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Leandro Vilar

terça-feira, 18 de junho de 2013

Raça e Cultura

Essa postagem consiste em cinco capítulos do livro Raça e História do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), publicado pela UNESCO em 1952. Lévi-Strauss teve como base para escrever este livro, algumas de suas viagens pelo mundo, dentre elas o período que viveu, trabalhou e viajou pelo Brasil nos anos 30, onde fora professor de Sociologia na Universidade de São Paulo

1. Raça e Cultura

Falar da contribuição das raças para a civilização mundial poderia assumir um aspecto surpreendente em uma coleção de textos destinados a lutar contra o preconceito racial. Teria sido inútil consagrar tanto tempo e esforço para demonstrar que, no estado atual das ciências, nada permite afirmar a superioridade ou a inferioridade intelectual de uma raça em relação a outra, para depois restituir a importância da noção de raça, demonstrando que os grandes grupos étnicos trouxeram, enquanto tais, contribuições específicas para o patrimônio comum da humanidade.

Nada mais longe do nosso objetivo, o que apenas conduziria a formulação da doutrina racista ao contrário. Quando procuramos caracterizar as raças biológicas mediante propriedades psicológicas particulares, afastamo-nos da ciência, quer essa relação seja feita de maneira positiva ou negativa. Não devemos esquecer que Gobineau (2), para quem a história haveria de guardar o lugar de pai das teorias racistas, não concebia a pretensa "desigualdade das raças humanas" de uma maneira quantitativa mas sim qualitativa. Para ele, as grandes raças primitivas que formavam a humanidade nos seus primórdios – branca, amarela, negra – não eram só desiguais em valor absoluto, mas também diversas nas suas aptidões particulares.

O efeito negativo da degenerescência estava, segundo ele, mais ligado ao fenômeno da mestiçagem do que a posição de cada uma delas numa escala de valores comum; e destinada, portanto, a atingir a humanidade inteira, condenada ao processo crescente de miscigenação(3). Mas o pecado original da antropologia consiste na confusão entre a noção puramente biológica da raça (supondo, por outro lado, que mesmo neste campo limitado esta noção possa ter qualquer objetividade, o que é contestado pela genética) e as produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas. Bastou Gobineau ter cometido este pecado para ficar preso ao círculo infernal que conduz de um erro intelectual, não necessariamente de má-fé, à legitimação involuntária de todas as tentativas de discriminação e de exploração.

Por outro lado quando falamos de contribuição das raças humanas para a civilização não queremos dizer que as manifestações culturais da Ásia ou da Europa, da África ou da América, extraiam sua originalidade do fato destes continentes serem, na sua maioria, povoados por habitantes de troncos raciais diferentes. Se a originalidade da sua contribuição existe – e não há dúvidas sobre isso – ela está mais relacionada com circunstâncias geográficas, históricas e sociológicas do que com aptidões distintas ligadas a constituição anatômica ou fisiológica de negros, amarelos ou brancos.

Mas não se pode deixar para segundo plano um aspecto igualmente importante da história: esta não se desenvolve uniformemente, mas através dos extraordinariamente diversos modos de sociedades e civilizações. Esta diversidade intelectual, estética e antropológica não está ligada por nenhuma relação de causa e efeito àquela que existe no plano biológico entre determinados aspectos observáveis dos grupos humanos – apenas correm paralelas, mas em terrenos diferentes. E ao mesmo tempo distingue-se dela por dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, a diversidade sociológica situa-se numa outra ordem de grandeza: existem muito mais culturas humanas do que raças(4).

Enquanto as culturas podem ser contadas aos milhares, as raças contam-se pelas unidades; por outro lado duas culturas pertencentes a uma mesma raça podem diferir tanto ou mais que duas culturas provenientes de grupos raciais diferentes. Em segundo lugar, ao contrário da diversidade entre as raças, que apresentam como principal interesse a sua origem histórica e a sua distribuição no espaço, a diversidade entre as culturas coloca uma série de problemas.

Por fim e sobretudo devemos perguntar em que consiste esta diversidade, com o risco de ver os preconceitos raciais apenas arrancados da sua base biológica para voltarem em novo campo. Seria inútil conseguir que o homem comum(5) deixe de atribuir um significado intelectual ou moral ao fato de alguém ter a pele negra ou branca, ou o cabelo liso ou crespo, para permanecer em silêncio face a uma outra questão. Se não existem aptidões raciais inatas, como explicar que a civilização desenvolvida pelo homem branco tenha feito os imensos progressos que conhecemos, enquanto as outras permanecem atrasadas, umas a meio do caminho, e outras submetidas a um atraso de milhares ou dezenas de milhares de anos?(6)

Não podemos, portanto, pretender resolver negativamente o problema da desigualdade racial se não nos debruçarmos também sobre o da desigualdade – ou melhor, da diversidade – das culturas humanas, que o público em geral relaciona com a racial.

2. Diversidade das culturas

Para compreender como, e em que medida, as culturas humanas diferem entre si, devemos, em primeiro lugar, catalogá-las. Mas é aqui que começam as dificuldades, porque as culturas humanas não diferem entre si do mesmo modo, nem no mesmo plano. Estamos, primeiro, diante de sociedades justapostas no espaço, umas ao lado das outras, umas próximas, outras mais afastadas, mas contemporâneas, compartilhando o mesmo tempo cronológico.

Depois, devemos levar em conta as formas de vida social que se sucederam no passado e que não podemos conhecer por experiência direta. Qualquer homem pode se transformar em etnógrafo e ir partilhar a existência de uma sociedade que o interesse; mas, mesmo que se transforme em historiador ou arqueólogo, nunca poderia entrar em contato direto com uma civilização desaparecida; só poderia ter um acesso indireto, através dos documentos escritos a seu respeito, ou dos objetos, ferramentas, obras de arte e outros registros que esta sociedade porventura tiver deixado(7).

Enfim, não devemos esquecer que mesmo as sociedades contemporâneas que continuam a ignorar a escrita, aquelas a que chamamos de “selvagens” ou “primitivas”, foram, também elas, precedidas por outras formas, cujo conhecimento é praticamente impossível, mesmo de maneira indireta; um catálogo cuidadoso, portanto, deveria reservar um número de itens em branco infinitamente maior do que aqueles em que somos capazes de escrever qualquer coisa. Impõem-se uma primeira constatação: a diversidade das culturas é no presente, e também foi no passado, muito maior e mais rica que tudo o que pudermos dela conhecer.

Mas, mesmo se tomados por um sentimento de humildade e convencidos desta limitação, encontraremos outros problemas. Que devemos entender por culturas diferentes? Algumas assim parecem, mas quando fazem parte de um tronco comum, não diferem da mesma forma que duas sociedades que em nenhum momento mantiveram relações. Assim, o antigo Império Inca do Peru, e o Daomé na África, diferem entre si de maneira mais absoluta do que, por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos de hoje, se bem que estas duas sociedades também devam ser tratadas como sociedades distintas.

Inversamente, sociedades que estabeleceram contato recentemente parecem oferecer a imagem de uma mesma civilização, ainda que tenham seguido caminhos diferentes. Operam simultaneamente, nas sociedades humanas, forças que atuam em direções opostas, umas tendendo para a manutenção, e mesmo para a acentuação dos particularismos, outras agindo no sentido da convergência e da afinidade. O estudo da linguagem oferece exemplos surpreendentes de tais fenômenos.

Assim, ao mesmo tempo que as línguas de uma mesma raiz apresentam tendências para se diferenciar umas das outras (tais como o russo, o francês e o inglês(8)), línguas de origens diversas, mas faladas por povos que vivem próximos, desenvolvem características comuns; por exemplo, o russo diferenciou-se, sob determinados aspectos, de outras línguas eslavas para se aproximar, pelo menos por determinados traços fonéticos, das línguas urálicas e turcas faladas na sua vizinhança geográfica.

Quando estudamos tais fatos – e poderíamos achar exemplos similares em outros domínios, tais como instituições sociais, arte, religião – acabamos por perguntar se as sociedades humanas não se definem, face as suas relações mútuas, por um determinado grau ótimo de diversidade para além do qual elas não poderiam ir, mas abaixo do qual também não podem ficar. Este grau ótimo de diversidade variaria em função do número das sociedades, do seu tamanho demográfico, do seu afastamento geográfico, e dos meios de comunicação (materiais e intelectuais) de que dispõem.

Com efeito, o problema da diversidade não se põe apenas a nível das relações entre sociedades diferentes, como também dentro de cada sociedade em particular, entre os grupos que na constituem: classes sociais, categorias profissionais, grupos religiosos, e assim por diante; cada grupo atribui uma extrema importância a essas diferenças que os distinguem uns dos outros.

Podemos perguntar se esta diversificação interna não tende a aumentar quando a população cresce, ou por outro lado, quando se torna mais homogênea; esse talvez tenha sido o caso da Índia antiga, com o aparecimento de um sistema de castas após o estabelecimento da hegemonia ariana(9).

Vemos, portanto, que a noção da diversidade das culturas humanas não deve ser concebida de uma maneira estática, como a que encontramos em um catálogo de amostras dissecadas. É indubitável que os homens elaboram culturas diferentes em função do afastamento geográfico, das propriedades particulares do seu meio, e do maior ou menor grau de isolamento em relação ao resto da humanidade; mas isso só seria rigorosamente verdadeiro se cada cultura ou cada sociedade não tivesse nenhuma ligação com as demais, se tivessem se desenvolvido isoladas umas das outras. Ora, isso nunca aconteceu, salvo talvez em casos excepcionais como o dos aborígenes tasmanianos (e mesmo assim, apenas por um período limitado de tempo).

As sociedades humanas nunca se encontram isoladas; quanto mais separadas parecem, ainda é sob a forma de grupos ou de agrupamentos que vamos encontrá-las. Assim, não é exagero supor que as culturas norte-americanas e as sul-americanas tenham permanecido separadas de todo contato com o resto do mundo durante um período cuja duração se situa entre 10 e 25 mil anos. Mas este enorme fragmento por tanto tempo separado da humanidade, consistia, na verdade, numa multidão de sociedades, grandes e pequenas, que mantinham entre si contatos estreitos.

E a par com as diferenças devidas ao isolamento, existem aquelas, também importantes, devidas a proximidade: do desejo de oposição, de se distinguir, de serem elas próprias. Muitos costumes nascem não de qualquer necessidade interna ou acidente favorável, mas apenas da vontade de não ficar para trás em relação a um grupo vizinho que submeteu a determinadas regras um domínio da vida social sobre a qual o primeiro nunca havia pensado instituir normas. Portanto, a diversidade das culturas humanas não deve induzir a uma observação fragmentária ou fragmentada. Ela é menos função do isolamento dos grupos, do que das relações entre eles.

3. O etnocentrismo

A atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos sólidos, pois tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos. “Costumes selvagens”, “isso não é nosso”, “não deveríamos permitir isso”: são expressões que fazem parte de um sem-número de reações grosseiras que traduzem este mesmo calafrio, esta mesma repulsa, em presença de maneiras de viver, de crer ou de pensar que nos são estranhas.

Deste modo, a Antiguidade designava tudo o que não participava da cultura grega, (depois greco-romana) com o nome de bárbaro; em seguida, a civilização ocidental utilizou o termo selvagem no mesmo sentido. Ora, por detrás destes termos dissimula-se um mesmo juízo: é provável que a palavra bárbaro tenha origem etimológica na confusão e desarticulação do canto das aves em oposição ao valor significante da linguagem humana(10); e selvagem, que significa “da floresta”, evoca também um gênero de vida animal, por oposição a cultura humana. Recusa-se, tanto num como no outro caso, a admitir o próprio fato da diversidade cultural, preferimos jogar para fora da cultura tudo o que não esteja de acordo com as normas sociais existentes.

E, no entanto, parece que a diversidade das culturas raramente apareceu aos homens tal como é: um fenômeno natural, resultante das relações diretas ou indiretas entre as sociedades; sempre se viu nela, pelo contrário, uma espécie de monstruosidade ou de escândalo; em termos de diversidade cultural, o progresso do conhecimento não consistiu tanto em dissipar esta ilusão em proveito de uma visão mais exata, mas em aceitá-la, ou em encontrar um meio de a ela se resignar.

Este ponto de vista ingênuo, mas profundamente enraizado na maioria dos homens, não necessita ser discutido uma vez que a coletânea de textos do qual este faz parte é precisamente a sua refutação. Bastará observar aqui que ele encobre um paradoxo bastante significativo. Esta atitude do pensamento, em nome da qual se colocam os “selvagens” (ou todos aqueles que escolhemos considerar como tais) para fora da humanidade, é justamente a atitude mais marcante e a mais distintiva destes mesmos selvagens. Sabemos, na verdade, que a noção de humanidade, englobando, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana, teve um aparecimento muito tardio e uma expansão limitada(11). Mesmo onde ela parece ter atingido o seu mais alto grau de desenvolvimento, não existe qualquer certeza, tal como a história recente o prova, de estar estabelecida ao abrigo de equívocos ou de regressões(12).

Mas, para vastas parcelas da espécie humana, e durante dezenas de milênios, esta noção parece estar totalmente ausente. A humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, por vezes mesmo, da aldeia; a tal ponto que um grande número de populações ditas primitivas se designam por um nome que significa os “homens” (ou, por vezes, com menos discrição, os “bons”, os “excelentes”, os “perfeitos”), implicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias, não participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando muito, compostos por “maus”, “perversos”, “macacos de terra”, ou “ovos de piolho”(13).

Chegando-se mesmo, na maior parte das vezes, a privar o estrangeiro do ultimo grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”. Assim acontecem curiosas situações onde os interlocutores tem atitudes simétricas. No Caribe, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os indígenas possuíam ou não alma, estes dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificar se o cadáver estava sujeito a putrefação... Esta anedota, simultaneamente barroca(14) e trágica, ilustra bem o paradoxo do relativismo cultural que vamos encontrar mais adiante revestido de outras formas: é na própria medida em que pretendemos estabelecer uma discriminação entre as culturas e os costumes que nos identificamos mais completamente com aqueles que tentamos negar. Recusando a humanidade àqueles que identificamos como “selvagens” ou “bárbaros”, não fazemos mais que copiar-lhes as suas atitudes. O bárbaro é, antes de mais nada, o homem que crê na barbárie.

É verdade que os grandes sistemas filosóficos e religiosos da humanidade, sejam eles o budismo, o cristianismo ou o islamismo; as doutrinas estoica, kantiana ou marxista, se insurgiram constantemente contra esta aberração. Mas a simples proclamação da igualdade natural entre todos os homens, e da fraternidade que os deve unir, sem distinção de raça ou cultura, tem qualquer coisa de enganador para o intelecto, porque negligencia uma diversidade de fato, que se impõe à observação, e em relação a qual não basta dizer que não vai ao âmago do problema, para fingir que não existe. O que convence o homem comum da existência das raças, como reconhece a declaração da Unesco sobre a questão das raças(15), é “a evidência imediata dos seus sentidos, quando vê juntos um africano, um europeu, um asiático e um índio americano”.

As grandes declarações dos direitos do homem tem, também elas, esta força e esta fraqueza de, ao enunciar um ideal grandioso, esquecer que o homem não realiza a sua natureza numa humanidade abstrata, mas nas culturas tradicionais onde mesmo as mudanças mais revolucionárias deixam intactos enormes setores da vida em sociedade(16); essas declarações se explicam também em função de uma situação bem definida no tempo e no espaço.

Preso entre a dupla tentação de condenar experiências que o chocam afetivamente e de negar as diferenças que ele não compreende intelectualmente, o homem moderno entregou-se a toda a espécie de especulações filosóficas e sociológicas para estabelecer vãos compromissos entre estes polos contraditórios; e para perceber a diversidade das culturas procurando suprimir o que ela contem, para ele, de escandaloso e de chocante.

Mas, por mais diferentes e, por vezes, bizarras que possam ser, todas estas especulações se reduzem a uma mesma receita, de que o termo falso evolucionismo é, sem duvida, o mais adequado para caracterizar. Em que consiste ela? Trata-se de uma tentativa para suprimir a diversidade das culturas fingindo conhecê-las completamente. Por que, se tratarmos os diferentes estados em que se encontram as sociedades humanas, tanto antigas como longínquas, como estados ou etapas de um desenvolvimento único que, partindo do mesmo ponto, deve convergir para o mesmo fim, deduzimos que a diversidade é apenas aparente.

A humanidade torna-se una e idêntica a si mesma, só que esta unidade e esta identidade não se realizam senão progressivamente, e a variedade das culturas ilustra os momentos de um processo que dissimula uma realidade mais profunda, ou retarda a sua manifestação.

Esta definição pode parecer sumária quando temos presentes as imensas conquistas do darwinismo(17). Mas não é o darwinismo que está em causa, porque evolucionismo biológico e o pseudo-evolucionismo que aqui tratamos são duas coisas muito diferentes. A primeira nasceu como uma vasta hipótese de trabalho, baseada em observações em que havia pouca necessidade de interpretação. Os vários tipos que constituem a genealogia do cavalo podem ser ordenados numa série evolutiva por duas razões; primeiro, é necessário um cavalo para engendrar outro cavalo; segundo, as camadas de terreno sobrepostas historicamente contém esqueletos que variam gradualmente desde a forma mais arcaica até a mais recente. Torna-se assim altamente provável que o Hipparion seja o verdadeiro antepassado do Equus caballus. O mesmo raciocínio provavelmente pode ser aplicado a espécie humana e às raças que a constituem.

Mas quando passamos dos fatos biológicos para os fatos culturais as coisas complicam-se de uma maneira singular. Podemos recolher em sítios arqueológicos objetos materiais e constatar que a forma ou a técnica de produzir um determinado objeto varia progressivamente de acordo com a profundidade das camadas geológicas. E, no entanto, um machado não dá fisicamente origem a outro machado, tal como acontece com o animal. Dizer que um machado evoluiu a partir de um outro é apenas uma metáfora, desprovida do rigor cientifico da expressão quando aplicada aos fenômenos biológicos.

O que é verdadeiro para os objetos materiais, é ainda mais para as instituições, as crenças, os gostos, cujo passado geralmente desconhecemos. A noção de evolução biológica é uma hipótese das mais prováveis nas ciências naturais, enquanto a noção de evolução social ou cultural não constitui, quando muito, um processo algo sedutor, mas perigosamente cômodo, de apresentar os fatos.

Aliás, esta diferença, a maior parte das vezes negligenciada, entre o verdadeiro e o falso evolucionismo, explica-se pelas suas respectivas épocas de aparecimento. O evolucionismo sociológico recebeu um vigoroso impulso do evolucionismo biológico, mas é anterior a ele. Sem remontar às concepções da Antiguidade, retomadas por Pascal, comparando a humanidade a um ser vivo que passa por fases sucessivas da infância, da adolescência e da maturidade, foi no século XVIII que assistimos ao florescimento dos esquemas fundamentais que viriam a ser depois objeto de tantas manipulações: as “espirais” de Vico, as suas “três idades”, já anunciando os “três estados” de Comte, a “escada” de Condorcet.

Os dois fundadores do evolucionismo social, Spencer e Tylor, elaboraram e publicaram a sua doutrina antes do aparecimento da Origem das espécies, ou sem a ter lido. Anterior ao evolucionismo biológico, teoria cientifica, o evolucionismo social não é, na maior parte das vezes, senão a maquiagem falsamente científica de um velho problema filosófico para o qual não há qualquer certeza de solução através da observação e da indução.

4. Culturas arcaicas e culturas primitivas

Sugerimos que qualquer sociedade pode, segundo o seu próprio ponto de vista, dividir as culturas em três categorias: as que são suas contemporâneas, mas situadas em outro lugar do globo, as que se manifestaram aproximadamente no mesmo lugar, mas que a precederam no tempo e, finalmente, as que existiram num tempo anterior e num lugar diferente.

Vimos que estes três grupos podem ser conhecidos de forma desigual. No último caso e quando se trata de culturas sem escrita, sem ter deixado algum tipo de construção, e com técnicas rudimentares (e que são a enorme maioria), nada podemos saber sobre elas, e tudo o que tentamos saber a seu respeito não passam de hipóteses. Por outro lado, é extremamente tentador procurar estabelecer, entre as diversas culturas do primeiro grupo, relações que correspondem a uma ordem de sucessão no tempo. Como é que sociedades contemporâneas, que continuam a ignorar a eletricidade e a máquina a vapor, não evocariam a fase correspondente do desenvolvimento da civilização ocidental? Como não comparar as tribos indígenas, sem escrita e sem metalurgia, gravando figuras nas paredes das rochas e fabricando utensílios de pedra, com as formas antigas das nossas civilização, cuja semelhança é atestada pelos vestígios encontrados nas grutas da França e Espanha?(18)

Foi aí sobretudo que o falso evolucionismo se propagou. E, no entanto, este jogo sedutor a que nos entregamos quase irresistivelmente todas as vezes que temos ocasião para isso (não se compraz o viajante ocidental em encontrar a “idade média” no Oriente, o “século de Luís 14” na Pequim de antes da Primeira Guerra Mundial, a “idade da pedra” entre os indígenas da Austrália ou da Nova Guiné?) é extraordinariamente pernicioso.

Das civilizações desaparecidas, conhecemos apenas alguns aspectos e estes diminuem à medida que são mais antigas, pois os aspectos conhecidos são os únicos que puderam sobreviver à destruição do tempo. O processo consiste, pois em tomar a parte pelo todo, em concluir que, a partir do fato de que duas civilizações (uma atual, a outra desaparecida) ofereçam semelhanças em alguns aspectos, pode-se estender a analogia à todos os aspectos. Ora, esta maneira de raciocinar não só é logicamente insustentável, mas ainda, num bom número de casos, é desmentida pelos fatos.

Até uma época relativamente recente, os tasmanianos e os patagônios possuíam ferramentas de pedra lascada, e certas tribos australianas e americanas ainda os fabricam. Mas o estudo destes instrumentos ajuda-nos muito pouco a compreender o seu uso no período paleolítico. Como eram, então, usados os famosos machados de pedra oval, cuja utilização devia, no entanto, ser de tal forma precisa, que a sua forma e técnica de fabricação permaneceram padronizadas de maneira rígida durante cem ou duzentos mil anos, e num território que se estendia da Inglaterra à África do Sul, da França à China?

Para que serviam as extraordinárias peças feitas com a técnica Levallois, pedras lascadas de formato triangular que encontramos às centenas nos jazigos e que nenhuma hipótese consegue explicar completamente? O que eram os pretensos “bastões de comando”(19) em osso de rena? Qual poderia ser a tecnologia da cultura tardenoisense que deixou para trás um número inacreditável de minúsculos pedaços de pedra polida, com formas geométricas infinitamente diversificadas, mas muito poucos utensílios na escala da mão humana?

Todas estas incertezas mostram que entre as sociedades paleolíticas e determinadas sociedades indígenas contemporâneas existe uma semelhança – serviram-se de utensílios de pedra polida. Mas mesmo no plano da tecnologia, torna-se difícil ir mais longe; o emprego dos materiais, os tipos de instrumentos, e, portanto o propósito com que eram usados, eram diferentes, e mesmo neste aspecto limitado um grupo nos ensina muito pouco em relação ao outro.

Como poderíamos então aprender qualquer coisa sobre linguagem, instituições sociais ou crenças religiosas? Uma das interpretações mais populares inspiradas pelo evolucionismo cultural trata as pinturas rupestres legadas pelas sociedades do paleolítico médio como figurações mágicas ligadas a rituais de caça.

O raciocínio é o seguinte: as populações primitivas atuais têm rituais de caça, que a maior parte das vezes, nos aparecem desprovidos de valor utilitário; as pinturas rupestres pré-históricas, tanto pelo seu número como pela sua localização, bem no fundo das cavernas, não aparentam ter qualquer valor utilitário; os seus autores eram caçadores, logo podemos concluir que eram usadas em rituais de caça. Basta enunciar esta argumentação para se perceber sua inconsequência.

Além disso, é sobretudo entre os não-especialistas que ela ganha força, porque os etnógrafos estão de acordo em afirmar que nada, nos fatos observados, permite formular qualquer hipótese sobre a natureza destas pinturas. E, já que falamos das pinturas rupestres, sublinharemos que, à exceção das sul-africanas (consideradas por alguns como obras recentes(20)), as artes “primitivas” estão tão afastadas da arte do Paleolítico(21) como da arte europeia contemporânea. Porque esta se caracteriza por um elevado grau de estilização, indo até às deformações mais extremas, enquanto a arte pré-histórica oferece um realismo surpreendente.

Poderíamos cair na tentação de ver nesta última a origem da arte europeia, mas isso seria inexato, uma vez que, no mesmo território, a arte paleolítica foi seguida por outras formas que não apresentam as mesmas características; a continuidade do lugar geográfico não muda o fato de que sobre o mesmo solo se sucederam diferentes populações, alheias à obra dos seus antecessores, e trazendo cada uma consigo crenças, técnicas e estilos diferentes.

O ponto que as civilizações da América pré-colombiana atingiram na véspera da descoberta evocam o período neolítico europeu. Mas também esta comparação não resiste a um exame mais atento; na Europa, a agricultura e a domesticação de animais caminham de mãos dadas, enquanto na América, um desenvolvimento excepcional da agricultura é acompanhado pela quase completa ignorância (ou, de qualquer modo, por uma extrema limitação) do criação de animais domésticos.

Na América, o uso de utensílios de pedra convive com uma economia agrícola que na Europa está associada ao início da metalurgia. É inútil multiplicar os exemplos. Porque a tentativa de conhecer a riqueza e a originalidade das culturas humanas, só para tomá-las como réplicas atrasadas da civilização ocidental, choca-se com uma outra dificuldade que é muito mais profunda. De uma maneira geral (e excetuando a América, a qual voltaremos) todas as sociedades humanas têm atrás delas um passado aproximadamente da mesma ordem de grandeza.

Para considerar determinadas sociedades como “etapas” do desenvolvimento de outras, seria preciso admitir que enquanto com umas se passava qualquer coisa, com outras não acontecia nada, ou muito pouco.

E, na verdade, falamos dos “povos sem história” (para dizer, por vezes, que são “os mais felizes”). Esta forma elíptica significa apenas que sua história é e continuará a ser desconhecida, não a sua inexistência. Durante dezenas e mesmo centenas de milênios, também nesses povos existiram homens que amaram, odiaram, sofreram, inventaram, combateram.

Na verdade, não existem povos crianças, todos são adultos, mesmo aqueles que não deixaram um diário de infância e da adolescência. Poderíamos, na verdade, dizer que as sociedades humanas utilizaram desigualmente um tempo passado que, para algumas, teria sido mesmo um tempo perdido; que umas andavam rapidamente, enquanto outras divagavam ao longo do caminho. Seríamos assim conduzidos a distinguir duas espécies de histórias: uma progressiva, aquisitiva, que acumula os achados e as invenções para construir grandes civilizações; e uma outra história, talvez igualmente ativa e empregando outros dons, mas a que faltasse o talento da síntese.

Cada inovação em vez de acrescentar às anteriores, e orientadas no mesmo sentido, dissolver-se-ia numa espécie de onda que nunca consegue se afastar por muito tempo da direção original. Esta concepção parece muito mais flexível e matizada que as visões simplistas descritas anteriormente. Podemos guardar um lugar para ela na nossa tentativa de interpretação da diversidade das culturas sem sermos injustos com as demais. Mas, antes, é necessário que examinemos várias questões.

...

NOTAS:

1 Race et Histoire foi publicado na coleção Le racisme devant La Science, © Unesco 1960. Publicado no Brasil na coletânea em dois volumes Raça e ciência, Ed. Perspectiva, 1970. Além dessa, atualmente há outra edição disponível, publicada por uma editora portuguesa (que é a mesma da coleção Pensadores da Abril). Como a intenção da coleção era atingir um público amplo, a própria Unesco preparou as traduções. A versão em português é muito acidentada, para dizer o mínimo: há erros crassos de tradução e de revisão.
2 Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882): intelectual e escritor francês, ficou famoso por desenvolver a teoria da superioridade racial ariana em seu livro Um ensaio sobre a desigualdade das raças. Para uma história das teorias raciais e seu impacto no Brasil ver O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil, 1870-1930 de Lilia Moritz Schwarcz (Cia das Letras, 1993).
3 Processo que está ligado ao das migrações, por sua vez, tão antigo quanto as primeiras civilizações. A era das navegações e a grande migração para as Américas teve com consequência uma intensificação ainda maior do encontro de culturas, sem falar da globalização nas últimas décadas. Enfim, seria possível deduzir das palavras de Lévi-Strauss que o intercâmbio e o cruzamento de povos e culturas é da própria natureza da história em geral, e ainda mais no caso da Civilização Ocidental, o que coloca sob outra luz a questão das migrações.
4 O site www.cultures.com é dedicado à documentação de culturas, antigas e modernas.
5 “Homem de rua”, no original. Nos anos 50 ainda estava fresca a lembrança dos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando em muitos países, principalmente na Alemanha e na Itália, o racismo foi abraçado por enormes parcelas da população, enfim, pelo “homem de rua”.
6 Referência a maioria dos países da África e da Ásia, em grande desvantagem econômica em relação aos países industrializados nos anos 50 quando este ensaio foi redigido. O extraordinário desenvolvimento econômico alcançado por alguns países da Ásia nas últimas décadas, principalmente Coreia do Sul e China, não prejudica o argumento.
7 É o caso, por exemplo, das tribos de caçadores coletores que habitavam o continente sul-americano antes da chegada dos europeus. Ver Os índios antes do Brasil, de Carlos Fausto (Jorge Zahar Editor, 2000).
8 As três línguas provêm do mesmo tronco linguístico indo-europeu.
9 A civilização que floresceu no vale do rio Indus entre 3.000 e 1.300 AC, aproximadamente, constituiu uma das grandes civilizações da Antiguidade. No seu auge, entre 2.600 e 1.900 AC, pode ter chegado a abrigar uma população de mais de cinco milhões de habitantes, maior, portanto, do que a de muitos países da Europa no início do século 21.
10 Alguns sugerem que a palavra venha de pa-pa-ro, uma imitação linguística onomatopáica do sons e erros gramaticais feitos pelos não-gregos ao tentar falar o grego.
11 O autor se refere ao Iluminismo no plano das idéias, e a “era das Revoluções” no plano político, com seu ideal igualitário sintetizado no célebre lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. O ideal iluminista acreditava que a razão venceria a irracionalidade e o preconceito. As duas guerras mundiais na primeira metade do século 20 foram várias vezes interpretadas como uma evidência de que esse ideal teve um alcance muito limitado.
12 Referência à Alemanha, onde o iluminismo parecia ter alcançado seus voos mais altos, mas onde no entanto, o nazismo floresceu.
13 Grave ofensa em francês equivalente a chamar alguém de “parasita”.
14 “Barroca” aqui no sentido de bizarra.
15 Declaração da Unesco sobre a questão das raças, redigida e publicada em 18 de julho de 1950, primeira de uma série de quatro proposições sobre o tema. Lévi-Strauss participou da elaboração deste primeiro documento. Novas versões foram publicadas em 1951, 1967 e 1978.
16 Apesar do enorme prestígio dos ideais revolucionários no pós-Guerra, Lévi-Strauss aqui já parece desiludido com a possibilidade de transformação das revoluções políticas. A União Soviética, por exemplo, ainda tinha muito prestígio entre intelectuais quando da publicação deste ensaio. A queda do Muro de Berlim, no entanto, mostrou o quanto muitas características da sociedade russa permaneceram inalterados, apesar da revolução de 1917.
17 Ressalva que só se tornou ainda mais importante desde a publicação deste ensaio, com os enormes avanços ocorridos na genética e na biologia, e que tomam o evolucionismo biológico como paradigma fundamental. Os avanços nas chamadas ciências da vida tiveram enorme impacto também na antropologia. Ver M. Susan Lindre, Alan Goodman, e Deborah Heath, “Anthropology in an Age of Genetics: Practice, Discourse, and Critique” em Genetic Nature/Culture, Goodman et al. University of Californa Press, 2003. (Reunião de trabalhos apresentados no simpósio da Fundação Wenner-Gren realizado em Teresópolis, RJ, entre 11 e 19 de junho de 1999).
18 As pinturas nas cavernas de Chauvet, no sul da França, constituem o tema do premiado filme de 2010 do cineasta alemão Werner Herzog Cave of Forgotten Dreams. No YouTube há trechos deste documentário, inclusive o trailer oficial.
19 Nome dado pelos arqueólogos a um artefato pré-histórico, feito de osso e perfurado. Não se sabe exatamente sua função, e por isso o termo “bastão de comando”, tem sido substituído por “bastão perfurado” (ou pierced rod em inglês).
20 Lévi-Strauss se refere aqui à arte da cultura san (também chamados de bushmen, sho, barwa, kung, ou khwe), tribos de caçadores-coletores que viveram no sul da África por milhares de anos, e dos quais restam poucos remanescentes.
21 Veja a galeria de arte pré-histórica.











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