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Leandro Vilar

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Nikola Tesla, o gênio renegado

Tesla foi um dos maiores gênios da humanidade entre os séculos XIX e XX, homem de engenho estupendo, era uma mente inventiva a frente de seu tempo, desenvolvendo diversas tecnologias e até aprimorando outras. Apesar de sua genialidade, nem todos o admiravam, mas tinham inveja dele, por conta disso, Tesla ganhou inimigos que tentaram minar sua reputação e até prejudicaram seu trabalho. Neste texto conheceremos um pouco da história desse gênio que acabou sendo renegado e quase esquecido. 

Retrato de Nikola Tesla em 1890. 

Nascimento e juventude

Nikola Tesla nasceu em 10 de julho de 1856 no vilarejo de Smiljan, na época, parte do Império Austríaco, atualmente território da Croácia. Apesar disso, Tesla não era nem austríaco e nem croata, mas sérvio. Seu pai era Milutin Tesla (1819-1879), um padre ortodoxo que se casou com Duka Mandíc (1822-1892), filha de um padre também e descendente de uma família de artesãos e fabricantes de ferramentas. Tesla era o quarto filho de um total de cinco, sendo seu irmão mais velho chamado Dane, enquanto os demais filhos eram três mulheres de nome Milka, Angelina e Marica. Seu irmão mais velho morreu num acidente de cavalo, quando Tesla tinha cinco anos, fazendo conviver pouco com este e crescer ao lado das irmãs. (O'NEILL, 2007, p. 9).

Tesla foi estudar na escola local de Smiljan, sendo alfabetizado, aprendendo matemática básica e aspectos da doutrina ortodoxa. Em 1862 seu pai conseguiu um emprego como pároco em Gospic Lika, mudando-se com a família para lá. Tesla realizou seus estudos do ensino fundamental por lá. Já adolescente, em 1870 foi enviado para estudar o ensino médio em Karlovac, tendo conseguido ingressar no Ginásio Real Superior, onde as aulas eram lecionadas em alemão, o que ajudou Tesla a aprender outra língua. (O'NEILL, 2007, p. 19-23).

Ainda na infância e adolescência, Nikola Tesla mostrava uma grande curiosidade por investigar o mundo, explorar a natureza e fazer experimentos, desde coletar insetos, como brincar com objetos, água, fogo etc. Percebe-se que o menino desde cedo tinha o interesse por ciência. Hoje cogita-se que Tesla poderia ser considerado uma criança superdotada, conceito desconhecido naquele tempo. 

Durante o ensino médio ele passou a se interessar por matemática e física, desenvolvendo a pretensão de seguir carreira como engenheiro. Além disso, nesse tempo ele começou a ler os livros de Mark Twain (1835-1910), popular escritor americano de livros de aventura como Tom Sawyer (1876) e As Aventuras de Huckleberry Finn (1885). As obras dos dois meninos se aventurando pelo interior dos Estados Unidos, fascinaram o jovem Tesla pelos anos seguintes, tornando-se alguns de seus livros prediletos. (O'NEILL, 2007, p. 30).

Em 1873 ele concluiu a escola e voltou para casa, onde foi acometido de cólera e ficou gravemente doente por meses, chegando perto de morrer. Antes de isso acontecer, seu pai Milutin cogitava enviar o filho para o seminário, para que ele se tornasse padre, mas Tesla não tinha interesse na carreira do sacerdócio, assim, após se recuperar, seu pai decidiu atender o pedido do filho, o qual disse querer estudar engenharia. (O'NEILL, 2007, p. 31).

No ano de 1874, tendo melhorado da cólera, Tesla teria que se alistar no exército, mas ele não queria servir, então saiu de casa, indo para Tomingaj, passando a ajudar caçadores e lenhadores, vivendo aventuras pela floresta, enquanto ele disse que seguia lendo os livros de Twain, que lhe faziam companhia e bem-estar para sua mente. Tesla permaneceu vários meses ali até que em 1875 voltou para casa e de lá seguiu para cursar a faculdade de engenharia no Politécnico Austríaco em Graz, onde se destacou por ser um aluno pontual, assíduo e tirar excelentes notas, pelo menos no primeiro ano da faculdade, mas a realidade mudaria drasticamente. (SEIFER, 2001). 

Jovem sem-rumo

Tesla acabou se envolvendo com jogos de cartas e sinuca, onde jogava fazendo apostas, se tornando indisciplinado e perdendo dinheiro, o que o levou a perder sua bolsa de estudos. Seu pai sabendo disso, lhe cortou a mesada durante o terceiro ano da faculdade. Sem conseguir dinheiro e trabalho, Tesla abandonou o curso de engenharia em 1878, mas não voltou para casa, devido a vergonha de encarar sua família e dizer a eles que desistiu do curso por conta do vício em jogo e apostas. Assim, ele mudou-se para Maribor, conseguindo um emprego de desenhista e fazendo alguns "bicos", mas nessa época ele ainda tinha problemas com o jogo. (SEIFER, 2001). 

Seu pai viajou a Maribor para pedir que o filho voltasse para casa, mas ele se negou. Tempo depois teve um colapso nervoso e foi enviado para sua casa em 1879, no mesmo ano seu pai faleceu aos 60 anos. Naquela época Tesla tinha 23 anos, estava desempregado, não concluiu o curso de engenharia, tinha problemas com o vício em jogos de apostas e se recuperava de um colapso nervoso. Ainda naquele ano ele conseguiu o emprego como professor numa escola local, até que alguns tios compadecidos dele, lhe enviaram dinheiro para ele ir estudar na Universidade Carolina, porém, como ele não sabia tcheco, tampouco se recusou a estudar grego (que era disciplina obrigatória), Tesla não se matriculou, aproveitando o dinheiro dos tios, ele assistia aulas aleatórias na universidade, como as de física, matemática, engenharia e filosofia. Mas quando o dinheiro começou a escassear, ele mudou-se para Budapeste, indo atrás de emprego. (O'NEILL, 2007, p. 39-40). 

Em Budapeste ele passou a trabalhar na Central Telefônica de Budapeste, fundada por Tivadar Puskas (1844-1893), inventor húngaro que conseguiu subsídio do governo para instalar o telefone na capital. Inicialmente Tesla atuou como desenhista e no escritório, depois ele foi transferido para o cargo de eletricista, o qual lhe agradava mais, pois ali ele poderia interagir com as máquinas e aparelhos que lhe fascinavam. Graças ao seu bom desempenho como eletricista, em 1882, Puskas o enviou para trabalhar na Societè Eletcrique Edison, uma subsidiária francesa da Continental Edison Company, sediada em Paris. Na capital francesa ele passou a trabalhar com a instalação da rede elétrica de alguns bairros, o que o levou a trabalhar em projetos de aperfeiçoar o aparato elétrico, baseado nos inventos de Thomas Edison. (CARLSON, 2013, p. 63).

Os primeiros anos nos Estados Unidos

Thomas Alva Edison (1847-1931) já era um respeitado e rico empresário americano no final do século XIX, tendo criado empresas para fazer instalações elétricas nos Estados Unidos e em alguns países europeus como a França. Edison que ficou famoso por inventar uma lâmpada incandescente que era duradoura e poderia ser produzida em massa, despontava como o magnata da eletricidade, assim, para Tesla, o qual era interessado por eletricidade, trabalhar para a maior empresa do ramo naquele tempo, seria o sonho. 

No ano de 1884 o gerente de Tesla, o senhor Charles Batchelor foi transferido para a Edison Machine Works, em Nova York, ele solicitou que o jovem Nikola Tesla fosse junto, pois ele fez um excelente trabalho na filial francesa. Embora Tesla nunca tenha concluído a universidade por problemas envolvendo o vício em jogo, ele nunca foi um aluno de tirar notas ruins o incompetente para o curso. (CARLSON, 2013, p. 64).

Sede da Edison Machine Works, em Nova York, no ano de 1881. 

Mas a estadia de Tesla na Edison Machine Works foi breve. Ele trabalhou cerca de seis meses ali. Apesar de seu potencial e esforço, Tesla era considerado apenas como um eletricista acima da média, mesmo tendo trabalhado duro nesse período, consertando geradores e bobinas, fazendo instalações elétricas, com direito a trabalhar até mais de oito horas diárias e ao longo da madrugada. Não se sabe o motivo pelo qual ele pediu demissão exatamente, pois ele nunca o contou, mas possívelmente esteja associado com as bonificações nunca pagas, inclusive ele chegou a dizer que Edison teria prometido pagar 50 mil dólares por um conjunto de baterias que ele estava desenvolvendo, mas Edison disse que era apenas piada; sobrecarga de trabalho e o valor de ele não ser reconhecido.  (JONNES, 2004, p. 109-110).

Ainda no ano de 1885, Nikola Tesla decidiu patentear alguns de seus inventos, como alguns geradores que ele desenvolveu e o uso do sistema de iluminação de arco, além de outras invenções que ele desenvolveu nos últimos anos enquanto trabalhou nas empresas de Thomas Edison. A ideia que Tesla tinha era conseguir patrocinadores para investir em seus inventos e graças a ajuda do advogado de patentes Lemuel W. Serrell, ele conseguiu o contato de dois empresários interessados. 

Dessa forma os empresários Robert Lane e Benjamin Veill se interessaram pelos inventos de Tesla e acharam tudo aquilo promissor, então eles investiram capital e abriu uma empresa chamada Tesla Electric Light and Manufacturing, para ele projetar sistemas elétricos para ruas e fábricas. Não era exatamente o que Tesla queria, pois basicamente ele retomou o trabalho que fazia na empresa de Edison, a diferença que ele agora era o diretor da companhia, mesmo assim, ele gostava de trabalhar ao lado dos eletricistas e operários. Entretanto, Tesla acabou tendo problemas como seus sócios em 1886, ao notar que seu salário era demasiadamente baixo para seu cargo, além de que a promessa de ele receber parte das ações da empresa demorou a se realizar e quando ele as recebeu, o valor era mais baixo do que esperado. Tesla notando que Lane e Veill se aproveitaram dele, abandonou a companhia. (JONNES, 2004, p. 111-112).

Após sair da empresa que levava seu nome, a qual foi fechada em seguida, Tesla viveu meses difíceis entre 1886 e 1887, estando desempregado, sem endereço fixo, tendo que recorrer a pousadas e hospedagens baratas, tendo que passar fome algumas vezes. Por ser imigrante e falar um inglês ainda ruim e carregado de sotaque, Tesla teve dificuldades de arranjar emprego; além disso, ele não tinha amigos e nem familiares ali. Em seu diário ele relatou que viveu um ano fazendo trabalhos diários e quando surgiam. Para Tesla, aquele foi o pior ano de sua vida. Mas a realidade somente melhoraria um pouco em 1887. (O'NEILL, 2007, p. 54). 

Era inverno de 1887, Tesla ainda estava sem emprego fixo e trabalhava como escavador de valas, e ele aproveitava para conversar com os outros trabalhadores, falando de sua experiência como eletricista e até dizendo que havia patentes registradas, um capataz ouviu aquilo e contou ao seu chefe, o senhor Alfred K. Brown, o qual trabalhava para a Western Union Telegraph Companion, uma das maiores empresas de telégrafos do país e do mundo. Brown ouviu algumas ideias de Tesla, especialmente as sobre novas baterias, motores, geradores e o uso da corrente alternada, então ele decidiu investir capital nos projetos de Tesla, chamando seu amigo o advogado Charles F. Peck; assim, os dois montaram um laboratório para ele no sul da Fifth Avenue (atual West Broadway). Ironicamente o local ficava situado algumas quadras da Edison Machines Works, onde dois anos antes Tesla sugeriu a Edison investir na corrente alternada, mas ele se negou, dizendo que era muito perigosa e cara. (O'NEILL, 2007, p. 54). 

Até então a rede elétrica na maioria dos países era baseada na corrente contínua (CC), considerada mais segura e barata, inclusive amplamente difundida por Thomas Edison. Essa corrente opera com cargas positivas ou negativas, sem misturar elas. No entanto, a CC possui suas limitações, sendo recomendada principalmente para instalações de baixa tensão, pois quando se parte para a alta tensão ela se torna ineficiente e acaba saindo mais caro para compensar isso. Assim, Tesla apontava em seus estudos e experimentos que usinas de energia, usinas de transmissão, grandes geradores, motores e alternadores, deveriam fazer uso da corrente alternada (CA), pois era um processo mais eficiente, pois a corrente a cada tantos segundos alternava entre positivo e negativo, e não saia tão caro como Edison e outros apoiadores da CC alegavam. Todavia, essa disputa só iria piorar com o tempo, como será visto adiante. 

Patente EUA 381, 968 mostrando um motor de indução baseado na corrente alternada. A patente foi desenvolvida por Tesla e registrada em 1887. 

O início da Guerra das Correntes

O termo Guerra das Correntes refere-se a disputa comercial para se implantar nos Estados Unidos o uso de sistemas elétricos baseados na corrente alternada. Entretanto, no país vigorava os sistemas operantes em corrente contínua, os quais inclusive usavam as patentes de Thomas Edison, o que lhe garantia monopólio sobre a eletricidade do país. Logo, vendo que a CA se tornava uma ameaça, nem tanto por Tesla, que ainda seguia sendo um inventor desconhecido, mas sim por conta do empresário George Westinghouse (1846-1914), que atuava na indústria elétrica e vinha fazendo nos últimos anos campanha pela adoção da CA no país. 

O empresário George Westinghouse investiu no potencial de Tesla. 

No ano de 1888 o trabalho de Nikola Tesla começou a receber reconhecimento. Na época ele contava com seus 32 anos e foi convidado a palestrar sobre seus inventos e o uso da corrente alternada no Instituto Americano de Engenheiros Elétricos, em 16 de maio. Tratou-se da primeira palestra acadêmica de Tesla, em que ele finalmente estava diante de outros doutores e estudantes de engenharia elétrica e engenharia mecânica. Durante sua palestra, alguns dos presentes trabalhavam para a Westinghouse Electric & Manufacturing Company e esses ficaram entusiasmados com as patentes de Tesla e contataram o senhor Westinghouse, o qual se mostrou bastante interessado e fez negócio. (O'NEILL, 2007, p. 57). 

Tesla e seus sócios Brown e Peck fecharam acordo para produzir motores e transformadores polifásicos de corrente alternada para a empresa de Westinghouse que ofereceu 60 mil dólares por tudo. Além disso, ele contratou Tesla como consultor em 1888, lhe pagando um salário de 2 mil dólares por mês, valor bastante alto para o período. Assim, Tesla se mudou para Pittysburg para instalar um sistema de CA para mover os bondes elétricos da cidade, mas acabou não dando muito certo, tendo que se optar pelo uso da CC também. (CARLSON, 2013, p. 110-112). 

As notícias de que a Westinghouse Electric estava investindo na corrente alternada chegaram até Edison e seus sócios e isso provavelmente os irritou e deixou temerosos, pois em 1889 teve início a difusão de notícias em jornais e por boatos de que a CA era não apenas cara, mas instável e insegura, podendo causar curtos-circuitos e até incêndios. Edison e seus apoiadores dava início singelamente a Guerra das Correntes que somente pioraria com o tempo. Entretanto, esse conflito comercial não começou de imediato, apesar de seu anúncio em 1889, pois em 1890, o Banco Barings (1762-1995) entrou em crise em 1890 e quase faliu. Muitas das ações da Westinghouse Electric e parte do seu financiamento vinham desse tradicional banco britânico. Com isso, a empresa teve que cortar gastos e alguns dos projetos de Tesla foram paralisados, o que agradou Edison e os defensores da corrente contínua. (CARLSON, 2013, p. 130-131). 

A bobina de Tesla (1890-1891)

Nikola Tesla teve que encerrar vários projetos em parceria com George Westinghouse devido a crise bancária entre 1890 e 1891, mas depois disso alguns dos projetos foram retomados. Todavia, o dinheiro que ele ganhou entre 1887 e 1890 lhe concedeu segurança financeira. Seu alto salário e à venda de motores, geradores e outras máquinas o ajudou a construir um patrimônio financeiro que lhe deu segurança por vários anos, assim, ele decidiu se dedicar aos seus inventos. Um deles adveio de sua ida a Exposição Universal de Paris em 1889, ano que inclusive foi inaugurada a famosa Torre Eiffel. Lá ele tomou conhecimento dos trabalhos do físico alemão Heinrich Hertz (1857-1894) com o eletromagnetismo e as ondas de rádio, algo que deixou Tesla fascinado. 

Inspirado na bobina de Ruhmkorff, Tesla desenvolveu seu modelo, pois o anterior não suportava um sistema elétrico de carga alternada, levando-o ao superaquecimento e derretimento dos componentes internos. Assim, Tesla passou quase um ano trabalhando no projeto para desenvolver sua própria bobina, valendo-se de separar alguns componentes com uma camada de ar, a qual se aqueceria, mas não danificaria as peças. (CARLSON, 2013, p. 122).

Nikola Tesla testando uma bobina criada por ele. O intuito era mais para espetáculos para fascinar a plateia e atrair potenciais investidores. 

A bobina de Tesla como ficou conhecida inicialmente foi utilizada para exibições de descargas elétricas de alta tensão, pois ela consegue facilmente produzir pequenos raios visíveis ao olho humano, que é algo ainda hoje fascinante para muita gente. Por sua vez, Tesla aperfeiçoou o equipamento patenteando-o em 1891. Sua bobina deixou de ser meramente um experimento para poder ser usada na geração de energia de alta tensão, além de ter sido usada inicialmente para energizar transmissores de rádio e até na eletroterapia com versões compactas. (O'NEILL, 2007, p. 71). 

Porém, um dos planos de Tesla era criar torres de bobinas e fornecer energia elétrica sem fiação, usando-se o princípio do eletromagnetismo para isso. Ele chegou a investir tempo e dinheiro nisso, fazendo até experimentos públicos e dando palestras a respeito. Tesla estava confiante de que a tecnologia poderia ser melhorada a ponto de não se precisar mais de cabos, apenas se instalar estações geradoras com bobinas melhoradas, as quais forneceriam energia elétrica sem fio. Uma ideia bastante ousada e a frente de seu tempo. Atualmente o uso de fornecimento de energia elétrica sem fiação ainda é pouco explorado. Alguns celulares já estão aplicando essa tecnologia. 

A Exposição Universal de Chicago (1893)

Em 1892 Nikola Tesla foi eleito vice-presidente do Instituto Americano de Engenheiros Elétricos, cargo que manteve até 1894, tendo nesse período ganhado apoio de muita gente no instituto e o interesse de outros pelo país por suas ideias sobre corrente alternada, e agora sua obsessão de desenvolver uma tecnologia de transmissão energética sem fio, considerada fascinante por uns, mas para outros era tida como algo impossível. De fato, ambas as reações estavam certas. Realmente era algo estupendo, mas também impossível para ser concretizado de forma eficiente como Tesla sonhava. Apesar disso, ele seguiu insistindo no assunto. 

De qualquer forma, entre 1893 e 1894 ele estava investindo na difusão do uso do sistema polifásico, o qual utiliza três ou mais fases para conduzir energia elétrica numa corrente alternada. A ideia era promissora e estava dando certo, pois conseguia tornar o uso da CA em algo viável. Inclusive ainda hoje o sistema polifásico é utilizado na indústria e em instalações elétricas de alta tensão. 

Dessa forma, a Westinghouse Electric solicitou que Tesla apresenta-se seu novo projeto na Exposição Universal de 1893, que foi realizada em Chicago. Se na exposição de 1889, Nikola Tesla havia participado como espectador, agora ele estava apresentando alguns de seus inventos como suas bobinas, motores de indução, sistema elétrico sem fio e o sistema polifásico, que inclusive foi utilizado para iluminar toda a exposição que durou seis meses. (SEIFER, 2001, p. 120-121). 

Um dos experimentos mostrados por Tesla na exposição de Chicago foi o uso de um "ovo de Colombo" para apresentar os efeitos do eletromagnetismo gerado por um motor de indução de energia alternada. Um ovo feito de cobre e com bobinas no interior, ficava sobre uma plataforma eletromagnética que ao receber a energia, começava a girar no seu próprio eixo. O experimento foi uma sensação na época, inclusive a ideia de que objetos poderiam serem movidos por eletromagnetismo era algo ainda em início de estudo. 

O ovo de Colombo usado por Tesla em experimento eletromagnético durante a Exposição Universal de 1893, em Chicago. 

Ainda durante a exposição universal, Tesla mostrou outro de seus grandes inventos, um gerador a vapor de corrente alternada, também chamado de oscilador eletromecânico. Para ele a expectativa era que aquele gerador fosse uma solução para gerar grandes quantidades de energia para movimentar os circuitos elétricos de um sistema polifásico. A ideia era promissora, mas apresentava alguns problemas como grande barulho, além de causar muita vibração. Inclusive uma lenda urbana mais tarde promovida pelo próprio Tesla, disse que o tremor sentido em Nova York em 1898, foi causado por um dos geradores a vapor em fase de teste. (CARLSON, 2013, p. 181-183). 

Também no ano de 1893, Nikola Tesla prestou consultoria para a Companhia de Construção da Hidrelétrica das Cataratas do Niágara, sendo convidado pelo próprio presidente da empresa, Edward Dean Adams (1846-1931). Na época a hidrelétrica estava em construção e Adams pediu que Tesla lhe apresentasse o melhor projeto para construir os geradores e as instalações elétricas. Ele sugeriu adotar o sistema bifásico de corrente alternada já empregado pela Westinghouse Electric, sua parceira de negócios desde 1888. A ideia foi acatada, mas o irônico é que os direitos de transmissão da energia foram dados a General Electric, pertencente a Thomas Edison. (O'NEILL, 2007, p. 85-86). 

Experimentos com raio-x (1894-1896)

Um fato curioso é que no ano de 1894, Mark Twain, o escritor preferido de Tesla, foi visitar seu laboratório na Quinta Avenida. Tesla relatou que foi uma grande honra receber Twain, que por sua vez, ficou fascinado com os inventos tecnológicos do inventor sérvio. 

Fotografia de 1894 mostrando Mark Twain segurando um dos inventos de Tesla, enquanto esse o observa ao lado. 

Além da visita de Twain, o ano de 1894 foi marcado pelo início das pesquisas de Tesla sobre a radiação, nessa época o raio-x ainda não havia sido descoberto e a radiação era ainda mal compreendida. Apesar disso, Tesla como outros pesquisadores faziam uso dos tubos de Crookes para estudar os raios catódicos. Em 1895 o o físico alemão Wilhelm Röntgen (1845-1923) realizando estudos com o tubo de Crookes, veio a descobrir o raio-x. 

A notícia foi divulgada nos meses seguintes, Tesla sabendo agora sobre a descoberta, retomou suas próprias pesquisas, chegando a tirar um raio-x de uma de suas mãos. Entretanto, ele depois acabou abandonando o interesse devido ao risco dos experimentos, afinal, a radiação ainda era desconhecida, Henri Becquerel começou a estudá-la em 1896 e nos anos seguintes foi se descobrindo seus riscos à saúde. O próprio Tesla chegou a relatar em suas anotações que sofreu algumas pequenas queimaduras e mal-estar durante os experimentos com raio-x. (CHENEY, 2001, p. 134-136). 

The Nikola Tesla Company (1895)

Com o sucesso obtido em 1893 com a Exposição Universal de Chicago, Tesla ganhou vários pedidos de compra de motores, geradores e outros maquinários, além da venda de licenças de patentes e convites para se tornar sócio de empresas de energia elétrica. Um dos interessados foi Edward Dean Adams da hidrelétrica das Cataratas do Niágara. Adams investiu dinheiro ao lado dos dois sócios de Tesla, Brown e Peck, e depois outros investidores entraram em cena, assim, em 1895 foi fundada a Nikola Tesla Company com o intuito de desenvolver maquinário, aparelhos e patentes para o desenvolvimento da eletricidade. (CARLSON, 2013, p. 206). 

Todavia, a nova empresa sofreu um duro golpe naquele ano. O laboratório da Quinta Avenida pegou fogo, o incêndio foi tão intenso que quase todo o prédio ruiu. A maior parte dos inventos, aparelhos, maquinário, anotações e materiais foram perdidos. Inclusive muita coisa que Tesla havia usado na exposição universal foi destruído pelas chamas. 

O rádio controle (1898)

Interessado em conseguir acordos com as Forças Armadas, Tesla desenvolveu um dispositivo experimental controlado por ondas de rádio de curta distância. A ideia era produzir torpedos teleguiáveis por controle remoto, o que ajudaria bastante a Marinha. Ele chamou seu invento de telautomaton. Uma amostra feita com um barco controlado remotamente foi uma sensação em Nova York, mas para a infelicidade de Tesla, a Marinha e o Exército não tiveram interesse no invento. Ele ainda insistiu por mais algum tempo, mas a ideia foi abandonada. (CARLSON, 2003, p. 231). 

O protótipo de barco movido a rádio controle, criado por Tesla em 1898. 

O telautomaton foi o primeiro projeto de Tesla pensando no interesse militar e planejado para se tornar uma arma, pois o pequeno barco a controle remoto atuaria como um torpedo ou um barco-bomba. A ideia apesar de fantástica para a época acabou se concretizando mais tarde. Atualmente temos drones e mísseis teleguiados, mesmo que não usem sinais de rádio como proposto por Tesla, mas a ideia de serem armas operacionalizadas remotamente, segue o mesmo princípio. 

Laboratório no Colorado Spring (1899-1900)

Ainda interessado em aperfeiçoar sua tecnologia de condução elétrica sem fio, utilizando o ar como condutor elétrico, Tesla decidiu investir pesado nisso, para isso, ele resolveu construir um laboratório numa montanha, o local escolhido foi Colorado Springs, uma pequena cidade distante mais de dois mil quilômetros de Nova York. Todavia, ele não possuía dinheiro para isso, então foi pedir investimentos, o escolhido foi o milionário empresário John Jacob Astor IV. Tesla o conhecia, pois frequentava alguns de seus hotéis luxuosos. No caso, Astor ficou interessado e investiu 100 mil dólares para construir o laboratório de Tesla, o valor bastante alto para época, hoje passaria dos milhões. 

Laboratório de Tesla em Colorado Springs, 1899. 

Graças ao dinheiro de Astor IV, o laboratório foi construído rapidamente. Uma subestação de energia de El Paso, cidade próxima, forneceu a energia em corrente alternada para as pesquisas de Tesla. Ali ele construiu grandes bobinas, motores e geradores para projetar raios a fim de estudar a transmissão elétrica sem fio, mas também tentar criar um telégrafo sem rio, além de estudar ondas de rádio e outras coisas. Tesla estava tão obcecado com isso que chegou a dizer algumas vezes para alguns jornalistas que teria supostamente captado transmissões de rádio estranhas, que poderiam advir de fora do planeta. (SEIFER, 1998, p. 220-221). Na época, a ideia de vida inteligente em outros planetas estava em alta. Bastante lembrar que o livro Guerra dos Mundos (1897), tinha sido lançado dois anos antes. 

Os estudos de Tesla gerando milhares de megavolts foram conduzidos ao longo de meses a ponto de fritar os geradores da subestação de El Paso. Apesar desse contratempo, Tesla aproveitou em 1900 para voltar a Nova York. Ele precisava de mais dinheiro para um novo projeto ousado: construir uma torre para gerar energia sem fio, com intuito de iluminar parte da cidade de Nova York. 

A Torre de Wardenclyffe (1901-1906)

Em 1901 de volta a Nova York, Tesla se reuniu com potenciais investidores, permitindo que eles comprassem várias ações da sua empresa, assim como, vendeu direitos de uso de algumas de suas patentes e outras autorizações. Um dos seus principais investidores foi John Pierpont Morgan (1837-1913), rico banqueiro e empresário, conhecido por financiar muita coisa. O valor arrecadado foi maior do que o investido no laboratório no Colorado Springs. Assim, em posse de 150 mil dólares, Tesla comprou um terreno em Wardenclyffe, em Long Island, a alguns quilômetros de Nova York. (CARLSON, 2013, p. 314). 

A ideia de Tesla era que sua torre permitiria ser usada para transmissão de telégrafo sem fio, algo que ele pretendia ser inovador, mas seu concorrente o físico e inventor Guglielmo Marconi (1874-1937) conseguiu realizar uma transmissão a distância antes dele, transmitindo um sinal de Londres a Terra Nova no Canadá. Aquilo irritou Tesla como ele relatou em seus escritos, inclusive ele considerava Marconi um oportunista por ter copiado suas ideias. De qualquer forma, a torre que Tesla pretendia construir não serviria apenas para o telégrafo, mas para se tornar um condutor de energia elétrica de corrente alternada sem fio. (CARLSON, 2013, p. 315). 

A torre de Tesla em Wardenclyffe, em 1904. Um dos maiores fracassos de Tesla. 

A torre foi inaugurada em 1902, tendo mais de cinquenta metros de altura. Tesla se mudou com seu laboratório para lá, a fim de tornar a torre operacional o quanto antes. O problema é que embora Tesla fosse genial, em alguns casos suas ideias eram demasiadamente loucas. Ele tinha a pretensão de que até final de 1903 ele conseguiria fazer uma transmissão de energia sem fio através do Atlântico para a Europa. O problema é que isso era impossível e ainda hoje segue impossível. Com o término de 1903, somado a propaganda negativa feita por Thomas Edison contra a corrente alternada, Tesla começou a se ver em apuros novamente. 

Era o ano de 1904 e a torre ainda não estava operante. Tesla solicitou mais dinheiro para Morgan e outros investidores, mas esses começaram a negar, pois acreditavam que a ideia de transmitir energia elétrica sem fio ainda não era possível de ser feita. No ano de 1905 Tesla estava bastante endividado. O laboratório no Colorado Springs havia sido paralisado. Astor IV procurava por retorno de seu investimento alto. Além disso, Tesla havia contraído uma dívida elevada no Hotel Waldorf-Astoria. Soma-se a isso, que ainda em 1905, J. P. Morgan disse que não colocaria mais nenhum dinheiro no projeto da torre de Tesla, se não tivesse nenhum resultado eficiente. Para piorar a situação, sem conseguir investimentos para continuar com sua pesquisa e necessitando pagar as dívidas, Tesla vendeu a torre e o terreno de Wardenclyffe e voltou para Nova York. Inclusive nessa época ele passou mal e teve um colapso nervoso novamente, ficando acamado por algum tempo. (CARLSON, 2013, p. 317-320). 

A crise da Guerra das Correntes (1903)

O ano de 1903 foi problemático para a reputação de Nikola Tesla, o qual já vinha passando por problemas com seus projetos em Wardenclyffe. Naquele ano Thomas Edison agiu de forma bastante desleal e canalha. Anteriormente ele havia pedido para alguns funcionários eletrocutarem animais de rua como cães e gatos, mas também vacas e cavalos, mostrando que a corrente alternada era bastante perigosa porque concederia choques, pois a corrente contínua não causaria isso. A tortura e matança desses animais eram realizadas esporadicamente pelas praças e ruas de Nova York. Porém, o ápice dessa crueldade ocorreu no começo de 1903. 

Em 4 de janeiro de 1903 a equipe de Edison decidiu fazer um experimento com energia elétrica gerada por uma corrente alternada, mostrando os perigos da mesma. Eles iriam eletrocutar a elefanta de circo chamada Topsy (c. 1875-1903). Naquele tempo, já se cogitava matar Topsy, pois no ano anterior ela num ataque de fúria matou um espectador e já havia atacado alguns membros do circo. Logo, o dono do Luna Park, o qual Topsy pertencia, aceitou em troca de dinheiro, ceder a elefanta para o terrível teste. 

A elefanta Topsy foi eletrocutada até a morte em 1903, por conta da Guerra das Correntes. 

Uma equipe da Edison Manufactiring gravou a execução que ocorreu em Coney Island, o ato virou um curta-metragem intitulado Electrocuting an Elephant, que foi vendido na época. O vídeo pode ser achado facilmente hoje em dia. Na ocasião Topsy havia sido envenenada anteriormente, porém, o choque que ela recebeu foi tão alto, que ela morreu em menos de dois minutos. Houve protestos na época por conta do alto, mas como Topsy já havia sido condenada a morte, o caso foi abafado. No entanto, após esse ato cruel, a empresa de Edison parou de executar animais. 

A turbina de Tesla (1906)

Tentando se recuperar do fracasso da torre em Wardenclyffe, ele desenvolveu o projeto de uma turbina sem pás, que utilizaria gases para mover a turbina. Baseado na mecânica de fluídos, Tesla esperava aperfeiçoar essa tecnologia, com a qual ele trabalhou nela pelos anos seguintes, se tornando inclusive seu ganha pão até pelo menos 1922. Condição essa que seu projeto acabou até dando certo, levando-o a criar vários modelos, alguns foram utilizados em fábricas e hidrelétricas como a Hidrelétrica de Waterside em Nova York, onde foram instaladas turbinas de Tesla entre 1910 e 1911. (SEIFER, 1998, p. 397-398). 

Uma turbina de Tesla. 

Dívidas, Nobel esnobado e processos (1915)

A situação para Tesla piorava, mesmo tendo conseguido dinheiro e investimentos por conta de suas turbinas, Tesla ainda tinha várias dívidas. Além disso, seus investidores anteriores estavam mortos. Morgan morreu 1913, e seu filho se recusou a patrocinar Tesla, considerando suas ideias loucas. Westinghouse, que foi seu investidor por vários anos, faleceu em 1914. Astor IV não queria mais saber de Tesla após o fiasco no Colorado e em Long Island. Outros de seus apoiadores também haviam desistido de lhe dar dinheiro. 

A situação piorou um pouco, pelo menos em termos pessoais e emocionais, quando na premiação do Nobel de Física de 1915, não foi concedido a ele. Na época surgiu um boato que naquele ano o prêmio seria dado a Tesla e Edison, isso até chegou a ser noticiado em alguns jornais ingleses e americanos, mas a associação do Nobel desmentiu rapidamente isso. O prêmio foi dado para William Henry Brigg e seu filho William Lawrence, pelos seus estudos com estruturas de cristais a partir do uso do raio-X. Na época teve gente que achou ruim Tesla não ter vencido. Inclusive ele nunca ganhou nenhum prêmio Nobel, embora tenha sido indicado. (CHENEY, 2005, p. 240). 

Endividado e esnobado, Tesla tentou conseguir dinheiro processando o italiano Marconi, alegando que ele teria plagiado suas ideias quanto ao telégrafo sem fio. Todavia, os tribunais americanos consideraram as acusações infundadas. Marconi já havia apresentado uma patente do projeto em 1897, registrada outra em 1900 nos Estados Unidos, e em 1903 já estava trabalhando com comunicação a rádio. A tentativa de Tesla de conseguir algum dinheiro por isso falhou. Após tal acontecimento, ele começou a trabalhar em pequenos projetos para diferentes empresas. 

Os anos renegados (1918-1930)

Durante quase quinze anos Nikola Tesla passou a vida renegado por distintos fatores. Com o término da guerra, ele falhou em conseguir acordos com as Forças Armadas para comprar seus inventos, além disso, a crise financeira que havia se iniciada na década anterior ainda perdurava, Tesla contraiu dívidas de aluguel, conta de luz, conta de água, telefone, salários atrasados, diárias dos hotéis etc. Por conta disso, seu nome ficou sujo na praça, como costuma-se dizer. 

Somando-se a isso, ele perdeu oportunidades de negócios e voltou a ser renegado por seus opositores. Seu grande investidor, George Westinghouse faleceu em 1914, além de que sua empresa começou a não ganhar mais contratos e ficar financeiramente comprometida. Tesla também deixou de ser convidado regularmente para palestras e eventos. 

Entre 1919 e 1922 ele se mudou para Winconsin, onde conseguiu emprego na companhia Allis-Chamers, para aperfeiçoar sua turbina, motores e geradores. Foi um período de equilíbrio para suas finanças e sua saúde mental, já que não esteve totalmente isolado, apesar que mesmo com mais de 50 anos de idade, ele trabalhasse várias horas por dia. Porém, as tentativas de aperfeiçoar as turbinas como ele planejava não deram certo. Tesla vendeu os uso da patente e voltou para Nova York. (SEIFER, 1998, p. 398-399). 

Nessa época, Tesla desenvolveu grande apreço por pombos, passando-os a alimentá-los diariamente. Sua obsessão pelos pássaros foi tamanha que em 1923 ele foi convidado a se retirar do Hotel St. Regis, após um ano em estar morando ali, pois os hóspedes e funcionários reclamavam da aglomeração de pombos em torno da janela do quarto de Tesla e a sujeira que eles faziam ali. Embora tenha mudado de hotel, Tesla decidiu ir alimentar seus companheiros alados nos parques para evitar problemas como os estabelecimentos. Essa prática o acompanhou quase até o fim da vida. (O'NEILL, 2007, p. 349). 

Nesse período de isolamento em seus quartos de hotel, Tesla aparecia pouco publicamente, indo apenas a festas de alguns amigos quando era chamado, ou participava de alguma palestra, entrevista ou ia receber alguma premiação ou homenagem ocasionalmente, diferente da época em que toda semana ele tinha compromisso social. 

Em 1928 ele também chegou a projetar um avião biplano com hélices móveis, que permitiriam ele alçar voo como um helicóptero, porém, o projeto nunca foi construído e tinha alguns problemas aerodinâmicos. Tesla abandonou a ideia. Além disso, sua situação financeira piorou, obrigando-o a ter que fechar seu laboratório na Avenida Madison (o último que restava) e fechar seus escritórios. Somava-se a isso ter que despedir seus empregados. Sua empresa inclusive faliu. Tesla passou a sobreviver do dinheiro que recebia pelo uso de patentes e autorizações que ele concedeu nos últimos anos. (CHENEY, 2001, p. 249-252). 

Reconhecimento pela carreira (1931)

A realidade de Tesla mudou um pouco a partir das homenagens feitas para ele quando completou seus 75 anos. Em 1931 ele se tornou capa da famosa Revista Time, em seu número 3, volume XVIII, trazendo matérias que elogiavam sua grande contribuição para o desenvolvimento tecnológico da eletricidade e outros inventos. O que o tornava um grande cientista contemporâneo. Isso ajudou a mídia a voltar a ter interesse nele, após mais de uma década quase esquecido. 

Capa da Time de 1931 em celebração aos 75 anos de Nikola Tesla. 

Tesla aproveitou a publicidade que ganhou com a revista Time e passou a ser convidado a dar entrevistas e participar de eventos entre 1932 e 1933. Ele nesse período divulgou várias ideias, algumas tidas como loucas, a ponto de se questionar se o velho inventor estava mentalmente são. Para se ter noção, Tesla alegou estar desenvolvendo um motor que funcionaria a raios cósmicos, que estava trabalhando em receptores de rádio que permitissem captar frequências individuais, que ele estava estudando uma nova fonte de energia (embora nunca revelou propriamente qual seria); ele até salientou que estava estudando fotografia, pois achava que poderia desenvolver uma forma de criar uma câmera ocular para capturar os pensamentos. Embora algumas ideias até fazem sentido hoje, mas há noventa anos isso era surreal. E vale lembrar que Tesla já teve ideias questionáveis anteriormente como sugerir o uso de eletroterapia, indução eletromagnética para incentivar as ondas cerebrais a pensar, usar ozônio para diferentes finalidades. (CARLSON, 2003, p. 280-285). 

O raio da morte (1934)

Entre os inventos estranhos e questionáveis do velho Tesla, um que chamou atenção foi o suposto "raio da morte" como a imprensa se referiu na época, apesar que Tesla o chamasse de teleforça. O aparato nunca foi construído, era apenas um esboço de várias ideias envolvendo a concentração de uma grande quantidade de energia a qual aqueceria alguns metais como o mercúrio, e esse seria projetado por um cano na direção do alvo designado, disparando um feixe de energia concentrado e destrutivo. 

A ideia de se criar um raio da morte não era novidade, na literatura de ficção científica, o livro A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells havia mostrado trípodes marcianos disparando raios mortais. A ideia incentivou físicos e inventores de diferentes países a tentarem criar algo do tipo. Tesla foi apenas mais um dos interessados em criar essa hipotética máquina mortífera. Todavia, as Forças Armadas dos Estados Unidos, Reino Unido e de outros países não tiveram interesse, pois não era o único projeto do tipo e o que havia sido apresentado, todos falharam. Inclusive hoje em dia tal tecnologia nem existe. 

Ainda em 1934, Tesla seguiu dando entrevistas, apresentando ideias excêntricas. Ele também foi condecorado com a Medalha John Scott, concedida pelo Franklin Institute e a Prefeitura da Filadélfia, dada aos homens e mulheres que desenvolveram invenções que melhoravam a vida das pessoas. Depois disso Tesla ainda continuou a aparecer na mídia pelos três anos seguintes. 

Aposentadoria e morte (1943)

No ano de 1937, Nikola Tesla recebeu a Grã-Cruz da Ordem do Leão Branco, concedida pelo embaixador da Checoslováquia e uma medalha de honra do embaixador da Iugoslávia. Foram as últimas condecorações que ele recebeu em vida. Ambos os presentes foram dados numa cerimônia solene no Hotel New Yorker, onde Tesla vivia desde 1934, graças a Westinghouse que decidiu pagar suas despesas e lhe fornecer um salário simbólico naquele ano. 

Todavia, em certa noite de 1937, ele estava passeando na rua, seguindo para ir a um parque que costumava passear, próximo do hotel, quando foi atropelado. Se desconhece a extensão dos ferimentos sofridos, mas ele fraturou algumas costelas. Com as dores que passou a sentir nos anos seguintes, isso reduziu seus passeios, obrigando-o a ficar mais tempo em seu quarto de hotel, raramente saindo do mesmo. Ainda mais pelo fato de que Tesla por alguns anos realizava suas refeições no próprio quarto, já não indo mais a restaurantes ou lanchonetes como antes. 

Notícia de jornal de 8 de janeiro de 1943, anunciando a morte de Tesla. 

Nikola Tesla morreu em 7 de janeiro de 1943, no quarto 3327, do Hotel New Yorker, aos 86 anos. A autopsia apontou que ele sofria de trombose, a qual afetou seu coração. Tesla era conhecido por não gostar de ir ao médico, tampouco se preocupar com sua saúde. Seu corpo foi achado por uma das camareiras do hotel, que tinha ido fazer a limpeza do quarto. 

No dia 10 de janeiro o prefeito de Nova York leu uma homenagem a Tesla, o qual viveu na cidade desde 1884, ausentando-se por poucos anos. O funeral ocorreu no dia 12, na Catedral de São João, o Divino. O corpo de Tesla foi cremado como havia sido pedido por ele. Nenhum familiar compareceu ao velório, já que ele praticamente não tinha contato com eles, no entanto, amigos, conhecidos e admiradores foram assistir as missas. 

Considerações finais

Nikola Tesla foi um homem curioso em vários aspectos. Dono de uma mente engenhosa, patenteou mais de 270 invenções em diferentes países, embora a maioria não lhe trouxe sucesso. Despontou como um visionário da tecnológica elétrica e áreas afins, apesar que lhe faltava experiência como empreendedorismo e política, o que prejudicou seus negócios e empresa. Ele também era poliglota e possuía uma memória fotográfica potente. Sobre sua criatividade, ele referia-se a ela como um dom, pois tinha visões ou sonhos das invenções que elaborava. 

Tesla era um homem alto, magro, pálido, de olhos claros e mãos grandes. Na época de sua fama, especialmente entre 1887 e 1920, era mais comum vê-lo sociabilizando, aparecendo sempre vestido de forma elegante aos eventos, feiras, palestras, universidades, restaurantes, festas etc. Ele era descrito como sendo sério, mas gentil e cortês. Não era um falador ou uma pessoa cômica. Gostava de falar de ciência, invenções, poesia, filosofia, música e restaurantes. 

Tinha uma vida dedicada ao trabalho, sendo metódico com seus horários, hábitos e compromissos. Costumava tomar café da manhã, almoçar e jantar sempre nos mesmos horários, assim como, sair para suas caminhadas de forma pontual ou quase isso, a única atividade física que fazia. Além disso, ele não ia ao médico, também não gostava de ir a clínicas e nem hospitais. 

Tesla era obcecado por suas pesquisas, fato esse que seus amigos e as pessoas que o conheceram relatavam que ele trabalhava várias horas por dia, incluindo de madrugada e pouco dormia. Tesla mesmo escreveu em seu diário e anotações que realmente não gostava de dormir, eventualmente tirava alguns cochilos para compensar as poucas horas de sono. 

Ele nunca se casou e não teve filhos, isso foi uma escolha própria, pois disse que vivia pelo seu trabalho, já que se tivesse esposa e filhos isso iria distrai-lo. Além disso, Tesla também tinha poucos amigos, vivendo a maior parte da vida sozinho em quartos de hotéis, colecionando dívidas por onde passava. Ele também nunca retornou ao seu país original, tampouco foi visitar sua família, escrevendo cartas esporadicamente para suas irmãs. 

Nikola Tesla também teve seus problemas. Fosse o vício em jogo durante sua vida de universitário, que o levou a perder sua bolsa de estudos e a mesada, levando-o por vergonha a abandonar o curso; ele também contraiu muitas dívidas, mesmo tendo ficado rico na década de 1890. Isso se deveu a má gestão de seu dinheiro, os altos gastos com seus laboratórios e experimentos, negócios que deram errado, pessoas que o engaram, mas também o fato de ele ter ganho a fama de ser mal pagador, tendo legado várias dívidas em hotéis, restaurantes e nos prédios alugados para seus laboratórios e escritórios. 

Além disso, Tesla não era a favor do feminismo, considerando um erro as mulheres quererem direitos iguais aos dos homens e adotarem hábitos e ofícios masculinos; ele não concordava com a Liga das Nações (a qual viria a se tornar a ONU), dizendo que era um erro; Tesla simpatizou com ideias eugênicas, chegando a comentar que isso poderia responder alguns problemas relacionados ao subdesenvolvimento de alguns povos e países; guardou rancor por Thomas Edison até o fim da vida deste, inclusive dedicou alguns comentários rudes em alguns jornais; como também tinha uma visão negativa sobre a religião, considerando-se mais um agnóstico (talvez ateu, ele nunca deixou isso claro). 

NOTA: Na Igreja Ortodoxa os padres não são obrigados ao voto de celibato, então eles podem se casar. Porém, uma vez feito o voto celibatário, esse é para o restante da vida, não podendo ser renunciado. 
NOTA 2: Em seus escritos Tesla dizia que alguns de seus inventos foram oriundos de sonhos que ele teve com máquinas, aparelhos e cálculos. 
NOTA 3: O filme A Guerra da Corrente (2017) mostra alguns momentos envolvendo a disputa entre Thomas Edison e George Westinghouse, além da participação de Nikola Tesla. 
NOTA 4: No jogo Red Dead Redemption 2 (2018) temos um inventor inspirado em Nikola Tesla. O qual inclusive possui inventos similares ao dele. Trata-se de uma homenagem ao gênio sérvio. 
NOTA 5: O jogo Evil West (2022) faz uso de tecnologia elétrica avançada para o final do século XIX. Um dos inventos tecnológicos é uma manopla elétrica, cuja parte da tecnologia é inspirada em invenções de Nikola Tesla. 
NOTA 6: A Tesla, Inc (2003) é uma empresa de automóveis elétricos que ganhou destaque nos últimos anos, sobretudo após ter sido comprada por Elon Musk
NOTA 7: O Museu Nikola Tesla foi fundado em 1952 e fica em Belgrado, na Sérvia. 

Referências bibliográficas:

CARLSON, W. Bernard. Tesla: Inventor of the Electrical Age. Princeton, Princeton University Press, 2013. 
CHENEY, Margaret. Tesla: Man of Out Time. New York, Simon & Schuster, 2001. 
JONNES, Jill. Empires of Light: Edison, Tesla, Westinghouse, and the Race to Electrify the World. [s.l, Random House, 2004. 
O'NEILL, James. Prodigal Genius: The Lifes of Nikola Tesla. San Diego, The Book Tree, 2007. 
SEIFER, Marc J. Wizard: The Life and Times of Nikola Tesla. [s.l], Citadel, 1998. 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

A bebida da vida: Uma história do leite

Naturalmente os mamíferos consomem leite nos primeiros meses ou anos de sua vida. As fêmeas de espécies mamíferas produzem em sua glândulas mamárias esse líquido branco nutritivo, carregado de gorduras, proteínas e outras substâncias necessárias para a nutrição de seus filhotes. Todavia, o ser humano é o único mamífero que após crescido continua a beber leite. E foi a espécie humana que ensinou outros mamíferos a tomarem leite também, especialmente os animais de estimação e bichos de zoológico. 

Assim, para poder sustentar o consumo de leite, a humanidade passou a domesticar animais leiteiros especialmente bovinos, caprinos e ovinos, apesar que leite de equinos, suínos e de outros mamíferos também foram consumidos. No entanto, para além do consumo como bebida, o leite tornou-se a fonte para o preparo de alimentos como pães, bolos e massas, mas sobretudo pelo seu uso na produção de laticínios, em destaque o queijo, a manteiga e o iogurte

O presente texto apresenta aspectos da história desse importante alimento, o qual entre algumas culturas, religiões e mitos creditou ao leite o simbolismo da nutrição, da boa saúde, da cura, da pureza, do sagrado, da vida e da imortalidade. Leite era ofertado como oferendas entre alguns povos, e essa sacralidade o tornava uma bebida da vida assim como a água e num líquido sagrado como o sangue. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p. 631-632). 

O leite materno

Para as espécies de mamíferos o leite é o primeiro alimento que os filhotes passam a ingerir logo após o parto. Durante a gestação, as glândulas mamárias são ativadas e passam a produzir leite, os quais ficam armazenados aguardando o nascimento dos filhotes, por tal condição as mamas e os seios no caso das mulheres, crescem, ficam pesadas e até doloridas. Após os filhotes nascerem, a geração de leite continua enquanto eles necessitarem serem amamentados, embora haja casos de fêmeas e mulheres que as vezes não produzem leite o suficiente ou por outros motivos de saúde, tem que interromper a amamentação. 

O leite consiste numa secreção líquida de coloração branca opaca (mas pode ter coloração amarelada também), nele estão contidos água, gordura, açúcar (lactose), carboidratos, proteínas (especialmente a caseína), vitaminas A, C, D, E, K, complexo B, cálcio, zinco, potássio, sódio, fósforo, ácido fólico etc. O valor nutricional do leite materno varia de espécie para espécie, e também é afetado pela dieta da fêmea e sua condição de saúde. No caso dos humanos, os médicos recomendam uma boa alimentação a gestante para que seu leite tenha níveis adequados de nutrientes; em alguns casos é necessário consumir vitaminas, suplementos alimentares e até tomar medicamentos durante a gestação. (MORGANO et. al, 2005). 

Estoque de doação de leite materno. A diferença da coloração representa as fases do leite materno humano. Confira a nota 1 no final do texto. 

O consumo de leite materno é essencial para o filhote por vários motivos: ao bebê-lo o filhote vai ganhar peso e se nutrir, ajudando no seu crescimento, desenvolvimento ósseo, celular e neurológico. Além disso o leite hidrata os filhotes já que em algumas espécies esses não bebem água, apenas leite; além disso, ele também fornece anticorpos que ajudam no desenvolvimento do sistema imunológico, por conta disso, mães que possuem certos tipos de doenças, não podem amamentar os filhos pelo risco de transmitir os patógenos. (MARQUESLOPEZBRAGA, 2004). 

Além disso, a amamentação ajuda no desenvolvimento da musculatura facial dos filhotes, como também conecta mãe e filho, mostrando-se um laço de afeto e cuidado. De qualquer forma, por tais características fica mais fácil de entender porque povos antigos creditavam ao leite fonte de força, saúde e prosperidade. 

A pecuária e o leite

A pecuária se desenvolveu na esteira da agricultura, pois ambos necessitaram que as comunidades humanas se sedentarizassem, embora que a pecuária cobrasse menos isso, já que ainda permaneceu a prática de criar gado livre, o que incluía a migração sazonal para novos pastos. Ainda assim, o processo de sedenterização foi importante, pois mesmo havendo essa migração de tempos em tempos, as pessoas viviam semanas ou meses numa mesma localidade, não sendo nômades como antes disso, em que havia a necessidade de mudar semanalmente de localidade atrás de caça. 

A pecuária surgiu na Ásia por volta de 13 mil anos atrás quando espécies ovinas e bovinas começaram a serem domesticadas, a fim de fornecer alimento e matéria-prima advinda de seu couro, chifres, cascos e ossos. Antes disso, alguns animais até eram capturados e mantidos vivos nas comunidades, aguardando o abate, mas não havia uma noção de criação dos mesmos, ligada ao seu cuidado, manutenção e reprodução. Nos milênios seguintes, ovelhas, porcos, cavalos, camelos, galinhas e patos foram sendo domesticados. Quando chegamos a 4 mil anos atrás, vários animais de fazenda já estavam domesticados. (MAZOYER, 2010). 

A domesticação do primeiro animal leiteiro foi de ovinos, ocorrida no Oriente Médio, por volta de 11 mil anos atrás, sendo seguida da domesticação de bovinos (10.500 anos), suínos (9.000 anos) e caprinos (7.000 anos). Sendo assim, por volta de 5 mil anos atrás, quando já existiam cidades na Mesopotâmia, em especial na região da Suméria, os sumérios já criavam vacas, ovelhas, porcos e cabras. E o leite desses animais eram consumido, além de ser usado para se fazer pães, bolos, massas e mingaus, assim como, produzir queijo e manteiga. Já o leite de camelos e cavalos foi consumido mais tardiamente, entre 6 mil a 4 mil anos atrás, quando esses animais foram domesticados. 

Friso em alto-relevo mostrando a coleta e armazenamento de leite, possívelmente para fazer queijo. Imagem datada de entre 2800-2600 a.C. Atualmente faz parte do acervo do Museu de Bagdá. 

Hannah Velten (2010, p. 15-16) comenta que foram encontrados objetos de cerâmica datados de 5 mil anos atrás, contendo vestígios de leite. A autora destaca que leite, manteiga e queijo já era produzidos por esse período em localidades da Europa itálica, grega e balcânica, norte da África, Oriente Médio, Ásia Central, Índia, China e Sudeste Asiático. Terras onde havia a criação de bovinos, ovinos, suínos e caprinos, mais tarde os cavalos e camelos foram introduzidos na Europa e África. 

"Posteriormente, entre 5.000 e 3.000 anos antes de nossa Era, isto é, entre 3.000 e 1.000 a.C., a população mundial dobrou, passando de 50 a 100 milhões de indivíduos aproximadamente, isso se explica, ainda, em certa medida, pela extensão dos cultivos de derrubada-queimada, mas ela se explica também pelo grande desenvolvimento das grandes sociedades agrárias do Indus, da Mesopotâmia e do Nilo. Certamente, os sistemas de cultivos de vazante e de cultivos irrigados que foram implantados, então, localmente, nesses vales privilegiados, tiveram uma extensão limitada, mas podiam suportar densidades de população impressionantes, de muitas centenas de habitantes por quilômetro quadrado". (MAZOYER, 2010), p. 91). 

Pintura egípcia mostrando atividades cotidianas, no entanto, nota-se um homem ordenhando uma vaca. Datação desconhecida. 

À medida que a pecuária se espalhava pela Ásia, Europa e África, o consumo de leite e laticínios foi aumentando, lembrando que nem todo mundo tinha o hábito de consumir leite por alguns problemas envolvendo sabor, conservação, contaminação do leite, optando-se em comer queijo e coalhada. Apesar disso, a produção de leite por volta do ano 200 a.C já era significativamente grande nesses três continentes e seguiria crescendo nos séculos seguintes. 

Os laticínios

O termo laticínio ou produto lácteo refere-se aos alimentos produzidos à base de leite, sendo esses o queijo, a manteiga, o iogurte e a coalhada. Mais tarde outros laticínios foram desenvolvidos como a ricota e o requeijão. Entretanto, para aqui trabalharemos com os quatro primeiros, por serem os laticínios mais antigos desenvolvidos, comentando um pouco a respeito dele e sua importância na história da alimentação. 

Exemplos de laticínios. Na fotografia podemos ver queijos, manteiga, coalhada seca, coalhada cremosa e iogurte de morango. 

Não se sabe em que época o queijo, a manteiga, a coalhada e o iogurte surgiram, tampouco se desconhece o povo que teria descoberto eles primeiro e como era sua produção naquela época. Entretanto, sabe-se que queijos e manteigas eram consumidos antes de 3000 a.C, possívelmente a coalhada e o iogurte talvez fossem já conhecidos nesse período também. Apesar dessas incertezas eles tiveram uma função importante na história da alimentação de vários povos. (DALBY, 2009, p. 36-38). 

O queijo consiste num laticínio sólido cuja coloração normal é branca ou amarela. Existem diferentes tipos de queijos que possuem sabor, textura e aroma distintos. Além de que o tipo de leite utilizado também altera tais características. No entanto, a produção mais simples de queijo advém do tratamento do leite coalhado que é separado de seu soro, recebendo alguns ingredientes (como sal e vinagre) para ajudar no processo de formação da massa, lhe dando consistência, sabor e aroma. A massa estando pronta ela é moldada ou colocada em recipientes, sendo deixada para maturar ou podendo ser levemente cozida. Hoje em dia se refrigera algumas receitas. (DALBY, 2009, p. 52-54). 

Gravura italiana do século XV, mostrando o preparo e consumo de queijo. 

O queijo foi o principal laticínio consumido por milhares de anos por conta de sua conservação ser prolongada devido ao seu processo de fabrico. Dependendo da forma como isso é feita, um queijo pode durar dias ou semanas, diferente da manteiga, da coalhada e do iogurte, que sem refrigeração estragaram em horas. Assim, os povos antigos deram grande atenção ao fabrico de queijo, alguns se especializaram na produção de queijos de cabra e de ovelha, mais apreciados do que o queijo de vaca, o qual é o mais comumente consumido hoje em dia. 

Já a manteiga consiste numa emulsão feita do leite, ou creme de leite ou de nata, o qual é batido até talhar, o que significa que ele adquiri uma constituição pastosa a qual deixa como resíduo o soro de leite. Esse soro deve ser removido e pode ser usado em outras receitas. Em seguida pega-se a "gordura" e retira-se todo o vestígio do soro, para depois adicionar-se sal (o que ajuda na conservação e na melhoria do sabor). Concluída essas etapas a manteiga é colocada para descansar, podendo ser servida algumas horas depois. Hoje em dia coloca-se ela na geladeira, mas antes da invenção dessa, a manteiga era deixada em local arejado. A manteiga pode ter uma coloração branca, amarelada ou amarela, isso varia de acordo com a matéria-prima usada (leite, creme ou nata) e o tipo de leite (vaca, cabra, ovelha etc). A escolha da matéria-prima não apenas altera a coloração, mas também a consistência e sabor da manteiga. (KHOSROVA, 2016, p. 14-18). 

Diferente do queijo, a manteiga apresenta uma versatilidade maior de usos, sendo utilizada na fritura de alimentos, no preparo de massas, pães, bolos e biscoitos. É usada também no preparo de molhos e doces, além de servir para conceder sabor no preparo de carnes e legumes. A manteiga também é consumida ao se passar numa fatia de pão, sendo uma das formas mais habituais de consumi-la. No Brasil e em outros países temos o famoso pão na chapa, que basicamente é uma fatia de pão com manteiga que é assado. 

Figura de uma mulher batendo leite para preparar manteiga. 1499.

A coalhada (palavra que vem do espanhol cuajada) é outro laticínio antigo e bastante consumido em alguns países antigos como a Grécia, a Turquia, a Síria, o Líbano, a Arábia Saudita. A coalhada é o resultado do leite coalhado, que consiste na fermentação natural ou induzida dele. Dependendo da forma como isso é feito, o leite leva horas para ser coalhado, adquirindo uma consistência pastosa branca, a qual é matéria-prima também para o preparo de alguns queijos e iogurtes. Além disso, existe a receita de coalhada seca, cuja aparência lembra de alguns queijos. No entanto, terminada a fermentação a coalhada está pronta para ser consumida pura ou receber a adição de açúcar, mel, suco de frutas, granola etc. Antigamente era comum o uso de mel para adoçar a coalhada, pois seu gosto naturalmente é azedo

Na Europa, além dos gregos, os espanhóis são grandes apreciadores de coalhada, prática que remonta o medievo. Por sua vez, com a colonização das Américas, os espanhóis levaram o costume de se consumir coalhada. Atualmente países hispânicos como El Salvador, Honduras, Costa Rica e Nicarágua, são grandes apreciadores de coalhada. Os portugueses também consomem coalhada, mas em menor quantidade, porém, eles legaram isso aos brasileiros, que são grandes consumidores desse laticínio. A coalhada também é usada no preparo de doces

Potes de coalhada e de mel. A mistura de ambos é bastante popular e existe a séculos. 

O iogurte (palavra que vem do turco yogurt) consiste num laticínio que pode ser sólido tendo textura pastosa ou cremosa, ou pode ser consumido de forma líquida. Isso varia de acordo com a maneira de produção. O iogurte teria surgido em algum lugar da região dos Balcãs na Europa ou na Anatólia na Turquia. Seu preparo é parecido com o da coalhada, havendo necessidade de deixar o leite fermentar (de forma natural ou induzida). Normalmente se utiliza bactérias dos lactobacilos no preparo de iogurte, o que demanda uma temperatura mais elevada para a fermentação ocorrer. Essa é uma das diferenças em relação ao preparo da coalhada, pois enquanto a anterior adquire um sabor azedo, o iogurte tem um sabor levemente doce, embora haja formas de prepará-lo que o deixam salgado. (WEILL, 2017, p. 28-34). 

O iogurte desde a Antiguidade também era consumido naturalmente ou na companhia de mel ou frutas como morangos, maçãs, ameixas, amoras etc. Os gregos e turcos se destacaram no consumo de iogurte, por conta disso, o "iogurte grego" é famoso hoje em dia. Além disso, os turcos também têm o hábito de comer iogurte salgado com outros tipos de alimentos, além de usá-lo no preparo de molhos, sopas e sobremesas. O iogurte de morango, chocolate, banana, maçã, ameixa etc., que encontramos hoje facilmente nos mercados, são oriundos da industrialização. 
Um copo de iogurte turco. 

O leite e laticínios nos mitos

O mito era uma forma de explicar acontecimentos diversos e uma maneira de compreender o mundo, a vida, a morte e a natureza. Na mitologia grega temos alguns mitos referentes ao leite. Quando Zeus ainda bebê foi escondido por sua mãe Reia na ilha de Creta, para não ser devorado por seu pai Cronos, o pequeno deus foi amamentado com leite de uma cabra chamada Amalteia (outra versão do mito diz que Amalteia era uma ninfa que tinha uma cabra da qual tirava leite para amamentar Zeus). Já adulto, após a morte da cabra que o nutriu na infância, Zeus usou seu couro para forrar seu escudo Égide e transformou seus chifres na cornucópia, um símbolo de fertilidade. (BRANDÃO, 1986, p. 332). 

Outro mito grego informa que após Héracles ter nascido, Zeus tentou cuidar do menino no Olimpo, colocando Hera para amamentar a criança. Porém, a deusa estava dormindo e ao sentir a criança mamando, acordou abruptamente e o retirou, espirrando leite no céu. Outra variante do mito diz que Hera aceitou amamentar Héracles, mas o bebê chupava com tanta força que machucou seu seio e ela o afastou, fazendo o líquido branco jorrar. Apesar da versão, em ambos os casos o leite da deusa que jorrou no céu, formou a Via Láctea ("o caminho do leite"). (BRANDÃO, 1986, p. 321).

O nascimento da Via Láctea. Peter Paul Rubens, 1636. 

Ainda na mitologia grega temos dois mitos que não se referem ao leite, mas ao queijo. Na Odisseia, poema épico atribuído a Homero, existem alguns versos que falam sobre o leite e queijo, importante fonte de alimento na cultura grega. Ao chegar a ilha dos ciclopes, Odisseu e sua tripulação entram numa caverna onde encontram cabras e ovelhas, além de queijos e leite coalhado. Era a caverna do ciclope Polifemo. Na ilha da feiticeira Circe, os gregos são recebidos por ela e suas servas, as quais oferecem queijo e vinho misturado com mel. Quando Odisseu desce ao Hades para consultar o vidente Tirésias, ele faz oferendas ao mesmo, dentre os produtos ofertado estava leite, vinho e água. (HOMERO, 1997). 

Na mitologia nórdica o gigante primordial Ymir, se alimentava do leite da vaca Audhumla, isso nos princípios dos tempos, antes do mundo ser criado. Enquanto Ymir tomava leite para se alimentar, o mito diz que a vaca lambia o sal do gelo. Até que certo dia de tanto lamber uma massa de gelo, dessa descongelou Buri, o primeiro deus. Buri veio a se casar com uma das filhas de Ymir, iniciando a linhagem dos deuses. (LANGER, 2015, p. 62-63). 

O gigante Ymir tomando leite de Audhumla, enquanto ela descongela o gelo que aprisionava o deus Buri. Nicolai Abildgaard, 1790. 

Na mitologia hindu existe uma narrativa que diz que por desatenção o deus Indra acabou insultando o sábio Durvasa, destruindo sua satanaka (um tipo de coroa de flores). Durvasa indignado, achando que o deus havia agido de propósito, o amaldiçoa, rogando que Lakhsimi (deusa da fertilidade e prosperidade) deixasse de abençoar Indra e os Devas (seres sobrenaturais que não seriam deuses). Esses acabaram perdendo seus poderes e a imortalidade, com isso, os inimigos dos Devas, os Asuras aproveitam isso e invadem o reino de Indra, expulsando-o junto aos seus súditos e tomando posse dele. (KLOSTERMAIER, 1998, p. 49-50). 

Tempo se passa e Indra e os Devas vão procurar a ajuda de Vishnu, o qual aconselha que eles deveriam agitar o Oceano de Leite (Kshira Sagara). Para isso, eles precisariam usar a montanha Mandara como mexedor, e o rei naga Vasuki como "corda" para mover a montanha. Porém, era necessário outra equipe para ajudar. Assim, Indra recorreu aos seus contatos para pedir a ajuda dos Asuras, que aceitaram, pois cobiçavam a Amrita (líquido que proporcionava a imortalidade), a qual estava escondida no fundo daquele oceano leitoso. Dessa forma, Devas e Asuras trabalharam para agitar (ou bater) o Oceano de Leite, ocorrendo outros acontecimentos nesse tempo, que não vem ao caso narrar aqui por conta do mito ser mais longo. De qualquer forma, após concluir a tarefa, a deusa Lakshimi saiu do Oceano de Leite, concedendo a Amrita aos Devas e Indra, os quais recuperaram a imortalidade e seus poderes e expulsaram os Asuras de seu reino. (CUSH; ROBINSON; YORK, 2008). 

Ilustração mostrando os Devas, Asuras e outras divindades participando da batida do Oceano de Leite. 

Na mitologia sumeriana, Dumuzi era o deus dos pastores e da pecuária, a ele era creditado a responsabilidade de ter ensinado os sumérios como praticar a pecuária, assim como, passar a consumirem leite e saberem produzir queijo e manteiga. Por tais características o deus também estava associado com a fertilidade, o mundo rural e a prosperidade. Existem menções a orações que pediam a Dumuzi para abençoar os rebanhos, as colheitas e até que o gado desse mais filhotes e produzisse mais leite. Existe um mito que aborda o sumiço da deusa Inanna, de quem Dumuzi era um dos amantes, o que lhe deixou preocupado, a ponto de que a produção de leite tinha cessado. Os animais pararam de fornecer leite, pois o deus não estava mais abençoando-os. (LEICK, 2003, p. 34-36). 

Na mitologia romana os irmãos gêmeos Rômulo e Remo foram abandonados por seu tio Numitor, que prendeu sua sobrinha Reia Sílvia após essa dar à luz as crianças. Porém, as crianças foram acolhidas por uma loba que os amamentou por algum tempo até que os irmãos foram encontrados por um pastor de cabras chamado Fáustulo que adotou as crianças e os levou para sua esposa Aca Larência. Vários anos depois já adultos, os gêmeos viriam a brigar pelas terras onde moravam, Rômulo acabou matando Remo e depois fundou a cidade de Roma

Estátua de bronze do século XI mostrando Rômulo e Remo mamando na loba que os acolheu. 

As propriedades do leite

Hoje sabemos que a ingestão moderada de leite faz bem a saúde, exceto para aqueles que tem problemas estomacais e intolerância à lactose. Porém, no passado, ao longo da História, o leite foi receitado como remédio e supostamente teria outras propriedades diversas. 

O erudito romano Plínio, o Velho (23-79) relatou que a rainha Cleópatra e a imperatriz Popeia (esposa de Nero), ambas tomavam banho de leite de jumenta, pois dizia-se que era muito bom para hidratar a pele e rejuvenescê-la. Não se sabe exatamente se as duas monarcas tomavam banho de leite, mas hoje sabe-se que alguns tipos de leite realmente são usados em tratamentos de beleza, sendo assim, é provável que no passado longínquo algumas mulheres realmente fizessem uso de banhos de leite para hidratar a pele por motivos estéticos. (VELTEN, 2010, p. 51).

Essa questão envolvendo o leite e uso estético não se limitava apenas o banho em leite de jumenta, pois relatos gregos e latinos falam de outras receitas caseiras envolvendo o uso de leite para tratar a pele. Inclusive essa prática foi vista em outras épocas da História, como no período elisabetano na Inglaterra, onde loções e cremes à base de leite de jumenta eram vendidas como artigos beleza. (VELTEN, 2010, p. 52). 

Entretanto, o leite não teria apenas um uso estético, em História Natural, no livro 28, capítulo 33, Plínio, o Velho escreveu sobre as propriedades alimentícias e medicinais do leite, mencionando os melhores tipos de leite para determinadas situações e as variedades de leites que normalmente as pessoas de sua época consumiam. A respeito, ele escreveu:

“O leite mais nutritivo, em todos os casos, é o leite de mulher, e depois o leite de cabra, ao qual se deve, provavelmente, a fabulosa história de que Júpiter foi amamentado por uma cabra. O mais doce, depois do leite de mulher, é o leite de camelo; mas o mais eficaz, em termos medicinais, é o leite de burra. É nos animais de maior tamanho e nos indivíduos de maior volume que o leite é secretado com maior facilidade. O leite de cabra combina melhor com o estômago, aquele animal que come mais do que pasta. O leite de vaca é considerado mais medicinal, enquanto o leite de ovelha é mais doce e nutritivo, mas não tão bem adaptado ao estômago, sendo mais oleaginoso que qualquer outro”. (PLÍNIO, liv. 28, cap. 33, tradução minha). 

Em seguida Plínio relata algumas aplicações medicinais que supostamente o leite teria. Embora hoje se saiba que não passava de crendices e exageros associados a um "poder curador" que os leites teriam. 

“O leite de vaca é o mais relaxante e todos os tipos de leite têm menos probabilidade de inflar quando fervidos. O leite é usado para todos os tipos de ulcerações internas, em particular as dos rins, bexiga, intestinos, garganta e pulmões; e externamente, é empregado para sensações de coceira na pele e para erupções purulentas, sendo tomado em jejum para esse fim. Já dissemos, ao falar das plantas, como na Arcádia, o leite de vaca é administrado para tísica, constipação e caquexia. São citados exemplos, também, de pessoas que foram curadas de gota nas mãos e nos pés, bebendo leite de burra". (PLÍNIO, liv. 28, cap. 33). 

Plínio também descreve algumas receitas envolvendo leite fervido misturado com soro de leite e até mel, a qual supostamente seria usada para tratar epilepsia, melancolia (depressão), paralisia, lepra, elefantíase e doenças articulares. Além dessas doenças, ele segue prescrevendo o uso de leite para tratar de outras doenças diversas, fato esse que no título do capítulo ele menciona 54 utilidades para o leite. (PLÍNIO, liv. 28, cap. 33). 

Os supostos usos medicinais do leite ainda perduraram por mais tempo. No Renascimento italiano entre os séculos XIV e XVI, médicos, filósofos e eruditos adotaram várias práticas medicinais gregas e romanas, tidas como corretas e mais avançadas do que a medicina medieval foi. Assim, a recomendação de consumo de leite para tratar diferentes problemas de saúde, algo já indicado por Plínio, mas também por médicos renomados como Hipócrates e Galeno, foram seguidas e receitadas por médicos italianos desse período. Entretanto, nem todos os médicos concordavam que o leite deveria ser consumido por qualquer um, havia aqueles que apoiavam que a bebida deveria ser ingerida por crianças, idosos e pessoas doentes, mas pessoas adultas e saudáveis não deveriam beber leite pois esse prejudicaria o seu humor (isso era reflexo da teoria dos quatro humores, oriunda na Grécia Antiga). (VELTEN, 2010, p. 61). 

Na Inglaterra do século XVII temos relatos de leite sendo receitado por médicos ou curandeiros para tratar de problemas de saúde como epilepsia, tuberculose, bronquite etc. Assim, encontra-se em receituários de origem popular, recomendações para ingerir leite de vaca, cabra e de burra, o qual era tido ainda como um "santo remédio". Jornais russos e alemães do século XIX, denunciavam curandeiros charlatões que receitavam o consumo de leite de cabra ou leite de outras origens para tratar problemas de saúde diversos. Observa-se que mesmo passados séculos desde o relato de Plínio, o Velho na Roma Antiga, os supostos usos medicinais do leite ainda se mantiveram na medicina popular de alguns povos europeus. (VELTEN, 2010, p. 48-50). 

O leite na Antiguidade

Povos mesopotâmicos como os sumérios, acádios, babilônios e assírios consumiam leite, embora não se saiba o qual abrangente era isso, no entanto, eles produziam manteiga e queijo. No caso do leite, esse era tido como uma bebida com um valor sagrado ao lado da cerveja, em que ambos eram usados como oferendas aos deuses. Dessa forma, entre esses povos havia o hábito de "alimentar" diariamente os deuses, então os sacerdotes preparavam refeições para as divindades, as quais eram colocadas em mesas ou altares nos templos. (CIVITELLO, 2008, p. 11).  Uma variedade de alimentos e bebidas eram servidos. Alimentar os deuses era uma forma de adorá-los, servi-los, assim como, não afrontá-los, pois se isso ocorresse, eles poderiam punir a comunidade. 

Os egípcios produziam leite e laticínios há mais de quatro mil anos, sendo um dos primeiros povos africanos a domesticar gados. Para os egípcios o leite tinha um valor sagrado e religioso. A deusa Ísis, uma das mais importantes divindades do panteão egípcio, era associada com a maternidade, o cuidado do lar, a proteção das mulheres grávidas, o ofício de parteira, a proteção do faraó etc. Estátuas mostrando Ísis amamentando seu filho Hórus foram populares em algumas épocas do Egito Antigo. 

Estátua de Ísis amamentando Hórus. Século VII a.C. 

"Como símbolo de salvação, o leite ocupou um lugar importante na cultura popular de festas religiosas. Jarras de leite cercavam o túmulo de Osíris, marido de Ísis, na ilha de Philae. Os sacerdotes reuniam-se ali para cantar e rezar, solenemente encher uma tigela de libação, uma para cada dia do ano, com leite. Para o egípcio comum, visitar este local constituía uma peregrinação sagrada que poderia iluminar uma vida inteira". (VALENZE, 2011, p. 15, tradução minha). 

Na Índia com a sacralização das vacas, tudo que viesse delas (exceto a ingestão de sua carne) passou a ser visto como algo sagrado. Dessa forma, os indianos há milhares de anos já consumiam leite, manteiga, queijo e coalhada de forma mais regular. Tais alimentos são usados também como oferendas até hoje, marcando uma longeva tradição religiosa quanto aos usos dados ao leite e os laticínios. (VELTEN, 2010, p. 116). 

Shiva, um dos mais populares e conhecidos deuses hindus, relacionado a vários atributos, possui como montaria o touro Nandi, considerada o "senhor dos animais". Além de montaria, Nandi já ajudou o deus em outras ocasiões. E em alguns templos dedicados a Shiva é possível encontrar estátuas de Nandi, agindo como seu guardião. O touro é considerado como o "pai de todos os bovinos". E devido a sua importância, esse foi um dos fatores para se sacralizar as vacas. Mas outra divindade associada com as vacas é Krishna, outro nobre deus conhecido por suas virtudes e sabedoria, o qual costuma ser retratado tocando música para esses animais. (VELTEN, 2010, p. 39-40). 

O deus Shiva montado no touro Nandi. Ambos são importantes símbolos para a sacralização das vacas no Hinduísmo. 

“O leite não era apenas o alimento dos deuses, mas também dos sábios, videntes e santos. De acordo com o Ayurveda indiano, o corpo é dominado por um dos três elementos – sattva (equilíbrio), rajas (atividade) e tamas (inércia) – que dão caráter específico e impulsos para cada pessoa (muito parecido com o conceito europeu medieval dos quatro humores). Esses mesmos elementos também são atribuídos a diferentes alimentos para explicar seu efeito sobre o não-físico aspectos da fisiologia – a mente, o coração, os sentidos e espírito. De todos os leites, exceto o leite humano, o leite de vaca é considerado o alimento sáttvico mais puro, o que significa que é edificante, mas estabilizante, agindo como uma ajuda para a serenidade e a espiritualidade. Mas tem que ser bebido quatro horas após a ordenha, caso contrário torna-se rajástico: levando à estimulação e agravamento. Sábios, santos e os videntes sobreviviam facilmente apenas com alimentos sáttvicos (que eram fornecidos pelos devotos locais), como leite fresco ou kheer (arroz cozido em leite), pois esta dieta levou ao desenvolvimento de uma consciência superior. O leite não induziria desejos mundanos nem distrairia suas mentes de sua busca por verdades metafísicas superiores”. (VELTEN, 2010, p. 42-43). 

Todavia, além da questão religiosa, outro motivo que levou o aumento no consumo de leite e produtos lácteos se deve também a uma questão alimentícia. A Índia atualmente é o país mais populoso do mundo, e no passado já contava com milhões de moradores, os quais por várias épocas foram ensinados a adotarem uma dieta vegetariana devido a fatores religiosos, mas também a escassez de animais. Dessa forma, o consumo de leite e laticínios se tornou importante para suprir a necessidade diária por proteínas. Assim, desde a década de 1970 a Índia se tornou um dos maiores produtores de leite no mundo, sendo um dos grandes exportadores também. A maior parte de sua produção é de leite bovino, depois caprino e de búfala. (VALENZE, 2011, p. 270-271). 

Alto-relevo indiano mostrando um homem ordenhando uma vaca. Arte feita por volta do século VII d.C. 

Na Bíblia a terra de Canaã que viria originar Israel e a Palestina, é referida em alguns momentos como um lugar onde haveria muito leite e mel (Êxodo 33:3). De fato, isso não existe, trata-se de uma metáfora usada nos livros bíblicos para falar da prosperidade daquela região, pois muito leite significava vastos rebanhos e pastos, por sua vez, a existência de abelhas dependia de haver florestas e muitas flores. Logo, numa região desértica como é o Oriente Médio, uma localidade onde supostamente "leite e mel" eram fáceis de serem encontrados, significava ser um lugar bastante próspero. Essa ideia surgida com os hebreus foi transmitida aos cristãos e muçulmanos. (CIVITELLO, 2008, p. 17). 

Os gregos e romanos eram grandes consumidores de laticínios, mas curiosamente eles não tinham o hábito de tomar leite. Os rebanhos de cabras e ovelhas eram maiores na Grécia do que o de vacas, principalmente por conta do território montanhoso e pastos escassos. Assim, desde cedo os gregos passaram a apreciar o queijo e manteiga feito do leite de caprinos e ovinos. Os gregos também mais tarde absorveram de povos vizinhos o gosto pelo iogurte e a coalhada. O consumo de queijo era feito em todas as refeições, onde ele poderia ser comido ao lado de pães, azeitonas, massas, carnes, sopas e saladas. Embora o feta seja um dos queijos gregos mais famosos, no entanto, eles desenvolveram diferentes tipos de queijos, a maioria feitos de leite de cabra ou ovelha. 

Alguns tipos de queijos gregos. Para eles o queijo era mais valioso como alimento do que o leite. 

Embora houvesse uma grande produção de laticínios, especialmente de queijos, os quais eram um dos alimentos básicos da culinária grega, os gregos não tinham o costume de tomar leite, um dos motivos era que sua ingestão era associada aos "povos bárbaros". (VELTEN, 2010, p. 29). 

Assim, para os gregos, povos como os trácios e citas, os quais bebiam leite, isso era um costume incivilizado, pois o leite não era visto como uma bebida civilizada como o vinho. Até o consumo de cerveja que eles faziam, também era encarado como algo inferior. O historiador Heródoto de Halicarnasso escreveu acerca dos costumes do citas, relatando que eles bebiam leite de éguas e jumentas. A respeito ele relatou: 

"Os Citas têm por hábito furar os olhos dos seus escravos, para utilizá-los na ordenha de animais, cujo leite consomem diariamente. Para a extração do leite adotam uns canudos de osso semelhantes a flautas, que introduzem nas partes naturais das jumentas, e os escravos neles sopram, enquanto outros tiram o leite. Dizem eles que empregam esse processo para que o sopro intumesça as veias das jumentas e faça baixar as mamas. Extraído o leite, despejam-no em recipientes de madeira, que os escravos sacodem e agitam. É a nata que eles mais apreciam, considerando-a saborosíssima e nutriente. É para essa tarefa que eles vazam os olhos dos que submetem à escravidão. Os Citas não cultivam a terra e são nômades". (HERÓDOTO, 2009, p. 306). 

É preciso salientar que alguns dos relatos de Heródoto eram exagerados e até difamatórios, mas isso fazia parte da mentalidade da época, em que os gregos antigos atribuíam uma visão negativa e inferior aos povos vizinhos, sempre procurando destacar supostos costumes que definiam eles como sendo bárbaros. Apesar de tais exageros, realmente se sabe que os citas também bebiam leite de equinos. 

Os romanos também compartilhavam dessa ideia, relatando que povos celtas, germânicos e bretões bebiam leite, inclusive as vezes sem ferver. Alguns autores romanos alegavam que o leite deveria ser consumido apenas na infância, depois das pessoas crescerem e desmamarem, o leite deveria ser usado na produção de queijo e manteiga, ou em alguma receita, pois supostamente sua ingestão causava dores de barriga ou mal-estar. De fato, isso poderia acontecer por conta da intolerância à lactose ou se o leite estivesse contaminado. (VELTEN, 2010, p. 29-30). 

O leite no medievo

O Cristianismo não sacralizou o leite como o pão e o vinho, pelo menos não num sentido bíblico, porém, os hebreus eram consumidores de leite e laticínios. Vale ressalvar que quando o Cristianismo espalhava-se pela Europa na Antiguidade e Medievo, ele foi sendo pregado a vários povos pastores, os quais já tinham o hábito de consumir leite e laticínios. Logo, isso acabou sendo mantido e mais tarde até difundido, quando as igrejas e mosteiros começaram a ganhar terras e feudos, eles passaram a investir na agricultura e pecuária, e a produção de leite, queijo e manteiga se tornou algo comum. 

Na Irlanda medieval lendas sobre vacas mágicas surgiram em algumas épocas e se popularizaram. Alguns relatos falam de misteriosas vacas que apareciam de não se sabe da onde, cujo leite era mágico, podendo curar algumas doenças inclusive. Essas vacas apareciam em alguns casos em tempos de penúria, sendo milagres para os que passavam fome. Há relatos sobre vacas chamadas Fuwch Frech, Dun Cow, Glas Ghaibneach. No entanto, um dos relatos mais populares sobre vacas mágicas irlandesas é associado com Santa Brígida da Irlanda (c. 451-525), cuja lenda diz que a santa quando bebê, não conseguia tomar leite de vaca, então uma misteriosa vaca surgiu nas terras onde ela vivia, permitindo que a futura santa fosse alimentada. Por conta desse milagre, Santa Brígida passou a ser associada com os animais leiteiros, o consumo de leite e a pecuária. Os cristãos irlandeses no medievo prestavam orações pedindo a santa que ajudassem em tempos de escassez de alimentos ou quando o gado estava com problema para gerar leite. (VELTEN, 2010, p. 44).

Ícone medieval de c. 1300 mostrando Santa Brígida da Irlanda e uma vaca. A santa era associada com o leite em seu país.

O leite também era visto como fonte de inspiração divina. Uma antiga lenda cristã diz que São Bernardo de Claraval (1090-1153) certa vez estava orando para a Virgem Maria, pedindo pôr sabedoria, enquanto ele cantava o hino Ave maris stella, uma estátua da santa se materializou em carne e osso e espirrou leite de um dos seios, caindo na boca do santo, lhe concedendo sabedoria e eloquência. Essa lenda justificaria a condição de Bernardo ter sido um teólogo prolífero, tendo escrito várias cartas e estudos teológicos. (VALENZE, 2011, p. 43). 

A lenda que São Bernardo teria recebido "divino leite" de Maria se espalhou pela França e Espanha, condição essa que alguns padres em seus sermões exaltavam simbolicamente o leite materno da Virgem Maria como fonte de sabedoria e bonanças. Dessa forma o leite materno se tornou metáfora religiosa para falar sobre crescimento, nutrição, amor, inspiração etc. O próprio seio também ganhou uma conotação divinizada, representando o acolhimento, o carinho, a maternidade, o amor materno. Por isso expressões como o "seio da igreja", "acolhido no seio da santa igreja", passaram a serem usadas. (VALENZE, 2011, p. 46-47).

São Bernardo de Claraval recebendo o leite divino da Virgem Maria. Pintura de Alonso Cano, século XVII. 

O simbolismo de Maria amamentando o pequeno Jesus começou a se expandir na Baixa Idade Média (XI-XV) por países como França, Itália e Espanha. No caso italiano tivemos a fundação ou renomeação de igrejas que foram dedicadas a Maria e sua tarefa materna da amamentação, algo visto no Monastero di Santa Maria di Gala, na Sicília; Chiesa Madonna da Latte, em Novara; Chiesa Nostra Signora di Latte Dolce, em Sassari. 

Os povos muçulmanos foram incentivados ao consumo do leite. No seu livro sagrado, o Corão, há passagens como Al Náhl 66 e Al Munin 21, que recomendam o leite como uma bebida importante da dieta de um muçulmano. Entretanto, um dos exemplos de maior destaque sobre a presença do leite na religião islâmica encontra-se na surata Mohammed 47, em que se ler:

"Eis aqui uma descrição do Paraíso, que foi prometido aos tementes: Lá há rios de água impoluível; rios de leite de sabor inalterável; rios de vinho deleitante para os que o bebem; e rios de mel purificado; ali terão toda a classe de frutos, com a indulgência do seu Senhor. Poderá isto equipar-se ao castigo daqueles que permanecerão eternamente no fogo, a quem será dada a beber água fervente, a qual lhes dilacerará as entranhas?". (CORÃO, Mohammad 47:15, grifos meu). 

Nesta breve descrição sobre o Paraíso para a fé islâmica, observa-se que ele é retratado como um local possuindo abundância de alimentos, tendo plantações e pomares, além de rios de leite, mel e vinho. Cada uma dessas bebidas possuem características simbólicas no Islão, estando associadas com fertilidade, prosperidade, saúde, pureza etc. Além disso, os árabes levaram consigo para a África o hábito de tomar leite de camelos, ensinando-os para alguns povos que foram convertidos a sua religião. Eles também difundiram a criação de ovinos e bovinos em algumas áreas do território africano. 

Ainda hoje o leite de camela é consumido normalmente em países muçulmanos. 

Os nórdicos da Era Viking (VIII-XI), popularmente chamados hoje de vikings, também consumiam leite, creme de leite, queijo e manteiga, hábito compartilhado com os povos germânicos. O leite além de bebido, era usado também para se fazer mingaus, massas, sopas, molhos e usado até para se amaciar algumas carnes, prática ainda hoje utilizada. Como grande parte da população escandinava era rural naquele tempo, então o acesso ao leite era mais fácil, fato esse que nas fazendas era comum bebê-lo fervido ou coalhado durante o desjejum (dagverd). (CAMPOS, 2021, p. 128, 145). 

Mas o leite consumido pelos vikings era principalmente de cabra ou de ovelha, já que rebanhos bovinos eram mais raros e pertenciam a gente mais abastada. Condição essa que na Islândia, ainda hoje se produz um queijo cremoso chamado skyr, que é feito de leite de ovelha ou de cabra, embora que hoje a palavra skyr também designa um tipo de iogurte. E no norte da Escandinávia, os povos sámis bebiam leite de rena, pois eles domesticaram esses animais, embora fossem pecuaristas seminômades. (NATOKER, 2009, p. 29). 

No período medieval o skyr era consumido na forma de queijo, mas hoje ele normalmente é vendido como iogurte, requeijão e até sorvete. 

No século XIII os europeus tomam conhecimento de uma bebida alcóolica apreciada por tártaros, mongóis, cazaques, turcos e outros povos das estepes asiáticas, chama-se kumis (airag em mongol), o qual se trata de leite de égua fermentado e azedo. Viajantes como Giovanni da Pian del Carpine (c. 1182-1252), William of Rubrick (1220-1293) e Marco Polo (1254-1324) viajaram pela Ásia, tendo contato com povos das estepes, em especial os mongóis que dominavam grande parte do continente naquele tempo. Os três relataram como o kumis era a bebida preferida desses povos, apesar de seu gosto azedo e forte, no entanto, aqueles homens apreciavam-se em se embriagar com isso. 

Carpine e Rubrick relataram que os abastados bebiam kumis ao som de música e até faziam barulho enquanto bebiam, como forma de exaltar sua alegria em apreciar aquela bebida. Eles também escreveram que era costume os mongóis beberem usando tigelas, enchendo-as diretamente de caldeirões ou grande recipientes. (VALENZE, 2011, p. 38). Já Marco Polo relatou que provou kumis em sua viagem para à China, comparando-o ao vinho branco. Além disso, ele comentou que os chineses não tinham hábito de tomar essa bebida, mas como eles foram conquistados pelos mongóis, Kublai Khan introduziu na corte tal costume. Polo chegou a dizer que o imperador possuiria dez mil éguas que lhe forneciam leite para abastecer a corte. (CIVITELLO, 2008, p. 81). 

O kumis é uma bebida alcoólica feita de leite fermentado de égua, sendo bastante popular na Mongólia ainda hoje. 

Além dos mongóis, indianos, turcos, árabes, persas e outros povos muçulmanos e das estepes, o consumo de leite e laticínios não foi comum entre chineses, coreanos, japoneses e outros povos do Sudeste Asiático, todavia, alguns povos himalaios mantiveram esse hábito, como os tibetanos, nepaleses e butaneses, os quais ainda hoje consomem leite de iaque (Bos gruniens) bovino de grandes altitudes. (CASCUDO, 2016, p. 21-22). 

Os tibetanos desde a Idade Média passaram a desenvolver o apreço pelo consumo de manteiga, queijo e leite. Especialmente os dois primeiros, os quais estavam bastante presentes em sua culinária, já que o leite era mais usado para a produção de mingaus e massas. No caso da manteiga essa tem um papel de destaque na cultura tibetana, sendo usada no famoso chá de manteiga (bho jha), o qual se tornou a bebida nacional do Tibete, apesar de ser consumido em países vizinhos. Trata-se de uma bebida calórica e salgada, feita de manteiga de iaque, a qual também recebe adição de sal. O chá de manteiga é consumido diariamente pelos tibetanos e até usado em cerimônias religiosas como oferenda. (KHOSROVA, 2016, p. 284-285).  

O chá de manteiga é bastante popular no Tibete. 

O chá de manteiga também é usado no preparo no tsampa, um alimento tibetano feito com farinha de cevada, a qual misturada ao chá forma um mingau salgado e calórico, bom para enfrentar o frio. Pois é preciso lembrar que em clima frio o corpo gasta mais calorias para se manter aquecido, por conta disso a necessidade de ingerir mais calorias diárias. 
(KHOSROVA, 2016, p. 39).  

Além do uso alimentar da manteiga e do queijo, os tibetanos possuem uma tradição antiga de usar manteiga para fazer arte. Durante o inverno alguns templos budistas reúnem habilidosos monges escultores e pintores, os quais usam a manteiga para fazer estátuas e alto-relevo, depois as pintam. A tradição existe já a mais de quinhentos anos pelo menos. 

O consumo de leite, queijo e manteiga cresceu em algumas localidades europeias, especialmente as rurais, as quais predominavam na Idade Média, por conta disso, assegurar a conservação desses produtos alimentícios eram essencial para a alimentação diária daquelas fazendas e comunidades rurais, por conta disso, quando algo dava errado, significava que forças maléficas ou travessas estavam agindo. Entre os séculos XIV e XV surgiu em alguns países europeus lendas sobre seres fantásticos, assim como, foi desenvolvendo-se o conceito de bruxaria. 

Na Suécia falava-se que os tomtes agiam com travessura, azedando o leite, estragando o queijo e a manteiga. Na Inglaterra tínhamos os brownies ou goblins como responsáveis por não fazer o queijo coalhar, a manteiga estragar rapidamente, os animais não darem leite. Eles também poderiam salgar sopas e estragar a cerveja e outros alimentos. Na Irlanda, Escócia, Alemanha, Islândia, entre outros países nortenhos, lendas sobre duendes e criaturas similares se difundiram entre o final do medievo e o começo da modernidade. Esses seres travessos tinham que receber suas "oferendas" ou "agrados" como tigelas com leite ou mingau, bolos, biscoitos, entre outros alimentos, do contrário, eles agiriam de forma traquina. (VELTEN, 2010, p. 46).

No entanto, em alguns lugares esses seres fantásticos foram substituídos pela figura das bruxas, mulheres que diziam praticar "magia negra" e terem feito um pacto diabólico. Essas mulheres agiriam de forma malvada, prejudicando indivíduos ou comunidades inteiras. Assim, lendas sobre bruxas roubando manteiga para fazer bruxaria, envenenando o gado, azedando o leite etc., além de termos relatos de bruxas sendo auxiliadas por demônios ou monstros a prepararem queijo, manteiga, coalhada e outros alimentos, passaram a se difundir no século XV e se desenvolveram nos séculos seguintes. 

Um demônio ajuda uma mulher (ou bruxa) a bater manteiga, enquanto uma lebre vermelha vomita leite num balde, sendo assistida por uma lebre branca. Pintura de Albertus Pictor, na Igreja de Ösmo, na Suécia. Século XV. 

A Virgem Amamentando

No Renascimento (XIV-XVI), um dos temas populares dos pintores italianos e franceses foi a Virgem Amamentando (ou Maria Lactans, ou Madonna do Latte). Vale ressaltar que a amamentação de Maria havia sido sacralizada ainda na Idade Média, como a lenda envolvendo São Bernardo Claraval no século XI. Dessa forma, nos séculos XIV e XV, temos pinturas mostrando Maria amamentando, temática essa que foi reaproveitada pelos artistas da renascença, proliferando vários quadros sobre o tema (VERNON, 2000, p. 694). 

Madonna Litta, Leonardo da Vinci, 1490-1491. 

Assim, importantes pintores como Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci, Andrea del Verrochio, Lorenzo di Credi, Jean Fouquet, Jan van Eyck, entre outros, realizaram pinturas de Maria amamentando Jesus, o qual se tornou um símbolo de maternidade, amor, nutrição, crescimento, os quais foram sacralizados no ato de amamentar. Em parte essa importância também se deveu a Mariologia, ramo teológico que estuda a devoção, importância e mistérios da Virgem Maria. 

A vaca holandesa

Quando pedimos para alguém desenhar uma vaca, provavelmente a pessoa desenhará uma vaca branca com manchas pretas, isso se deve ao fato de que das raças bovinas leiteiras, a raça Holstein-Frísia, popularmente chamada no Brasil de "raça holandesa", seja a mais eficiente no mundo na produção de leite. 

Uma vaca Holstein-Frísia. A raça é atualmente conhecida por sua grande capacidade de produção de leite. 

A criação da Holstein-Frisia remontaria a Antiguidade, passando por séculos de seleção artificial para criar animais que produzissem cada vez mais leite. Todavia, os holandeses somente começaram a despontar com grande produtores de leite a partir da Idade Moderna, especialmente os séculos XVI e XVII, período conhecido como a "Era de Ouro dos Países Baixos". Nesse período a república neerlandesa se tornou uma potência militar e econômica mundial, possuindo empresas que tinham negócios nas Américas, África e Ásia, fundando colônias, explorando a produção de açúcar e café; os bancos holandeses cresceram consideravelmente, o país também atraiu muitos investidores, sua produção agrícola e pecuária aumentou consideravelmente. Dessa forma, os holandeses ficaram conhecidos por serem produtores de bom leite, queijo e manteiga. 

"Queijos holandeses, manteiga, e o leite tornou-se o ponto focal de discussões acaloradas sobre agricultura melhoria. Na indústria leiteira, conhecimento da natureza, perspicácia comercial, e o trabalho árduo veio acompanhado de uma energia quase combustível. Aqui estava um campo de provas digno para o que os historiadores hoje chamam de “milagre holandês”, o surgimento das Províncias Unidas como uma potência comercial líder impulsionado por uma população próspera e bem alimentada". (VALENZE, 2011, p. 84, tradução minha).

Dessa forma, os queijos holandeses começaram no século XVII a ganhar fama pela Europa, sendo exportados para a Alemanha, Dinamarca, França, Bélgica, Inglaterra, Escócia, Irlanda e outros países. Os queijos não chegaram a se difundir tanto entre Portugal e Espanha devido a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), em que o império espanhol considerava a república neerlandesa como vassalos traidores por terem declarado sua independência e depois invadido o Brasil. 
A partir do século XVII os queijos holandeses começaram a ficarem internacionalmente famosos. 

O leite se espalha pelo mundo

No período moderno a produção de leite seguia crescendo em alguns países e regiões. Porém, o consumo de leite e laticínios foi levado às Américas, a Oceania e outras localidades da África. No caso do continente africano, a presença de leite e produtos lácteos é bastante antiga existindo há milhares de anos, destacando-se os egípcios no quesito. Além disso, tais alimentos eram consumidos principalmente por povos africanos próximos do Mediterrâneo, pois facilitava o contato com povos europeus e asiáticos, permitindo a compra de animais e até a importação de queijos. A situação somente mudou com a expansão islâmica nos séculos VIII ao XII, quando os árabes levaram criações de cabras e camelos para outras localizações saarianas e o leste africano, que consequentemente levou tais povos a passarem a consumir leite de cabra e de camela. (VELTEN, 2010, p. 28). 

Todavia, a expansão islâmica não adentrou determinadas localidades do continente, mas essas foram visitadas pelos europeus, especialmente os portugueses de início, mais tarde os franceses, ingleses, alemãs e belgas. No caso de Portugal, eles foram responsáveis por estabelecerem colônias no Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe, ilhas desabitadas que receberam engenhos, fazendas e criação de cabras. Por sua vez, os portugueses também colonizaram a Guiné e Angola, e mantiveram contato no Congo. Eles levaram caprinos, suínos, equinos e bovinos para tais terras. 

A colonização espanhola, portuguesa, francesa e inglesa foi responsável por levar a pecuária bovina, caprina, ovina, suína e equina para as Américas. Além de criar-se esses animais por lá, os quais acabaram se adaptando bem a diferentes climas e territórios, o consumo de suas carnes se tornou hábito, assim como, beber seu leite (exceto das porcas e éguas), e produzir-se queijo, manteiga e coalhada. (VELTEN, 2010, p. 33). 

Os vários povos indígenas americanos desconheciam o hábito de consumir leite após deixarem de serem crianças, tampouco não conheciam os laticínios, então para eles foi uma surpresa. No entanto, havia uma exceção. Os incas os quais criavam lhamas (Lama glama), dos quais bebiam seu leite. É possível que outros povos que habitavam o que hoje são Colômbia, Equador, Peru e Bolívia pudessem tomar leite de lhama, mas isso carece de mais evidências, até porque os relatos de cronistas espanhóis apontam que entre as populações andinas do Império Inca, o consumo de leite de lhama era pouco usual, não era um hábito, condição essa que eles não tinham costume de fazer manteiga e queijo, vindo adquiri-lo com os espanhóis. (ROSENBERG, 2006, p. 383). 

Os incas consumiam leite de lhama, embora não fosse algo habitual. 

Por outro lado, não foi de imediato que os povos indígenas se acostumaram com esses novos alimentos, especialmente os laticínios bastante estranhos para eles, os quais eram encarados tendo sabor forte e ruim, e as vezes até causavam mal-estar, devido aos seus estômagos não estarem habituados a eles ou terem intolerância à lactose. 

Apesar disso, o desenvolvimento da colonização, o consumo de leite e laticínios foi se tornando cada vez normal. A pecuária teve seu papel também no processo colonizador de vários países americanos, destacando-se o Brasil e os Estados Unidos, em que na busca de pastos, a pecuária foi adentrando o interior do continente. No caso brasileiro, a partir da segunda metade do século XVII houve uma massiva expansão sertaneja motivada pela pecuária bovina, embora também procura-se por ouro, prata e joias, além de ir caçar indígenas para escravizá-los. Dessa forma, territórios como Maranhão, Ceará, interior da Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, tiveram sua colonização impulsionada pela pecuária bovina, que gerava carne, couro, leite, queijo e manteiga. (PRADO Jr, 2005).

Nos Estados Unidos, México e Canadá algo de similar ocorreu. Os rebanhos foram sendo empurrados atrás de pastos, invadindo-se territórios indígenas. Além de procurar terras para a pecuária e a agricultura, também procuravam-se metais preciosos. No caso estadunidense isso despontou no século XVIII, levando os Estados Unidos a entrar em conflito com o México pelas terras no oeste, o que veio a originar o Velho Oeste. (UDALL, 2004). 

Foto de uma criação de gado na Flórida. A busca por pastagens e a expansão da pecuária para sustentar o consumo de carne, leite e laticínios no século XIX, impulsionou a colonização do interior da América do Norte, ajudando a criar o atual território dos Estados Unidos. 

Assim, países como Brasil, Argentina, Uruguai, México Estados Unidos se especializaram na pecuária, criando grandes rebanhos, como desenvolveram laticínios, especialmente o queijo e a manteiga, havendo uma variedade desses. 

Luís da Câmara Cascudo (2014) relatou como o leite se encaixou tão bem na culinária brasileira. Ele menciona seu uso para se fazer pães, bolos, massas, mingau, curau (ou canjica), mungunzá, doce de leite, cuscuz com leite, cuscuz branco, leite com café, arroz de leite (ou arroz doce), uma variedade de doces e outros pratos. Cascudo lembra como o leite se tornou com o tempo alimento diário na mesa do brasileiro, ao lado do queijo e da manteiga. As vezes da coalhada e menos habitualmente do iogurte, sendo esse mais consumido hoje em dia por conta da industrialização. 

Arroz de leite ou arroz doce, é um típico prato brasileiro. 

O estado de Minas Gerais que começou a ser ocupado massivamente no final do século XVII devido a descoberta de minas de ouro, mas ele tornou-se no XVIII e XIX o maior produtor de leite e laticínios do Brasil. Sendo hoje notável o queijo minas, a ricota, o doce de leite e o requeijão. A preponderância de Minas Gerais como produtora de leite e carne bovina foi tamanha, que na primeira metade do século XX, os candidatos à presidência eram mineiros ou paulistas, devido a São Paulo deter a maior produção de café, o grande produto exportador do período. Por conta disso, aquele período que foi de 1898 a 1930 era chamado de "política do café com leite"

Entretanto, não foi apenas as Américas em que os povos nativos passaram a consumir leite, queijo e manteiga, em outras localidades do mundo isso também ocorreu. Um exemplo é o caso do Japão. Embora os japoneses já criassem porcos, cabras e cavalos há séculos, eles não tinham o hábito de tomar leite desses animais, tampouco produziam queijo e manteiga. De fato, foram os portugueses, holandeses e ingleses nos séculos XVI e XVII, quando passaram a ter negócios no país, que introduziram o costume de consumir tais alimentos, mas tal costume não se espalhou de imediato. 

Os japoneses que ingeriam leite e laticínios eram poucos, se limitando aos que viviam nas cidades portuárias frequentemente visitadas pelos europeus. Além da escassez de acesso a tais alimentos, havia a estranheza pelo sabor, especialmente da coalhada por ser azeda. Além desses alimentos, os europeus também introduziram no Japão o consumo de pão, açúcar, farinha de trigo, cerveja, vinho e outros produtos. Para os ricos, isso eram iguarias que valiam o investimento, para o restante da população eram produtos caros que eles jamais conseguiriam provar, e em alguns casos eram até vistos como exóticos. 

No século XIX houve no Japão tentativas de estabelecer uma indústria leiteira e queijeira, mas somente a partir do século XX é que os japoneses começaram a se interessar em beber leite, comer queijo, manteiga, iogurte e coalhada. 

O consumo regular de leite no Japão somente foi estabelecido no século XX, apesar que os japoneses tiveram contato com ele ainda no século XVI. 

"Embora o consumo de leite tenha permanecido estável ou diminuído no Ocidente durante os últimos 40 anos, o oposto é verdadeiro na Ásia, onde culturas tradicionalmente não-consumidoras de leite adotaram o líquido branco. O consumo da China aumentou massivamente 15 vezes, de 1964 a 2004, enquanto a Tailândia aumentou pela metade, com a Índia, o Japão e as Filipinas a registarem uma triplicação ou quadruplicação do consumo". (VELTEN, 2010, p. 116). 

No caso da Oceania, o consumo de leite e laticínios somente começou de forma modesta no final do século XVIII. Os ingleses passaram a colonizar a Austrália a partir de 1788, inicialmente tratando a vasta ilha como uma colônia penal, depois iniciou-se a pecuária bovina extensiva, a qual ajudou na colonização daquele país. Em período aproximado a Nove Zelândia também começou a ser colonizada, recebendo gado bovino, caprino e ovino. Mais tarde no século XIX e XX, outros arquipélagos da Oceania foram sendo colonizados pelos ingleses, franceses e americanos. 

Fotografia de gado da raça droughtmaster, de origem australiana. A Oceania foi o último continente a adotar o consumo de leite e laticínios regularmente. Atualmente a Austrália é um dos maiores produtores de gado bovino no mundo. 

Leite, chocolate e café

O chocolate era consumido por alguns povos indígenas da América Central como os maias e astecas, sendo no século XVI que os espanhóis tiveram contato com ele. Todavia, entre os indígenas o chocolate era bebido na forma de cerveja, podendo ser acompanhado de pimenta ou outras especiarias. Quando comido como uma pasta, ele tinha um gosto amargo, já que naturalmente o cacau é amargo. No entanto, quando os espanhóis levaram o chocolate para a Europa, os europeus trataram de incrementar isso, alterando o sabor para deixá-lo mais palatável ao gosto local, assim, no século XVII, na Espanha, França, Bélgica, Holanda, Inglaterra e Itália, os mestres-chocolateiros passaram a misturar o chocolate com leite e açúcar, originando o chocolate ao leite com seu sabor mais suave e doce. (LEMPS, 1998, p, 615). 

O chocolate ao leite foi uma invenção europeia para tornar o chocolate mais doce e macio, o que o deixou mais apreciável e tornou um doce popular nos séculos seguintes. 

Mas não foi apenas a combinação entre chocolate e leite que acabou dando certo, o café também se mostrou uma mistura acertada ao unir-se com o leite. O café foi difundido pelos árabes ainda na Idade Média, mas somente passou a interessar os europeus na Idade Moderna. Os árabes tomavam café puro, as vezes com açúcar ou alguma especiaria como a canela. Entretanto, no século XVIII quando os franceses começaram a apreciar o café, consideravam seu gosto forte, mesmo que misturado com açúcar, então eles começaram a misturá-lo com leite também. Há quem diga que foram os austríacos que desenvolveram o hábito de tomar café com leite, de qualquer forma, essa prática acabou se espalhando e até hoje se mantém, em que encontramos pessoas que somente bebem café se for adoçado e misturado com leite. (CIVITELLO, 2008, p. 169). 

O café com leite teria sido uma invenção francesa surgida no século XVIII. 

A industrialização do leite

Apesar do ser humano criar animais leiteiros há milhares de anos, no entanto, o consumo regular e amplo de leite é algo recente na História. Por séculos a maioria das pessoas que bebiam leite regularmente eram aqueles que viviam nas fazendas ou criavam vacas, cabras e ovelhas, podendo beber leite com maior frequência. Isso se devia ao fato de que não havendo uma forma eficaz de conservar o leite, isso inibia seu comércio a maiores distâncias. Somente em alguns países frios nos meses de inverno, a baixa temperatura ajudava a estender a conservação do leite, porém, na ausência de neve e gelo, o consumo de leite tinha que ser feito em poucas horas antes que ele coalhasse ou azedasse. Por conta disso, excetuando-se a população rural, a população urbana não tinha o hábito de beber leite regularmente, optando em consumir o queijo e a manteiga. 

Além disso havia outro aspecto a ser sublinhado, nem todo mundo gosta do sabor do leite, por conta disso, mesmo as pessoas que viviam da pecuária, optavam em ingerir queijo, coalhada e iogurte, ao invés de tomar leite. Outro fator que inibia o consumo regular de leite diz respeito a intolerância a lactose, desconhecida no passado, mas que afetava as pessoas causando náuseas, dores de barriga e vômitos; além disso, devido a falta de melhores técnicas de conservação e purificação do leite, ele poderia ser facilmente contaminado, então as pessoas para evitar adoecerem, não o bebiam. Vale ressalvar que animais doentes acabavam produzindo leite contaminado. 

No entanto, esse era usado na produção de pães, bolos, biscoitos, massas, mingaus etc. O consumo regular de leite começou a se desenvolver no final século XVIII com o surgimento da indústria leiteira, a qual seguiu crescendo e se aperfeiçoando nos séculos XIX e XX. Foi nesse período de mais de cem anos que surgiu mudanças na criação do gado leiteiro (especialmente o bovino), além do desenvolvimento de técnicas e tecnologias para potencializar a obtenção de leite, seu tratamento, conservação e transporte. 

No século XIX o inventor francês Nicolas Appert (1749-1841) realiza estudos e experimentos para desenvolver formas de melhorar a conservação de alguns alimentos, o que incluía conservá-los em garrafas e latas. Appert teria descoberto o leite condensado, apesar que esse fato seja contestado por parte dos historiadores, os quais creditam ao inventor americano Gail Borden (1801-1874), tal invento, tendo sido realizado em 1851 em caráter experimental. Condição essa que Borden com alguns sócios, investiram em mais experimentos para aperfeiçoar a fabricação de leite condensado, mas o intento que perdurou até 1858, fracassou comercialmente, embora Borden conseguiu desenvolver uma condensadora que agilizava o processo. (FRANTZ, 1948). 

Propaganda de 1898 do leite condensado da empresa de Borden. 

O leite condensado passa por um processo de remoção de 60% de sua água, mas em seguida recebe adição de açúcar, por isso ele é pastoso e doce. Com a difusão das latas, Borden adotou esse recipiente para guardar o leite condensado, pois ajudava no prolongamento da sua conservação que poderia durar até 12 meses em condições normais. O leite condensado apesar de ter fracassado como produto na década de 1850, mas ele finalmente deu certo a partir de 1864, quando Borden fundou a New York Condensed Milk Company. O produto foi na época incluído na ração dos soldados em campo, servindo de sobremesa. O que ajudou a popularizar o leite condensado nos Estados Unidos. Mais tarde o produto já era feito em outros países da Europa e exportado também, sendo bastante usado na produção de doces ainda hoje. (FRANTZ, 1948). 

"A taxa de expansão do leite condensado indústria fornece algumas dicas sobre o crescimento da produção leiteira neste momento. Entre 1890 e 1900, a quantidade de leite condensado produzido no Os Estados Unidos cresceram quase cinco vezes, de 38 milhões para quase 187 milhões de libras; com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o número tinha atingiu mais de 875 milhões de libras. Demanda da Europa durante a guerra manteve a produção subindo, de modo que, em 1919, os Estados Unidos produziam mais de 2 bilhões de libras de leite condensado". (VALENZE, 2011, p. 187-188). 

Por sua vez, Gail Borden também desenvolveu um processo para produzir leite em pó em 1855, comercializando em seguida, apesar que existam contestações se ele teria sido o primeiro a inventar tal tipo de leite. Outros autores apontam inventores russos e franceses que teriam desenvolvido o leite em pó anteriormente. Ainda na década de 1850, os ingleses e suíços se interessaram pelo invento e passaram a investir nesse. O leite em pó inicialmente era considerado um produto voltado para as crianças, além de ser usado também para a fabricação de alguns doces. (VALENZE, 2011, p. 187). Na Suíça o químico e empresário Henri Nestlé (1814-1890) influenciado pelo leite em pó lançou em 1867 a farinha láctea. Um suplemento alimentar para crianças, ainda hoje vendido. (VELTEN, 2010, p. 74). 

O leite em pó passou a ser comercializado na década de 1850, tornando-se no começo do século XX um produto vendido em muitos países. 

O leite em pó se tornou uma alternativa para o consumo de leite, mesmo que algumas pessoas relutassem em usá-lo, alegando que ele era adulterado (apesar que tais problemas realmente ocorria), ainda assim, seu consumo foi crescendo consideravelmente. Em 1919, um ano após o término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os Estados Unidos tinha exportado 44 milhões de quilos de leite em pó, a maior produção do mundo. Um valor colossal mesmo para os padrões da época. (VALENZE, 2011, p. 188). 

Outra invenção importante para o leite que margou o um dos grandes trunfos para prolongar a conservação do leite sem o uso da refrigeração, adveio do processo de pasteurização. Desenvolvido pelo químico francês Louis Pasteur (1822-1895) em 1862, a pasteurização consiste numa técnica para se reduzir a quantidade e microrganismos nocivos num alimento. O processo é simples: aquece-se o alimento acima dos 60 C por alguns minutos (ou segundos) e em seguida o refrigera à baixa temperatura rapidamente, isso causa um choque térmico que mata vários microrganismos. Dependendo do tipo de alimento, a temperatura de calor e de frio varia, assim como, o tempo em cada um. (VALENZE, 2011, p. 211-212; VELTEN, 2010, p. 85-87). No entanto, essa técnica simples foi revolucionária, pois permitiu prolongar a conservação do leite, mas de outros alimentos também como comidas enlatadas, ovos e bebidas como cerveja, vinho, água, sucos etc. 
Tabela mostrando o processo de pasteurização do leite. 

Embora a pasteurização tenha sido desenvolvida em 1862 e aplicada em seguida ao leite, no entanto, ela demorou décadas para se tornar um processo reconhecidamente necessário. Muitos países somente adotaram a pasteurização como obrigatória no século XX. Dessa forma, o leite pasteurizado é hoje em dia o mais consumido no mundo,. No entanto, existem algumas variedades quanto a isso. Com base na pasteurização foram criadas algumas categorias para identificar o leite que passa por tal processo. (VELTEN, 2010, p. 128). 
  • Leite Tipo A: a ordenha é 100% mecanizada e ocorre de um mesmo rebanho, não havendo contato humano. Sua taxa de bactéria é mínima. 
  • Leite Tipo B: a ordenha pode ser mecanizada ou manual, podendo usar mais de um rebanho. A taxa de bactéria é mediana. O leite é refrigerado antes de ser pasteurizado. 
  • Leite Tipo C: a ordenha pode ser mecanizada ou manual, porém, o leite não é refrigerado, sendo enviado diretamente para a pasteurização. Possui uma taxa de bactérias similar ao do Tipo B. 
A presença de bactérias no leite é normal, faz parte do produto. Neste ponto vale ressalvar que as pessoas que não tem costume de tomar leite retirado direto do animal (chamado de leite cru), não devem consumi-lo de imediato, devido a alta taxa de bactérias presentes, sendo recomendado sua fervura. Caso o consumo ocorra é provável que a pessoa tenha dores estomacais ou sinta enjoo. 

No entanto, além do processo de pasteurização, outro foi desenvolvido mais tarde baseado no mesmo, é o processo UHT (ultra high temperature). Esse processo pega o leite pasteurizado, adiciona alguns produtos químicos para ele não ter seus componentes perdidos durante o alto aquecimento, então coloca ele em pré-aquecimento para deixá-lo morno, depois o coloca para ser fervido a temperaturas de 130 C a 150 C por alguns segundos; em seguida o leite é transportado para contêineres herméticos, onde será resfriado rapidamente. Ali ele fica algum tempo descansando antes de ser envazado em caixas. Por conta desse processo o leite consegue ter uma conservação que perdura por meses, desde que mantenha-se a caixa fechada e em local fresco e arejado. Devido a isso ele é conhecido também como leite longa vida. (VELTEN, 2010, p. 128). 

A profissão de leiteiro

O ofício de leiteiro é antigo e se perde no tempo, não sabendo-se onde começou ou em que época isso ocorreu, pois leiteiros eram pessoas que iam de casa em casa, vender leite, mas também vendiam queijo e manteiga. Os leiteiros agiam na comunidade onde viviam, fosse um povoado, vilarejo ou vila. Caso a fazenda fosse próxima de uma cidade, ele poderia ir até ela. Todavia, o ofício de leiteiro se profissionalizou realmente a partir da segunda metade do século XIX com o avanço tecnológico dos meios de transporte, das garrafas de vidro, latas de leite, refrigeradores e o processo de pasteurização, o qual prolongava a durabilidade do leite. (VELTEN, 2010, p. 65-67). 

Com o progresso da indústria dos alimentos, a produção de leite e laticínios cresceu de forma avassaladora, permitindo que tais alimentos passassem a serem consumidos na dieta diária de pessoas de vários países europeus, no Canadá, Estados Unidos e alguns países latino-americanos. Na África e na Ásia com o atraso da industrialização, isso somente chegou no século XX. De qualquer forma, foram os europeus e estadunidenses que potencializaram a profissão de leiteiro, a qual surgiu em algumas cidades ou cresceu em outras que havia. Dessa forma, tais homens (pois acabou se tornando uma profissão masculinizada), logo cedo se dirigiam as fábricas ou depósitos para pegar as carroças de leite e partirem pelos bairros, vendendo o produto de porta em porta. Isso se repetia quase diariamente, pois dependendo da localidade a quantidade de entregas variava. 

Um leiteiro belga e sua esposa. A carroça de leite era puxada por cães. Fotografia tirada por volta de 1880. 

De início os leiteiros usavam latas feitas de alumínio, estanho ou latão. Dependendo do tamanho, poderiam transportar mais de 10 litros de leite. Essas latas eram carregadas nas carroças e as pessoas levavam panelas, garrafas, jarras e bacias para encher com o leiteiro. Mais tarde no começo do século XX com a difusão da indústria de garrafas de vidro, em alguns países tais latões foram sendo substituídos pelas garrafas de leite. No entanto, ainda hoje existem países em que tais antigas latas são utilizadas pelos leiteiros, algo que se ver na imagem a seguir. (VELTEN, 2010, p. 66). 

Um leiteiro nepalês transportando latas de leite. 

O comércio de leite cresceu no final do XIX e perdurou em alta até a década de 1960, pois em alguns países pelo mundo, as pessoas ainda mantiveram o hábito de comprar leite, queijo e manteiga com os leiteiros, embora que com o tempo tais produtos já fossem comercializados normalmente nos mercados e feiras. Mas em alguns lugares a profissão de leiteiro era respeitada e até vista como uma tradição, por isso perdurou por décadas. 

Carroças de leite em Helsinki, na Finlândia, na década de 1920. 

A entrega do leite por muito tempo era feita em carroças puxadas por cavalos, jumentos ou cães, mesmo que o automóvel tenha surgido ainda no XIX, ele não foi adotado de imediato. Fato esse que os carros de leite ainda demoraram para começarem a serem empregados, passando a serem uma realidade mais regular a partir da década de 1930, mesmo assim, somente em algumas cidades, pois havia casos em que na mesma cidade poderíamos ter leiteiros usando carroças e outros usavam carros, isso dependia da empresa para qual trabalhassem. (VELTEN, 2010, p. 9). 

Além de vender leite, queijo e manteiga, alguns leiteiros também passaram a vender pães, bolos, iogurte, coalhada, sorvete e outros produtos, mas no geral, o leite era o principal produto vendido. Inclusive já se disse que a profissão de leiteiro iria sumir totalmente, mas ela não sumiu. Em países como Inglaterra, Estados Unidos, Índia, Nepal, França, Itália, Irlanda, Suíça, em algumas cidades ainda existem tais profissionais, em que homens e mulheres usam carros para fazerem as entregas. Em geral são pessoas que trabalham para cooperativas ou pequenas empresas que procuram manter essa tradição do ofício do leiteiro ainda viva. 

A Inglaterra é um dos poucos países atuais onde a profissão de leiteiro continua a existir. 

Tipos de leite

Com o advento da industrialização tipologias para o leite foram criadas. Elas não se referem necessariamente a origem do leite, mas suas características quanto a presença de mais gordura, nata, vitamanis, nutrientes, lactose etc. 
  • Leite integral: leite que conserva sua gordura original, não tendo ela diminuída. 
  • Leite semidesnatado: parte da nata que representa a concentração de gordura, é removida. 
  • Leite desnatado: tem a maior parte da nata removida, sendo o menos calórico. Por conta disso, seu sabor e odor são diferentes do leite integral.
  • Leite fortificado: recebe a adição de vitaminas e nutrientes. É geralmente consumido por crianças e idosos com carência de nutrientes. Normalmente é vendido em forma de leite em pó, sendo bem mais caro. 
  • Leite sem lactose: devido ao problema de intolerância à lactose, esse leite passa por um processo que remove a lactose. 
  • Leite achocolatado: tipo de leite misturado com chocolate em pó. Normalmente passa por processo industrial, sendo vendido já dessa maneira. 
NOTA: O leite materno na espécie humana é dividido em três fases: colostro, sendo amarelo e produzido nos primeiros dias após o nascimento do bebê; o leite de transição, produzido entre o sexto e décimo quinto do nascimento da criança, sendo de coloração levemente amarelada, mais denso e rico em gorduras e carboidratos. Finalmente temos o leite maduro com sua coloração branca e vários nutrientes, o qual é produzido até o final do período da amamentação que é recomendado até os 2 ou 3 anos de idade. 

NOTA 2: Embora a função dos seios seja para a amamentação, no entanto, eles se tornaram partes sensuais e sexuais do corpo humano. No caso, a espécie humana é a única dentre os mamíferos a sentir atração sexual pelas mamas. 

NOTA 3: Os antigos egípcios, indianos e alguns povos africanos e asiáticos usavam manteiga para se fazer maquiagem. Por conta de ser viscosa, a maquiagem à base de manteiga concedia brilho para o rosto. 

NOTA 4: Para o povo Massai na África o leite é bebida sagrada, inclusive eles possuem um ritual no qual bebem leite misturado com sangue de vaca. 

NOTA 5: No Japão da segunda metade do século XVII com a expulsão dos europeus (exceto dos holandeses), o consumo de leite e laticínios foi proibido em grande parte do país, pois alegava-se ser um costume estrangeiro, não sendo algo da cultura nipônica. 

NOTA 6: A Yakult é uma empresa japonesa criada em 1938, e ela popularizou o consumo de leite fermentado, hoje difundido em vários países e considerado bebida de criança, embora que no Japão, Coreia do Sul e China, os adultos costumam tomar esse tipo de leite. 

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