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Comunicado

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Leandro Vilar

domingo, 23 de janeiro de 2022

Costumes insólitos

O presente texto trata-se mais de uma coletânea de costumes estranhos, bizarros e até que foram normais por bastante tempo, mas acabaram sendo abandonados ou reformulados. 

Aparelhos médicos falsos:

O final do século XIX e começo do XX abundaram na venda de aparelhos, instrumentos e equipamentos médicos que prometiam tratamentos revolucionários e até curas milagrosas. Tais aparatos eram desenvolvidos por médicos mesmo na tentativa de revolucionar a medicina, mas por outro lado, devido à falta de uma fiscalização efetiva, muitos charlatões começaram a desenvolver essas bugigangas e vendiam elas sem problema algum, prometendo mil e uma melhorias. No entanto, com a consolidação dos conselhos de medicina e a criação de leis para barrar o comércio desses aparelhos, isso acabou sendo coisa do passado, apesar que a venda de remédios falsos ainda persista. 

Aparelho criado por um médico para o tratamento de tuberculose. Na prática ele de nada era útil, apenas agravava a condição do enfermo. 

Kit de caçador de vampiros:

Embora vampiros não existam, no entanto, por séculos acreditou-se que eles poderiam ter sido reais, fato esse, que alguns homens chegaram a se "especializar" em encontrá-los e caçá-los. Curiosamente essa ideia se estendeu até o século XIX. No entanto, historiadores apontam que tais kits e supostos caçadores, na verdade tratavam-se de malandros que se aproveitavam da superstição para ganhar fama e dinheiro, enganando as pessoas. 

Kit para caçar vampiros, feito em meados do século XIX. 

Cometas e eclipses: 

Ao longo da História diversos povos consideravam que a presença desses fenômenos celestes fosse algo ruim. Avistar um cometa ou ver um eclipse solar e até lunar, era interpretado como sinais de azar, calamidade, morte, praga, guerra, etc. Mas engana-se que tal superstição tenha sido algo antigo, atribuído a povos incultos, nada disso. Ainda no século XIX, o avistamento de cometas e até a ocorrência de eclipses geravam estranheza e pavor entre algumas pessoas e até mesmo virava notícia gerando histeria pública. O popular astrônomo francês Camille Flammarion (1842-1925), autor de vários trabalhos sobre astronomia, defendia a teoria de que se a Terra cruzasse a rota da cauda de um cometa, o planeta poderia explodir. Outra hipótese sugeria que os gases da coma e da cauda caso entrassem em contato com a atmosfera planetária, poderia envenenar toda a vida animal. A teoria de Flammarion causou grande alarde em 1910, com a passagem do Cometa Halley, pois na ocasião a Terra cruzou com sua cauda. Na época relataram-se surtos de suicídio e desespero coletivo, pois acreditavam que a teoria de Flammarion fosse verdadeira. 

Matéria de jornal francês de 1910 noticiando alarde e temor por conta da passagem do cometa Halley. 

Trabalho fabril

Com o advento da Revolução Industrial na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, fábricas começaram a surgir. No século seguinte elas passaram pouco a pouco a serem realidade costumeira em grandes cidades da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Todavia, o trabalho fabril naquele tempo era bastante degradante. Não havia normas para segurança do trabalho, fato esse que se o operário se ferisse a culpa era dele, e o mesmo até poderia ser demitido sem apoio ou indenização alguma. A iluminação era ruim dificultando as atividades, os ambientes eram quentes ou frios, e alguns não tinha uma boa circulação de ar; além que de dependendo do tipo de atividade ali feito, eram insalubres como trabalhar em carvoarias, curtidores, siderúrgicas, metalúrgicas. Os operários trabalhavam mais de 12 ou 15 horas por dia, as vezes até trabalhavam em turnos noturnos, e todos ganhavam um salário miserável; as mulheres trabalhavam a mesma quantidade ou até mais, porém, recebiam menos. Até crianças pequenas também eram empregadas nas fábricas, chegando a trabalhar de graça ou recebendo uma mixaria. Não havia leis trabalhistas assegurando proteção, descanso remunerado, folga, férias, licenças, etc., as quais muitas somente foram começar a surgir na segunda metade do século XIX em alguns países. Por conta disso, trabalhar em fábricas nesse período era um "trabalho infernal", como alguns diziam na época. 

Crianças trabalhando numa fábrica de tear, no começo do século XX. 

Jogando dejetos pelas janelas: 

Ao longo da História as grandes cidades pelo mundo tiveram problemas com saneamento básico, já que na maior parte das vezes ele inexistia. Sendo assim, não havia um sistema de esgoto, e em alguns casos nem existia um serviço de coleta de lixo. E a medida que as cidades se tornavam maiores e apertadas, os problemas para se livrar dos dejetos humanos como urina e fezes, e do próprio lixo, também cresciam. No caso de cidades onde predominavam casas com seus dois a três andares, ou apartamentos, a forma mais fácil que os moradores encontravam para se livrar de suas imundices era simplesmente atirando-as pela janela. Pode parecer algo surreal, mas isso acontecia, principalmente em bairros pobres, já que nos bairros ricos, usava-se servos ou escravos para coletar a sujeira e o lixo, e ir atirar em algum canal, rio, latrina ou terreno baldio para despejar. Porém, na falta disso, era mais fácil simplesmente atirar pela janela ou pela porta da frente, no meio de uma rua geralmente de terra, os dejetos matinais ou do dia anterior, e estar pouco se importando com os vizinhos e os pedestres. Essa prática ainda existia no século XIX e começo do XX. 

Ilustração do século XVII, mostrando mulheres despejando os dejetos pela janela, numa rua na Escócia. 

Os duelos: 

Ao longo da História alguns povos mantiveram a prática do duelo como uma forma legal e oficial para se resolver desavenças associadas com os crimes contra honra como difamação, calúnia, injúria, etc. no qual era permitido cometer homicídio sem recorrer em culpabilidade. Cada época e povo possuía suas regras para os duelos, mas geralmente eram praticados apenas por homens (raramente mulheres tinham direito de fazer isso), armados de forma igual, os quais deveriam lutar publicamente diante de testemunhas para assegurar que não trapaceassem. Nem sempre o adversário precisava ser morto, bastava ele reconhecer sua derrota. Ao longo dos séculos os duelos foram travados geralmente com o uso e espadas e facas, até serem substituídos pelas pistolas. E engana-se que aquele que pensa que a prática do duelo foi algo antigo, ela foi legalizada até o começo do século XX. 

Ilustração representando o duelo entre Paul Dérouléde e Georges Clemenceau, em 21 de dezembro de 1892. 

Enviando crianças pelo correio nos Estados Unidos: 

Nos Estados Unidos em pleno começo do século XX, ocorreram casos inusitados em que o sistema postal aceitou o envio de pessoas como encomendas, no caso, incluindo crianças. É preciso salientar que tal prática era incomum já que a legislação postal era falha em vários aspectos, e por conta disso, alguns pais decidiram enviar os filhos para visitar parentes, mas ao invés de levarem a criança consigo, eles simplesmente pediam que o carteiro as "entregasse". Embora que normalmente se pedisse isso a carteiros conhecidos, que fossem de confiança. Casos assim ocorreram entre 1913 e 1915. Em 1920 o governo americano decretou ser proibido o envio de pessoas pelo correio. 

A pequena Charlotte May Piestroff de 4 anos, foi enviada em 1914 pelo correio para ir visitar seus avós. Na ocasião, o carteiro era seu primo. 

Comendo com as mãos:

Quando eu escrevo sobre comer com as mãos não digo aqueles alimentos como sanduíches, salgados, bolos, pães, batata frita, biscoitos, doces e coisas do tipo, mas refiro-me a comer vários tipos de comida, as quais normalmente usaríamos talheres para isso. No entanto, em alguns lugares do mundo tal hábito ainda é regular por ser um costume, ou devido a pobreza, não haver dinheiro para se comprar talheres. Entretanto, o uso regular de talheres é algo recente na História da humanidade, começando a despontar no século XIX em diante, apesar que povos como os chineses, japoneses e coreanos usassem palitos como talheres, eles eram exceções. Fato esse que quando Marco Polo, seu pai e seu tio chegaram a corte de Kublai Khan no século XIII, a condição de eles comerem com as mãos, algo comum entre os italianos do período, foi visto como um comportamento bárbaros pelos chineses. A maioria dos povos comiam com as mãos, e alguns poucos a depender da comida, usavam colheres ou facas

Entre alguns povos atualmente, ainda é comum comer com as mãos. 

Os banheiros públicos na Roma Antiga:

Os romanos ficaram conhecidos por difundirem durante a República e o Império, sobretudo, nas grandes cidades os banheiros públicos. Todavia, eles eram bem diferentes dos atuais, nem tanto devido ao mal odor, mas pelo fato de não haver divisórias no seu interior. Embora houvessem banheiros para homens e mulheres, no entanto, qualquer um que fosse usá-lo, faria suas necessidades as vistas dos outros usuários. E havia casos de pessoas que até conversavam entre si, enquanto estavam fazendo isso. É também preciso salientar que alguns desses banheiros havia escravos que cuidavam da limpeza do local e auxiliavam os usuários a se limpar. 

Representação de como seria um banheiro público na Roma Antiga. 

Casas de banho:

As casas de banho hoje em dia são até comportadas com o que houve no passado. Alguns povos pelo mundo mundo, criaram o hábito de banhar-se publicamente, o que significa se dirigir a estabelecimentos específicos que continham piscinas, tanques, banheiras, tonéis, além de serviços como sauna, massagem, alimentação e prostituição. Mas e hoje em dia as casas de banho legalizadas possuem uma série de normas para evitar problemas entre os clientes, no passado as normas mais comum era não misturar homens e mulheres, exceto se houvesse o serviço de prostituição. Mas fora isso, todo mundo ficava pelado diante não apenas de desconhecidos, mas de conhecidos também, pois tomar banhos públicos era e ainda é uma atividade social em alguns países, onde amigos e familiares se reúnem para fazer isso. Embora que hoje em dia geralmente as pessoas usem trajes de banho, isso em alguns casos. 

No Japão os banhos públicos ainda hoje ocorrem, só que com mais regras e restrições a depender do estabelecimento. 

Era chique fumar:

O fumo existe há milhares de anos, mas nem sempre foi um hábito comum. De fato, o grande apreço pelo tabagismo é algo historicamente recente, surgido na Idade Moderna na Europa, apesar que começou a se difundir no século XIX com a indústria do tabaco. Porém, em poucas décadas os cigarros e charutos tornaram-se símbolos de elegância e status, sobretudo os charutos, que ainda hoje conservam a imagem de serem produtos de luxo. A industrialização, o vício e a propaganda massiva contribuíram para que o cigarro torna-se algo comum na vida de milhões de pessoas no século XX. Fato esse que as pessoas logo cedo começavam a fumar. Não havia uma fiscalização para proibir isso, tampouco, indicações médicas alertando sobre os males desenvolvidos pelo consumo contínuo desse produto e o grave perigo de vício. Além disso, era tão comum fumar, que as pessoas fumavam em lugares que hoje são proibidos como hospitais, escolas, cinemas, restaurantes, farmácias, mercados, shoppings, aviões, navios, submarinos, etc.

Algumas companhias aéreas começaram a proibir o fumo em aviões a partir da década de 1970, mas outras somente fizeram isso após 1990 e 2000. 
Escravidão: 

Apesar da escravidão ocorrer de forma ilegal hoje em dia, entretanto, até o século XX, alguns países ainda a mantinham leis autorizando a posse de escravos, os castigos corporais e seu comércio. Ao longo da História vários povos pelo mundo se escravizaram, pois tal prática foi infelizmente algo bastante comum entre diferentes épocas. Apesar que em cada lugar os direitos dos escravos ou a falta de direitos mudava. Os escravos eram prisioneiros de guerra, povos conquistados, descendentes de outros escravos, criminosos condenados a serem escravos temporariamente, pessoas pobres que aceitavam se tornarem escravas para não morrerem de fome, etc. Os No caso da história contemporânea, destacou-se a escravidão perpetrada contra os africanos e indígenas, a qual ainda hoje relega estigmas preconceituosos e racistas para os afrodescendentes e os indígenas. 

O navio negreiro. Johan Moretz Rugendas, c. 1830. 

O Apartheid:

Embora a África do Sul seja principalmente lembrada pelo Apartheid, o qual foi um regime segregacionista que durou de 1948 a 1994, no entanto, entre outros países do mundo como os Estados Unidos, práticas similares existiram, em maior o menor grau. O apartheid em outras nações não era plenamente legalizado, mas era socialmente e moralmente aceito. No caso, tais práticas ditavam que pessoas geralmente negras, indígenas, judias, ciganas, etc. não poderiam usufruir dos mesmos espaços públicos de que pessoas brancas, não poderiam viver nos mesmos bairros, frequentar as mesmas escolas, usar transportes públicos, etc. Essa prática manifestou ao longo da história recente, sendo algo testemunhado em pleno século XX. O próprio pastor e ativista Martin Luther King Jr (1929-1968) foi preso em Selma, no Alabama, em 1965, por desobedecer a ordem de frequentar uma lanchonete reservada para brancos. Tal fato serviu para uma onda de protestos do movimento negro contra o apartheid estadunidense. 

Pias para brancos e negros, em um banheiro público nos Estados Unidos, na década de 1960. 

Execuções públicas:

Atualmente esse tipo de prática penal é bem rara, no entanto, até começo do século XX, não era incomum em vários países ver pessoas sendo enforcadas, garroteadas, apedrejadas e fuziladas, além de que uma plateia se formava para assistir isso. E se retornamos no tempo, na França da Revolução Francesa (1789-1799) tivemos a aplicação da guilhotina, a temida "navalha nacional" que executou milhares de pessoas. E voltando um século antes disso, mulheres eram queimadas, enforcadas, decapitadas ou afogadas por conta do crime de serem bruxas. As execuções públicas ocorreram ao longo da História, sendo praticamente abolidas na segunda metade do século XX, o que revela ser algo bem recente. 

Pintura representando a execução da rainha Maria Antonieta, em 1793. 

Vivendo pelado:

Ainda hoje alguns povos pela América Latina, África, Sudeste Asiático e Oceania vivem nus, mas no passado isso era bem mais comum. Se hoje isso seria algo impensável por conta de vários problemas morais, éticos, sociais e religiosos, no entanto, entre as sociedades nas quais o nu é algo natural, o respeito pelo corpo é bem maior em sociedades onde nos vestimos. Apesar de grupos e movimentos naturistas tentarem criar comunidades em que as pessoas possam viver nuas, tal prática é bem diminuta e a maior parte da humanidade já se habitou a usar roupas. Os povos que hoje vivem de forma nua costumam pertencer a tribos e pequenas comunidades. 

Povo Yali, na Indonésia. 

Fotografando os mortos:

Essa prática surgida no século XIX e mantida até os idos do XX, não consistiu em algo voltado para intuitos policiais ou de perícia, mas foi uma estranha moda inglesa da Era Vitoriana (1837-1901). Com o barateamento da fotografia e sua popularização, modas acabaram surgindo, e uma delas era de tirar fotografias de parentes falecidos como forma de homenageá-los e guardar de recordação nos álbuns de família, ou até mesmo mandar fazer retratos ou quadros com isso. Logo, surgiu a ideia de tirar foto com mães, pais, avós, tios, irmãos, filhos e primos que faleceram para homenageá-los. Essas fotos eram feitas de diferentes formas, onde em alguns casos o fotógrafo chegava a pintar os olhos para fingir que a pessoa ainda estava viva, ou o corpo era organizado de tal forma para parecer que estivesse dormindo; alguns familiares posavam juntos aos entes falecidos, em outros casos montava-se cenários para a homenagem. 

Um exemplo de uma foto com um morto. Na imagem vemos uma mãe com seus três filhos, sendo que a menina falecida foi colocada de forma a aparentar estar dormindo. 

Sem banheiro:

Hoje em dia conceber uma residência não possuindo banheiro é algo inadmissível e até um absurdo. Porém, em alguns lugares do mundo isso é uma realidade comum devido a falta de saneamento básico, infraestrutura e precariedade das habitações, isso sem considerar os casos em que alguns lares como tendas e cabanas, não possuem banheiro. Todavia, até a primeira metade do século XX, banheiros não foram algo regular em vários países. Mesmo nas grandes cidades norte-americanas, europeias e asiáticas, não era incomum encontrar casas e apartamentos não possuindo esses cômodos, dessa forma, as pessoas usavam penicos para fazerem suas necessidades, e para tomar banho recorriam a tinas, bacias e banheiras. No entanto, a ausência de banheiros não foi algo que atingia apenas os pobres, até mesmo em mansões e palácios do século XIX, não tinham banheiros! 

O grandioso Palácio de Versalhes somente ganhou alguns poucos banheiros na segunda metade do século XVIII, quase cem anos após ter sido construído. 

Palmatória:

A palmatória consistia num instrumento de madeira com diferentes formas, usado para bater geralmente nas palmas das mãos ou em partes sensíveis do corpo. Era um instrumento aplicado para o castigo e as vezes para a tortura. Originalmente ele era usado para se punir servos e escravos, todavia, em determinado momento, nas escolas ocidentais seu uso passou a ser permitido. Os professores a fim de disciplinar ou repreender os alunos, batiam neles com palmatórias. Inclusive durante exames, caso o aluno errasse alguma resposta, poderia levar um tapa. O uso da palmatória normalmente era reservado a instituições mais severas, não tendo sido tão disseminado como se pensa. No entanto, sua prática perdurou até o século XX, antes de ser proibida como tratando-se de maus-tratos. 

Sátira a palmatória, numa escola francesa. Desenho de Charles Vernier, 1920. 

Tomar banho:

Embora banhar-se seja uma necessidade higiênica, ela também é cultural e até religiosa. A cultura do banho variou ao longo da História e das sociedades, em que alguns povos tinham hábitos de banhar-se com frequência, como no caso dos gregos e romanos, os quais criaram banhos públicos, sobretudo, os romanos se destacaram nisso. Os turcos e persas também fizeram seus banhos públicos. Na Índia o banho tem diferentes formas e está associado também a purificação religiosa e espiritual do corpo. No Islão, lavar-se também tem um caráter sagrado, sobretudo, antes de entrar na mesquita ou participar de peregrinações. Por outro lado, em lugares frios, o banho era postergado por semanas ou meses, exceto quando se tinha condições de ter água disponível para ser esquentada e banhar-se. Por conta disso, a pessoas preferiam usar substâncias perfumantes ou lavar apenas o rosto, axilas, os genitais e a bunda. Por outro lado, em viagens navais antes do século XX, não era incomum os banhos em navios ser algo pouco usual, devido a não se desperdiçar água potável, além de que banhar-se com água do mar não era algo bem quisto e até se julgava fazer mal a pele. Ainda hoje tomar banho é algo cultural, em que algumas culturas a prática de banhar-se regularmente não existe ou opta-se pelo "banho de toalha". Por outro lado, em localidades em que água é escassa, tomar banho diariamente é um luxo. 

Na Europa medieval os ricos tomavam banhos em tinas, com água quente, tinham todo um jogo de roupas de banho para isso, eram servidos e ajudados pelos servos, em alguns casos o banho poderia ser acompanhado de uma refeição como o café da manhã, almoço ou lanche. 

Remédios:

Antes do advento da Medicina, da Farmácia e outras ciências médicas, os materiais usados para o fabrico de medicamentos consistiam no mais variado uso de elementos para o intuito de criar remédios. No caso, aquele que pensa que a humanidade sempre conheceu o poder curativo e terapêutico das plantas, engana-se em muito. Ao longo da História plantas, animais, minerais, metais, rochas, ossos, unhas, chifres, conchas, cabelos, pelos, cristais, urina, fezes, parte de corpos, fogo, água, gelo, neve, terra, calor, frio, sangue, incenso, gases, fumaça, drogas, entre outra infinidade de coisas e substâncias foram utilizadas para fins medicinais. O problema devia-se que por muito tempo a medicina e a farmácia estiveram atrelados a crendices mágicas e supersticiosas, por conta disso, mesmo os curandeiros, boticários e médicos recitavam preparos mirabolantes que na maioria das vezes não era eficazes e até mesmo poderia piorar a enfermidade ou sintomas do paciente. A prática da sangria foi bastante usada em muitas épocas, mesmo que não seja algo eficaz. Mas engana-se quem pensa que isso foi exclusivo de povos ditos "incivilizados" ou "bárbaros", as mais diversas culturas do mundo passaram por isso, fato esse, que ainda hoje no século XXI, abunda terapias alternativas sem comprovação científica, curandeirismo bizarro - pois sublinho que alguns curandeiros possuem um conhecimento fitoterapeutico eficaz -, medicamentos milagrosos, tratamentos estranhos, etc. 

Ilustração de um banho de mercúrio para tratamento de sífilis. Hoje se sabe que o mercúrio é um metal bastante nocivo para a saúde e até o meio-ambiente. Porém, até o começo do século XX ele era recitado para o tratamento de sífilis. 

Cigarro para crianças:

Na primeira metade do século XX, em alguns lugares não era proibido que crianças fumassem, nem mesmo os adolescentes. Meus próprios avós começaram a fumar com seus 14 e 15 anos. Porém, além de não haver uma lei proibindo o acesso de menores de idade ao tabagismo, houve casos de marcas de cigarros que faziam uso de imagem de bebês e crianças os quais incentivavam seus pais a fumarem. Além disso, houve casos bizarros de cigarros vendidos para crianças e até mesmo cigarros de chocolate, embora fossem doces, eles incentivavam a criança a procurar fumar logo cedo. 

Propaganda dos Cigarros Garoto entre 1940 e 1950. 

Cerveja para todos:

A cerveja é uma das bebidas mais consumidas no mundo e já existe há milhares de anos, embora fosse diferente naquele tempo, já que existem diversas formas de se fabricar cerveja. Porém, seu consumo ao longo da História foi algo bem comum e cotidiano, a ponto de até mesmo crianças e adolescentes beberem cerveja. No entanto, isso devia a dois fatores: primeiro, as formas de filtrar a água eram precárias, logo, beber água corria-se o risco de pegar bactérias, porém, no processo de preparo da cerveja, a bebida era higienizada pela fermentação e a filtragem, com isso, era mais seguro tomar cerveja e vinho, do que beber água de um poço, rio, fonte. Por outro lado, como havia vários tipos de cervejas, as que eram tomadas regularmente apresentavam um baixo teor alcoólico, estimado entre 1% a 3%, o que demandaria a ingestão de grande quantidade para entrar em estado de embriaguez. Fato esse que antes do consumo de água potável se regulamentar, crianças e adolescentes tomavam cerveja normalmente para fins de hidratação, assim como faziam os adultos. Além disso, a ideia de que as religiões sempre proibiram o consumo de bebidas alcoólicas não é exata. Em algumas religiões tais bebidas eram de caráter sagrado e divino, e em outras religiões, os religiosos fabricavam cerveja, vinho e outras bebidas sem nenhum problema, pois não era pecado consumi-las. 

Na Europa, os monges alemães, belgas, holandeses e franceses, se especializaram no fabrico de cervejas e vinhos, desde o período medieval. 

Humanos enjaulados:

Essa bizarra e desumana prática realmente existiu durante os séculos XIX e XX, em que zoológicos exibiam pessoas como se fossem animais exóticos. Isso se deveu a prevalência do chamado racismo científico, surgido no século XVIII, o qual determinou a existência de raças humanas, definindo a raça branca (ou caucasoide) como a escala mais alta da evolução humana, enquanto que as raças amarelas, pardas e negras eram as mais baixas. Por conta disso, os zoológicos humanos não exibiam pessoas brancas, mas indígenas, africanos, asiáticos e oceânicos. Pois eles eram tratados como animais exóticos que atiçavam a curiosidade do "homem branco civilizado", que ao ir ao zoológico queria ver além das feras, esses homens de raças inferiores. Alguns zoológicos se especializaram em criar cenários teatrais, mostrando tribos e seus costumes primitivos.  

Uma mãe e seus filhos em exibição num zoológico. 

Pés de lótus:

Consistiu numa bizarra e cruel prática de beleza, em que mulheres chinesas eram forçadas a deformarem seus pés para eles conseguirem o formato e tamanho que coubessem dentro de pequenos sapatos. Tal prática durou anos na China, embora tentou-se bani-la, mas somente no século XX ela foi finalmente proibida de vez. As mulheres que se submetiam isso, conseguia status social a custa de deformar seus pés, condição que gerava vários problemas de postura, além de que poderia incapacitar de andá-las, e somava-se a isso, as dores geradas durante o processo de atrofiação dos pés. 

Um pé de lótus e um pé normal. Ao centro um sapato usado para os pés de lótus. 


domingo, 9 de janeiro de 2022

200 anos do Dia do Fico (9 de janeiro de 1822)

A presente data é um dia importante para a história do Brasil, pois tornou-se um dos marcos históricos para o movimento de independência iniciado anteriormente, ganhando no dia 9 de janeiro de 1822, um marco simbólico, no qual, o príncipe-regente D. Pedro (1798-1834), na época com seus 23 anos, decidiu recusar a ordem dos deputados das Cortes de Lisboa, que exigiam que ele retorna-se a Portugal, pois os planos haviam mudado após a Revolução do Porto (1820).

No ano de 1821, com o andamento do processo de elaborar-se uma constituição para Portugal, as Cortes de Lisboa atuavam como a constituinte, possuindo inclusive representantes brasileiros. Todavia, os interesses de parte dos membros portugueses era de manter o Brasil submisso, mesmo que desde 1815, ele tenha sido elevado a posição de reino. Todavia, para que essa submissão pudesse ser efetivada, se deveria barrar qualquer tentativa de ameaça de se proclamar a independência do Brasil, cujas ideias já tinham ocorrido no passado, mesmo que de forma diferente como Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798-1799) e a Revolução de 1817. Devido a essas ameaças no ar, as Cortes de Lisboa consideravam que a presença de Dom Pedro, sua esposa e filhos, no Rio de Janeiro, fosse uma ameaça, pois o jovem príncipe poderia ser usado pelos revolucionários.

Por conta disto, os decretos 124 e 125 aprovados pelas cortes, exigia o retorno imediato do príncipe-regente. Entretanto, Dom Pedro já estava engajado no movimento de independência. Ele contava com o apoio de sua esposa Maria Leopoldina (1797-1826), do político e naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), do padre e conselheiro Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio (1778-1830), além do apoio da maçonaria e outros nomes. Todos esses contribuíram diretamente para convencer o príncipe de permanecer no Brasil e lutar pela independência. 

Aclamação de Dom Pedro I como imperador do Brasil, no Campo de Sant'Anna, no Rio de Janeiro. Pintura de Jean-Baptiste Debret, 1834-1839. A oba não retrata o Dia do Fico, mas tem também inspiração na data. 

O padre Francisco Sampaio, que era a favor de uma monarquia constitucionalista para o Brasil, redigiu em dezembro de 1821 um manifesto, exaltando a independência brasileira, além de citar casos de outros reis que fizeram isso, além de usar exemplos da mitologia grega, história romana e até citar territórios na Ásia, para elucidar casos de luta e resistência. O manifesto pode ser lido a seguir. 

O MANIFESTO DO FICO (1821)

O povo do Rio de Janeiro conhecendo que os interesses das Nações reunidos em um centro comum de ideias sobre o bem público devem ser os primeiros objetos da vigilância daqueles, que estão revestidos do caráter de seus Representantes, e de mais convencido de que nas circunstâncias atuais se constituiria responsável para com as gerações futuras, se não manifestasse os seus sentimentos à vista da medonha perspectiva que se oferece a seus olhos pela retirada de Sua Alteza Real, se dirige com a última energia à presença de Vossa Senhoria, como seu legítimo Representante, esperando que mereçam toda a sua consideração os motivos, que neste se expõem, para se suspender a execução do Decreto das Cortes sobre o regresso de Sua Alteza Real para a antiga Sede da Monarquia Portuguesa.

O Povo sempre fiel à causa comum da Nação, julga que não se desliza da sua marcha representando os inconvenientes, que podem resultar de qualquer providência expedida, quando ela encontre no local, em que deve ser executada, obstáculos a esta ideai de prosperidade pública, que o Soberano Congresso anunciou altamente à face da Europa, e que até o presente tem sido motivo de nossa firme adesão aos princípios Constitucionais. Na crise atual o regresso de Sua Alteza Real deve ser considerado como uma providência inteiramente funesta aos interesses Nacionais de ambos os Hemisférios. 

Não, não é a glória de possuir um Príncipe da Dinastia Reinante, que obriga o Povo a clamar pela sua residência no Brasil à vista do mesmo Decreto, que o chama além do Atlântico: nós perderíamos com lágrimas de Saudade esta glória, que acontecimentos imprevistos, e misteriosamente combinados nos trouxeram, abrindo entre nós uma época, que parecia não estar marcada pela providência nos nossos Fastos, e ao mesmo tempo fazendo a emancipação do Brasil justamente na idade, em que possuído da indisputável ideia de suas forças, começava a erguer o colo para repelir o sistema Colonial; mas a perda desta Augusta Posse é igualmente a perda da segurança, e da prosperidade deste rico, e vastíssimo Continente; ainda avançamos a dizer respeitosamente, que esta perda terá uma influência mui imediata sobre os destinos da Monarquia em geral. 

Se os Políticos da Europa maravilhados pela Resolução de Sua Majestade o Senhor Dom João VI em passar-se ao Brasil realizando o projeto, que os Holandeses conceberam quando Luís IV trovejava às portas de Amsterdã, que Filipe V tinha na ideia quando a fortuna o ameaçava de entregar a Espanha ao seu rival, que o ilustre Pombal premeditava quando o Trono da Monarquia parecia ir descer aos abismos abertos pelo terremotos, que Carlos IV já mui tarde desejou realizar; sim se os Políticos disseram que o Navio que trouxe ao Brasil o Senhor D. João VI alcançaria entre os antigos Gregos maiores honras do que esse, que levou Jasão e os Argonautas a Colcos, o Povo do Rio de Janeiro julga que o Navio que reconduzir Sua Alteza Real aparecerá sobre o Tejo com o Pavilhão da Independência do Brasil.

Talvez que Sua majestade Criando o Senhor D. Pedro, Príncipe Regente do Brasil tivesse diante dos olhos estas linhas traçadas pelo célebre Mr. Du-Pradt "Si le passage du Roi n'avait eu lieu, le Portugal perdait le Brésil de deux maniéres, 1. par l'attaque qú eu auraiente fait les Angiais sous pretexte de guerre avec le Portugal soumis aux Français; 2. par I'Independance dans Ia quelle ce grand Pays separe de Ia Métropole par la guerre ne paurait manquer de tomber, comme ont fait les Colonies Espagnoles, et para la même raison, et avec le même succés. Aussi est il bien evident que si jamais le Souverain établi au Brésil repasse en Portugal il laisserá derriére lui I'Independance établie dans les comptoirs de Rio de Janeiro." 

"Se a passagem do Rei se não verificasse, Portugal perdia o Brasil por dois modos, primeiro por ataque que fariam os Ingleses com o pretexto de guerra com Portugal submetido aos Franceses; segundo pela independência, que infalivelmente este grande País separado da Metrópole pela guerra proclamaria, como fizeram as Américas Espanholas com a mesma razão, e com o mesmo sucesso". 

É logo bem evidente que se algum dia o Soberano estabelecido no Brasil voltar para Portugal, deixará após de Si a Independência firmada em todas as feitorias do Rio de Janeiro. Conhece-se qual é o estado de oscilação, e de divergência, em que estão todas as Províncias do Brasil; o único centro para onde parece que se encaminham suas vistas, e suas esperanças é a Constituição, e a primeira vantagem, que se espera deste plano regenerador é a conservação inalienável das atribuições, de que se acha de posse esta antiga Colônia transformada em Monarquia; menos para autorizar a residência do Augusto Chefe da Nação, do que pelo grande peso, que o seu Comércio de exportação lhe dava na balança mercantil da Europa, pelas suas diferentes relações com os diversos Povos desse antigo Hemisfério, e pelo progressivo desenvolvimento de suas forças físicas, e morais.

O Brasil conservado na sua Categoria, nunca perderá de vista as ideias de seu respeito para com a sua ilustre, e antiga Metrópole, nunca se lembrará de romper esta cadeia de amizade, e de honra, que deve ligar os dois Continentes através da mesma extensão dos mares que o separam; e a Europa verá com espanto, que se o espaço de duas mil léguas, foi julgado mui logo para conservar em vigor os laços do Reino Unido, sendo o fiador desta união um frágil lenho, batido pelas ondas, e exposto às contingências da Navegação; este mesmo espaço nunca será capaz de afrouxar os vínculos de nossa aliança, nem impedirá que o Brasil vá ao longe com mais alegria, com a mão mais cheia de riquezas, do que ia dantes, engrossar a grande artéria da Nação.

O Povo do Rio de Janeiro conhecendo bem, que estes são os sentimentos de seus coirmãos Brasileiros protesta à face das Nações pelo desejo que tem de ver realizada esta união tão necessária, e tão indispensável para consolidar as bases da prosperidade Nacional: entretanto o mais Augusto penhor da infalibilidade destes sentimentos é a Pessoa do Príncipe real no Brasil, porque nele reside a grande ideia de toda aptidão para o desempenho destes planos, como o primeiro vingador do sistema Constitucional. As Províncias do Brasil aparecendo nas pessoas dos seus Deputados em roda do Trono do Príncipe Regente formaram uma liga de interesses comuns, dirigindo sempre a marcha das suas providências segundo a perspectiva das circunstâncias, sendo um dos seus objetos de empenho estreitar mais e mais os vínculos de nossa Fraternidade Nacional.

Se o motivo que as Cortes apresentaram para fazerem regressar Sua Alteza Real é a necessidade de instrução de economia Política, que o Mesmo Senhor deve adquirir viajando pelas Cortes da Europa assinadas no Decreto, o Povo julga que se faz mais necessário para a futura glória do Brasil, que Sua Alteza Real visite o interior deste vastíssimo Continente desconhecido na Europa Portuguesa, e por desgraça nossa examinado, conhecido, descrito, despojado pelas Nações Estrangeiras, em cujas Cartas, como ultimamente na de Mr. La Pie, nós com vergonha vamos procurar as Latitudes, e as Longitudes das Províncias centrais, a direção dos seus grandes rios, e a sua posição geográfica, os justos limites, que as separam umas das outras, e até conhecer a sua capacidade para as riquezas de agricultura pela influência das diversas superfícies, que elas oferecem.

Portugal considerando o Brasil como um País, que só lhe era útil pela exportação do ouro, e de outros gêneros com que ele paga o que importam os Estrangeiros, esquecendo-se que esta mesma exportação era resultado mais das forças Físicas do Brasil, do que de estímulo das Artes de indústria comprimidas pelo mortífero sistema Colonial, e abandonadas a uma cega rotina não se dignou em tempo algum entrar no exame deste Continente, nunca lançou os olhos sobre o seu termômetro político, e moral, para conhecer a altura em que estava a opinião pública, e bem mostra agora pela indiferença com que se anuncia a seu respeito: é portanto de primeira necessidade que o Príncipe Regente dê este passo tão vantajoso para maior desenvolvimento da vida moral, e física do Brasil.

As Cortes da Europa hoje decaídas daquele esplendor, que elas apresentavam em outras épocas ainda conservam grandes Sábios, famosos políticos, porém estas classes se consideram mudas, e paralisadas pelas diversas facções, que as combatem com uma prepotência irresistível: Sua Alteza Real não encontrará hoje nelas mais do que intrigas diplomáticas, mistérios cabalísticos, pretensões, ideais, projetos efêmeros, partidos ameaçadores, a moral pública por toda a parte corrompida, os Liceus das Artes, e das Ciências na mais miserável prostituição, uma política cega concebendo, e abortando, em uma palavra Sua Alteza Real achará em toda a Europa vestígios desse vulcão, que rebentando ao Meio Dia levou estragos além das Ilhas, e dos Mares. 

Não, não foi em crises tão fatais, que viajaram o Imortal Criador do império da Rússia Pedro Primeiro, e o grande filho de Maria Tereza José Segundo, assim como outros Príncipes, que voltaram aos seus Estados enriquecidos de conhecimentos, que fizeram a prosperidade de suas Monarquias. Depois que o interesse passou a ser, como diz o Abade Condillac, a mola Real dos Gabinetes da Europa, a Política começou a esconder sua marcha, e quase sempre as ideias ostensivas são inteiramente diversas daquelas, que aparecem nos planos das negociações. É bem de esperar que o Príncipe Herdeiro de uma Monarquia olhada hoje com ciúme pelas Nações Estrangeiras não seja admitido a comunicação dos seus mistérios eleusinos, que veja as novas Tiros, e Cartagos só pela perspectiva de sua economia pública, e que se faça todo o empenho para desviar da conhecida agudeza de seu Engenho a Carta dos interesses Ministeriais.

Nas províncias do Brasil Sua Alteza Real achará um Povo, que o adora, e que suspira pela sua presença: nas mais polidas encontrará homens de talentos, bem dignos de serem admitidos ao seu Conselho, em outras achará a experiência dos velhos, que o Discípulo de Xenofonte encontrou nas bocas do Nilo; conhecerá de perto as forças locais deste imenso País, em cujo seio ainda virgem, como diz o célebre Mr. de Sismondi se podem perfilhar as plantações, que nutrem o orgulho das margens do Indo, do Ganges, da antiga Taprobana, e que obrigam o altivo Adamastor a se embravecer tantas vezes contra os Europeus. 

Os Povos experimentaram estes estímulos de entusiasmo, e de brio, que inspira a presença criadora de um Príncipe; sobre todas as vantagens enfim; Sua alteza Real terá uma que não é pequena, conhecer por Si mesmo a herança de Sua Soberania, e não pelas informações dos Governadores, que tudo acham inculto, atrasado, com obstáculos dificultosos, ou invencíveis para se desculparem assim de sua inação, ou para depois mostrarem em grande mapa colorido o pouco que fizeram, deixando entre as sombras as concussões violentíssimas, que sofreram as vítimas de seu despotismo. Tal é a ideia que o nosso insigne Vieira oferece em suas Cartas quando analisa a conduta destes Régulos de bastão e ferro, praga tão funesta ao Brasil, ou ainda mais, do que o mesmo sistema Colonial.

Sendo pois esta viagem de tão grandes consequências para o progressivo melhoramento do Brasil, fica demonstrada a sua importância, e sua necessidade; os conhecimentos adquiridos por Sua Alteza Real sendo confrontados com os votos daqueles, que possuem a verdadeira estatística do Brasil servirão muito para organizarem o plano do regime que deve animar a sua vida física, e moral.

Há uma distância mui considerável entre o Meio Dia da Europa, e o Meio Dia da América; a Natureza humana aqui experimenta uma mudança sensível, um novo Céu, e por isso mesmo uma nova influência sobre o caráter de seus indivíduos; é impossível que Povos classificados em oposição física se possam reunir debaixo do mesmo sistema de governo; a Industria, a Agricultura, as Artes em geral exigem no Brasil uma Legislação particular, e as bases deste novo Código devem ser esboçadas sobre os locais, onde depois hão de ir ter sua execução. 

Se o Brasil agrilhoado em sua infância, e com mui poucas homenagens na sua mocidade avançou rapidamente através das mesmas barreiras, que tolhiam sua marcha, quanto não avançará depois de ser visitado, e perfeitamente conhecido pelo Príncipe Herdeiro da Monarquia, que na sua passagem verá a justiça que se lhe fez tirando-se-lhe as argolas Coloniais, e dando-se-lhe o Diadema? 

O Povo do Rio de Janeiro tendo em vista o desempenho deste projeto verdadeiramente filantrópico, e conhecendo que Sua Alteza Real anuncia o mais energético entusiasmo em realizá-lo com grande vantagem da Nação em geral, não pode portanto convir no seu regresso, e julgando que tem dito quanto basta para que V.S. faça ver a Sua Alteza Real a delicadeza com que o Mesmo Senhor se deverá haver nas circunstância já ameaçadoras no horizonte político do Brasil, espera ser atendido na sua representação, de cujas consequências (não o sendo) o mesmo Povo declara V.S. responsável-, igualmente espera que o Soberano Congresso a receba, e a considere como um manifesto da vontade de nãos Interessados na prosperidade geral da Nação, no renovo de sua mocidade, e de sua glória, que sem dúvida não chegará ao zênite, a que espera subir se não estabelecer uma só medida para os interesses recíprocos dos dois Hemisférios, atendendo sempre às diversas posições locais de um, e outro. 

Sendo portanto de esperar, que todas as Províncias do Brasil se reúnam neste centro de ideias, logo que se espalhe a lisonjeira notícia de que se não verificou o regresso de Sua Alteza Real, o Povo encarrega a V.S. de fazer ver ao mesmo Senhor a absoluta necessidade de ficarem por agora suspensos os dois decretos 124, e 125 das Cortes, porque não se pode presumir das públicas intenções do Soberano Congresso, que deixe de aceder a motivos tão justos, e de tão grandes relações com o bem geral da Nação. Rio de Janeiro, em 29 de dezembro de 1821.

***

O manifesto do padre Sampaio foi entregue a Dom Pedro em 9 de janeiro de 1822. E lido na ocasião no gabinete do príncipe, que naquele dia estava cheio de seus apoiadores e conselheiros. Posteriormente, foi decidido que ele não iria à Portugal, permanecendo definitivamente no Brasil. Por conta disso, o povo carioca foi avisado e uma multidão se reuniu diante do Paço Imperial no centro da cidade do Rio de Janeiro. Da bancada, o príncipe dirigiu-se ao povo, lendo sua decisão. 

Termo de Vereação do dia 9 de janeiro de 1822

Aos nove de janeiro do ano de mil oitocentos e vinte e dois, nesta cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, e Paços do Conselho, aonde se achavam reunidos em ato de vereação, na forma do seu regimento, o juiz de fora presidente, vereadores, e procurador do Senado da Câmara, abaixo assinados, por parte do povo desta cidade foram apresentados ao mesmo Senado várias representações, que todas se dirigem a requerer que este leve a consideração de SUA ALTEZA REAL, que deseja que suspenda a sua saída para Portugal, por assim o exigir a salvação da pátria, que está ameaçada do iminente perigo de divisão de partidos, que se temem de uma independência absoluta, até que o soberano Congresso possa ser informado destas novas circunstâncias, e a vista delas acuda a este Reino com um remédio pronto, que seja capaz de salvar a pátria, como tudo melhor consta das mesmas representações, que se mandaram registrar. E sendo vistas essas representações, estando presente os homens bons desta cidade, que tem andado na governança dela, para este ato convocados, por todos foi unanimemente acordado que elas continham a vontade dominante de todo o povo, e que urgia que fossem imediatamente apresentadas a SUA ALTEZA REAL. Para este fim saiu imediatamente o procurador do Senado da Câmara, encarregado de anunciar ao mesmo senhor esta deliberação, e de lhe pedir uma audiência para o sobredito efeito: e voltando com a resposta de que SUA ALTEZA REAL tinha designado a hora do meio-dia para receber o Senado da Câmara no Paço desta cidade, para ali saiu o mesmo Senado às onze horas do dia; e sendo apresentadas a SUA ALTEZA REAL as sobreditas representações pela voz do presidente do Senado da Câmara, que lhe dirigiu a fala; depois dele o coronel do estado maior as ordens do governo do Rio Grande Manoel Carneiro da Silva e Fontoura, que tinha pedido licença ao Senado da Câmara para se unir a ele, dirigiu a fala ao mesmo senhor, protestando-lhe que os sentimentos da província de Rio Grande de S. Pedro do Sul  eram absolutamente conformes aos desta província. E no mesmo ato João Pedro Carvalho de Moraes apresentou a SUA ALTEZA REAL uma carta das Câmaras de Santo Antônio de Sá e Magé contendo iguais sentimentos e SUA ALTEZA REAL dignou-se a responder com as expressões seguintes = Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto, diga ao povo que fico = E logo chegando SUA ALTEZA REAL as varandas do Paço disse ao povo "= agora só tenho a recomendar-vos a união e tranquilidade =" Foi a resposta de SUA ALTEZA REAL seguida de vivas de maior satisfação levantados das janelas do Paço pelo presidente do Senado da Câmara e repetidos pelo imenso povo, que estava reunido no largo do mesmo Paço, pela ordem seguinte = Viva a religião = Viva a constituição = Viva el rei constitucional = Viva o príncipe constitucional = Viva a união Portugal com o Brasil. = Findo este ato, se recolheu o Senado da Câmara aos Paços do Conselho, com os cidadãos, e os mestres do povo que acompanharam, e o sobredito coronel pela província do Rio Grande do Sul. E de tudo para constar se mandou lavrar este termo que todos os sobreditos assinaram comigo José Martins Rocha, escrivão do Senado da Câmara que a escrevi.

***

Após o discurso proferido por Dom Pedro, o príncipe e futuro imperador do Brasil proferiu sua famosa frase que se tornou símbolo daquele dia: "Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto, diga ao povo que fico". Trechos do discurso foram citados no termo de vereação, apresentado anteriormente. 

A resposta dada por D. Pedro às Cortes de Lisboa foi considerada afrontosa, e a partir de então teve início o acirramento entre Portugal e o Brasil, com o envio de tropas e a tentativa de levar o príncipe a força, mas tentativa frustrada. Meses depois em 7 de setembro ocorreu a proclamação da independência, mas posteriormente estourou as guerras de independência. 

Fontes:

Manifesto do Fico

Termo de vereação do dia do fico

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

As faces de Juliano Moreira: luzes e sombras sobre seu acervo pessoal e suas publicações

Nesta singela homenagem aos 150 anos do nascimento do "pai da psiquiatria brasileira", o médio Juliano Moreira, compartilho esse artigo da professora Dra. Ana Venancio. 

O tema deste artigo é o estatuto de originalidade e verdade concedido aos documentos que compõem o arquivo pessoal de Juliano Moreira (1873-1933) e aos trabalhos publicados sobre e por esse psiquiatra baiano. Este trabalho advém de um estudo de antropologia histórica preocupado em discutir o "lugar" de Juliano Moreira na produção da psiquiatria no Brasil e em compreender o papel desse campo científico nos projetos de construção de uma "nação" brasileira. O caminho aqui apresentado é de ida ao campo dos acervos históricos em busca de fontes secundárias e primárias sobre o tema. Nesse percurso, discuto questões relativas à idealização dos acervos pessoais e à forma como o próprio processo de busca me informou sobre meu objeto, problematizando as noções de verdade e ciência que estiveram aí implicadas.

Não é difícil reconhecer que muitos dos trabalhos produzidos desde os anos 1980 sobre a história da psiquiatria indicam que Juliano Moreira foi o "fundador" da psiquiatria científica brasileira, por oposição à figura de Teixeira Brandão, difusor do pensamento psiquiátrico francês no Brasil e precursor da "entrada" da psiquiatria na esfera da assistência pública, como se verificou nas últimas décadas do século XIX (Costa, 1989; Oda, 2001; Portocarrero, 2002; Vasconcelos, 1998). Tal produção, ainda que tenha difundindo uma perspectiva crítica sobre a história da psiquiatria e sobre a obra de Juliano Moreira, afirmava o caráter "excepcional" ou "singular" desse personagem, também presente, em décadas precedentes, em trabalhos de psiquiatras preocupados em registrar os "avanços históricos" da psiquiatria brasileira (Austregésilo, 1933; Colares, 1973; Lopes 1964; Roxo, 1933).

O que me interessava, entretanto, não era julgar a atribuição de paternidade da psiquiatria brasileira a Juliano Moreira ou a Teixeira Brandão, e sim o fato de Juliano Moreira ser representado, historicamente, como o pai da psiquiatria científica no Brasil. Por que Juliano Moreira permanece no imaginário erudito como o fundador do saber e da prática psiquiátrica por excelência? Quais as suas concepções científicas sobre os estados "perturbados" nomeados como doença mental? Quais as relações entre tais concepções e a construção de uma imagem de homem brasileiro para o processo civilizatório nacional das três primeiras décadas do século XX? Até então o que eu poderia dizer é que o estatuto de verdade concedido pelo próprio campo psiquiátrico às proposições publicadas por Juliano estava referido à proposta programática para a política assistencial e tratamentos especializados para doentes mentais que ele formulara. Foi como autor dessa proposta programática, divulgada em dezenas de artigos publicados em periódicos científicos, que Juliano Moreira perpetuou a imagem de ator fundador da psiquiatria científica no Brasil.

O personagem

Juliano Moreira, mestiço e de origem pobre, nasceu em Salvador em 6 de janeiro de 1873. Segundo Carvalhal (1997), aos 13 anos matriculou-se como interno na Faculdade de Medicina da Bahia. Adquiriu o grau de doutor em 1891 com a tese "Sífilis maligna precoce", que foi divulgada e elogiada no exterior, no Jornal des Maladies Chlauées el Syphililiques e nos Annales de Dermatologie el Syphiligraphie. Em 1896 ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia como professor substituto da Seção de Doenças Nervosas, após defender a dissertação "Disquinesias arsenicais". Na Bahia, dedicou-se à dermatologia e à neuropsiquiatria, colaborou no periódico Gazeta Médica da Bahia, na Revista Médico-Legal e na Revista dos Internos da Faculdade de Medicina da Bahia e foi um dos fundadores da Sociedade de Medicina e Cirurgia e da Sociedade de Medicina Legal da Bahia.

Retrato de Juliano Moreira na década de 1920. 

Entre 1895 e 1902 fez uma série de viagens à Europa para tratar-se de tuberculose, contraída pela rotina desregrada e pela dedicação intensiva aos estudos. Nesse período, frequentou diversos cursos de doenças mentais, tendo, como professores Flechsig, Krafft-Ebing, Emil Kraepelin, Magnan, entre outros, cujas experiências resultaram em trabalhos publicados na Gazela Médica da Bahia. Na Europa também realizou estágio de anatomia patológica com Virchow e visitou as principais clínicas psiquiátricas e manicômios da Alemanha, Inglaterra, Escócia, Bélgica, França, Itália, Áustria e Suíça.

De volta ao Brasil, Juliano Moreira instalou-se no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. Em 1903, por influência de Afrânio Peixoto e J.J. Seabra (ministro da Justiça do governo Rodrigues Alves), foi nomeado diretor do Hospital Nacional de Alienados. Sua nomeação dava-se após uma série de escândalos ocorridos na administração de Antonio Dias Barros, que resultou num inquérito levado a cabo pelo Ministério da Justiça. Esse inquérito constatou as péssimas condições de tratamento no hospital e a completa promiscuidade entre crianças e adultos (Engel, 2001: 255). E verdade que as críticas à assistência prestada aos alienados eram recorrentes desde a época do antigo hospício. Já nos anos 1860 discutia-se sua administração e quase 20 anos mais tarde eram comuns denúncias de violência e maus tratos (Teixeira, 1997: 312). O que distingue as antigas críticas daquelas que resultaram na nomeação de Juliano Moreira é o momento sociopolítico no qual estiveram inseridas.

A nomeação de Juliano Moreira para a direção desse hospital de alienados e as reformas que ele lá empreendeu coadunavam-se com o processo de saneamento e urbanização da cidade do Rio de Janeiro durante a gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906). Nessa época, no intuito de atrair capital e mão-de-obra imigrante, e de melhorar as vias de acesso ao porto do Rio de Janeiro, várias ruas foram alargadas, casas foram demolidas e uma intensa campanha de vacinação e profilaxia de doenças infecciosas (febre tifoide, febre amarela, malária etc.) foi promovida por Oswaldo Cruz, então diretor geral de Saúde Pública. Nesse contexto, a nomeação e a atuação de Juliano Moreira no referido hospital reforçavam as iniciativas "modernizadoras" do Estado, ampliando-as para essa esfera da assistência pública - a dos alienados - corroborada pelo projeto de desenvolvimento de uma ciência psiquiátrica brasileira.

No período em que esteve na direção do Hospital Nacional de Alienados (1903-1930) Juliano Moreira atuou como divulgador de uma psiquiatria científica brasileira tanto no âmbito nacional quanto no panorama internacional. Em 1905 fundou os Archivos Brasileiros de Medicina, juntamente com Antonio Austregésilo e Ernani Lopes. No mesmo ano, com Afrânio Peixoto, criou a Sociedade Brasileira de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins. No contexto internacional participou de diversos congressos médicos, como os de Lisboa (1906), Amsterdã e Milão (1907), Londres e Bruxelas (1913), sendo também membro de várias sociedades cientificas européias. Em 1911 foi nomeado diretor da Assistência Médico-Legal de Alienados, órgão criado em 1890 para a formulação de uma política assistencial para os alienados - órgão este que em 1927 foi rebatizado de Serviço de Assistência a Psychopatas (Sap), pelo Decreto no 17.805 de 23 de maio, passando a integrar o Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores. 

E durante sua gestão, Juliano Moreira criou o Manicômio Judiciário e envidou esforços para a aquisição do terreno, a construção e a fundação da Colônia Juliano Moreira

Já em 1928, foi convidado pelas universidades japonesas de Tokyo, Kyoto, Sendai e Osaka para fazer diversas conferências sobre sua especialidade, sendo condecorado com a Ordem do Tesouro Sagrado pelo Imperador Hirohito (1901-1992). Somente em 1930 se afastaria da direção do Hospital Nacional de Alienados, vindo a falecer, três anos mais tarde, na cidade de Correias, no Rio de Janeiro, para onde se mudara já muito debilitado devido à tuberculose.

A ida a campo

Minha aproximação da história desse personagem, entretanto, foi inicialmente secundária. Em 1987, quando iniciei o mestrado em antropologia social, me interessei pelo tema da psiquiatria como modo social erudito de representar as "perturbações mentais" através da conjugação da ciência com a assistência pública. Essa relação entre a produção de uma ciência - que toma a loucura como um objeto a ser investigado - e de uma assistência pública – inaugurada com a instituição asilar - é mesmo fundamental na constituição da psiquiatria, sendo atualizada de forma distinta em diferentes contextos nacionais, como informam Foucault (1980: 2), Castel (1978: 101) e Shorter (1997: 69) sobre os casos francês e alemão.2

Naquela época eu estava particularmente curiosa a respeito da transformação pela qual a psiquiatria brasileira vinha passando - mais tarde intitulada pelo próprio campo de "reforma psiquiátrica" - e que tinha como principal lema "Por uma sociedade sem manicômios". Coincidentemente, naquele período fui trabalhar num núcleo de pesquisa em psiquiatria social localizado na Colônia Juliano Moreira. Situada em Jacarepaguá, a Colônia Juliano Moreira era uma instituição psiquiátrica tipicamente asilar que, desde 1981, estava engajada num processo de transformação de seu aparato institucional e assistencial. A própria criação de um núcleo de pesquisa numa unidade de assistência fazia parte das propostas de transformação: buscava-se compreender os determinantes e os atores sociais importantes no processo de mudança de paradigma do cuidado e construir uma visão crítica no interior da própria instituição. Esse foi o meu primeiro contato com o nome de Juliano Moreira, quando tomei conhecimento de que ele havia sido um "psiquiatra importante" que se dedicara com afinco à criação da referida Colônia, em 1924, então chamada Colônia de Jacarepaguá.

Ainda nesse período, tive contato com a dissertação de mestrado em filosofia de Vera Portocarrero, intitulada "Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria". A fotocópia desse trabalho circulava bastante como referência entre os profissionais da área voltados para uma "psiquiatria social". Tratava-se de um trabalho que indicava o papel pioneiro de Juliano Moreira na construção de uma ciência psiquiátrica e que o articulava aos processos de medicalização e normatização social, entre fins do século XIX e a década de 1930. Pareceu-me à época que esse era um trabalho definitivo sobre a figura de Juliano Moreira e que náo era possível falar mais nada a respeito.

Doze anos mais tarde eu já concluíra o doutorado, trabalhava no Instituto de Psiquiatria (Ipub) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e prestava assessoria ao Instituto Franco Basaglia (IFB), uma organização não-governamental na área da saúde mental. Imersa profissionalmente no campo psiquiátrico, deparei-me inúmeras vezes com o nome de Juliano Moreira, por essas duas vias institucionais. No Ipub, Juliano Moreira não somente era citado como o fundador da psiquiatria científica brasileira, mas também tinha sido objeto de uma dissertação de mestrado que enaltecia sua originalidade e seu papel avant la lettre frente à questão das relações entre ciência e assistência pública. No IFB, ele era objeto de uma pesquisa intitulada "Fontes primárias e secundárias relativas a Juliano Moreira", que visava a reunir documentos e trabalhos publicados por e sobre esse personagem. A perspectiva que informava essa pesquisa era mais crítica do que a produzida na instituição universitária e me fez suspeitar de que havia mais coisas entre o céu e a terra no mundo psiquiátrico do que poderia suspeitar minha vã filosofia.

Nesse período eu trabalhava no Ipub numa pesquisa antropológica sobre a hegemonia biológica no campo psiquiátrico contemporâneo e as representações da pessoa moderna aí implicadas. Interessei-me em buscar compreender como, historicamente, a psiquiatria brasileira se auto-representara como científica, exatamente por sua atenção mais detida no caráter orgânico das doenças mentais. Juliano Moreira aparecia, assim, como figura fundamental para a investigação. Juntei-me então à equipe de pesquisa do IFB - um psiquiatra e uma historiadora recém-graduada -, que já realizava a busca de fontes primárias e secundárias sobre o referido psiquiatra.

Duas vias investigativas estavam sendo perseguidas. A primeira visava a reunir os trabalhos publicados por e sobre Juliano Moreira, e a segunda pretendia localizar os documentos, fotos etc. que conformariam seu acervo pessoal, o qual supúnhamos existir devido à importância desse personagem para a história da psiquiatria no Brasil segundo as auto-representações do próprio campo: tanto as mais críticas quanto as mais afeitas a uma historiografia sobre suas eminentes figuras. Com relação a essa segunda via, apoiávamo-nos também em nossa própria representação do estatuto de um "arquivo pessoal" como aquele que expressaria a experiência vivida, dada a forma como o arquivo teria sido elaborado por seu autor.

A equipe de pesquisa já realizava visitas a diversas instituições do campo médico-psiquiátrico e a bibliotecas, em busca de documentos e periódicos de época: Colônia Juliano Moreira, Hospital Philippe Pinel, Centro Psiquiátrico Pedro II,3 Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Faculdade de Medicina da UFRJ, Academia Nacional de Medicina, Academia Brasileira de Ciências, Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Biblioteca Nacional e Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro. Através do levantamento realizado, produziu-se uma relação de 112 artigos publicados por Juliano Moreira, nove artigos de outros psiquiatras sobre seu colega baiano, escritos entre 1913 e 1934, e mais dois outros trabalhos, escritos em 1964 e 1973 - este último por ocasião da comemoração do centenário de seu nascimento. Desse total, foram obtidas cópias de 48 artigos de Juliano Moreira e de alguns artigos sobre ele, sendo que parte dos textos teve de ser transcrita à mão e depois digitada, em virtude de suas condições precárias de conservação.4

Dois fatos chamavam a atenção: o péssimo estado de conservação dos periódicos médicos e psiquiátricos na maior parte das instituições de assistência e das universidades em que eram mantidos-muitas vezes amarrados em pacotes jogados em sótãos ou salas de depósito - e a total inexistência de informações sobre onde estaria o arquivo pessoal de Juliano Moreira. Além disso, as sociedades científicas que Juliano Moreira fundara não existiam mais, e mesmo a atual Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) nada guardava de seu acervo pessoal.

O contato com a psiquiatra que redigira no Ipub sua dissertação de mestrado sobre Juliano Moreira, e que mais tarde seria presidente da Aperj, lançaria algumas luzes sobre os silêncios e dúvidas relativos ao destino desse acervo. Segundo essa informante, de fato o acervo pessoal de Juliano Moreira não estava sob a guarda de nenhuma instituição. Ele teria sido mantido pela mulher de Juliano, sra. Augusta Moreira, enfermeira alemã que o psiquiatra conhecera numa de suas viagens à Europa e que aqui viveria até sua morte, em meados de 1970 ou início dos anos 1980.

A estória que me foi contada era a de que Juliano Moreira era um homem de muito poucas posses, que vivia de seus proventos como funcionário público e residia com sua esposa no próprio Hospital Nacional de Alienados (atual sede da Uni-Rio, Praia Vermelha), como cabia à função de diretor da instituição. Sua mulher também não possuía bens; ao vir morar no Brasil, trocara-os por títulos do governo alemão que deixaram de ter qualquer valor nos anos 1920. Após deixar a direção do Hospital Nacional de Alienados, Juliano teria se mudado com a mulher para o antigo Hotel dos Estrangeiros, situado na praça José de Alencar, no Largo do Machado, e os parcos recursos de sua aposentadoria precisariam ser acrescidos da "ajuda de amigos", de modo a prover os cuidados necessários à sua saúde, já debilitada.

Ainda segundo essa informante, Juliano teria poucos livros, pois além da vida modesta que levava, sempre se empenhara em formar uma ótima biblioteca para o próprio hospital, sobre a qual encontramos menção em O cemitério dos vivos de Lima Barreto. Após sua morte, os livros de Juliano Moreira teriam sido doados por d. Augusta ao Hospital de Juqueri, em São Paulo, não havendo, entretanto, mais notícias a esse respeito. Havia, sim, álbuns de fotografias, de recortes de jornais e de documentos, feitos pelo próprio Juliano Moreira e por sua mulher. E onde estão esses álbuns, perguntava eu? Até onde sei, respondeu a informante, alguns foram distribuídos por d. Augusta aos amigos que sustentaram Juliano Moreira no fim da vida; como Ernani Lopes, a fim de retribuir a ajuda recebida. Além disso, completava a informante, em 1973, ano do centenário de nascimento de Juliano Moreira, o psiquiatra dr. Neves Manta empenhou-se na realização de uma comemoração na Academia Nacional de Medicina, ocasião em que d. Augusta teria doado cinco desses álbuns para ele. O dr. Neves Manta conhecera essa informante e, segundo ela, ao longo do convívio que tiveram na Santa Casa da Misericórdia, vez ou outra lá chegava presenteando-a com um desses álbuns. Eu encontrava, assim, pane do acervo pessoal de Juliano Moreira, embora a informante não tenha franqueado, na época, meu acesso a esse material.

Em 2004 retomei o contato com essa psiquiatra, após quatro anos de convivência institucional com ela no Ipub e alguns trabalhos que publiquei sobre Juliano Moreira. O contato telefônico foi cordial e, como insisti para que me contasse mais sobre o acervo que guardava, ela me convidou para uma visita. Mostrou-me então dois desses álbuns, mencionando que não sabia mais onde estavam os outros três, pois tinha se mudado e precisaria procurá-los. Dois dos álbuns estavam à mão porque ela acabara de produzir um DVD sobre Juliano Moreira, para apresentação no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, utilizando muitas das imagens que os compunham. Ela não sabia ao certo quais álbuns haviam sido organizados pelo próprio Juliano Moreira ou por d. Augusta, nem se essa organização datava de antes ou depois da morte do psiquiatra.

Quando o campo é o arquivo: história e ciência psiquiátrica

A ida ao campo era um processo tanto de busca quanto de realização de encontros: de um lado, as fantasias e expectativas de um encontro com o "passado" guardado em algum lugar acessível, no qual seria possível "mergulhar" para conhecê-lo; de outro; o fato de que era mais a busca do que o encontro dos arquivos que lançava luz sobre o personagem em estudo e seu lugar na história da psiquiatria no Brasil. As fantasias e expectativas apoiavam-se num certo preciosismo das fontes, que construía a imagem de um arquivo pessoal rico em fotos e recortes de jornais, com vasta documentação de todos os grandes feitos reveladores da história da psiquiatria no Brasil, tal como construída por Juliano Moreira. Entretanto, a busca por seu acervo pessoal não nos remeteu à autoimagem de J Juliano nem nos descortinou a cena de três décadas de vida pública, iluminada por holofotes, como demonstra sua produção de artigos e a de seus comentadores.

No ponto de chegada dessa busca e do encontro possível, havia apenas um certo "retrato" do final da vida de Juliano Moreira, marcado pela doença e pelo ostracismo. Pela via do arquivo, não houve acesso à sua própria visão de sua trajetória pessoal e de sua vivência como "fundador da ciência psiquiátrica brasileira", à sua percepção da relação entre a experiência que viveu e as questões cientificas que abordou. O pequeno fragmento da experiência desse personagem, contido em apenas poucos álbuns de recortes, também estava destituído de um possível sentido "original", pois nem ao menos se sabia se ele fora "construído" em vida por Juliano Moreira ou se fora elaborado a posteriori por sua mulher, como tentativa de rememorar os anos vividos em conjunto com seu marido.

A estória que me foi recontada por minha informante havia sido ouvida por ela de outro psiquiatra (o dr. Neves Manta). Percebi então que também não havia elementos para atribuir um estatuto de verdade, senão ao acervo pessoal de Juliano Moreira, ao menos aos fatos que eram contados: não havia testemunha ocular e, segundo a informante, "os que poderiam saber mais sobre esses fatos já morreram". O que se podia depreender era apenas que, no imaginário das pessoas que teriam vivido ou contado essa estória, o acervo pessoal de Juliano Moreira teria tido o valor de moeda de troca em relação aos recursos materiais e afetivos que ele recebeu ao final de sua vida.

Caía o pano. A única via de acesso alternativa seriam os trabalhos publicados por Juliano Moreira ao logo de sua vida e as fontes secundárias. Tais fontes, datadas em sua maioria de 1913 a 1934, como já mencionado, foram redigidas, portanto, durante a vida de Juliano Moreira por colegas de profissão. Todas elas são marcadas por um tom enaltecedor da importância da obra do psiquiatra baiano para a ciência e a assistência psiquiátrica brasileira. Interessante notar que em nenhum desses artigos encontra-se menção ao fato de Juliano Moreira ser mulato e ter se casado com uma mulher alemã (união que não gerou filhos), apesar de todo o debate da época sobre a constituição racial do povo brasileiro e suas possíveis relações com os temas da alienação mental e da degeneração. A bibliografia mais crítica produzida a partir dos anos 1980 - que problematizava a obra de Juliano Moreira e a psiquiatria a partir da análise dos processos de medicalização e normatização da sociedade brasileira - também não se detinha nas possíveis relações entre a trajetória pessoal desse personagem e temas sociais cruciais da época, como a questão racial. A única referência que encontramos a esse respeito é uma menção de Freyre (1973: 183) ao fato de que Juliano Moreira conseguira ascensão social e embranquecimento através de seus estudos médicos.

O que encontramos nessas fontes secundárias foi o mesmo imaginário que produziu nossa curiosidade em buscar o arquivo pessoal de Juliano Moreira: o de que seu acervo pessoal ou sua obra serviriam como testemunho do sentido último de uma verdade. No primeiro caso, tratava-se da verdade sobre a relação entre a experiência pessoal desse personagem e sua vida pública, enquanto no segundo a verdade dizia respeito à comprovação dos "avanços" incontestes da psiquiatria capitaneados por ele nas três primeiras décadas do século XX, como se tudo que Juliano Moreira escreveu e publicou tivesse sido de fato efetivado. Medidas jurídico-punitivas para os sifilíticos que se casavam, fundação de laboratórios nos hospitais de alienados, colônias para os epilépticos e reformatórios para alcoolistas são alguns dos temas das exemplares propostas assistenciais de Juliano Moreira presentes em seus artigos. Mas o que se pode observar é que, até o momento, as pesquisas históricas não informam se tais diretrizes foram, em grande medida, implantadas no Rio de Janeiro. Seria aqui necessário um trabalho de investigação que se debruçasse sobre os prontuários psiquiátricos da época - os diagnósticos e as práticas terapêuticas - e sobre outros acervos institucionais, de modo a iluminar os princípios que organizaram a criação de "núcleos", "blocos" e "hospitais" nas instituições psiquiátricas do Rio de Janeiro.

Deste percurso ficou a questão sobre a tensa relação entre um "outro" que, distinto de nós, é constituído como objeto, e o que dele encontramos em nós mesmos. A construção do "objeto" histórico nos remeteu, portanto, à idéia de verdade que encontramos no campo da ciência, mas que também podemos estar reproduzindo em nossas próprias pesquisas. Constatávamos que a auto-representação da psiquiatria sobre suas origens científicas no Brasil poderia ser identificada como análoga à própria representação que essa pesquisa em ciências sociais estava construindo em relação aos arquivos pessoais, sua originalidade e o estatuto de verdade sobre o indivíduo que eles comportam.

A psiquiatria científica e o processo civilizatório brasileiro

De qualquer modo, para além de nossa ilusão inicial sobre as revelações que poderíamos encontrar no acervo pessoal de J Juliano Moreira e para além das referências elogiosas presentes nas fontes secundárias citadas, permanecíamos sem resposta à nossa pergunta inicial: o que havia de científico no modo de Juliano Moreira pensar o conhecimento e a prática psiquiátrica? Dito de outro modo: por que o conhecimento e a prática psiquiátrica empreendida por Juliano Moreira permaneciam no imaginário erudito como fundadores de uma "verdadeira" ciência brasileira? Nossa hipótese, era a de que, como toda ciência, sua prática teria se imbuído da tarefa de responder a uma questão de modo sistemático e com base em evidências. Mas qual era essa questão?

Nesse momento da pesquisa, buscamos somente analisar as "grandes idéias" desse personagem presentes em seus artigos, tomando por base as representações sociais que sustentavam a própria construção de um modelo de ciência psiquiátrica e comparando-as às noções precedentes, expressas à época como superáveis pelos "avanços do conhecimento". Em Venancio e Carvalhal (2001) e Venancio (2004) perseguiríamos então a relação entre os temas candentes à época, que discutiam a imagem do Brasil - o clima tropical e seus efeitos sobre o comportamento do brasileiro, incluindo-se aí os excessos sexuais, a miscigenação das raças, os ideais de saúde e doença -, e as teorias científicas psiquiátricas divulgadas por Juliano Moreira.

Por um lado, o conhecimento psiquiátrico que vigorava na época de Juliano Moreira estabelecia uma relação de determinação entre raça e aparecimento de doença mental. Nina Rodrigues (1862-1906), um dos maiores expoentes da nascente psiquiatria brasileira, da medicina legal e da antropologia - num período em que tais disciplinas estavam entrelaçadas -, discutiria a relação entre loucura e crime, utilizando para tanto o aporte teórico da noção de degeneração e de sua correlação com a miscigenação racial. Para Nina Rodrigues (1939 apud Oda, 2001), a distinção racial era importante para a compreensão das doenças físicas e mentais, considerando-se que as raças transmitiriam "aos produtos de seus cruzamentos caracteres patológicos diferenciais de valor". Nesse contexto, segundo Oda (2001: 3),

“a inferioridade racial dos negros e indígenas com relação ao branco era indiscutível e, assim sendo, a miscigenação entre raças em diferentes patamares evolutivos resultaria, fatalmente, em indivíduos desequilibrados, degenerados, híbridos do ponto de vista físico, intelectual e nas suas manifestações comportamentais”.

Por outro lado, como já mencionado, Juliano Moreira fundamentara sua ciência psiquiátrica no pensamento do alemão Emil Kraepelin, que, em sua grande síntese classificatória das doenças mentais de meados do século XIX, preocupara-se em estabelecer nítidos critérios classificatórios do quadro clínico - tendo-se em vista a etiologia patológica - e do curso ou evolução das doenças mentais. Conforme já analisado em Venancio e Carvalhal (2001), para Kraepelin, assim como 'para Juliano Moreira, as chamadas doenças mentais eram uma exceção biológica passível de ser observada através da dimensão orgânica dos indivíduos.

O mais notável, entretanto, na adoção da psiquiatria kraepeliniana por Juliano Moreira foi a ousadia de sua transposição para uma realidade como a nossa, que, do ponto de vista do mundo "civilizado", poderia servir como testemunho societário da irredutibilidade das diferenças biológicas/naturais. O Brasil vivia um período de desmantelamento de uma ordem social "tradicional", com a eclosão de questões em torno da construção de uma identidade nacional. Conforme Russo (1997), tratava-se de uma sociedade caracterizada pela miscigenação de raças e que trazia em seu cerne as marcas de uma ordem social hierárquica fortalecida pelos modelos de organização social imperial e escravocrata, há bem pouco tempo colocados formalmente em jogo. Além disso, fatores como o clima e as incipientes condições sanitárias reforçavam a composição de um quadro social no mínimo problemático, tendo-se em vista o estado de civilização dos países europeus na época.

E, portanto, em relação a esse contexto que podemos entender o valor de ciência conferido aos esforços de Juliano Moreira para refutar a idéia de uma hierarquia dos povos pautada na diferença entre países de climas variados ou formações raciais diversificadas. Moreira e Peixoto (1906) desenvolveriam a tese de que não existem doenças mentais climáticas, afirmando assim que os climas tropicais em si não dariam origem naturalmente a mais ou menos casos desse tipo de moléstia. Na perspectiva desses autores, a incidência de neurastenia e histeria no Brasil, por exemplo, não era diferente dos índices encontrados na Europa e na América do Sul, mesmo considerando-se que formas convulsivas da histeria poderiam se tornar epidemias, como a da Astasie-Abasia, em São Luís do Maranhão, de 1879-1881. São recorrentes, nesse sentido, as afirmações sobre a importância de um meio social saudável e uma educação eficaz na prevenção do possível aparecimento de doenças mentais.

“O clima não influi em nada sobre os sintomas de diversas psicoses. E no grau de instrução do indivíduo que reside a causa das diferenças que podem se apresentar. O descendente puro de dois caucasianos, igualmente puros, criado no interior, no meio de pessoas ignorantes, apresenta os mesmos delírios rudimentares que os indivíduos de cor desprovidos de instrução”. (Moreira e Peixoto, 1906: 238, tradução minha).

Juliano Moreira negaria também a correlação entre degeneração e constituição racial, indicando que a primeira decorria de outros fatores causais: o alcoolismo, a sífilis e as condições educacionais e sanitárias precárias. Como representante do pensamento sanitarista no campo psiquiátrico, defenderia medidas profiláticas que, entretanto, não tinham uma conotação racista (Oda, 2001: 6).

O pensamento de Juliano Moreira sobre a dimensão físico-orgânica das doenças mentais e sobre suas causas e evolução coadunava-se assim com uma perspectiva inovadora para o pensamento psiquiátrico, pautada numa visada sobre a igualdade das raças que possibilitaria a inclusão do miscigenado povo brasileiro num projeto universalista de desenvolvimento. O que estava em jogo era a prospecção de uma sociedade cujos integrantes, pelas vias da educação e da produção de um meio social saudável, poderiam se constituir como moralmente iguais e passíveis de ser influenciados por uma moralidade civilizada. Dessa forma, eram combatidas as diferenças irredutíveis, presentes apenas na dimensão físico-orgânica dos indivíduos. Tratava-se aqui da defesa do projeto de uma sociedade igualitária frente às possíveis diferenças físico-orgânicas individuais que, apesar de poderem atingir uma parcela da população, eram comprovadamente independentes do clima e da constituição racial.

NOTAS:

1. Seria interessante aprofundar os desenvolvimentos e transformações desse órgão público federal que tomava para si a responsabilidade da assistência psiquiátrica no Brasil. Conforme Engel (2001: 258) e Venancio (2003: 889), em 1930 o Sap passa a integrar o Ministério da Educação e Saúde Pública criado pelo Governo Provisório e, em 2 de abril de 1941, através do Decreto no 1.371, o Sap é substituído pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM). A reformulação do SNDM se daria em 1970, com a nova designação de Divisão Nacional de Saúde Mental, órgão do Ministério da Saúde.

2. 2. Segundo os autores citados, no caso da nascente psiquiatria francesa da primeira metade do século XIX, a clínica psiquiátrica foi edificada em conjunto com uma política assistencial asilar para os alienados, não estando nos avanços científicos e sim na problemática da assistência pública a construção de uma competência médica. No caso alemão, a ciência psiquiátrica se constituiu e se consolidou afastada de uma política de assistência, sendo exercida desde seu surgimento apenas nas clínicas universitárias. O prestígio da psiquiatria alemã florescia nos espaços universitários, para onde convergia a criação de associações e de revistas científicas e onde o ensino e a pesquisa psiquiátrica eram dominantes. Ali era menos freqüentemente importante a demonstração para os alunos de pacientes internados nos asilos, cuja preocupação com sua própria administração tornava-os, em grande medida, abrigo para casos crônicos. Para uma discussão mais estendida sobre a história da relação entre ciência psiquiátrica e política assistencial no Brasil, ver Venancio (2003).

3. Esses três hospitais psiquiátricos federais foram municipalizados a partir de 1996, e são hoje designados respectivamente como Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, Instituto Philippe Pinel e Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira.

4. Esse acervo de textos fotocopiados encontra-se à disposição para consulta no Instituto Franco Basaglia (IFB), sediado no Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro.

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Fonte: VENANCIO, Ana Teresa A. As faces de Juliano Moreira: luzes e sombras sobre seu acervo pessoal e suas publicações. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, julho-dezembro, 2005, p. 59-73.