonaparte em 1799, visitou um hospital com vítimas da peste na cidade de Jaffa (na atual Israel). Napoleão fez isso para exaltar sua coragem perante seus homens, e dar consolo aos soldados que estavam doentes.
NOTA 3: A máscara bico dos trajes-médicos bico, passou a ser utilizada como uma alegoria do carnaval de Veneza a partir do século XVII.
NOTA 4: Na historiografia de tradição inglesa, a peste negra é chamada de black death ("a morte negra").
NOTA 5: Além da peste bubônica, outras doenças epidêmicas como a cólera, tifo, varíola, sudâmina, disenteria, a gripe pulmonar e a gripe espanhola assolaram a Europa desde o século XIV até o século XX.
NOTA 6: Alguns historiadores falam que 75 milhões foram o número de vítimas da peste negra na Europa. Apesar de hoje ser considerado um número excessivamente alto, preferindo uma taxa entre 20 a 30 milhões. 

NOTA 7: O filme Morte Negra (Black Death) de 2010, tem como plano de fundo o contexto da peste negra e da bruxaria na Inglaterra medieval do século XIV. No filme, uma parte da população acredita que a peste fora uma praga enviada por Deus, outra parte acredita que a praga fora enviada pelo Diabo. No entanto, o foco do filme é o fato de que um vilarejo estaria livre da praga, pois supostamente um necromante ou uma bruxa e quem teria disseminado a praga.

Referências Bibliográficas:
DELUMEAU, Jean. A história do medo no ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. (Capítulo 3: Tipologia dos comportamentos coletivos em tempo de peste).
Grande Enciclopédia Larousse Cultural, v. 19. São Paulo, Nova Cultural, 1998.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Momento: Expressões da História - parte V

"A revolução é como Saturno, devorá seus próprios filhos"

Tal citação se encontra no ato I do livro A morte de Danton (1835) escrito pelo escritor e dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837). Büchner escreveu este romance como uma análise dos problemas e causas que levaram o fracasso do governo que se instaurou após a Revolução Francesa de 1789. No entanto, indo além desta obra, tal citação exprime uma verdade bem amarga. De fato os principais líderes que levaram tanto à cabo a revolução em 1789 e que cuidaram do governo que se instaurou até o ano de 1794 (o governo provisório durou até 1799, quando Napoleão realizou um golpe de Estado. Mas, neste caso, os nomes que citarei ficaram a frente do poder até esta data.

Três nomes marcam profundamente a liderança dos eventos que marcaram os problemas e as mudanças que ocorreram dos anos de 1789 a 1794, este foram: Jean-Paul Marat (1743-1793), médico, filósofo, politico e jornalista; Georges Danton (1759-1794), advogado e politico e por fim o mais conhecido de todos, Maximiliem Robespierre (1758-1794), advogado e politico. Os ditos filhos da revolução acabaram sendo engolidos por esta. Marat fora assassinado em casa, Danton e Robespierre acabaram sendo executados na guilhotina e junto outros inúmeros nomes que tiveram envolvimento neste governo. No fim a revolução perdeu suas estribeiras, e os próprios lideres acabaram tendo o mesmo fim que tantos outros que estes mesmo senteciaram a morte na guilhotina ou de outra forma. Daí que se passou posteriormente a empregar esta expressão em referência aqueles revolucionários que acabaram morrendo pela própria revolução que eles ajudaram a criar.

No entanto, ainda falta um fato a se responder, por quê, Saturno? Para isso devemos mais uma vez retonar a velha mitologia grega.

Na mitologia romana, Saturno era a versão romanizada do deus grego Cronos, deus do tempo. Cronos era um dos titãs, filho de Urano (céu) e Gaia (terra). Urano não gostava de seus filhos, então os aprisionou no Tártaro, a prisão infernal, porém Gaia indignada com a decisão do marido, incentivou que seus filhos se rebelassem contra o pai, Cronos tomou a liderança, então Gaia libertou seus filhos, e Cronos fora enfrentar o seu pai. Na luta, Cronos acabou castrando Urano, e com a vitória ele se tornou o novo soberano do universo. Porém, Cronos temia que o mesmo pudesse vim acontecer com ele, que um de seus próprios filhos ousasse desafiá-lo pelo trono, com isso ele passou a engolir os próprios filhos (os deuses eram imortais, então eles ficariam aprisionados na barriga de Cronos). Mas, quando o seu sexto filho nasceu, sua esposa-irmã Réia, a deusa da natureza, decidiu salvar este filho. Ao invés de entregar o bebê a Cronos ela lhe deu uma pedra envolta em panos, o qual o deus engoliu pensando ser seu filho. Anos mais tarde, a criança a qual ficara escondida, quando chegou a fase adulta, decidiu desafiar seu pai e resgatar seus irmãos, seu nome era Zeus. Zeus conseguiu salvar seus irmãos e entrou em guerra contra seu pai e tios, história essa chamada de Titanomaquia ou Guerras Titânicas.

"Banho maria"
Uma expressão tipicamente cotidiana, qualquer cozinheria, cozinheiro, dona de casa sabe o que significa por uma panela sobre a outra enquanto a debaixo ferve algum alimento ou não, a fim que o vapor da panela de baixo aquessa a panela de cima. Em bora isso seja uma prática comum na cozinha, nos experimentos químicos e industriais tal processo também é utilizado. A origem deste termo teria surgido com uma mulher que viveu no século III a.C, uma das poucas alquimistas conhecidas na história, esta era conhecida como Maria, a Judia. É atribuido a Maria em seus experimentos alquímicos o desenvolvimento deste procedimento.

"Licantropia"

Licantropia é o nome dado a um homem que se encontra sob a maldição do lobisomem. Tal palavra advêm do grego licantropos - homem-lobo. Além disso, licantropia também é um termo utilizado pela psiquiatria para designar o indivíduo (homem ou mulher) que apresenta distúrbios mentais que o fazem agir e achar que é um lobo ou algum outro tipo de animal. Acreditasse que tal doença deva ter sido propriamente a resposta para a origem dos lobisomens.

Mas, além disto, a palavra licantropia, advêm também de um mito grego, no qual diz que um rei lendário da Arcádia chamado Licaão, o qual teria cometido o ato hediondo de matar um de seus filhos e servi-lo a um banquete feito a Zeus. Zeus teria fulminado Licaão e seus 50 filhos com seus raios, ou em outra versão, o teria transformado em um lobo, o fazendo devorar os próprios filhos.

A história sobre a lua cheia, balas de prata, mordida do lobisomem, etc., surgiram nos séculos seguintes.

NOTA: Zeus com a ajuda de sua primeira esposa, Métis, deusa da prudência, a qual criara uma poção que faria Cronos vomitar os próprios filhos. Zeus deu a poção para o seu pai beber, e este vomitou seus filhos já crescidos. Os filhos que estavam presos em seu estômago eram: Hades, Poseidon, Hera, Héstia e Deméter.
NOTA 2:
Marat quando teve que se esconder nos esgotos de Paris para fugir de uma perseguição, acabou contraindo uma doença de pele, e com o passar do tempo esta doença o obrigou a ficar cada vez mais tempo em casa, em banhos medicinais, mesmo assim ele ainda continuava a trabalhar. Pelo fato de sua estadia em casa, ele permitiu que os membros girondinos o pudessem visitar a quase qualquer hora do dia. Em 1793, uma mulher chamada Charlotte Corday entrou em sua casa, alegando ser uma mensageira. Charlotte fora de encontro a Marat e o apunhalou no coração. Quando interrogada sobre o motivo, ela respondeu que havia feito aquilo pelo bem da nação, e não sentia remorso algum. Charlotte fora condenada a guilhotina dias depois.
NOTA 3: Danton e Robespierre eram amigos próximos, mas no fim suas diferenças politicas os fizeram se tornar inimigos, um passou a criticar as ações do outro, e ambos foram acusados no tribunal, pelos crimes de corrupçao, conspiração, traição etc.
NOTA 4: O famoso pintor espanhol Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) possui uma obra intitulada Saturno devorando um filho (Saturno devorando a un hijo).

NOTA 5: No jogo de videogame God of War II, há um vídeo que retrata o momento onde Réia salva Zeus, o entregando para uma águia, e dá uma pedra para Cronos engolir. Veja em: http://www.youtube.com/watch?v=zJsHnD26fws.

Referências Bibliográficas:
Grande Enciclopédia Laurosse Cultural, v. 4, São Paulo, Nova Cultural, 1998.
Grande Enciclopédia Laurosse Cultural, v. 7, São Paulo, Nova Cultural, 1998.Grande Enciclopédia Laurosse Cultural, v. 15, São Paulo, Nova Cultural, 1998.GOLDFARB-ALFONSO, Ana Maria. Da alquimia à química. São Paulo, Editora Landy, 2001.


Links relacionados:
Momento: Expressões da História - parte I
Momento: Expressões da História - parte II
Momento: Expressões da História - parte III
Momento: Expressões da História - parte IV


sábado, 11 de dezembro de 2010

Momento: Expressões da História - parte IV

"Louco como um chapeleiro"

Na Europa moderna, antes do advento da industrialização e mesmo após este, a produção artesanal de chapéus continuou quase que inalterável nos últimos séculos, a não ser pelo emprego de novas ferramentas, produtos e formas de se fazer os diferentes chapéus, no entanto um fato curioso é que nesta época, um dos materiais utilizados na fabricação de chapéus era o mercúrio. O mercúrio é o único metal que possui o seu estado natural na forma líquida, no entanto, na produção de chapéus o mercúrio era aquecido a tal ponto que acabava evaporando, e a inalação desta metal causa problemas pulmonares, respiratórios, podendo afetar a visão, a pele, o sistema nervoso, levando a pessoa a ficar louca e até mesmo a vim falecer após longas exposições aos vapores de mercúrio. Devido a este fato, surgiu não se sabe quando a expressão "louco ou maluco como um chapeleiro" em referência ao desconhecido mal que acometia estes trabalhadores até então.

"Cinco minutos com Vênus, e a vida toda com mercúrio"

Novamente na Europa moderna, mais uma vez o mercúrio era o responsável por outra expressão. Tal expressão não diferente da anterior ainda é incerta a sua origem. Mas, vamos começar pela questão dos "cinco minutos com Vênus". Na mitologia romana Vênus (Afrodite para os gregos) era a deusa do amor, da beleza, da sensualidade e da sexualidade, sendo assim, cinco minutos com Vênus referia-se a relação sexual, agora vem a segunda parte. Na época moderna, começou na Europa os primeiros surtos de sífilis, e até então não havia cura efetiva para esta doença sexualmente transmissível. Mas, curiosamente (ainda não sei o motivo ao certo) o mercúrio era utilizado como um dos supostos tratamentos na cura da sífilis. Com isso, quando uma pessoa contraria sífilis, um dos tratamentos utilizados estava a inalação de vapores de mercúrio, o qual causaria os problemas já mencionados anteriormente, no entanto devido ao desconhecimento de tais problemas, acreditava-se em geral que se a pessoa viesse a morrer, era por causa da própria sífilis e não do mercúrio.

"Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus"
"É-nos lícito dar tributo a César, ou não? Mas Jesus, percebendo a astúcia deles, disse-lhes: Mostrai-me um denário. De quem é a imagem e a inscrição que ele tem? Responderam: De César. Disse-lhes então: Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". [Lucas 20:22-25]

Nessa expressão bíblica, não há mistério algum em compreende-la. Quando o apóstolo disse que na moeda havia a efígie de César (neste caso, os 11 primeiros imperadores romanos, adotaram o título de César, sendo assim nesta época em que a história ocorreu o imperador era Tibério), sendo assim, o dinheiro era para César, já que Deus não aceitava dinheiro ou outro tipo de oferenda, apenas a fé e a devoção das pessoas. Não obstante a frase não se refere apenas a questão do dinheiro, mas a qualquer tributo pago pelos judeus aos romanos nesta época.

"Sósia"
Sósia é um termo que expressa uma pessoa que seja muito parecida com a outra. Tal expressão advêm da mitologia grega de duas peças para ser mais exato, uma peça do dramaturgo romano Plauto (230-180 a.C) e do dramaturgo francês Moliére (1622-1673). Ambos retrataram uma das histórias da mitologia grega quando Anfitrião marido de Alcmena (mãe de Héracles) deixa a cidade de Tebas para participar da guerra. Zeus encantado pela beleza de Alcmena, assume a aparência de Anfitrião e deita-se com Alcmena a qual acha que realmente era o seu marido que havia retornado, desta relação nasceu Héracles. Contudo antes de Zeus conseguir fazer isso ele tinha que passar pelo criado de Anfitrião, Sósia que guardava a porta de seus aposentos, para isso, Zeus pediu a ajuda de seu filho, o deus Hermes, o qual assumiu a aparência de Sósia. Enquanto Hermes disfarçado fazia confundir o próprio Sósia, Zeus entrou no quarto. A partir desta história passou a se empregar não sabe-se a partir de que época, a palavra sósia como referência a uma pessoa muito igual a outra. Não obstante o nome Anfitrião passou a significar aquele que recebe alguém em algum lugar.

NOTA: Na história infantil Alice no País das Maravilhas (1865), uma das personagens mais marcantes é o Chapeleiro Maluco (Mad Hatter), o qual consiste numa alusão do escritor Lewis Carrol a expressão "louco como um chapeleiro".
NOTA 2: Tibério (42 a.C -37 d.C) foi o segundo imperador romano, tendo governado de 14 a 37.

Links relacionados:
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Momento: Expressões da História - parte II
Momento: Expressões da História - parte III
Momento: Expressões da História - parte V

domingo, 5 de dezembro de 2010

Principios da natureza e das virtudes dos governos

Esse trabalho é baseado nos livros II, III e V, do O Espírito das Leis, de Montesquieu.

Charles-Louis de Secondat (1689-1765) foi um nobre, barão de La Brêde e barão de Montesquieu, conhecido mais na história pelo seu titulo de barão de Montesquieu. Fora um filósofo e pensador ilustrado iluminista francês, do qual sua mais importante obra fora o Espírito das Leis (1748), onde se notabilizou pela teoria da separação dos três poderes, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. No entanto o trabalho de Montesquieu não se resume apenas a isso, ele também fora um defensor do liberalismo politico, criou uma teoria sobre a organização dos Estados, de como estes deveriam se portar a fim de permanecerem como bons governos, ou se pelo contrário quais seriam os caminhos que levariam a estes Estados se tornarem corruptos. Montesquieu pode parecer um pouco radical em alguns momentos, mas tal fato será o foco deste trabalho. Seu pensamento influenciou os lideres da Revolução Americana, da Revolução Francesa, e a formulação de diversas constituições dos países modernos.

"Montesquieu estabeleceria, como condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a independência entre eles. A ideia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder". (WEFFORT, 2000, p. 119).

Sendo assim, em seu trabalho Montesquieu divide sua teoria dos princípios da natureza e das virtudes, com base em três governos: república, monarquia e o despotismo. Com isso dividirei este texto com base nesta classificação do autor.

"Há três tipos de governo: o republicano, o monárquico e o despótico. Para descobrir-lhes a natureza, basta a ideia que deles têm os homens menos instruídos. Suponho três definições ou, antes, três fatos: um, que o governo republicano é aquele em que todo o povo, ou apenas uma parte do povo, tem o poder soberano; o monárquico, aquele em que uma só pessoa governa, mas por meio de leis fixas e estabelecidas; enquanto, no despótico, uma só pessoa, sem lei e sem regra, tudo conduz, por sua vontade e por seus caprichos. Eis que denomino a natureza de cada governo. É preciso que se examine quais as leis que decorrem diretamente dessa natureza que, consequentemente, são as primeiras leis fundamentais". (Livro II. Capitulo I).


República
Montesquieu divide a análise do governo republicano em uma democracia e uma aristocracia.

"Quanto, na república, o povo todo detém o poder soberano isso é uma democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, isto se chama aristocracia". (Livro II. Capitulo II).

Seja numa democracia ou numa aristocracia uma das leis que fundamentam o governo republicano é o direito ao sufrágio, algo que fora difundido tanto pelos lideres da Revolução Americana a qual levou a fundação da primeira república moderna, como os lideres da Revolução Francesa que levou a formulação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e em outras séries de revoluções e movimentos de independência. Neste governo o direito ao voto é essencial para se conceder a possibilidade que em teoria cada individuo que viva numa sociedade sob este tipo de governo tenha o direito a declarar sua opinião sobre a política do Estado.

"A lei que fixa o modo de fornecer as cédulas de sufrágio, também é uma lei fundamental na democracia. Questão importante é se os sufrágios devem ser públicos ou secretos". (Livro II. Capítulo II).

Sobre isso, Montesquieu esboça uma visão um tanto interessante.

"Não há dúvida que, quando o povo dá seus sufrágios, estes devem ser públicos; e isso deve ser encarado como uma lei fundamental da democracia". (Livro II. Capitulo II).

"Porém, quando, numa democracia, o corpo dos nobres dá seu sufrágio, ou numa democracia, o senado o faz, como aí não se trata senão de prevenir as maquinações, os sufrágios deveriam ser o mais secreto possível. A maquinação é perigosa num senado; é perigosa num corpo de nobres; mas não o é no seio do povo, cuja natureza é agir por paixão". (Livro II. Capitulo II).

Sobre esta ideia de paixão, mais a frente voltarei a falar por que desta concepção.

Montesquieu faz uma comparação com a monarquia, nesta o soberano detêm o direito sobre o governo e o povo, no entanto este direito como aponta o autor pode ser dividido em dois casos: Se a monarquia for absolutista, apenas o soberano terá direito "quase absoluto". No segundo caso, se a monarquia for constitucionalista ou parlamentarista, o poder do soberano será dividido com o parlamento (caso da Inglaterra), e o parlamento representará uma espécie de "aristocracia" que representa o direito ao sufrágio. Neste caso, devemos pensar que o parlamento vota pelas mudanças políticas, independente da aprovação consensual do monarca ou não, já que pela constituição o monarca concedeu ao parlamento este direito.

No caso da Rússia e do Brasil, não seguiram o mesmo caso propriamente dos ingleses. Na Rússia do governo do último czar, Nicolau II já no começo do século XX, o czar em duas ocasiões fechou o parlamento (em russo Duma). No Brasil, tanto os imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, detinham pela constituição o direito ao chamado poder moderador, que lhe concedia entre tantas coisas, o direito de fechar o parlamento, algo que D. Pedro I fez em 1824.

Por hora, retomando a questão da formação de uma república, Montesquieu esboça alguns fatores que devem ser seguidos a fim de que esta forma de governo se perpetue ordenadamente e justa. Neste caso, o autor aponta que um Estado que escolha o governo republicano, este deve ser um Estado de porte pequeno ou mediano, deve-se haver uma divisão das classes sociais, a fim que torne mais fácil enumerar o número de cidadãos no caso se for uma democracia a fim de se realizar o direito ao sufrágio, ou se for uma aristocracia facilitar a escolha dos cidadãos que a compuseram. Neste caso, Montesquieu nos lembra dois fatos interessantes, primeiro em Atenas, a Lei de Aristides, deveria eleger os magistrados entre todas as classes, por meio de sorteio. No caso de Roma, o Senado dividiu a cidade em quatro tribos, e seus territórios em trinta e um, totalizando trinta e cinco tribos. Não obstante, outra importante divisão dizia respeito aos militares, os quais eram divididos em 193 centúrias, sendo que a maioria destas centúrias era liderada por patrícios. Assim, o fato de Montesquieu se referir ao período da República Romana (506-27 a.C) como não tendo sido um governo democrático, mas sim um governo aristocrático. Por mais que os plebeus tenham conseguido o direito a eleger os tribunos da plebe, seus representantes oficiais, o direito de que um dos dois cônsules fosse plebeu e dentre outros direitos assegurados por leis, o Senado era composto por membros vitalícios, e todos de origem patrícia. No fim, o Senado era quem realmente mandava em Roma.

"Na aristocracia, o poder soberano está nas mãos de certo número de pessoas. São as que fazem as leis e que as fazem executar; o resto do povo está em face destas pessoas como os súditos estão em face do monarca em uma monarquia. Não se deve aí, de modo algum, dar o sufrágio por sorteio; nisso só haveria inconvenientes". (Livro II. Capitulo III).
Mas após estes breves exemplos, podemos comparar-los com as duas condições sugeridas por Montesquieu anteriormente. É que uma república deve ser pequena ou mediana e que se deve haver uma divisão de classes, sendo assim, Atenas mesmo em seu auge quando contou com algo em torno de 100 a 200 mil habitantes (apenas cerca de 30 a 40 mil eram cidadãos) ele se mostrou como uma democracia nos preceitos já mencionados que indicariam um bom governo (no entanto mais a frente o autor indicará outra condição para que este governo seja bem sucedido), quanto a Roma, esta se apresentaria como uma aristocracia, mas pelas proporções que alcançara no século I a.C, tendo terras desde a Espanha a Turquia, como uma população subjugada de cerca de 4 milhões de indivíduos, Roma havia se tornado grande de mais para ser uma república. Como proposto por Montesquieu, seu tamanho fora um dos fatores na opinião do autor que levou a sua eminente crise que começou no século III a.C e fora se agravando nos dois séculos seguintes até culminar na ascensão de Otávio como imperador.

Porém não fora apenas o tamanho que pusera Roma em risco, mas sim sua desvirtuação. Montesquieu esboça uma teoria na qual cada um dos três tipos de governo citados no inicio devem ter como base um principio que lhe conceda uma virtude necessária para que este governo se mantenha. Sobre esta ideia de principio, de natureza ele diz o seguinte:

"A diferença que existe entre a natureza do governo e seu principio é que a natureza é aquilo que o faz ser como é, e seu principio, o que o faz atuar. Aquela é a estrutura particular, esta, as paixões humanas que o põem em movimento. Ora, as leis não devem ser menos relativas ao princípio do que à natureza de cada governo. Portanto, é preciso buscar qual é esse principio. É o que vou fazer neste livro". (Livro III. Capitulo I).

Sendo assim, já vimos que a natureza de uma república, seja uma democracia ou aristocracia se fundamenta de acordo com Montesquieu no número de indivíduos que a compõem, no número de cidadãos, na divisão social, no sufrágio, na organização das assembleias representativas. Neste caso, o principio atribuído a este tipo de governo seria a virtude, mas não qualquer tipo de virtude, mas sim o amor pela pátria. Montesquieu diz que numa república, onde os homens procuraram ser iguais (neste caso ele refere-se à igualdade garantida pelas leis, e não uma igualdade de classes), para que o Estado se mantenha em ordem, de forma justa, deve-se ter um amor pela pátria e pelo próximo, já que estes são cidadãos de uma mesma nação. Pensemos em algo como fraternidade e caridade, fatores estes que formariam a virtude dita pelo autor em referência ao governo republicano. Com isso, se tais preceitos existirem o Estado serão benigno, entretanto como o autor aponta, se a virtude desaparecer, neste caso se o amor a pátria desaparecer, se as leis não forem iguais para todos, se não houver frugalidade (se contentar com pouco e evitar excessos), fraternidade, a república se tornará corrupta.

"A virtude, numa república, é uma coisa muito simples: é o amor pela república; é um sentimento e não uma série de conhecimentos; tanto o último dos homens do Estado quanto o primeiro deles ter esse sentimento. [...]. O amor à pátria leva à bondade dos costumes, e a bondade dos costumes, ao amor à pátria". (Livro V. Capitulo II).

"O amor à uma democracia é, ainda, o amor à frugalidade. Como nela, cada um deve ter a mesma felicidade e os mesmos benefícios, desfrutar dos mesmos prazeres e construir as mesmas esperanças, isso só se pode atingir pela frugalidade geral". (Livro V. Capitulo III).

A República Romana entrou em decadência, porque o Senado perdeu a virtude de amor a pátria, o Senado se tornou egoísta, e logo se tornou corrupto, e da corrupção uma série de crimes e problemas se iniciaram, degenerando todo o Estado.

"Quando Sila quis devolver a Roma a liberdade, ela não pôde mais recebê-la; já não possuía senão um frágil resto de virtude, e, como tivesse cada vez menos, em lugar de despertar após César, Tibério, Caio, Cláudio, Nero, Dominiciano, foi cada vez mais escrava; todos os golpes foram dados contra os tiranos, nenhum contra a tirania". (Livro III. Capitulo II).

"São duas as principais fontes de desordens nos Estados aristocráticos: a desigualdade extrema entre os que governam e os que são governados; e idêntica desigualdade entre os diferentes membros do corpo que governa. Dessas duas desigualdades resultam os ódios e os ciúmes que as leis devem evitar ou fazer cessar", (Livro V. Capitulo VIII).

Se não houver moderação na estrutura republicana, já que neste governo pretende tornar os homens "iguais", uns irão abusar das leis, e quererão ser desiguais, ou seja, sem frugalidade, logo os lideres se tornarão superiores aos demais, e a virtude se perderá.

Monarquia
Quando Montesquieu escreveu este livro, a França ainda vivia sob o governo absolutista de Luís XV (1715-1774) no Antigo Regime, no entanto a ideia de monarquia aqui retratada pelo autor condiz em respeito à monarquia parlamentarista, tendo como principal referência a Inglaterra. Neste modelo de monarquia, haveria o soberano, porém suas ações seriam limitadas pelo parlamento, sendo assim, na concepção de Montesquieu a monarquia parlamentarista seria a melhor forma de governo, algo que espero que fique claro mais adiante quando eu esboçar as justificativas do autor.

"Não basta que haja, numa monarquia, postos intermediários; é preciso ainda haver um depósito de leis. Esse depósito só pode estar nos corpos dos políticos, que proclamam as leis quando são feitas, e a relembram, quando esquecidas. A ignorância natural da nobreza, sua desatenção, seu menosprezo pelo governo civil exigem que haja corpo que, incessantemente, faça as leis saírem da poeira que estariam envoltas". (Livro II. Capitulo IV).

Se na república sua natureza visava um pequeno estado estratificado socialmente, detentor ao direito do sufrágio universal, e que seu principio era a virtude, na monarquia o principio será a honra.

"É da natureza da honra exigir preferências e distinções; por isso mesmo, ela tem lugar neste governo". (Livro III. Capitulo VIII).

O que legitima a família real e a hereditariedade do trono numa monarquia seria o principio da honra, como põe o autor. Os nobres possuem uma conduta, uma etiqueta e um zelo pela honra, bem mais meticulosos do que o resto da sociedade, e para Montesquieu é neste principio que legitima os reis a governarem. Mas, uma questão fica em mente, se a honra permite os soberanos governarem o seu povo, porque a virtude de uma república não poderia coexistir neste tipo de governo? Será que os tidos reis não seriam capazes de serem benevolentes com seu povo, como haveria de ser numa república? Sobre tais questões o autor responde que:

"O Estado subsiste independente do amor pela pátria, do desejo de verdadeira glória, da renúncia a si mesmo, do sacrifício de seus mais caros interesses, e de todas essas virtudes heróicas que encontramos nos antigos, e de apenas ouvimos falar. As leis tomam o lugar de todas essas virtudes, de que não se tem necessidade alguma; o Estado delas vos dispensa: uma ação que se faz sem ruído de certo modo não tem consequências". (Livro III. Capitulo V).

Sendo assim, podemos notar que na concepção do autor, as "virtudes" que formariam uma república, seria substituídas pelas leis de uma monarquia parlamentarista, neste caso, Montesquieu aponta que sua divisão dos três poderes, era bem mais viável neste tipo de governo do que numa república, pelo fato de que naquele tipo de governo não existiria o valor da honra que aqui ele menciona, não haveria certo "respeito pela hierarquia".

Mas, voltando à questão da monarquia, os três poderes se dividiriam da seguinte maneira: Ao soberano caberia o executivo, ao parlamento o judiciário, e ao povo o legislativo (deve-se lembrar que o parlamento é o representante do povo). Assim, em caso de haver desvirtuação da honra entre o soberano, seria mais fácil nos dizeres do autor de se derrubar o rei e eleger outro, do que se mudar um senado ou uma assembleia. Em outras palavras, é mais fácil se culpar um homem do que muitos.

"Ora, nas repúblicas, os crimes privados são mais públicos, isto é, atingem mais à constituição do Estado do que aos particulares; e nas monarquias, os crimes públicos são mais privados, isto é, atingem mais as fortunas particulares do que a constituição mesma do Estado". (Livro III. Capitulo V).

"Assim, nas monarquias bem regulamentadas, todo o mundo será mais ou menos bem cidadão, e raramente se encontrará alguém que seja homem de bem; pois, para ser homem de bem, é preciso ter a intenção de sê-lo, e amar o Estado menos por si mesmo do que por ele próprio". (Livro III. Capitulo VI).

Na monarquia o papel das leis diferente da república democrática que visa viabilizar direitos "iguais" a todos os homens, de forma frugal, para que o Estado não se corrompa. Na monarquia as leis devem legitimar o governo do soberano e sua função, organizar o parlamento de forma que este haja realmente como representante do povo, mas acima de tudo que tanto o soberano como o parlamento trabalhem para o povo (sobre isso, Rousseau possui umas ideias que vão bem mais longe).

"Sendo a honra o principio deste governo, as leis devem relacionar-se com ela. É preciso que estas laborem para sustentar essa nobreza, de qual a honra é, por assim dizer, a filha e a mãe. É preciso que elas a tornem hereditária, não para a baliza entre o poder do príncipe e a fraqueza do povo, mas o ele entre ambos. As substituições, que conservam as propriedades dentro das famílias, serão muito úteis neste governo, ainda que não convenham aos outros". (Livro V. Capitulo IX).

Um fato curioso diz respeito que na história inglesa, só houve um momento na qual a Inglaterra vivenciou em parte um governo republicano, isso ocorreu no século XVII, quando o rei Carlos I decide impor sua autoridade sobre o parlamento, algo que levou ao fechamento deste e depois sua reabertura, neste meio tempo o governo do rei fora considerado tirânico, e uma guerra civil eclodiu no país, a qual levou a condenação do rei por crime de autotraição e sua execução, porém a revolta foram mais longe, e acabou efetuando um golpe de Estado que implantou uma "república", a chamada República da Inglaterra (Commonwealth of England). A malfada república ao invés de recuperar o país da crise política que este vivenciou no último governo se mostrou mais como uma ditadura militar, do que uma democracia. A república perdurou de 1653-1659, governada por Oliver Cromwell (1599-1658) e seu filho e Richard Cromwell. O péssimo governo gerado nestes últimos anos levou eventualmente em 1660 quando ocorreu uma nova convocação do parlamento, a optar pelo retorno a monarquia, a qual retornou sob o governo de Carlos II. Richard não mediu esforços para se opor a tal decisão. Os ingleses tiveram uma péssima experiência de um governo republicano, e por fim a monarquia tal aplaudida por Montesquieu e pelos próprios britânicos, ainda perdura nos dias de hoje.

Despotismo

No caso da Inglaterra o rei despótico, fora destronado e substituído por uma "república", mas em outros casos, bons reis foram substituídos por tiranos ou déspotas. E por fim esta é a última forma de governo descrita por Montesquieu, a qual representa a pior forma de governo que talvez possa exigir, pior no sentido de ser autoritária e cruel contra os direitos e a liberdade do povo.

"Um homem, a quem os cinco sentidos dizem sem cessar que ele é tudo e que os outros, nada, é naturalmente preguiçoso, ignorante e voluptuoso. Abandona, pois, os negócios públicos". (Livro II. Capitulo V).

Num governo despótico, Montesquieu diz que a virtude e a honra são subjugadas, pelo princípio do temor ou medo. Quando um homem se torna um déspota, ele perdeu a virtude pelo seu Estado e povo, e ao mesmo tempo a honra que equilibrava sua relação com o seu governo e seu povo, assim para se manter no poder, o déspota deve-se valer do uso da força para controlar seus súditos.

"Pessoas suficientes seguras de si teriam condições de fazer revoluções. É preciso, pois, que o temor deite por terra todas as coragens e aniquile até mesmo o menor sentimento de ambição". (Livro III. Capitulo IX).

Mas se o Estado déspota deixar de exercer medo sobre seu povo, o soberano se virá diante de uma eminente revolução.

"Mas quando, no governo despótico, o príncipe cessa por um momento de erguer o braço; quando não pode aniquilar de imediato os que detêm os primeiros postos, tudo está perdido: pois não havendo mais a mola do governo, que é o temor, o povo já não terá protetor". (Livro III. Capitulo IX).

Montesquieu aponta uma singela diferença entre a monarquia e o despotismo, dizendo que ambos os governos o soberano é o representante do Estado, porém, na monarquia que impera um governo moderado o poder do soberano é moderado e limitado pelo parlamento, no despotismo o parlamento não existe, assim a balança sempre penderá para o soberano e suas decisões.

"O governo despótico tem o temor como principio: mas a povos temerosos, ignorantes e abatidos não há necessidade de muitas leis". (Livro V, Capitulo XIV).

Outro fator que Montesquieu aponta nos Estados despóticos e a influência da religião como meio de se controlar as massas com a difusão de uma ideologia.

"Nestes Estados, a religião tem mais influência do que em qualquer outro; ela é um temor acrescido ao temor. Nos impérios maometanos, é da religião que os povos extraem em parte o espantoso respeito que têm por seu príncipe". (Livro V. Capitulo XIV).

Por fim, uma última questão apontada pelo autor sobre este governo é que ironicamente, Montesquieu diz que a maioria dos Estados do mundo vivem sob o governo de déspotas, de ditaduras. Se pensarmos bem, no dias de hoje, cerca de um pouco mais de um bilhão de pessoas vivem em "democracias", outros tantos em monarquias parlamentaristas e o restante em governos ditatoriais.

"Porém, apesar do amor dos homens pela liberdade, apesar de seu ódio contra a violência, a maior parte está submetida a eles. É fácil compreendê-lo. Para constituir um governo moderado, é preciso combinar poderes, regulamentá-los, temperá-los, fazê-los atuar; por assim dizer, lastrear um deles, para pô-lo em condições de resistir a outro; é uma obra prima de legislação, que raramente se faz por acaso, e que raramente se permite que a prudência faça. Um governo despótico, ao contrário, por assim dizer, salta aos olhos; é uniforme em toda parte: como só são necessárias paixões para instituí-lo, todo o mundo é bom para isso". (Livro V. Capítulo XIV).

As citações do Espirito das Leis foram retiradas do livro Os clássico da politica - volume I.

Referências Bibliográficas:
WEFFORT, Francisco, C. (organizador). Os clássicos da politica - volume I. 13 ed, São Paulo, Ática, 2000.Grande Enciclopédia Laurosse Cultural, v. 17, São Paulo, Nova Cultural, 1998.