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Leandro Vilar

quinta-feira, 27 de abril de 2023

70 anos da primeira escalada ao topo do Monte Everest

Em 2023 completará 70 anos desde que dois alpinistas conseguiram realizar a façanha de chegar ao topo da montanha mais alta do mundo. Embora o Monte Everest não seja a mais perigosa das montanhas para se escalar, ainda assim, seu tamanho e altura o tornam um obstáculo por si só. 

Introdução: O Monte Everest

O Everest é um maciço montanhoso com 8.848 metros de altura, que está situado na Cordilheira do Himalaia, na Ásia, compreendendo os territórios do Nepal, Butão, China e Índia. O Himalaia aglutina as maiores montanhas do mundo, condição essa que várias delas possuem mais de 8 mil metros de altitude. 

O Monte Everest ao centro e seus irmãos. 

O Monte Everest fica situado na fronteira do Nepal com a China, possuindo 8.848 metros de altitude acima do nível do mar, o que o torna a mais alta montanha do planeta Terra. Os nepaleses se referem ele hoje em dia pelo nome de Sagarmatha, já os tibetanos o chamam Chomolungma, e os chineses o nomeiam de Zhumulangma Feng. Todavia, essa montanha é mundialmente conhecida pelo nome de Everest por conta do geógrafo que a mapeou e determinou sua altitude. 

Em 1852 a Royal Geographical Society da Inglaterra enviou mais uma expedição científica ao Himalaia; expedições desse tipo era comuns no século XIX, em que a RGS realiza em vários países, geralmente optando em enviar seus sócios e funcionários às colônias britânicas e nações aliadas. Naquele ano o então diretor da expedição Survey of India, o major general, topógrafo e agrimensor Andrew Waugh (1810-1878), o qual coordenava o mapeamento de parte do Himalaia notou que a zona que ele estava trabalhando, carecia do nome de algumas montanhas e outras localidades. Nos mapas tais lugares eram identificados por números e letras, condição essa que o Monte Everest foi inicialmente chamado de Pico B e depois Pico XV. 

No ano de 1852 a altura do Everest foi calculada pelo matemático indiano Radhanath Sidkar (1813-1870), após meses de trabalho, o qual informou a Waugh, que o então Pico XV era a montanha mais alta do mundo. Em 1856 Waugh sugeriu a RGS que aquela montanha fosse nomeada de Everest, em homenagem ao seu antecessor, o coronel Sir George Everest (1790-1866), o qual foi geógrafo, cartógrafo, engenheiro e topógrafo, tendo assumido como Engenheiro Cartógrafo Geral da Índia entre 1830 e 1843, trabalhando por vários anos para a Royal Geographical Society. 

George Everest, cujo nome foi dado em homenagem a montanha.

No entanto, Everest e outros membros da RGS não foram favoráveis a escolha desse nome, por conta disso, a montanha ainda continuou a ser chamada Pico XV, somente em 1865 foi oficializado chamá-la de Monte Everest. 

Rumo ao topo do mundo:

Os britânicos por décadas foram os principais alpinistas a tentarem chegar ao topo do Everest, isso se devia a condição do colonialismo na Índia que ainda vigorava naquele tempo, o que facilitava a entrada de britânicos naquelas terras. Depois deles, americanos, franceses e alemães estiveram entre os principais a tentarem também alcançar o topo do mundo. 

Embora a montanha tenha sido nomeada oficialmente como Everest desde 1865, no entanto, nenhuma expedição científica para fazer reconhecimento dela e tentar chegar ao seu cume, ocorreu nas décadas seguintes devido as dificuldades para isso. Somente no século XX tiveram início as tentativas de escalar a mais alta montanha do mundo. 

Em 1904 a expedição explorador militar Francis Younghusband (1863-1942), realizou fotografias da Face Oriental da montanha, no entanto, somente em 1921 ocorreu a primeira tentativa de se escalar a montanha. Naquele ano foi enviada uma expedição de reconhecimento, cuja missão não era atingir o cume da montanha, mas mapear o terreno, fazer demarcações e estipular possíveis rotas para se alcançar o topo. A expedição era formada por nove membros e seus ajudantes. Entre os membros estavam:

  • Harold Raeburn: experiente alpinista e líder da expedição;
  • Charles Howard-Bury: alpinista, militar e explorador;
  • George Mallory: alpinista;
  • Guy Bullock: alpinista;
  • Alexander Wollaston: médico, botânico, ornitólogo e alpinista; 
  • Alexander Heron: geólogo; 
  • Henry Morshead: alpinista e explorador;
  • Oliver Wheeler: alpinista e miliar especialista e sobrevivência;
  • George Bernard Shaw: fotógrafo.
Membros da expedição de reconhecimento ao Monte Everest, em 1921. Em pé, da esquerda para direita: Wollaston, Howard-Bury, Heron e Raeburn. Sentado, da esquerda para direita: Mallory, Wheeler, Bullock, Morshead. Foto feita por George Shaw. 

A expedição passou vários dias em campo fazendo seu reconhecimento e chegaram a conclusão que a Face Norte aparentava ser o caminho mais fácil. De fato, isso foi uma conclusão correta, pois ainda hoje a Face Norte é o principal caminho escolhido pelos alpinistas. Com isso em mente, foi realizado em 1922 a primeira expedição para se escalar o Everest, formada por britânicos e nepaleses, todavia, a expedição foi um fracasso. Sete nepaleses morreram por conta de uma avalanche em junho daquele ano, levando a expedição a ser abordada. 

Após o desastre de 1922, a expedição de 1923 foi cancelada, somente ocorrendo em 1924. A nova tentativa ocorreu entre maio e junho daquele ano, contando inclusive com a participação de George Mallory, que retornava a grande montanha, dessa vez decidido a atingir seu cume. Porém, Mallory foi um dos quais morreram nessa empreitada. Seu corpo somente foi achado em 1999. Além dele morreram também Man Bahadur por conta de pneumonia, Lance-Naik por uma hemorragia cerebral e Andrew Irvine, de causas desconhecidas. Apesar dessas mortes, outras expedições foram realizadas, mas todas fracassaram nos anos seguintes, e algumas resultaram em novas mortes. 

Hillary e Norgay no topo do mundo:

Desde que as primeiras expedições para escalar o Everest tiveram início em 1922, trinta anos se passaram e ninguém tinha obtido sucesso em alcançar o topo do mundo. Inclusive algumas pessoas já tinham falecido nesse meio tempo. As principais causas de morte eram avalanches, quedas e problemas respiratórios gerados pelo frio e o ar rarefeito. Mais tais fatores não mantiveram longe o sonho de chegar ao topo da montanha mais alta do mundo. 

Em 1951 o alpinista e explorador neozelandês Edmund Hillary (1919-2008), na época com 32 anos, participou da expedição neozelandesa para escalar o Everest, mas devido a dificuldades climáticas, a missão foi cancelada. Apesar disso, Hillary não desistiu do sonho de escalar a mais alta montanha. Dois anos depois ele retornou ao Nepal, dessa vez ingressando numa expedição britânica. 

Em março de 1953 a expedição britânica deixou Katmandu, capital do Nepal, rumo ao acampamento base do Everest. Foi em meados de abril que os alpinistas deixaram a base e iniciaram a longa subida. Além de Hillary seguiram também os alpinistas: John Hunt (líder da expedição), Eric Shipton, Tom BourdillonGeorge Band, Robert Charles Evans, Tenzin Norgay (1914-1986), entre outros. 

Após quase um mês de escalada, com direito a criação de alguns acampamentos em diferentes altitudes e localidades para se aclimatar por conta do ar rarefeito, a pressão e o frio. Em 26 de maio, Bourdillon e Evans tentavam alcançar o cume pela Face Sul, faltando menos de cem metros para isso, mas problemas com o tanque de oxigênio de Evans e o equipamento de Bourdillon, levou os dois a desistirem de prosseguir, pois corriam risco. 

No dia 29 de maio, Edmund Hillary e Tenzin Norgay realizaram a segunda tentativa de subir ao topo. Ele seguiram até o cume sul e de lá deram uma volta para escalar um paredão rochoso evitando a neve, a qual poderia desabar com o peso deles e ocultar fendas. Foi uma subida difícil nem tanto pela altura, mas pelas condições ambientes, no entanto, ambos conseguiram transpor o paredão e alcançaram o topo nevado do Monte Everest. 

Edmund Hillary e Tenzin Norgay, os dois primeiros homens a chegar ao topo do Everest. 

Hillary e Norgay tiraram fotos, colocaram uma bandeira, deixaram presentes e contemplaram uma visão vista por poucos. Apesar de mais de dois meses de expedição, ambos permaneceram somente alguns minutos ali em cima, devido ao vento e o ar rarefeito. Hillary começou a ter tonturas por conta disso. 

Usando-se o telégrafo a notícia de que dois alpinistas conseguiram realizar a façanha de chegar ao topo da montanha mais alta do mundo começou a ser espalhada em 30 de maio. Hillary, Norgay, Hunt e outros membros da expedição ganharam medalhas e presentes o governo britânico, nepalês, indiano e de outros povos. Com o sucesso da expedição de 1953, escalar o Everest não era impossível, dessa forma, novas expedições ocorreram desde então.

NOTA: O paredão rochoso que Hillary e Norgay escalaram para atingir o topo é chamado de Degrau de Hillary e mede cerca de 12 metros. 

NOTA 2: Segundo dados oficiais, mais de 300 pessoas morreram tentando escalar o Monte Everest. 

NOTA 3: O nepalês Kami Rita Sherpa já escalou 26 vezes o Everest, sendo a pessoa que mais vezes chegou ao topo do mundo. 

NOTA 4: Em 1955, Edmund Hillary publicou um livro narrando sua jornada para escalar o Everest. 

Referências bibliográficas: 

BAND, George. Everest: 50 years on top of the World. [s.l], Mount Everest Foundantion/Royal Geographical Society, 2003. 

HILLARY, Edmund. High Adventure: The True Story, of the First Ascent of Everest. London, Houston & Stoughton, 1955. 


quarta-feira, 19 de abril de 2023

Os capitães indígenas no Brasil holandês (1624-1654)

Durante o Brasil holandês indígenas do povo Potiguara, Tabajara e "tapuias" se envolveram diretamente nos conflitos que se estenderam por mais de vinte anos. Esses homens em diferentes momentos lutaram ao lado dos portugueses e espanhóis, mas também serviram aos holandeses e seus exércitos formados por homens de diferentes nacionalidades. Embora centenas de indígenas tenham lutado nessas guerras, seus nomes são desconhecidos, porém, alguns de seus líderes se tornaram lembrados, principalmente por terem tido um papel de destaque. Assim, o presente texto aproveita o feriado de 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas e Dia do Exército para citar um pouco do papel desses homens. 

Antônio Filipe Camarão

Indígena potiguar nascido em localidade incerta da Capitania do Rio Grande, entre os anos de 1600 e 1601. Ainda adolescente foi convertido ao catolicismo e alfabetizado em português pelos jesuítas. Seu nome original seria Poti, tendo mudado para Antônio Filipe após ser batizado. Sua história como dos demais líderes indígenas do Brasil holandês antes da guerra, segue desconhecida. 

Em algum momento a partir de 1631, Filipe e sua esposa Clara Camarâo. Além deles dois se uniram também outros indígenas como Diogo Pinheiro (irmão de Pedro Poti) e Simão Soares. Filipe passou a servir nas milícias que lutavam em Itamaracá e Pernambuco, porém, seu nome somente ganhou destaque anos depois tendo ele participado das batalhas de São Lourenço (1636), Porto Calvo (1637), Salvador (1638). 

Retrato de Antônio Filipe Camarão.

No entanto, foi na década de 1640 que Filipe Camarão já era capitão e mais conhecido, tendo liderado tropas por Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, entrando em confronto com Pedro Poti, seu principal rival, o qual ele tratava como "primo" ou "irmão" por pertencerem ao mesmo povo. Inclusive é notável os anos de 1645 e 1646, quando Filipe, Poti e Diogo trocaram cartas escritas em tupi, tentando convencer um ao outro a trair seu lado. Poti apontava que Filipe e Diogo eram tolos iludidos em defender os portugueses, já os dois criticavam Poti em lutar a serviço de um invasor infiel, pois aqui entrou o discurso religioso em atacar Poti por ser calvinista, algo que ele também fez ao considerar o catolicismo como um "falso cristianismo". 

Filipe Camarão foi agraciado com títulos e honrarias, tornando-se dom e capitão-mor dos indígenas fiéis a coroa portuguesa nas guerras contra os holandeses. Participou da Insurreição Pernambucana e Paraibana iniciados em 1645, chegando a lutar nas Batalhas dos Guararapes em 1648 e 1649. No entanto, faleceu devido a ferimentos enquanto defendia o Arraial do Bom Jesus em 1649, o bastião português próximo a Recife, não tendo deixado filhos. Por seus feitos ele foi mais tarde galgado ao posto de herói de guerra. Diogo Pinheiro o sucedeu no comando das tropas, já Clara Camarão se desconhece o que houve com ela. 

Antônio Paraupaba

Nasceu em 1595 na Capitania da Paraíba, em localidade incerta, sendo filho de Gaspar Paraupaba. Pertencia ao povo potiguara, possivelmente da mesma tribo de Pedro Poti ou de uma comunidade vizinha. Se desconhece sobre a vida de Paraupaba antes da sua aliança com os holandeses, ocorrida em 1625, na Baía da Traição

Em 1624 os holandeses haviam invadido e conquistado Salvador, então capital do Brasil. No entanto, em 1625 o rei Filipe III de Espanha e Portugal enviou a Jornada dos Vassalos com mais de 60 navios e 12 mil homens para expulsar os holandeses e reaver a capital colonial. A Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie) da Holanda enviou reforços para manter o controle de Salvador, mas esses foram derrotados. Uma das armadas enviadas era liderada pelo experiente almirante Boudewijn Henrdrickxsz. 

A frota holandesa permaneceu alguns dias na Baía da Traição, mantendo contato com alguns potiguaras, incluindo Pedro Poti. Por motivos não conhecidos, Paraupaba, Pedro Poti, Marizal, Takou, Gaspar, Ararova e Matauva aceitaram ir para a Holanda. 

Paraupaba retornou ao Brasil com Poti em 1631, ambos se tornaram chefes militares, interpretes e mediadores. No caso, Paraupaba foi enviado para comandar as tribos na Capitania do Rio Grande, onde viveu por mais de vinte anos, lutando de forma fiel em servir a companhia holandesa. Diferente dos outros chefes, Antônio Paraupaba ficou focado nas campanhas no Rio Grande e Paraíba, atuando principalmente na região de fronteira entre as duas capitanias, território crucial para garantir o controle holandês. 

Com a rendição da WIC e o acordo de retirada acertado em 1654, Paraupaba, sua esposa e dois filhos deixaram a colônia também, retornando a Holanda, onde ele tentou no Parlamento convencer o governo a enviar uma nova expedição para resgatar potiguaras fiéis a WIC. Mas após vinte anos de guerra, o governo não considerava interessante e vantajoso retomar a guerra pelo Brasil, além de que como apontado por Evaldo Cabral de Mello, a Holanda e a WIC estavam interessados numa indenização, a qual foi paga nos anos seguintes. 

Antônio Paraupaba faleceu em 1656, aos 61 anos de causas desconhecidas. Não se sabe se sua esposa e filhos permaneceram na Holanda ou voltaram ao Brasil. 

Pedro Poti 

Pedro Poti nasceu por volta do ano de 1608 no litoral norte da Capitania da Paraíba, sendo membro do povo potiguara. Suas origens são desconhecidas e alguns de seus familiares também são incertos, pois, como apontado por Eduardo Navarro (2022), os potiguaras não distinguiam com clareza irmãos, primos, sobrinhos e tios, condição essa que ele trata alguns tios e até homens mais velhos chamando-os de "pai" e "avô". Além disso, ele referia-se a alguns primos como "irmãos". De qualquer forma, a vida de Poti mudou em 1625, quando ele conheceu um grupo de holandeses que aportou na Baía da Traição, na Paraíba.

Poti converteu-se ao calvinismo, aprendeu o holandês e em 1631 ele voltou ao Brasil com Antônio Paraupaba, para servir na guerra travada pela WIC para se conquistar territórios no Nordeste do Brasil. Poti além de chefe militar, pois ganhou a patente de "capitão dos índios", atuou como intérprete e mediador da WIC com as tribos paraibanas. 

Pedro Poti participou de vários conflitos nas capitanias da Paraíba, Itamaracá e Pernambuco, sendo oposição direta aos portugueses e espanhóis, tendo como grande rival seu "primo" Filipe Camarão. Ele lutou durante a Batalha de Guararapes em 1648, ocorrida em Pernambuco, onde foi capturado. Em seguida ficou preso por quase quatro anos em situação degradante, quando foi enviado em 1652 para Portugal para ser julgado por seus crimes, mas faleceu durante a viagem. Não se sabe se ele adoeceu ou foi morto. 

NOTA: Não há imagens conhecidas de Pedro Poti e Antônio Paraupaba.

NOTA 2: 19 de abril é Dia do Exército em referência a primeira Batalha dos Guararapes, iniciada em 18 de abril e vencida no dia seguinte. O conflito foi escolhido como um marco para a história do exército brasileiro. 

Referências bibliográficas:

HULSMAN, Lodewijk. Índios do Brasil na República dos Países Baixos: as representações de Antônio Paraupaba para os Estados Gerais em 1654 e 1656. Revista de História, v. 154, n. 1, 2006, p. 37-69. 

MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil. Recife, Capivara, 2015. 

NAVARRO, Eduardo Almeida. Transcrição e tradução integral anotada das cartas dos índios Camarões, escritas em 1645 em tupi antigoBol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum. v. 17, n. 3, 2022.

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil colonial. São Paulo, Objetiva, 2000. 

sábado, 1 de abril de 2023

A representação iconográfica da mitologia grega na Idade Média

É muito comum vermos imagens dos mitos gregos na Antiguidade, no Renascimento, no Romantismo do século XIX, no século XX, em si. Mas alguns devem se perguntar: na Idade Média havia representações iconográficas dos deuses e monstros dos mitos gregos? A resposta é sim. Se considerarmos o período medieval indo de 476 a 1453, e até expandindo para ele para a chamada "Idade Média tardia" que foi até 1500, houve produções de alguns artistas com temáticas da mitologia grega. Vale acrescentar que em algumas localidades como a Grécia, a Itália e o Império Bizantino, esses mitos ainda eram lidos, mesmo que por uma pequena fração da população. 

Por sua vez, nos séculos XIII e XIV, temos relatos de autores da Espanha, França, Alemanha, Inglaterra, Dinamarca, Islândia, Rússia de Quieve, fazendo menções aos mitos greco-romanos, o que mostra que esses escritores e poetas tinham acesso a algumas narrativas gregas. 

Sendo assim, o presente texto foi baseado no estudo do historiador da arte Erwin Panofsky e Fritz Saxl que há quase cem anos publicaram o artigo intitulado Classical Mythology in the Medieval Art (1933), comentando sobre a presença dos mitos gregos principalmente em obras de astronomia e algumas publicações de filósofos e escritores. Todavia, decidi acrescentar outras fontes que ficaram de fora desse estudo, no caso, os bestiários, abordando assim alguns monstros. No entanto, é importante salientar que Panofsky e Saxl salientaram que é possível encontrar obras alvusas que abordavam algum mito grego específico, porém, eles decidiram abordar alguns temas mais gerais. 

Personagens gregos na astronomia e astrologia

No período medieval astronomia e astrologia ainda se confundiam, não estavam separadas. Por conta disso, tratar a respeito do zodíaco, mesclando os signos com as constelações era algo comumente feito. Por conta do principal zodíaco que hoje utilizamos ser de origem grega, logo, os povos europeus da Idade Média também faziam uso deles. E, no caso, as constelações que existiam naquele tempo eram baseadas nos mitos gregos, sendo assim, era comum pegar alguns livros de astronomia contendo ilustrações dos signos zodiacais e das constelações apresentando os personagens mitológicos. 

A Constelação de Hércules no livro Aratea, datado de entre 830 e 840. 

É preciso considerar também que a Astronomia era uma das Sete Artes Liberais da Europa medieval, compondo o grupo do Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia). Por conta dessa preferência, autores gregos que estudavam essa ciência (chamada de arte na época) era privilegiada. Assim, livros de estudiosos como Ptolomeu, Aristóteles, Pitágoras, Tales de Mileto etc. eram referências, embora que as obras ptolomaicas do Almagesto, o Tetrabiblos e as Hipóteses planetárias, formavam a tríade de livros astronômicos na Europa, servindo de base pelos séculos seguintes. (FRIAÇA, 1999). 

Mas além desses autores gregos, estudiosos romanos como Calcídio (séc. IV), Macrobio (395-423), Martianus Capella (séc. V), Boécio (480-524), Cassiodoro (c. 485 - c. 580), e o hispânico Isidoro de Sevilha (c. 560-635), se tornaram referências nos estudos astronômicos medievais na Europa. A ponto que seus trabalhos ganharam novas edições, comentários e críticas. Eventualmente algumas das obras eram até mesmo ilustradas com as constelações e os corpos celestes. (FRIAÇA, 1999). 

Representação da Constelação de Andrômeda com cenas de seu mito. Ilustração feita para um estudo astrológico escrito em latim na França. O livro não tem título e autoria definida, e seria datado por volta do ano 1000.

No entanto, não foram apenas os europeus medievais que deram continuidade aos estudos gregos em astronomia, alguns povos asiáticos como os árabes, os sírios e os persas também foram influenciados pela astronomia grega, fazendo seus estudos, contestações e inovações. O astrônomo persa Al-Sufi (903-986) redigiu um importante livro de astronomia no século X, que se tornou referência para os séculos seguintes. 

A constelação de Pégaso desenhada pelo astrônomo Al-Sufi, para o Livro das Estrelas Fixas (964). 

As alegorias dos deuses gregos

Durante o medievo, autores europeus, asiáticos e africanos de origem cristã e muçulmana consideravam os deuses dos antigos gregos e romanos como falsos deuses, todavia, alguns deles se interessavam em ler e estudar os mitos, por conta do fascínio dessas narrativas, mas outros enxergavam nesses deuses e personagens míticos alegorias e parábolas que poderiam ser adaptadas para os ensinamentos cristãos e muçulmanos. Fato esse que no Fisiólogo (que foi citado no tópico seguinte), temos a interpretação simbólica de animais reais e fantásticos associados as ideias de virtude e pecado no cristianismo. 

A deusa Atena ou Minerva para os romanos, foi uma divindade que acabou sendo ressignificada por alguns filósofos cristãos. Ela tornou-se a alegoria da "donzela guerreira" e da "mulher sábia". No século IX, os clérigos irlandeses João Escoto Erígina (810-877) e Remígio de Auxerre (c. 841-908), os quais pertenciam a tradição escolástica irlandesa, conhecida pelos estudos do grego antigo e traduções, escreveram comentários e pequenos ensaios sobre os mitos, destacando Atena como personificação da sabedoria, da virgindade, da honra, da prudência etc. Para esse dois clérigos e outros do período, Atena não teria sido uma deusa real, mas uma alegoria para falar sobre a sabedoria. 

Ilustração de Atena para o livro De Nuptis Philologiae et Mercurii et de septem Artibus liberabilus libri novem, séc. IX. 

No século XIV a ideia de Atena como uma "donzela guerreira", que expressaria a sabedoria, a prudência, a estratégia e outras virtudes marciais, começou a ganhar destaque entre filósofos e escritores franceses e ingleses. O clérigo Pierre Bersuire (c. 1290-1362) em seu livro Ovidius Moralizatus, em que realizou uma análise sobre mitos greco-romanos, destacava Atena como símbolo da sabedoria, da virgindade, a conselheira de reis e a musa inspiradora dos cavaleiros. 

Atena segurando uma lança e entregando uma cota de malha a um cavaleiro. Ilustração para uma edição da Epístola de Heitor, c. 1460. 

Afrodite na sua versão romana Vênus, foi outra divindade grega que foi ressignificada na Idade Média, mas a deusa do amor enquanto manteve seu principais atributos: amor e beleza, perdeu várias outras características como a sensualidade, a sexualidade, a luxúria, a vaidade. No final do medievo europeu, uma versão mais honrada e recatada de Vênus passou a figurar em algumas ilustrações, geralmente mostrando as pessoa segurando corações como personificando o amor. Nesse sentido, Vênus se tornou uma alegoria para o amor, em alguns casos até assumindo a função de Eros (ou Cupido). 

Ilustração de Vênus para a Epístola de Heitor, séc. XV. 

Entretanto, Vênus nem sempre foi apresentada de forma casta, como uma donzela que simbolizava o amor. Alguns autores do século XIV e XV também resgataram o lado mais carnal e luxurioso da deusa, com direito a ilustrá-la nua, no intuito de usar sua imagem para comentar sobre o pecado da luxúria, ou para exaltar a própria sexualidade, pois a ideia de na Idade Média as pessoas eram totalmente conservadoras nos costumes, não é bem assim, isso variava de lugar, cultura e época. 

Ilustração de Vênus à esquerda, entre os signos de Touro e Libra, à direita representações da sexualidade. Codex Berol, c. 1447, Berlim. Autoria desconhecida. 

O caso de Cronos ou Saturno é interessante pelas mudanças associadas a esse deus. Na mitologia grega Cronos é o deus do tempo, que é principalmente lembrado por desafiar seu pai Urano e aprisionar seus próprios filhos, devorando-os, até que ele foi enganado por sua esposa e vários anos depois Zeus o desafiou, resgatando os irmãos e banindo o pai junto aos demais titãs para a prisão no Tártaro. Entretanto, para os antigos romanos Saturno tinha funções diferentes. Ele era um deus associado também com o tempo, mas ligado a agricultura, a prosperidade, aos festejos etc. 

Logo, quando Cronos é retratado na Idade Média, ele costuma absorver os valores concedidos a Saturno, por sua vez, na Idade Moderna tivemos já um destaque maior para Cronos como presente nos mitos gregos, retratando-o como um pai cruel. 

Mural representando o tema dos Filhos de Saturno. Datado de 1420, feito numa igreja em Pádua. 

No mural acima vemos na última imagem no lado direito e inferior o deus Saturno (Cronos), já as demais cenas mostram diferentes momentos da vida rural, pois esse mural evoca Saturno como a divindade do tempo associado com os trabalhos do campo. Aqui o deus torna-se uma alegoria para o ciclo do plantio e colheita e outros afazeres rurais. 

Um último exemplo citado nessa parte diz respeito a Hermes ou Mercúrio. Embora na mitologia grega ele fosse lembrado como o mensageiro dos deuses, deus dos comerciantes, ladrões e viajantes, na Idade Média evocou-se a associação de Hermes com o conhecimentos e os mistérios, especialmente sua ligação com a alquimia e o gnosticismo através do chamado Hermes Trismegisto. É importante salientar que a alquimia gozava de certo respeito no período medieval em detrimento de outras práticas mágicas que eram repudiadas e até caçadas pelas inquisições. Condição essa que no medievo tivemos alguns renomados clérigos alquimistas como Roger Bacon e Alberto Magno. Por conta disso, a partir do século XII encontramos representações de Mercúrio como uma alegoria ao conhecimento e mistérios alquímicos. 

Hermes Trismegisto representando como um alquimista árabe. Ilustração do século XII. 

Monstros gregos nos bestiários

Por volta do século II d.C, foi escrito um livro chamado de Fisiólogo, de autoria anônima, que acabou ganhando outras versões até o século IX, mais ou menos. Esse livro consistia num antecessor aos bestiários, livros que abordavam animais reais e fantásticos, e as vezes alguns monstros também. Por conta do Fisiólogo ter sido escrito talvez em Alexandria, uma das cidades gregas do conhecimento, seu autor ou autores acabaram por inserir elementos dos mitos gregos nesse livro, e nas edições seguintes alguns dos animais fantásticos ali citados, foram mantidos, enquanto outros foram removidos. (VARANDAS, 2006). 

No entanto, o Fisiólogo ganhou um caráter moralista, associando os animais com ensinamentos cristãos, fossem eles usados para representar virtudes ou pecados. Observa-se assim o uso do simbolismo animal para fins doutrinários. Todavia, nos bestiários, gênero medieval que se desenvolveu entre os séculos XII e XIV, o caráter moralista foi reduzido, prezando-se mais por informações sobre o comportamento desses animais, sua localização e alguma curiosidade. De qualquer forma, os monstros dos mitos gregos que apareciam em ambas as obras, em geral personificavam pecados. (VARANDAS, 2006)

Vale lembrar que dependendo da versão do Fisiólogo ou do bestiário, nem sempre monstros gregos estariam presentes, mas os que normalmente apareciam eram: centauros, hidras, harpias, sereias, sátiros, hipocampos, sirenas e a fênix. Com exceção da fênix que tinha um simbolismo positivo, associando-se a ideia de renovação e ressureição, os demais monstros gregos eram personificações de pecados. E um ponto interessante a ser mencionado, é que esses livros os consideravam como animais e seres reais, os quais ainda existiriam, ou teriam existido. A seguir citei alguns exemplos. 

Os sátiros (ou faunos para os romanos) eram considerados "homens-bodes" ou "homens-macacos", seres bestiais, selvagens e perigosos. Eles personificavam o primitivismo, os aspectos animalescos, a violência e a luxúria. Em alguns dos bestiários eles teriam existido na Europa, mas foram caçados até a extinção, mas ainda continuariam a existir em partes da África e da Ásia. 

Um sátiro segurando uma clava. Ilustração do Bestiário Ashmole, séc. XIII. 

Os centauros foram um dos monstros gregos que ganharam novas variações na Idade Média. Por exemplo, tivemos o surgimento de centauro fêmea, do bucentauro (corpo de touro), do onocentauro (corpo de jumento), do ictiocentauro (centauro marinho). Essas criaturas eram consideras raças selvagens e perigosas, as quais causavam malefícios as pessoas. Eram seres traiçoeiros, imorais e agressivos. Acreditava-se que esses animais ainda existiriam na Ásia. 

Um centauro fêmea amamentando seu filhote. Uma invenção medieval. Ilustração do bestiário Rutland Psalter, c. 1260. 

As harpias que nos mitos eram duas ou três irmãs, nos bestiários eram considerados monstros híbridos que existiriam em algumas partes selvagens do mundo. Seriam seres perversos associados com ataques aos viajantes, além de simbolizarem a avareza, pois no mito grego as harpias protegiam um banquete, atacando qualquer um que tentasse pegar comida de uma mesa farta que se encontrava numa caverna. Curiosamente em alguns bestiários as harpias eram confundidas com as sirenas e até com as esfinges. 

Uma harpia em forma de esfinge, atacando um homem adormecido. Ilustração do bestiário de Pierre de Beauvoir, séc. XIII. 

A Guerra de Troia

A famosa guerra dos gregos contra os troianos foi um tema popular no medievo, por exemplo, no Império Bizantino dos séculos IX e X era leitura obrigatória a Ilíada e a Odisseia na educação dos nobres. Inclusive havia poetas especializados em cantar passagens desses poemas. Além disso, para algumas pessoas era "chique" você saber recitar trechos famosos desses poemas e conversar a respeito. A Eneida também passou a ser considerado como um dos clássicos poemas, já que era uma continuação do ciclo troiano, focando a narrativa no herói troiano Enéas. Por conta disso, esse poema esteve em alta no período medieval, já que se ligava também ao mito de fundação de Roma. (RUNCIMAN, 1977). 

Os troianos conduzindo o cavalo de madeira. Ilustração de Benoit de Saint-Maure, c. 1340-1350. 

Por sua vez, nos séculos XII e XIII temos autores de diferentes localidades citando a Guerra de Troia, considerando-a ora um acontecimento real ou ora apenas um mito. É preciso salientar que os que consideravam essa guerra como um evento real a interpretavam por um viés evemerista, considerando que os deuses gregos e os heróis semideuses na verdade foram apenas homens e mulheres enaltecidos pelos antigos pagãos gregos. Isso pode ser encontrado em algumas obras mesmo no Norte da Europa como no prólogo da Edda em Prosa e a Saga dos Ynglingos, ambas as obras datadas do século XIII. 

Como a narrativa da guerra troiana é vasta, os pintores e ilustradores geralmente retratavam algumas cenas icônicas como a luta de Aquiles e Heitor, o julgamento de Páris, o sacrifício de Ifigênia, a fuga ou resgate de Helena, a morte de Pátroclo, a morte de Aquiles, o cavalo de madeira, a viagem de Odisseu etc., ou simplesmente pintavam um campo de batalha representando o conflito em si. (PANOFSKY; SAXL, 1933).

Ilustração mostrando o saque de Troia. Autoria desconhecida, datada do século XV

Referências bibliográficas: 
FRIAÇA, Amâncio [et. al]. Trivium e quadrivium: as artes liberais na Idade Média. Cotia, Íbis, 1999. 
PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. Classical Mythology in Medieval Art. Metropolitan Museum Studies, v. 4, n. 2, 1933, p. 228-280. 
RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. 2a ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977. 
VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Revista Medievalista, ano 2, n. 2, 2006, p. 1-53. 

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