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Leandro Vilar

sábado, 23 de dezembro de 2023

Empire State Building: o ícone dos arranha-céus

Um dos cartões-postais da cidade de Nova York, o famoso prédio embora não tenha sido o primeiro arranha-céu a ser construído, no entanto, na década de 1930, quando foi erguido, ele ganhou rapidamente fama por ser não apenas o prédio mais alto de Nova York e dos Estados Unidos, mas também do mundo. Inclusive ele manteve essa posição por quarenta anos, o que o tornou por muito tempo o mais famoso arranha-céu do mundo. O presente texto conta um pouco da história da origem desse edifício e algumas de suas características principais. 

O Empire State Building, um dos gigantes edifícios da ilha de Manhattan, em Nova York. 
Construção

Os arranha-céus (skycraper) surgiram na década de 1880 em Chicago, migrando rapidamente para Nova York, em especial a ilha de Manhathan, o coração daquela cidade. Entretanto, os arranha-céus das décadas de 1880 a 1910 não eram edifícios altos como normalmente imaginamos. De fato, eles eram altos para os padrões da época, mas hoje seria considerados "prédios normais". De qualquer forma, a construção de arranha-céus nos EUA passou por diferentes fases de efervescência, havendo períodos de construção acelerada e outros em que mal se construía tais prédios. (DOUGLAS, 2004, p. 100). 

Esses períodos ocorreram de 1880 a 1900, depois de 1900 a 1914, parando por conta da Grande Guerra (1914-1918), retomando na década de 1920, estendendo-se para o começo dos anos 1930 quando estou em 1929 o Crash da Bolsa de Valores de Nova York, que jogou os Estados Unidos na Grande Depressão (1929-1939). Apesar disso, foi neste cenário de crise que o Empire State Building foi construído em tempo recorde para um edifício das suas proporções, pois quando foi inaugurado, era o arranha-céu mais alto do mundo.

O terreno em que hoje se situa o Empire State, que é o número 350 da Quinta Avenida, já era ocupado pelos dois prédios do hotel Waldorf-Astoria, pertencentes a rica família Astor. O terreno bastante caro foi comprado em 1928 pela empresa Bethelem Engineering Corporation num valor total de 13,5 milhões de dólares, o terreno mais caro vendido na época. Porém, a companhia que havia parcelado o valor, não conseguiu pagar a segunda parcela de 2,5 milhões, com isso os donos do terreno entraram na justiça. Além disso, a empresa também estava devendo a bancos por empréstimos feitos para efetuar a compra. Assim, no começo de 1929 o terreno foi colocado novamente à venda, sendo comparado pela empresa Empire State Inc, uma corporação de rico milionários, os quais pretendiam construir o mais alto arranha-céu de Nova York, superando o Chrysler Building que estava sendo finalizado na época. O Chrysler foi inaugurado em 1930, tendo 360 metros de altura. Na época ele era o prédio mais alto do mundo. (REIS, 2006, p. 9-10). 

A Empire State Inc reunia milionários como o empresário e banqueiro Louis G. Kaufman, o empresário e político John J. Raskob, os irmãos Coleman du Pont e Pierre S. du Pont, ambos eram donos das indústrias DuPont e da General Motors, inclusive Raskob trabalhava para eles. Por fim, tivemos Ellie P. Earle, outro empresário. Além desses homens, o então governador de NY, Alfred E. Smith também apoiou o projeto, além de ser amigo de Raskob. Graças a todo esse poder econômico, o impacto da crise iniciada em 1929 não impediu o atraso das obras, pois os dois hotéis começaram a serem demolidos em setembro do ano anterior. (DOUGLAS, 2009, p. 104).

O arquiteto William F. Lamb do escritório de arquitetura Shreve, Lamb and Harmon, famoso por construir vários prédios na cidade no estilo art décor, bastante popular na época, foi contratado para projetar o maior arranha-céu do mundo naquela época. Em poucas semanas Lamb e sua equipe chegaram a um consenso quanto ao projeto. A construtora Starrett Brothers and Eken foi contratada para realizar as obras, enquanto Homer G. Balcon foi designado engenheiro-chefe do projeto. (LANGMEAD, 2009, p. 89). 

Um dos esboços para o edifício. 

Dessa forma as obras começaram em janeiro de 1930 com as escavações para as fundações. Cada uma das colunas era projetada para suportar 5 mil toneladas de peso e tinham mais de dez metros de altura e pesavam 44 toneladas. (REIS, 2006, p. 64). Embora que simbolicamente a data de início foi colocada em Dia de São Patrício (17 de março), por conta de alguns dos empresários serem descendentes de irlandeses. Assim, em ritmo acelerado o Empire State Building começou a ser erguido com o prazo de conclusão para o ano seguinte. Significava que um prédio de mais de 300 metros de altura deveria ser construído em menos de dois anos. Hoje em dia isso é inviável, apesar do avanço tecnológico, porém, naquela época do século XX, não o era, fato esse que o Chrysler Building que tem seus 360 metros de altura, foi construído em menos de dois anos. 

Os jornais noticiavam a construção do Empire State como a oitava maravilha do mundo. A propaganda ajudou bastante a dar visibilidade ao ousado projeto. Vale lembrar que os "Empire Boys", como eram conhecidos os donos do Empire State Inc, tinham muito contato com jornais, além de contar com o apoio do governador de Nova York, de políticos e celebridades. Dessa forma, embora o país estivesse iniciando sua recessão, o desemprego começasse a aumentar, mas o setor de construção ainda estava em alta antes de estagnar. Assim, muitos dos trabalhadores do Empire State foram imigrantes irlandeses e italianos, além de contar até com indígenas também. Com a grande disponibilidade de mão de obra, os salários caíram, favorecendo a contratação de muita gente. 

As obras contaram com mais de 3.500 mil trabalhadores em diferentes profissões, que atuaram nos 18 meses da construção do prédio. Em setembro de 1930 a estrutura de aço do edifício já estava quase finalizada, passando dos 300 metros de altura, após 23 semanas de construção. Eu seu auge, os operários conseguiam erguer três andares por semana. No mês de novembro o edifício já estava quase pronto, pelo menos na sua estrutura, pois internamente as obras continuariam pelos meses seguintes. Ainda assim, foi uma proeza da engenharia contemporânea, pois o prédio cresceu rapidamente em cinco meses. (TAURANAC, 2014, p. 212-214). 

Fotos mostrando a evolução da construção do Empire State Building em cinco meses. 

Oficialmente só cinco trabalhadores morreram durante a construção do prédio, um número baixíssimo, já que foram milhares de envolvidos. Um dos motivos disso se deve que apesar da precariedade da segurança do trabalho na época, a Empire State Inc cobrou máxima cautela possível para evitar mortes e acidentes com os operários e os pedestres, pois havia o risco de queda de ferramentas, materiais e outros objetos. Dessa forma, trocou-se quando possível, escadas de mão por escadas normais, colocava-se telas diante de poços e aberturas, elevadores de obra foram reforçados etc. (REIS, 2006, p. 58). Claro que nem sempre medidas de segurança eram executadas, por exemplo, os operários não costumavam usar capacetes e nem cordas para se prenderem. Além disso, jornais da época apontaram que o número de mortos teria sido de mais de 40 vítimas, mas isso foi abafado pela construtora. 

Operários no intervalo das obras do Empire State, em 1930. 

De novembro até a inauguração em maio do ano seguinte, tratou-se de fazer toda a parte interna do edifício como as instalações elétricas e de encanamento, a instalação dos elevadores, colocar os pisos, fazer as pinturas e acabamentos, além de transportar os móveis, montar escritórios etc. Dessa forma, a festa de inauguração ocorreu em 1 de maio de 1931, Dia Mundial do Trabalhador, uma data simbólica, pois o grande edifício seria o local de trabalho de milhares de pessoas diariamente. 

O então presidente dos Estados Unidos, Herbert Hoover, o governador e prefeito de Nova York, entre outros políticos, autoridades públicas, empresários, celebridades e membros da alta sociedade nova-iorquina e americana, compareceram para a festa de inauguração que contou com mais de 350 convidados, que foram participar de um almoço no andar 86. Todavia, na ocasião o dia estava parcialmente nublado, havendo até neblina, o que não favoreceu a bela visão da cidade para os convidados. Não obstante, no dia 2 de maio o prédio foi aberto para o público, iniciando suas atividades. (TAURANAC, 2014, p. 230-231).

Fotografia de alguns convidados na festa de inauguração do Empire State, em 1 de maio de 1931. 

Assim, era concluído em 18 meses de obras, contando com mais de 3.500 trabalhadores, tendo custado quase 25 milhões de dólares (valores da época), o Empire State Building, medindo seus 381 metros de altura (sem contar a antena), divididos em 102 andares, construído em concreto, aço, tijolos, ferro, granito e mármore, em estilo art décor, tendo 208.879 m2 construídos, possuindo 73 elevadores. De 1931 a 1970 ele foi o prédio mais alto do mundo, por isso se tornou um ícone dos arranha-céus, além de se tornar um cartão postal da cidade de Nova York até hoje, fato esse que o prédio possui mirantes nos andares 86 e 102, recebendo milhões de turistas ao ano. 

Inclusive o turismo ajudou a recuperar os investimentos da construção, pois na década de 1930 o prédio teve vários andares vazios por conta da crise econômica, mas turistas visitam local mesmo assim. Somente na década de 1940 é que os andares de escritórios, lojas e restaurantes foram sendo preenchidos propriamente. Além disso, o edifício começou a aparecer em filmes, séries, novelas e desenhos, que ajudou sua popularização pelo mundo. O filme King Kong (1933) foi a primeira grande produção cinematográfica a usar o edifício como cenário. Criando uma das mais icônicas cenas do cinema preto e branco. 

Cena do filme King Kong (1933). Na época fazia dois anos que o prédio tinha sido inaugurado e não contava com sua antena de rádio ainda. 

NOTA: A Família Astor após a venda do seus dois hotéis, construiu outro maior na Avenida Park em 1931, consistindo no atual Hotel Waldorf Astoria. 
NOTA 2: Em 1965 foi instalada uma antena de rádio no Empire State Building, medindo 62 metros de altura, o que subiu a altura do edifício para 443 metros. Valor que conserva atualmente. 
NOTA 3: Atualmente o edifício é o 54o prédio mais alto do mundo. 
NOTA 4: Em 28 de julho de 1945 um pequeno avião de guerra que sobrevoava baixo a cidade, colidiu acidentalmente com o Empire State, atingindo o andar 79 e matando 14 pessoas. Na ocasião o dia estava nublado e com um forte nevoeiro. A imprudência do piloto o levou a voar baixo. 
NOTA 5: O filme Independence Day (1996) mostra o prédio sendo destruído por uma nave alienígena. 
NOTA 6: O Empire State aparece comumente nos quadrinhos, desenhos, filmes e jogos do Homem-Aranha
NOTA 7: Atualmente o prédio abriga uma exposição em homenagem ao King Kong. 
NOTA 8: Algumas empresas que possuem escritórios no prédio são: Linkedin, Shutterstock, Workday e Expedia
NOTA 9: Atualmente pelo menos 15 mil pessoas trabalham no edifício, embora ele receba milhares de visitantes. Muitos desses são turistas. 

Referências bibliográficas: 
DOUGLAS, George H. Skycrapers: a social history very tall building in America. New York, McFarland, 2004. 
LANGMEAD, Donald. Icons of American Archicture: From the Alamo to World Trade Center. Greenwood, Greenwood Icons, 2009. 
REIS, Ronald A. The Empire State Building. New York, Chelsea House Publishers, 2006. 
TAURANAC, John. The Empire State Building: The Making of a Landmark. New York: Scribner, 2014. 

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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

100 anos da proclamação da República da Turquia

No ano de 1922 o Império Otomano chegou ao fim, após anos de crise, acentuada por conta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a renúncia do último sultão, um governo interino foi eleito até que a república foi efetivamente proclamada em 1923. Pondo fim a séculos de monarquia e suas regalias. O presente texto apresenta alguns aspectos centrais desse processo de transição política na história turca, que foi extenso, demorado e marcado por guerras e crises. 

Introdução

O Império Otomano (1299-1922) vigorou por séculos, sendo o Estado mais poderoso e rico entre os séculos XVI e XVII, considerado sua era de ouro. Os otomanos eram uma dinastia de origem turca que entraram em destaque na história em meados do século XV, quando o sultão Mehmed II conquistou Constantinopla em 1453, após quase três meses de cerco. As imponentes muralhas da cidade bizantina se renderam diante dos poderosos canhões turcos. Com tal façanha, Constantinopla foi renomeada para Istambul, tornando-se a nova capital dos otomanos pelos séculos seguintes, passando a sediar sua imponente e requintada corte, iniciando a ascensão desse império.

No entanto, no final do século XIX, os dias de glória eram lembranças distantes. Os tempos modernos contestavam os padrões de vida e preceitos socioculturais da dinastia otomana, ainda conservadora em vários aspectos diante do "século do progresso". Soma-se a isso as constantes derrotas militares e diplomáticas para as potências europeias como Inglaterra, França, Rússia e Áustria. Se em seu auge o império possuía domínios sobre o Oriente Médio, norte da África e leste Europeu, no final do XIX, seus domínios se restringiam a parte do Oriente Médio. Isso foi um duro golpe para as finanças do Estado, as quais dependiam da tributação dos estados vassalos, assim como, de zonas rurais, portos e cidades mercantis. (ZÜRCHER, 1992, p. 62-66). 

Outro aspecto a ser comentado diz respeito as críticas a monarquia e seu luxo excessivo e autoridade ainda aos moldes absolutistas. Em meados do XIX surgiu um movimento político chamado de Jovens Otomanos (Yeni Osmanlilar), formado por intelectuais provenientes das universidades, fortemente influenciados por ideários iluministas como a democracia, o liberalismo, o republicano e a laicidade. Essas ideias foram defendidas mesmo após o declínio do movimento ainda na década de 1870, que coincidiu com o final do Tanzimat (1830-1870), nome dado ao período reformista do império, que buscou modernizar a nação em vários aspectos como reformulação do código penal, do sistema tributário, abolição de impostos sobre não-muçulmanos, mudanças no alistamento militar, criação de universidades, construção de estradas e ferrovias, mudanças fiscais etc. (HOWARD, 2016, p. 70-73). 

O governo de Abdul Hamide II (1876-1909)

O sultão Abdul Hamide II (1842-1918) tentou assegurar o controle do país em meio a crise daquele período, aprovando uma constituição monarquista, além de adotar outras propostas sugeridas, como a criação de um parlamento. Isso contribuiu para sua boa aceitação, pelo menos, nos anos iniciais, pois decisões erradas acerca da política externa, revoltas nos estados vassalos, surtos de fome, adesão a guerras que foram fiascos, isso tudo foram gradativamente minando a ordem do império, contribuindo para a constante perda de territórios e o aumento de movimentos políticos cobrando a abolição da monarquia e aprovação de uma república e de uma constituição melhor. 

Retrato do sultão Abdul Hamide II

Diante dos problemas enfrentados no final da década de 1870 e começo de 1880, Abdul Hamide II suspendeu a constituição e o parlamento, e governou com despotismo pelos quase trinta anos seguintes. Apesar de seu autoritarismo, o processo de modernização tecnológica do país continuou com a construção de estradas, ferroviais, portos, adoção de energia elétrica e telefonia, por outro lado, massacres contra as comunidades de minorias, a recusa de aceitar a emancipação de estados vassalos, altos gastos com obras públicas, escândalos de corrupção, aumento da inflação, contribuiu para enfraquecer a popularidade do sultão, levando a eclodir uma revolta em 1908. (ZÜRCHER, 1992, p. 80-85). 

A Revolução dos Jovens Turcos (1908-1913)

O movimento chamado Jovens Turcos era influenciado pelos Jovens Otomanos da década de 1870, embora contasse com a adesão de outras alas insatisfeitas com o governo do sultão Abdul Hamide II. Muitos dos idealizadores do movimento estudaram em universidades europeias, especialmente as francesas, sendo influenciados pelo legado político daquele país. Assim, o movimento pretendia promover uma revolução política na Turquia, restaurando o parlamento que foi banido desde 1878, assim como, pedindo a abdicação do sultão e convocação para uma assembleia constituinte. (HOWARD, 2016, p. 77).

A Revolução dos Jovens Turcos ambicionava derrubar a monarquia, implementar uma república e uma nova constituição, para depois começar a resolver os outros vários problemas que afetavam o país. O sultão aceitou restaurar o parlamento, retomar a constituição de 1876 e libertar parte dos presos políticos e iniciar uma negociação para deliberar sua possível abdicação. Porém, meses depois de tais medidas, ele realizou em 13 de abril de 1909 um contragolpe para derrubar os revolucionários, apelando para os monarquistas e conservadores, mas parte do exército havia aderido a causa revolucionária, resultando em massacres de inocentes durante os conflitos entre ambos os lados, como o Massacre de Adana. Após essa tentativa fracassada de contragolpe, Abdul Hamide II aceitou abdicar o trono, passando-o para seu irmão Mehmed V. (ZÜRCHER, 1992, p. 95-96). 

Litogravura mostrando os revolucionários libertando Lady Liberdade de suas correntes. A mulher é uma alegoria para a Turquia. Propaganda política de 1908.
 
No entanto, com a retomada do parlamento, esse mudou o nome para Assembleia Nacional, sendo formada por sua maioria de representantes monarquistas nacionalistas representados pelo Comitê de União e Progresso (Ittihad ve Terakki Cemiyeti), conhecido pela sigla CUP. O qual defendia a manutenção da monarquia parlamentarista, tornando Mehmed V em um governante simbólico. No entanto, a política turca estava dividida em outros setores também. Tínhamos uma parcela de monarquistas conservadores os quais defendiam o retorno da autoridade do sultão, liberais que eram a favor da república, e uma parcela bem menor de socialistas e anarquistas. Porém, como os monarquistas no governo eram maioria, assim, a monarquia parlamentarista foi mantida nesta revolução. 

Os nacionalistas como ficaram mais conhecidos, detinham grande número de assentos no parlamento e na câmara federal, além do apoio das forças armadas e de políticos das províncias. Sublinha-se que o governo nacionalista ainda defendia a ideia de manter os territórios vassalos sob seu controle, o que incluía terras na Bósnia, Sérvia, Bulgária, Armênia, Síria, Palestina, Arábia Saudita e parte do Iraque. A ideia era defender um pan-turquismo, alegando que embora esses povos falassem outras línguas e tivessem suas culturas, mas eles faziam parte do Império Otomano, que buscava se modernizar para o século XX. No entanto, a Rússia tinha interesse na Armênia e incentivou revoltas ali para esses se emanciparem da Turquia, em retaliação os nacionalistas assinaram um pacto secreto com a Alemanha, para solicitar ajuda contra o Império Russo. 

Além dessa questão política externa, o governo turco passou por problemas internos também. Em 1911 ano de eleições para o parlamento, a câmara, províncias e prefeituras houve desentendimentos entre os partidos políticos, especialmente entre os membros da CUP, em que o coronel Sadik Bey, desgostoso com os rumos que o partido havia tomado, deixou a CUP, levando vários partidários consigo, vindo a fundar naquele ano o Partido do Progresso, de vertente nacionalista-liberal. Naquele mesmo ano ocorreram as eleições e vários candidatos do novo partido foram eleitos, chocando a CUP, a qual controlava o país desde 1908. Todavia, a CUP realizou um pequeno golpe de Estado, dissolvendo o parlamento, alegando fraude eleitoral e convocou eleições para 1912, as quais foram efetivamente fraudadas, lhe dando a vitória esmagadora. (HOWARD, 2016, p. 79). 

No entanto, 1912 também foi um ano ruim para a Turquia, o país sofreu um contra-ataque de países europeus do Bálcãs. A Turquia estava em guerra contra a Itália na chamada Guerra ítalo-turca (1911-1912) pela disputa do controle da colônia da Líbia, enquanto parte do exército e da marinha otomanos estavam ocupados na África, os sérvios formaram a Liga Balcânica composta pela Sérvia, Bulgária, Grécia e Montenegro, com a missão de expulsar os turcos dos Bálcãs, isso iniciou a Guerra Balcânica (1912-1913). É válido lembrar que desde o século XV os turcos detinham territórios naquela região europeia no auge de seu império, os países balcânicos faziam parte de seus domínios, agora era chegada a hora dos oprimidos revidarem. 

“Depois que os turcos se envolveram na Guerra Ítalo-Turca (1911-1912), esses quatro países formaram a Liga Balcânica e se mobilizaram para a guerra. Em outubro de 1912, quando os turcos fizeram as pazes com os italianos, abrindo mão da Líbia, a Liga declarou guerra ao Império Otomano, iniciando, assim, a primeira Guerra dos Bálcãs. Entre as grandes potências, a Rússia apoiou a Liga e a Áustria-Hungria, os otomanos, e as tensões entre os dois impérios ficaram sérias a ponto de cada um mobilizar parcialmente seus exércitos. Quando a guerra chegou ao fim, em maio de 1913, as grandes potências permitiram que a Sérvia ficasse com Kosovo e a Grécia, com Épiro, mas determinaram que o restante do território albanês fosse cedido para um novo país independente. A Grécia também recebeu Creta e dividiu com a Sérvia a Macedônia, limitando à Trácia os ganhos da Bulgária. Incitados por uma violenta indignação pública por conta do magro espólio, apenas um mês depois os búlgaros declararam guerra à Sérvia e à Grécia, na esperança de assegurar parte da Macedônia. Na breve segunda Guerra dos Bálcãs, os turcos retomaram as hostilidades contra os búlgaros, e Montenegro também interveio, mas a entrada da Romênia (que se mantivera neutra na primeira Guerra dos Bálcãs) se mostrou decisiva, o que levou a Bulgária a abandonar parte de suas conquistas anteriores na Trácia, de modo a se defender contra uma invasão romena desde o norte. No acordo que deu fim ao conflito em agosto de 1913, a Bulgária recuperou a Trácia ocidental e uma rota de saída para o mar Egeu, mas devolveu a Trácia oriental ao Império Otomano e cedeu Dobruja à Romênia. As Guerras dos Bálcãs deixaram a região mais volátil do que nunca”. (SANDHAUS, 2013, p. 34-35). 

Interlúdio: A Primeira Guerra (1914-1918)

A Primeira Guerra Mundial teve início em 1914 após o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Fernando (1863-1914) durante o trajeto de carro até a prefeitura de Saravejo, quando um terrorista de nome Gavrilo Princip (1894-1918) o assassinou no caminho. Fernando era herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, sua morte foi considerada um crime contra o Estado. Nesta época os sérvios reivindicavam sua independência da Áustria-Hungria, sendo assim, Princip num ato inconsequente cometeu esse assassinato que mudou a História. 

Naquele ano a Áustria-Hungria era aliada da Alemanha e da Itália, tendo formalizado há vários anos o pacto da tríplice aliança que basicamente ditava que em caso de uma guerra contra qualquer dos aliados, os outros deveriam ajudá-los. Sendo assim, após a morte do arquiduque Fernando em 28 de junho de 1914, o governo austro-húngaro iniciou uma série de investigações nas províncias da Sérvia e da Bósnia, procurando os responsáveis por planejarem a morte do nobre, havia suspeitas de que os russos estivessem envolvidos, pois eles apoiavam a independência dos sérvios. No dia 31 de julho os russos mobilizaram seus exércitos para as fronteiras antevendo um possível conflito, todavia, os austro-húngaros e alemães consideraram aquilo como um atestado de culpa, então o kaiser Guilherme II da Alemanha declarou guerra ao czar Nicolau II da Rússia

A notícia da declaração de guerra se espalhou rapidamente, fato esse que a França que era aliada da Rússia, e disse que se os alemães os atacassem, eles seriam invadidos. O kaiser Guilherme II aceitou a provocação e mandou no dia 2 de agosto invadir Luxemburgo e no dia seguinte as tropas adentraram a Bélgica. A guerra havia começado. A Itália que era aliada da Alemanha e da Áustria-Hungria manteve-se de início de fora do conflito. O assassinato do arquiduque Fernando em Saravejo foi apenas um pretexto para a guerra começar, pois as tensões já eram grandes a vários anos; as potências europeias só queriam uma desculpa para começar uma guerra para se atacarem e disputarem o controle de colônias, territórios, estradas, ferroviais, portos, recursos naturais etc. Eram tempos de imperialismo ainda. 

Como a Turquia havia assinado um acordo militar secreto com a Alemanha poucos anos antes, com a eclosão da guerra, os alemães fizeram valer o acordo, exigindo o suporte dos turcos. O governo da CUP encarou isso como uma grande oportunidade, pois ambicionavam o estado de guerra para recuperar territórios perdidos nos Bálcãs que resultou na Guerra Balcânica (1912-1913), a disputa da Líbia com os italianos, além de problemas na Armênia, Chipre, Síria, Palestina etc. Significava que para os nacionalistas da CUP havia chance de manter tais territórios e talvez até conquistar outros. O sultão Mehmed V chegou a fazer uma declaração pública para toda a nação anunciando a entrada do país na Grande Guerra. (SHAW; SHAW, 1977, p. 310-311).

Mapa do Império Otomano em 1914. Os gregos, italianos, franceses e ingleses começaram a atacar tais territórios durante a guerra. 

As tropas turcas basicamente ficaram restritas aos territórios vizinhos, lutando sobretudo nos Bálcãs, Mar Negro, Síria, Palestina, Arábia, Iraque e Egito. Por sua vez, a Armênia sofreu um duro golpe nesse período da guerra, pois suas tentativas de se rebelar ao domínio otomano eram rechaçadas com profunda truculência que durou anos, resultando no chamado Genocídio Armênio (1915-1923), que teria vitimando algo entre 800 mil a 1,8 milhão de armênios. Além desse grande número de mortos, soma-se mais de 400 mil soldados otomanos vitimados durante a guerra e outros milhares de civis que morreram no conflito. (SHAW; SHAW, 1977, p. 317-327).

A participação na Grande Guerra foi desastrosa para a Turquia em vários aspectos. Milhares de mortos, destruição em várias cidades, altos gastos, perca de territórios, aumento do endividamento do país, aumento do custo de vida, cerco das nações europeias ao império. Frustração generalizada com a CUP e os apoiadores da campanha militar, desilusão quanto aos ideários nacionalistas e pan-turcos. Exército fragmentado em vários territórios que foram sendo perdidos. O sonho de reerguer a glória do Império Otomano havia ruído mais uma vez. E para concluir 1918, o último ano da guerra, o sultão Mehmed V faleceu de velhice, sendo sucedido por seu irmão Mehmed VI, que se tornou o último sultão do Império Otomano. 

Em 30 de outubro de 1918 foi assinado o Armistício de Mudros que punha fim aos conflitos entre os trucos e as nações europeias que os atacavam. O armistício foi aprovado após semanas de negociações, no entanto, a Turquia não saiu vencendo com isso, pelo menos não da forma que esperava. Os território invadidos foram mantidos sobre o controle dos exércitos europeus, importantes cidades como Damasco, Israel, Adana, Tarso, as ilhas de Chipre e Rodes, e a própria capital do império, Istambul, foram ocupadas por tropas francesas e britânicas ainda em novembro daquele ano. A CUP a contragosto concordou com o armistício, embora parte de seus membros consideravam isso sinal de fraqueza. O império estava desmoralizado, invadido e a mercê de inimigos. (SHAW; SHAW, 1977, p. 329).

A guerra de independência (1919-1923)

Com o fiasco da participação da Turquia na Grande Guerra, a situação do país que estava ruim, ficou pior. Várias regiões estavam ocupadas por tropas gregas, italianas, francesas e britânicas, enquanto o genocídio armênio ainda continuava. Os liberais viram a oportunidade de crescer nesse período, culpando os nacionalistas da CUP pelas mazelas do país por terem aceitado entrar numa guerra malfadada. Entre os liberais-nacionalistas que se destacaram naquele momento estava o marechal Mustafa Kemal (1881-1938), que ganhou fama e respeito das forças armadas por suas campanhas durante a guerra. Kemal era o típico homem que defendia preceitos nacionalistas, fato esse que ele foi um dos idealizadores do Movimento Nacional Turco surgido em 1919 para defender a soberania do país frente a intervenção estrangeira. Por ser um liberal também, ele era a favor de pôr fim a monarquia parlamentarista, instaurar o republicanismo, assim como, instituir o laicidade do Estado. O marechal Mustafa Kemal ficaria mais tarde conhecido como o "Pai da República Turca". (SHAW; SHAW, 1977, p. 340-342).

Mustafa Kemal, o líder que comandou a guerra de independência e o estabelecimento da república.

O marechal Kemal deu início aos planos de expulsar os estrangeiros a partir de maio de 1919, iniciando a guerra de independência. Para isso, ele passou a negociar com os russos, cedendo territórios da Armênia em troca de armas e veículos de guerra. Sendo assim, o armistício de Mudros durou menos de um ano, pois sete meses depois de sua aprovação a guerra havia reiniciado. Kemal tratou de focar em inimigos situados no território da Turquia, que incluía os franceses, gregos e italianos, já que os britânicos ocupavam territórios no Oriente Médio. Ainda em setembro daquele ano foi convocada eleições parlamentares e os vitoriosos a maioria apoiavam a política liberal-nacionalista de Mustafa Kemal, que apresentava o objetivo de recuperar o controle do país. (KAYALI, 2008, p, 125-128).

Com a realização das eleições entre 1919 e 1920, Kemal foi eleito vizir (primeiro-ministro), lembrando que o sultão Mehmed VI vivia em Istambul, mas sob tutela do governo britânico. Porém, ele era apenas um fantoche nas mãos dos inimigos. Estando de posse do novo cargo, Kemal tratou de mudar a sede do governo, transferindo-o de Istambul para Ankara, onde foi estabelecido o novo parlamento. Além disso, desde então a cidade se tornou oficialmente a capital da Turquia até hoje. 

Em 10 de agosto de 1920 foi proposto o Tratado de Sevres, organizado entre os países europeus que ocupavam a Turquia. A ideia era pôr fim a guerra de independência, forçando o governo turco a reconhecer sua derrota, assim como, autorizando a emancipação da Armênia e a criação do estado autônomo do Curdistão. O tratado também reforçava a posse de Esmirna e de algumas ilhas para ficarem sob domínio grego. O sul da região da Anatólia e o oeste da Cilícia passariam para o controle italiano; os franceses controlariam o leste da Cilícia e o território sírio. Já os britânico abocanhavam parte do hoje é o Iraque, Israel e a Palestina. (KAYALI, 2008, p, 130).

Mapa do Tratado de Sevres apresentando os territórios ocupados pelos exércitos europeus, a Armênia e o Curdistão ao sul dessa. 

Parte da população do império aceitava se submeter ao governo estrangeiro, o que incluía sírios, iraquianos, palestinos e árabes. Os armênios e curdos também defendiam o tratado, pois assim assegurariam sua autonomia e esperavam que isso poria fim aos massacres perpetrados pelos turcos ali. Porém, havia turcos que não gostavam de se sujeitar ao domínio grego e italiano devido a guerra contra eles que durava oito anos. Por sua vez, os nacionalistas mais fervorosos eram totalmente contrários as propostas desse tratado. Evidentemente que a CUP, o Partido do Progresso e o Partido Nacional Turco (ao qual pertencia Kemal), eram contrários a essa proposta, por conta disso, a guerra foi mantida.

A campanha contra os gregos e italianos estiveram entre as mais duras, pois o exército grego ao longo de 1921 avançou rumo a Ankara, com o objetivo de capturar a capital e forçar o parlamento a aceitar o Tratado de Sevres, se isso tivesse ocorrido, teria sido uma grande derrota para as forças de resistência, no entanto, as tropas turcas conseguiram resistir e frearam o avançar grego vencendo a Batalha de Inonu (11 de janeiro de 1921) e na Batalha de Sacaria (23 de agosto a 13 de setembro de 1921), a qual foi travada nos arredores da capital. A vitória em Sacaria foi fundamental para evitar a captura de Ankara pelo exército grego, forçando a recuar até a região de Esmirna. (KAYALI, 2008, p, 137-138).

Litogravura grega mostrando uma cena da Batalha de Sacaria. O documento enfatizava a superioridade do exército grego, alegando que a vitória estaria próxima. 

Dentre as nações europeias que ocupavam a Turquia, os gregos apresentaram-se como a maior ameaça, pois eles tentaram conquistar a capital Ankara, mas não significa que não tenha havido conflitos contra os italianos e franceses. Somente os britânicos é que mantiveram-se mais longe de grandes batalhas. O Tratado de Ankara (1921) encerrou os conflitos contra os franceses, cedendo os territórios sírios em troca da Cilícia. Já os conflitos com os italianos também foram se encerrando em 1921, por sua vez, os britânicos propuseram novos acordos para manter o controle dos territórios no Oriente Médio, em troca de remover suas tropas gradativamente de Istambul e outras terras ocupadas pela Turquia. 

Em 1922 a situação da guerra estava se resolvendo já que o governo havia negociado alguns acordos com quase todos seus invasores, faltava resolver o problema com os gregos. Dessa forma, naquele ano ocorreu a "grande ofensiva" do exército turco, cuja missão era empurrar os gregos de volta ao Mar Egeu e forçar a saída desses da Anatólia. Entre janeiro e fevereiro as campanhas turcas iam minando as conquistas gregas, forçando esses a recuarem, no entanto, o governo grego relutava em abandonar aquela guerra, assim, por intermédio dos britânicos, foi proposto em março uma mesa de negociações. (ZURCHER, 1992, p. 155-156). 

Os gregos ainda assim não acataram a proposta de se retirar, postergando a guerra até setembro daquele ano, vindo a sofrer pesadas derrotas como a Batalha de Dumlupinar (26-30 de agosto de 1922) que marcou a derrota do exército grego. Pois em setembro o exército turco adentrou Esmirna, cidade sob domínio grego, e que funcionava como sua base de operações na Anatólia. 

Pintura representando a chegada triunfal do exército turco em Esmirna, ocupada pelos gregos nos últimos anos. 

No mês de setembro ocorreu a retirada das tropas gregas e se sucedeu um período de trégua, a qual foi reforçada com o Armistício de Mudanya, proposto em 12 de outubro. Itália, França e Reino Unido aceitaram a proposta, mas a Grécia somente concordou com os termos dois dias depois. O armistício permitiu que populações gregas na Turquia pudessem migrar para a Grécia, Macedônia ou Bulgária, por outro lado, encerrava a perseguição aos muçulmanos na região, como ditava também a retirada de tropas e navios do território turco. A guerra contra a Grécia havia chegado ao fim. O vizir Kemal aproveitou também o momento para anunciar no mês de novembro sobre a dissolução da monarquia, destituindo o sultão Mehmed VI de seu título, mas permitindo partir para o exílio. O monarca se exilou na Itália. (HOWARD, 2016, p. 90-91). 

A monarquia otomana chegava ao fim após seis séculos, tendo o último sultão sido deposto e enviado ao exílio. No dia 23 de novembro de 1922 teve início na Suíça, país neutro, a realização da Conferência de Lausanne, a qual duraria alguns meses. A conferência tinha como proposta chegar a um acordo de paz entre Turquia, Grécia, Itália, França e Reino Unido, além de questões territoriais e indenizatórias. Mas enquanto esse acordo ainda não era concluído, em Ankara, Mustafa Kemal Paxá mobilizava a transição do governo para a república. (ZURCHER, 1992, p. 161-162). 

Viva a república (1923)

No ano de 1923 a guerra de independência havia chegado ao fim. Os conflitos ocorridos eram pequenos, oriundos de protestos espalhados pelo país, além da reação dos armênios e curdos contra a opressão que viam sofrendo a anos. Em 24 de julho foi assinado o Tratado de Lausanne após meses de negociações. O tratado estabeleceu uma série de exigências, mas algumas das principais foi encerrar a guerra entre os cinco países. A Grécia e a Itália foram os mais prejudicados, tendo perdido a maior parte do território que haviam conquistado, sobrando algumas ilhas para eles. Por sua vez, a França conseguiu ficar com a Síria, o Reino Unido levou para si parte do Iraque e da Palestina (o Estado de Israel ainda não existia). A Armênia conseguiu colocar fim ao genocídio, a custa de muitas vidas perdidas, e se separou da Turquia, embora tenha perdido parte de seu território e estava sob tutela da Rússia. Já o Curdistão foi novamente negada sua criação, e seu território permanece até hoje como parte da Turquia. Os turcos ainda conseguiram manter terras na Europa, disputada pelos gregos e búlgaros. (KAYALI, 2008, p. 140-142). 

Mapa da Turquia proposto em 1923 durante o Tratado de Lausanne. 

Com a aprovação do tratado em julho, o governo interino iniciou os preparativos para a transição para a república, sendo essa oficialmente proclamada em 29 de outubro de 1923, em que o marechal Mustafa Kemal Paxá foi eleito o primeiro presidente do país. Na prática ele já governava a Turquia desde 1919. Kemal iniciou assim uma política de reconstrução da nação que se estendeu até 1938, quando terminou seu longo mandato, devido a sua morte. Por conta das reformas empreendidas, Kemal recebeu o epíteto de Atatürk ("pai dos turcos"). 

O presidente Mustafa Kemal Atatürk discursando para o povo em 1924. 

O processo para efetivação da república na Turquia foi demorado e marcado por guerras. Se levarmos em consideração que os planos para uma república tiveram início lá na década de 1870 pelo menos, isso somente se concretizou mais de cinco décadas depois, sendo que desse período, de 1911 a 1922, foi uma década de guerras contínuas, as quais ceifaram as vidas de milhões de pessoas entre turcos, armênios, curdos, sírios, palestinos, iraquianos, britânicos, gregos, italianos, franceses, russos e outros povos envolvidos na Primeira Guerra e demais conflitos. Não obstante, o estabelecimento da república em 1923 foi o primeiro passo apenas, fato esse que durante o mandato de Kemal Atatürk (1923-1938) ocorreu a efetivação da república e sua nova constituição. 

NOTA: No quadrinho A casa dourada de Samarcanda (1980-1985), o protagonista Corto Maltese passa pela Turquia e a Armênia durante o período da guerra de independência. Alguns armênios que ele conhece, falam do conflito contra os turcos e citam até o marechal Mustafa Kemal como sendo seu inimigo. 
NOTA 2: Mustafa Kemal foi por algum tempo chamado de Paxá, título honorífico da dinastia otomana, dado para governantes e ministros. O título foi abolido em 1934.
NOTA 3: Em 1924 o presidente Mustafa Kemal aprovou o fim do califado otomano, última instituição ligada a monarquia, a qual associava o sultão como um líder religioso. Tal decisão abriu caminho para a laicidade do Estado. 
NOTA 4: O sultão Mehmed VI passou o restante da vida em exílio na Itália. 
NOTA 5: A república turca por vários anos não teve um período delimitado para o mandato dos presidentes, fato esse que Kemal Atatürk governou por 15 anos, seu sucessor, o presidente Ismet Inönü, governou por 12 anos, outros presidentes governaram por 6 a 8 anos. O tempo de mandato para a presidência somente foi regulamentado a partir de 2014 para um período de 5 anos. 

Referências bibliográficas

HOWARD, Douglas A. The History of Turkey. 2a ed. Santa Barbara, ABC-Clio, 2016. 

KAYALI, Hasan. The struggle for independence. In: KASABA, Resat (ed.). The Cambridge History of Turkey, volume 4: The Turkey in the Modern World. Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 112-146. 

SHAW, Stanford J; SHAW, Ezel Kural. History of the Ottoman Empire and Modern TurkeyVolume II: Reform, Revolution, and Republic: The Rise of Modern Turkey, 1808-1975. 7a reprinted (2002). Cambridge, Cambridge University Press, 1977. 

SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo, Contexto, 2013. 

ZÜRCHER, Erik J. Turkey: A Modern History. 3a ed. Istambul, I.B. Tauris, 1992. 

Links relacionados:

100 anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)

O bombardeio de Constantinopla: a Queda do Império Bizantino


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Kowloon: a cidade do crime

Durante algumas décadas do século XX a cidade murada de Kowloon, na China, foi um local densamente povoado, mas de condições sanitárias precárias e uma terra sem lei, onde imperava bandidos, traficantes, mafiosos e toda sorte de gente miserável e envolvida com negócios ilícitos. Kowloon era num sentido mais ruim da palavra, uma favela de prédios sujos, desorganizados, sem água potável, de becos e ruelas escuras, um lugar inseguro, fétido e sórdido. Ainda assim, foi o lar de milhares de pessoas que sem condições de morar em outra localidade melhor, se sujeitavam aquele ambiente degradante. 

Fotografia dos anos 1980 de um dos lados de Kowloon, com seu aglomerado de edificações irregulares. 

Origem

Kowloon é uma cidade chinesa sendo vizinha de Hong Kong. Suas origens remontam há séculos, mas ela nunca teve expressividade. Durante o XIX, a Dinastia Qinq (1644-1912) a partir de 1842 cedeu Hong Kong ao domínio colonial britânico, além de parte do território de Kowloon também. Naquele tempo a região era pouco habitada e ainda contava com bosques e fazendas. Na área onde se localizava uma antiga fortaleza murada, começou a se construir um povoado em fins do XIX. Porém, esse povoado não fazia parte do território britânico, apesar de estar na fronteira desse.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Japão invadiu várias regiões da China, ocupando-as, incluindo Hong Kong e Kowloon. Durante os anos de ocupação, os japoneses destruíram parte das cidades, incluindo a condição que as muralhas de Kowloon foram demolidas também, revelando seu povoado com poucos milhares de habitantes. Apesar de ser chamada de cidade murada de Kowloon, na prática, tratava-se de um distrito, não uma outra cidade, mas a nomenclatura permaneceu.

Com o término da guerra e os danos causadas por essa, muitos pobres sem conseguir moradia em Hong Kong, que seguia sob gestão britânica, passaram a ir morar no distrito de Kowloon, e como não havia mais muralhas, o local começou a se expandir de forma desordenada. Além disso, a região que possuía praticamente ausência de policiamento, tornou-se o lugar perfeito para criminosos. 

Algumas edificações de Kowloon com sua arquitetura precária. A "cidade" foi considerada uma "favela vertical". 

Embora não tivesse mais muralhas, no entanto, o território da "cidade" estava limitado a 2,6 hectares e como não se tinha direito de construir para fora dessa delimitação, a solução foi verticalizar a povoação, no que resultou em décadas de construções irregulares. Kowloon se tornou uma "favela verticalizada", com edificações que ganhavam andares extras ou eram construídas sobre as menores, mas atingiam o limite de 14 andares por conta do aeroporto ser próximo. Por conta disso, as pessoas as vezes iam para o terraço dos prédios, cheios de antenas, entulho, caixas d'água, baldes (para pegar água da chuva), para ver os aviões. As crianças e adolescentes também gostavam de ir para lá, a fim de brincar de pular de um prédio para o outro. 

Uma cidade fora da lei

A antiga cidade murada de Kowloon começou a crescer entre as décadas de 1960 e 1980, vivenciando um forte boom populacional por conta de imigrantes pobres de algumas regiões chinesas, mas também de imigrantes vindos do Japão, Coreia e Filipinas. Por conta da carência de segurança e policiamento, já que os britânicos nada podiam fazer porque era território fora de sua jurisdição, assim como, o governo de Kowloon era negligente, com isso o crime não apenas cresceu naquela localidade, mas passou a dominar e comandar. 

Kowloon se tornou um aglomerado de cortiços e lojas, com prédios feios, colados nos outros, separados por vielas, possuindo até pontes ou passarelas improvisadas. Com exceção das ruas principais, as que adentravam o complexo eram ruelas escuras, abafadas, úmidas e sujas. Milhares de pessoas passavam diariamente por essas vias sombrias onde se podia encontrar ratos, baratas, lixo, mas também ver usuários de drogas, bêbados moribundos, mendigos, prostitutas, agiotas, mafiosos fazendo ronda. Nessa "cidade" apertada viveram de 30 a 50 mil habitantes, tornando-a a zona mais densamente povoada da China. 

Fotografia de Greg Girard de uma ruela em Kowloon. No teto era comum encontrar um emaranhado de tubulações e fios, representando ligações clandestinas de água, luz e telefone. 

O governo chinês apesar de pouco eficaz, não significou que nada fez durante seis décadas, houve operações policiais, principalmente nos anos 1970 para desbaratar a Tríade (a máfia chinesa), mas outras medidas incluíram cortar o fornecimento de energia elétrica e água encanada, mas isso não impediu que ligações clandestinas fossem feitas, além de que pessoas optassem por buscar água em poços improvisados e até viver à luz de velas e lampiões, tamanha a miséria no local. Dessa forma, tais pessoas não abandoaram Kowloon. 

Emaranhado de cabos e fios numa loja em Kowloon, isso era comum devido a falta de infraestrutura organizada e as ligações clandestinas. 

A segurança em Kowloon era uma falsa sensação, pois não havia policiamento regular, os mafiosos controlavam o local e faziam suas próprias regras, incluindo toques de recolher, controle de quem tinha acesso a determinadas ruas, vielas e áreas, além de mandar espancar, prender, torturar e matar os que desobedeciam suas regras, os afrontavam ou cometiam algum erro. Eles também cobravam alugueis e exploravam os comerciantes e moradores extorquindo-os. Apesar disso, parte da população decidiu se sujeitar aos desmandos dos criminosos. 

Por sua vez, em Kowloon devido a falta de policiamento e fiscalização, espalhou-se toda a variedade de negócios ilícitos como prostíbulos, casas de ópio e casas de apostas. Além disso, os restaurantes e bares faziam uso de prostituição, jogatina e drogas. Na "cidade" também se estabeleceu outros negócios ilícitos como clínicas clandestinas de dentistas e médicos que operavam e consultavam sem ter licença e as vezes nem formação profissional concluída. 

Um consultório odontológico ilegal em Kowloon nos anos 1980. A "cidade" concentrava dezenas de dentistas para um território pequeno. 

Esses médicos e dentistas exerciam suas profissões de forma irregular, que em vários casos geravam problemas. Apesar de não faltar clientela, pois cobravam barato e até cobravam troca de favores. As pessoas pobres acabavam se sujeitando a eles. Inclusive pobres que viviam em outros bairros ou em Hong Kong, chegavam a procurar essas clínicas para arrancar dentes, tratar ferimentos e até praticar aborto. 

Além das clínicas clandestinas outros negócios sem fiscalização operavam nessa cidade criminosa como restaurantes, bares, padarias, açougues, farmácias, fábricas (de produtos diversos) etc., os quais não tinham alvará de funcionamento e a vigilância sanitária nem se quer passava por ali. Por conta disso, era fácil encontrar produtos pirateados, mercadorias contrabandeadas, mas o pior de tudo eram os remédios falsificados e os alimentos de procedência duvidosa. Em Kwoolon havia "fábricas" caseiras de macarrão, pães, bolos, doces e até os infames açougues que vendiam carne de cachorro e gato, literalmente falando. 

Um açougue clandestino em Kowloon, algo comum. Alguns faziam uso de carne de cães e gatos. Foto de Greg Girard. 

Essas clínicas clandestinas e fábricas ilegais operavam em ambientes insalubres, apertados, escuros, alguns funcionando em porões. Mas vale ressalvar que devido a limitação do espaço para construir a "cidade", a maioria dos apartamentos eram pequenos, equivalendo a quitinetes hoje em dia, mas eram moradias que deveriam servir para cinco ou mais pessoas viverem da melhor forma que conseguiam se sustentar. 

No entanto, nem todo mundo que trabalhava em Kowloon agia de forma desonesta, parte da população possuía seus negócios e trabalhavam duro e honestamente, embora vivessem na pobreza e sob o comando da máfia. Ali também existiam escolas e creches, e crianças passaram a infância e até parte da vida adulta morando naquela localidade marginalizada. Os dentistas e médicos que tralhavam ali, nem todos eram impostores ou interesseiros, alguns que não conseguiram passar nos exames para tirar a licença de atuação ou reprovaram nos cursos, ia para Kowloon montar clínicas e consultórios para exercer a profissão com boa intenção, mesmo que ilegalmente. 

A destruição da cidade murada de Kowloon

A partir de 1987 o governo chinês e o governo britânico de Hong Kong decidiram que para acabar com os problemas sociais e criminosos associados com a cidade murada de Kowloon o melhor era desapropriar aquela zona e demoli-la. Após décadas de incompetência governamental para resolver os problemas do crime naquele distrito, a solução foi pôr tudo abaixo. 

A partir de 1988 o processo de desapropriação e remoção das famílias teve início, durando cinco anos para ser finalizado. Parte dos moradores não gostou de ter que se mudar, apesar de viverem num local precário, o sentimento de lar existia ali. Por outro lado, os que viviam ali por não terem condições de comprarem casas ou pagar o aluguel em outras localidades, aceitaram de bom grado a mudança e a ajuda fornecida pelo governo. Dessa forma, em março de 1993 teve início o processo de demolição do complexo. 

Vista aérea da antiga "cidade" murada de Kowloon em 1989, época que sua desapropriação já tinha iniciado. 

Foram semanas de atividades para demolir todos os edifícios e depois mais alguns meses para remover os escombros, sendo que as obras terminaram em 1994. No lugar da antiga cidade do crime foi construído um grande parque arborizado, com lago, quadras esportivas, quiosques e até uma zona arqueológica foi desenterrada, mostrando os vestígios da antiga fortificação ali existente. O Parque da Cidade Murada de Kowloon valorizou todo o território ao redor, concedendo frescor e beleza a aquele canto sombrio e miserável que um dia havia sido. 

Vista aérea do parque construído sobre a cidade do crime de Kowloon. 

Referência bibliográfica
LAMBOT, Ian. City of Darkness: Life in Kowloon Walled City. s. l: Watermark, 2007. 

Referências da internet