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Leandro Vilar

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A mandrágora: uma planta mágica

Uma das plantas mais famosas associadas a práticas mágicas e lendas é a mandrágora, cujo seu uso remonta aos tempos antigos, assim como, lendas a ela associadas. A ideia de que a mandrágora sempre foi considerada uma planta que gritaria, não é tão antiga, além disso, dependendo da época, lugar e do referencial, os usos dados a mandrágora poderiam ser benéficos ou maléficos. 

A planta

Mandrágora consiste num gênero botânico que possui algumas espécies, sendo nativas da Eurásia. A mais comum é a Mandragora officinarum (chamada no passado de Atropo mandragora). Em geral as mandrágoras são plantas perenes, de folhas em formato de sino, cuja aparência lembra a folhagem da couve. São plantas de dimensões pequenas e rasteira, tendo belas flores, normalmente em tons de lilás. Seus frutos são do tipo baga, possuindo coloração amarela, verde, laranja e vermelha. 

Exemplar de mandrágora. 

Embora as folhas, flores e frutos da mandrágora sejam usados desde a Antiguidade para fins medicinais ou mágicos. Entretanto, a parte mais famosa dessa planta consiste em sua raiz. As mandrágoras possuem raízes que lembram a mandioca, a macaxeira, a batata, a cenoura. Entretanto, em alguns casos as raízes da mandrágora se assemelhavam ao formato humano, por isso, o surgimento das lendas e seu papel na magia. Porém, a ideia de que toda raiz teria um formato humanoide é errada. Isso a ficção e as lendas popularizaram ao extremo. Em muitos casos as raízes dessa planta não tem essa aparência. 

Na Europa medieval surgiu a lenda de que mandrágoras se originariam do sêmen de homens enforcados, por isso, suas raízes terem forma humanoide. Além disso, outras lendas diziam que as raízes de mandrágora gritariam ao serem arrancadas da terra, assim para uma pessoa evitar morrer, usava-se um cachorro, o qual era preso a planta e ao correr ele arrancaria a raiz, recebendo toda a carga do grito, vindo a morrer. Depois disso a pessoa poderia recolher a raiz em segurança. 

Pintura medieval representando um homem tapando os ouvidos, enquanto usa um cachorro para arrancar a raiz de uma mandrágora. Para o animal não fugir, ele é enganado com uma tigela de comida. 

Elementos mágicos

O uso da mandrágora para fins medicinais e mágicos gira entorno da ambiguidade. Desde a Idade Antiga há relatos entre os gregos, romanos, egípcios, persas, hebreus, árabes e outros povos falando bem ou mal dessa planta. Uns apontavam que suas raízes, frutos e folhas eram tóxicos, sendo utilizados para o preparo de venenos. Outros comentam que até a ingestão dessas partes poderia causar vômitos, diarreia e outros problemas de saúde. Porém, devido as lendas surgidas sobre essa planta, especialmente suas raízes, há relatos que recomendavam seu uso para prepará-lo de medicamentos. 

O uso medicinal poderia advir da condição de que algumas substâncias da mandrágora empregadas em baixa dosagem ajudavam a aliviar algumas dores. O problema é que acertar a dosagem era a questão, fato esse que os remédios feitos com essa planta tendiam a gerar efeitos colaterais como dores, náuseas, tontura, febre, alucinação e convulsões. Em altas doses poderia levar até a morte. Na prática não há um uso seguro da raiz, folhas e frutos da mandrágora para fins medicinais, pois suas propriedades químicas podem causar alucinações se ingeridas ou absorvidas pela pele e suas mucosas através de pastas ou unguentos. Por conta disso, praticantes de magia faziam uso dessa planta para terem visões. (CAMPOS, 2014, p. 6).

Os gregos, romanos, egípcios, hebreus e chineses receitavam o consumo de mandrágora para tratar de problemas de fertilidade, esterilidade, mas também outras doenças variáveis. Sobre isso, Guerrino (1959, p. 5) escreveu que o médico Hipócrates (460-370 a.C) dizia que em pequenas doses ela servia de calmante, já o filósofo Aristóteles (384-322 a.C) escreveu que seu consumo poderia causar entorpecimento ou sono, a depender da dosagem ministrada. Plínio, o Velho (23-79 a.C) relatou o uso de mandrágora misturada com azeite e vinho para tratar dores nos olhos. Celso a recomendava para tratar dores de cabeça, no quadril, no fígado, no baço; falta de ar (dispneia), ulcerações, inflamações uterinas etc. Nota-se por esses dois exemplos como não havia um consenso para os usos medicinais da mandrágora, pois por ser tratada como planta mágica lhe era atribuída uma suposta utilidade para muitos problemas de saúde. (GUERRINO, 1959, p. 5-6). 

Raízes de mandrágora num manuscrito grego do século VII. 

A planta também poderia ser utilizada para preparo de poções do amor e até como contraveneno. Ironicamente sabe-se do emprego de mandrágora para fins de envenenamento. O general romano Cipião, o Africano teria mandado envenenar com mandrágora o vinho dos cartagineses, gerando alucinações e náuseas nos soldados que o consumiram. Apesar de haver dúvidas se ele teria obtido sucesso nesse intento, realmente sabe-se que esses são efeitos colaterais causados pela ingestão de extrato de raiz de mandrágora. (GUERRINO, 1959, p. 4).

A recomendação da mandrágora como sonífero é algo que marcou diferentes épocas. Aristóteles citou isso, depois Oribásio (325-403), Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Avicena (c. 980-1037), entre outros eruditos receitavam a ingestão de raiz de mandrágora misturada ao vinho ou numa poção para ajudar a dormir. (GUERRINO, 1959, p. 6).

No período medieval a mandrágora foi difundida em vários países europeus, havendo relatos positivos e negativos sobre ela. No caso dos séculos XII ao XV, é comum a abundância de relatos associando a mandrágora com a feitiçaria e a bruxaria, condições que a tornavam algo no mínimo suspeito. Neste caso, a planta, em especial sua raiz, era utilizada para diferentes tipos de poções, mas geralmente eram poções associadas com a fertilidade e o amor, sendo recomendada como afrodisíaco. (CAMPOS, 2014, p. 6).

Pedaços de raiz de mandrágora foram usados na Idade Média como amuleto de sorte e até para combater a infertilidade feminina e masculina, pois ao invés de se ingerir tal substância devido a sua nocividade, algumas pessoas optavam pela crença mágica dos amuletos de proteção e fertilidade. (GUERRINO, 1959, p. 4).

Pintura de 1500 mostrando as supostas versões masculina e feminina das raízes de mandrágora. 

De acordo com alguns estudiosos dos séculos XV e XVI, para a eficácia das poções e unguentos de mandrágora ser maior, deveria se observar se a raiz seria masculina ou feminina. Isso se dava especialmente no contexto de preparo de poções voltadas para fins de fertilidade e de amor. 

Referências bibliográficas:

CAMPOS, Luciana de. Mandrágora: a planta das bruxas. Notícias Asgardianas, vol. 6, 2014, p. 4-9. 

GUERRINO, Antonio Alberto. Historia de la mandragora. Medicina & Historia, fascículo LIV, 1959, p. 4-15.

NOTA: No livro Harry Potter e a Câmara Secreta (1998), mandrágoras realmente gritam quando são removidas da terra. No caso das adultas elas podem matar uma pessoa, mas as bebês causam desmaio. O momento se tornou icônico no filme. 

NOTA 2: Nicolau Maquiavel escreveu uma peça cômica chamada A Mandrágora (1524), a qual ele satiriza a sociedade florentina. 

NOTA 3: No jogo Odin Sphere (2008) existem diferentes tipos de mandrágoras, que são raízes que se movem. Elas possuem distintas propriedades mágicas, sendo usadas para o fabrico de poções e até no preparo de alimentos. 

NOTA 4: Em diferentes jogos as mandrágoras são utilizadas para o preparo de poções. 

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Onna-musha: as mulheres guerreiras do Japão

Erroneamente chamadas de samurais, as onna-musha consistiram numa tradição militar japonesa vigente entre os séculos XII e XVI, a qual treinava algumas mulheres, normalmente para defender seus lares e vilarejos, porém, em alguns casos as onna-musha foram treinadas para irem ao campo de batalha, lutando ao lado de ashikagas, arqueiros e samurais. No presente texto contei alguns aspectos sobre essas guerreiras da história nipônica.

Tomoe Gozen: a "primeira" onna-musha

Não se sabe exatamente quando as onna-musha surgiram, entretanto, a primeira que ganhou fama na História foi Tomoe Gozen (?-1184?), a qual serviu o futuro xogum Minamoto no Yoshinaka (1154-1194), atuando na Guerra Genpei (1180-1185) que marcou o fim da Era Heian (794-1185) e o início do Xogunato Kamakura (1185-1333) fundado por Minamoto. 

Pouco se conhece sobre a vida de Tomoe, a principal fonte que dispomos sobre ela é o Conto dos Heike (Heike Monogatori) que narra o confronto entre os clãs Taira e Minamoto durante a Guerra Genpei. Nesta crônica histórica é citado em alguns momentos a presença de uma guerreira que liderava tropas, chamada Tomoe Gozen, a qual servia Minamoto. Entretanto, nada se sabe sobre sua origem exatamente e como ela se tornou guerreira e ganhou a confiança do futuro xogum. A palavra Gozen é um título honorífico, não um sobrenome, o que dificulta ainda mais em saber a qual família Tomoe pertenceu. Mas é possível que ela pudesse advir da aristocracia ou até da nobreza, já que naquele tempo os casamentos arranjados entre os clãs respeitados era bastante comum. (TURNBULL, 2010, p. 9). 

O Conto dos Heike descreve Tomoe como uma bela mulher de pele branca e longos cabelos pretos, sendo bastante habilidosa com o arco e a espada, e exímia na luta a pé e a cavalo. Sua bravura e força eram admiráveis e punha medo nos inimigos. (TURNBULL, 2010, p. 9-10). 

Pintura do século XVI imaginando Tomoe Gozen. 

Embora haja dúvidas quanto a existência de Tomoe, no entanto, sabe-se que no século XII já existiam algumas onna-musha (mestra em artes marciais), termo usado para se referir a mulheres que aprendiam a lutar. Normalmente elas eram instruídas no arco, na lança naginata, no combate desarmado, mas também aprendiam a lutar com espada e até outras armas. Vale ressaltar que a arte da guerra japonesa era predominantemente masculina, raramente mulheres conseguiam acessar esse meio e se destacar. (NONAKI, 2015, p. 64).  

Hangaku Gozen e o assalto ao Castelo Torisaka

É sabido que algumas mulheres chegaram a lutar no final do século XII e começo do XIII, especialmente nas primeiras décadas do Xogunato Kamamura. Sendo assim, além de Tomoe, outra guerreira que se destacou foi Hangaku, que também recebeu o título de Gozen. Pelo pouco que se conhece, ela teria sido filha de um samurai chamado Jo Sukekuni, que era vassalo do Clã Taira, a família rival do Clã Minamoto, o qual governava o xogunato. (COOK, 2006, p. 326).

Com a morte de seu pai, Hangaku decidiu vingá-lo, então se uniu a seu tio e o filho dele, que iniciaram uma revolta chamada de Rebelião Kennin (1201), a qual contestava a autoridade do xogunato. Assim, Hangaku vestiu-se de homem e entrou na tropa da família para lutar. Neste ponto, diferente do que foi dito sobre Tomoe, a qual teria recebido treinamento militar e até chefiado tropas, Hangaku atuou como uma guerreira rebelde, participando da rebelião promovida pelo seu tio Jo Nagamochi(COOK, 2006, p. 327).

Pintura imaginando como seria Hangaku Gozen. Yoshithosi, c. 1865. 

O caso de Hangaku é interessante devido a condição de que na história japonesa várias mulheres que foram para à guerra tiveram motivações parecidas com a de Hangaku: vingar maridos ou familiares, ou defender suas terras, famílias e suseranos. Fato esse que as mulheres que optaram em fazer isso, algumas tinham treinamento militar, outras não foram treinadas, mas sabia usar o arco e a lança, então se disfarçavam de homem e se alistavam. 

As onna-musha no Período Sengoku (1467-1615)

O Período Sengoku marcou o declínio do Xogunato Ashikaga (1336-1573), quando a partir da Guerra de Onin (1467-1477) os xoguns perderam sua autoridade sobre o país, permitindo a ascensão de daimiôs que passaram a disputar o controle de províncias e regiões, jogando o Japão nas guerras feudais que se estenderam por mais de um século. E por conta desse período de grande turbulência na história nipônica, em dados momentos houve a escassez de soldados, assim, algumas mulheres se voluntariaram para ir ao campo de batalha. 

Ohori Tsuruhime (1526-1543) era a filha de Ohori Yasumochi, sumo-sacerdote de um importante templo na ilha de Oyamazumi. Ela era descrita como valente e recebeu treinamento militar. Em 1541 seu pai e irmãos foram mortos numa batalha, Tsuruhime pegou as armas e partiu para o campo de batalha, lutando ao lado dos guerreiros que serviam seu pai. Ela inclusive divulgou a ideia de que seria a reencarnação de um avatar guerreiro que era venerado no santuário de sua família. Tsuruhime participou do ataque ao navio do general Ohara Takakoto, no intuito de matá-lo, obtendo sucesso na missão. Ela ainda participou de outras batalhas pelos dois anos seguintes. Em 1543 após ter perdido um dos conflitos, ela teria optado pelo suicídio. Tsuruhime foi comparada por alguns historiadores estrangeiros com Joana d'Arc. (NONAKI, 2015, p. 65).  

Ilustração representando Ohori Tsuruhime atacando o general Ohara Takakoto.

Houve casos de mulheres que se uniram as milícias de um ikki (grupo rebelde) que se opunha ao domínio de algum daimiô. Durante o Período Sengoku isso foi comum em diferentes momentos, havendo o surgimento de vários ikkis pelo país. Stephen Turnbull (2010, p. 17) cita o caso do Ikko-ikki, um grupo rebelde com influência budista, que atuou entre as décadas de 1570 e 1580, confrontando a autoridade e a opressão de Oda Nobunaga (1534-1582). Nos relatos da época é mencionado que algumas tropas contavam com onna-musha. Em 1575 numa grande vitória contra o Ikko-ikki, Nobunaga ordenou a execução de milhares de rebeldes, incluindo as mulheres também que lutaram ou ajudaram os rebeldes. 

No ano de 1590 durante as campanhas de Toyotomi Hideyoshi (1537-1598), no ataque realizado ao Castelo Oshi, na província de Musashi, Kaihime, a viúva do daimiô Narita Ujinaga, assumiu o controle de sua defesa, o que incluiu colocar até mesmo as servas para lutarem durante o cerco. O castelo foi capturado, Kaihime se rendeu e foi poupada, porém, algumas das mulheres preferiam saltar das muralhas, optando pela morte do que se tornarem escravas dos captores. A violência contra as mulheres durante os anos de guerra era muito comum. Em geral as nobres eram poupadas, pois se tornavam reféns ou forçadas a se casar para fomentar alianças familiares. 

No cerco do Castelo de Hondo ocorrido em 1590 houve a participação de onna-musha, inclusive o padre português Luís Fróis (1533-1597), que relatou a respeito dessa batalha, escreveu que pelo menos 300 mulheres participaram da última tentativa de defesa, ocorrida em 1590. O castelo já estava avariado pelo cerco de meses, sobrando poucos homens para defendê-lo, então Fróis escreveu que a esposa do comandante reuniu todas as mulheres, mandou elas pegarem armas como lanças, arcos, espadas e facas, então marcharam até o portão. Algumas das mulheres, segundo o relato do padre, cortaram os cabelos curtos, outras vestiam apenas kimonos, algumas chegaram a colocar armadura. Algumas das onna-musha eram cristãs, pois carregavam rosários e crucifixos consigo. Fróis relatou que embora elas tenha matado vários homens, o exército inimigo era superior e as massacrou, mas a bravura daquelas 300 onna-musha foi registrada na História. (TURNBULL, 2010, p. 45). 

Na importante Batalha de Sekigahara (1600) que marcou o caminho da ascensão iminente de Tokugawa Ieyasu (1543-1616) para se tornar o novo xogum, nessa batalha mulheres também participaram. Foi uma das maiores batalhas do Período Sengoku, estimativas apontam mais de 150 mil guerreiros envolvidos no conflito, havendo dezenas de milhares de mortos. 

As onna-musha no século XIX

Com o fim do Período Sengoku e o estabelecimento do Xogunato Tokugawa (1603-1868), vieram os anos de paz, embora alguns conflitos eventuais ocorreram nesse meio tempo. Porém, a necessidade de se manter mulheres guerreiras se tornou desnecessária, inclusive parte dos samurais foram dispensados do serviço militar, indo tornar-se fazendeiros, comerciantes, funcionários públicos e estudiosos. Alguns até viraram ronins e mercenários. Dessa forma, somente tivemos relatos de onna-musha atuando no ano de 1868, durante a queda do xogunato. 

A Guerra Civil Bonshin (1868-1869) marcou o conflito entre os monarquistas apoiadores do imperador Meiji contra os defensores do xogunato Tokugawa. A guerra resultou na derrota do xogunato, apesar que seus apoiadores ainda tentaram reverter o resultado com novas batalhas nos anos seguintes, mas sem sucesso. De qualquer forma, em alguns dos conflitos dessa guerra civil, mulheres estiveram na frente de batalha, sendo o último relato conhecido propriamente de onna-musha em atuação numa guerra.

Com a necessidade de combatentes, mulheres foram aceitas em algumas tropas. Armadas com arcos, naginatas e as vezes espadas e rifles, as tropas femininas mesmo sem treinamento militar (somente algumas poucas sabiam lutar, pois eram filhas de samurais ou militares) foram a campo. Algumas delas se voluntariaram para defender suas famílias, terras, vingar maridos e familiares, e algumas até mesmo teriam aderido a causa política de um dos lados.. A Batalha de Aizu (1868) no contexto da guerra civil foi um marco da participação das onna-musha. (TURNBULL, 2010, p. 53). 

Onna-musha representadas numa pintura sobre a Batalha de Aizu. Adachi Ginko, 1877. 

Durante a Batalha de Aizu se notabilizaram algumas mulheres, uma delas que ganhou destaque foi Nakano Takeko (1847-1868) que empunhando uma naginata, liderava as tropas femininas. Takeko tinha 20 anos quando passou a liderar mulheres no combate na defesa de Aizu quando as tropas imperiais. A irmã e mãe de Takeko chegaram a participar das lutas, além de amigas, vizinhas e mulheres de outras localidades da região. (TURNBULL, 2010, p. 54). 

Estátua da onna-musha Nakano Takeko, em Aizubange, em Fukushima. 

Anos depois ocorreu a Rebelião de Satsuma (1877), uma revolta iniciada por apoiadores do xogunato, mesmo ele tendo sucumbido onze anos antes, ainda existiam japoneses contrários ao fim do governo dos xoguns. Assim, em Satsuma tivemos a eclosão de uma revolta que foi rechaçada pelas tropas imperiais. Na ocasião, algumas mulheres chegaram a lutar contra a polícia e o exército. 

A Rebelião de Satsuma durou algumas semanas, contando com milhares de envolvidos, foi uma das últimas revoltas promovidas pelos samurais e seguidores inconformados com o fim do xogunato Tokugawa. 

Algumas onna-musha enfrentando tropas imperiais durante a subjugação de Kagoshima, durante a Rebelião de Satsuma. Yoshitoshi, 1877. 

As onna-musha foram samurais mulheres?

As vezes é possível encontrar tal referência, inclusive em livros e artigos, mas o termo estaria certo? Aqui temos um problema de interpretação e delimitação. Os samurais não eram apenas guerreiros, mas entre os séculos XII e XIX eles consistiram numa classe social militar, com direitos, deveres e regalias. Tornar-se samurai significava ascender a essa classe que poderia abrir oportunidades para um guerreiro se tornar funcionário público, subir na hierarquia militar e até se tornar um aristocrata, e em alguns casos até um nobre.

Além disso, samurais eram guerreiros juramentados a outros samurais, algo parecido com a relação de vassalagem e suserania no feudalismo europeu. Inclusive os samurais deveriam prestar votos de juramento e servidão. Quando um samurai prestava tais votos, sua família automaticamente também estava sujeita a vassalagem ao mestre dele. Por tal condição as mulheres estavam indiretamente sujeitas ao juramento feito por seus pais, tios, irmãos e maridos. Mas essa sujeição indireta não a tornava um samurai. 

Sendo assim, uma mulher nascer na classe dos samurais não a tornava um samurai, até porque havia homens dessa classe que não eram samurais, mas exerciam outros ofícios. Sendo assim, é comum manter esse equívoco que o fato de uma onna-musha ser uma guerreira isso a tornava um samurai, mas em geral elas não eram juramentadas, vinha, das classes baixas, não tinham treinamento militar. Elas estariam mais próximas do ashikaga, termo usado para o soldado comum. 

Além disso, vale frisar que no século XIX a literatura e o teatro romantizaram as onna-musha, com direito a ter livros e peças falando delas e até representando de forma fictícia algumas onna-musha famosas como Tomoe Gozen. Inclusive data do XIX fotos de mulheres vestidas com armaduras samurais, sugerindo que seria as tais mulheres samurais, mas na verdade são fotos feitas por atrizes ou modelos, ou por filhas e netas de samurais, que para orgulhar seus antepassados, faziam aquelas fotos. 
Foto de uma atriz vestida como samurai. Fotos assim se tornaram comuns nas últimas décadas do XIX por conta da popularização das histórias de onna-musha que lutaram em 1868 e 1877. 

Por fim, pode-se falar que houve samurais mulheres? A afirmação é difícil. Se a mulher não fez o juramento típico para se tornar um samurai (lembrando que o juramento era diferente dependendo da época) e se ela não era reconhecida como tal, o fato de ela ser uma guerreira, mesmo pertencendo a classe dos samurais, não a definia como um samurai. Fato esse que os historiadores japoneses até evitam usar o termo samurai mulher, optando por onna-musha mesmo. 

NOTA: O termo onna-bugeisha é uma interpretação errada de onna-musha. E hoje em dia está em desuso. 
NOTA 2: Nos jogos de videogame e alguns animes e mangás é comum vermos onna-musha, embora historicamente a presença delas fosse algo pontual em algumas batalhas. Não houve tropas fixas de mulheres. 
NOTA 3: Em Samurai Warriors 5 (2021) além das onna-musha fictícias do jogo, é possível ver guerreiras armadas com naginatas, lutando ao lado dos soldados comuns. Essas seriam as onna-musha reais. 

Referências bibliográficas:
COOK, Bernard. Women and War: A Historical Encyclopedia from Antiquity to the Present. New York, ABC-CLIO, 2006. 
NOWAKI, Rochelle. Women warriors of Early Japan. Hononu, vol. 13, 2015, p. 63-68. 
TURNBULL, Stephen. Samurai Women: 1184-1877. Illustrated by Giusepe Rava. New York, Osprey, 2010. 

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domingo, 1 de outubro de 2023

O que se estuda na história da sexualidade?

A história da sexualidade costuma ser mal compreendida, sendo confundida como uma espécie de Sexologia histórica, ou uma área de estudo voltada para falar apenas de práticas sexuais, que acaba gerando o preconceito de que se trata de uma forma "culta" em falar de "putaria". No entanto, o termo sexualidade no contexto historiográfico engloba não apenas as relações sexuais, mas também a orientação sexual, a sensualidade e uma série de aspectos culturais e sociais relacionados a isso, como será visto adiante. 

Para facilitar essa explicação, dividi o texto em segmentos temáticos, nos quais expliquei cada um dos diferentes assuntos e algumas abordagens pelos quais podem ser estudados a partir da história da sexualidade. Nesse quesito, uma das inspirações para esse texto adveio do filósofo e historiador Michel Foucault (1926-1984), o qual escreveu uma tetralogia intitulada História da sexualidade, publicada em diferentes anos. Nesses livros Foucault analisou o tema principalmente a partir de um viés sociocultural tratando de tabus, repressão sexual, orientação sexual, perspectiva médica etc. 

Edições francesas da História da Sexualidade de Michel Foucault. O quarto livro ainda não tinha sido lançado na época dessa foto, inclusive ele é uma publicação póstuma. 

1) O sexo na História

O primeiro tema que pode ser abordado diz respeito como o ato sexual foi e é visto ao longo da História. Aqui se trata propriamente de uma análise histórica mais tradicional, assinalando como as práticas sexuais eram compreendidas em diferentes sociedades, épocas e culturas, evidenciando o que era permitido, tolerado e proibido. Aqui o historiador ou pesquisador elenca seus objetos de estudo, recortes temporais, casos a serem investigados.

Neste ponto pode-se estudar não apenas o ato sexual em si, mas também a percepção da orientação sexual, as leis e crimes sobre o sexo, a prostituição, as representações artísticas sobre a nudez e o sexo, a pornografia, as doenças sexuais, as políticas de controle do corpo (biopolítica), a moda, a indústria da beleza, as questões morais, religiosas, políticas sobre o sexo; o erotismo, o fetichismo sexual, o casamento, a poligamia, o concubinato, a virgindade etc. Esses são alguns dos vários exemplos gerais pelos quais a história da sexualidade pode ser pesquisada. 

Neste primeiro tema apresentado pode-se estudar tais questões a partir de uma abordagem da história cultural, social, política, econômica, religiosa, artística e até mesmo num estudo interdisciplinar com a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia etc., o que revela como a história da sexualidade permite múltiplas abordagens. 

2) Nudez, corpo e sexo

Outra forma de abordagem do tema é inspirada diretamente nos estudos de Foucault, especialmente nos que ele analisou o seu conceito de biopolítica. Aqui evidenciamos como é possível estudar a sexualidade a partir da compreensão da nudez e do corpo humano. 

No caso, ambos podem ser analisados a partir das representações artísticas como pinturas, esculturas, cinema, fotografia, teatro, videogames, arte digital etc., realizando-se análises culturais, sociais, estéticas para compreender a noção de belo, feio, padrões de beleza, moda, indústria cultural. Trata-se de uma análise que pode ser aplicada tanto ao passado quanto ao presente, pois a beleza é cultural como assinalou Umberto Eco e outros estudiosos, apontando que tais noções mudam com o tempo, a cultura e o lugar. 

Os dois livros de Umberto Eco sobre a História da Beleza e a História da Feiura, nos quais ele abordou a percepção cultural sobre ambos

Mas também pode-se analisar isso através da política, da economia e da religião. No âmbito político pode-se investigar como diferentes sociedades estabeleceram normas, posturas e leis para permitir a exibição do corpo e da nudez, ou seja, até que ponto a nudez ou o corpo pouco vestido se tornava tolerável ou passava ser um crime, um atentado ao pudor. Vale lembrar que ainda hoje algumas sociedades não permitem que mulheres andem com pouca roupa, pois é considerado ofensivo. Por outro lado, quando os trajes de banho começaram a se popularizar no começo do XX, eles eram bem mais longos e menos sensuais. Quando o biquíni foi lançado na década de 1940, ele criou alarde. Foi considerado depravação. 

No quesito econômico a nudez e o corpo podem ser analisados principalmente através da propaganda vinculada com as indústrias da beleza, da moda e da pornografia. Por tal quesito trata-se de uma abordagem mais contemporânea, remontando ao século XIX quando começaram a se delinear essas três indústrias, hoje mundialmente difundidas. Neste caso, cada uma dessas indústrias trata o corpo e a nudez de diferentes formas, sendo a pornografia a qual aborda esses aspectos de maneira profundamente erótica e sexista, condição essa que em alguns países a pornografia é considerada ilegal, um crime. 

Em A invenção da pornografia, Lynn Hunt e os demais autores mostram como a pornografia surgiu no Ocidente, originando-se do entretenimento baseado na nudez passando para o sexo. 

Ainda no âmbito econômico a nudez, o corpo e o sexo também podem ser analisados a partir da prática da prostituição, o que permite remontar isso a Antiguidade, analisando como a prostituição era realizada em diferentes épocas da História, ora sendo proibida, ocultada e normalizada. Vale lembrar que em muitos países atualmente a prostituição é legalmente um crime, mas ainda assim por conta da falta de fiscalização e da própria indiferença das autoridades, ela segue em atividade. Sobre a prostituição também é possível analisá-la por um viés jurídico, político e ético para interpretar essa prática comercial polêmica. E por essa conjectura adentramos ao estudo legal sobre a nudez e o sexo, estudando o atentado ao pudor, gestos obscenos, sodomia (termo pejorativo para a prática do homossexualismo masculino), importunação sexual, adultério, bigamia, abuso sexual, estupro, pornografia, pedofilia, zoofilia etc. No quesito legislativo é possível analisar em diferentes épocas e lugares as normas, leis e crimes sobre essas práticas que se tornaram imorais e criminosas. 

Livro que estuda a prostituição em alguns contextos. 

No âmbito religioso esses três temas também podem ser analisados de diferentes formas a depender de como a religião escolhida os compreendia. Normalmente pode-se pensar que todas as religiões tendem a condenar a nudez, o corpo e o sexo, mas não é bem assim, inclusive há crenças religiosas que enalteciam e enaltecem isso. Vale lembrar que existiram e existem deuses e deusas da fertilidade, da beleza e do sexo. Dessa forma, existia e existem práticas religiosas associadas com tais divindades. Por outro lado, temos religiões que tratam a nudez pública como tabu, o homossexualismo e a masturbação como pecados; além de impor normas e regras para o controle do corpo. Um caso a respeito é visto no livro O martelo das bruxas (1484), obra que popularizou os conceitos de bruxa e bruxaria. Nesse livro o corpo e o sexo são malvistos, pois estão associados de forma leviana e perversa, em que as bruxas teriam supostamente relações sexuais com demônios e até mesmo praticariam a promiscuidade e outros atos sexuais imorais. 

Frontispício de O martelo das bruxas (Malleus Maleficarum) em edição de 1669. 

A nudez e o corpo também podem ser pensados por um viés sociológico e antropológico quando se estuda como ambos são compreendidos e tratados em sociedades nas quais os indivíduos vivem nus. Pode-se pensar que tal abordagem remeta apenas povos antigos, como as populações ameríndias e aborígenes, no entanto, isso não é exato. Ainda em pleno século XXI temos povos que seguem vivendo nus ou fazendo uso de pouca roupa. Sem contar que no passado ocorriam eventos em que ficar nu era comum, como o caso dos jogos olímpicos na Antiguidade. 

E vale ressalvar que atualmente temos eventos em que as pessoas ficam seminuas ou com pouca roupa, como o Carnaval, desfiles de roupa de banho, desfiles de lingerie, desfiles de roupas eróticas etc. Inclusive existe até a prática do naturismo, em que pessoas ficam totalmente nuas em praias, praças e outras localidades específicas. A forma como a nudez e o corpo são compreendidos nesses exemplos é bem diferente entre si. 

Ainda num viés sociológico, cultural e acrescentando o psicológico, corpo, nudez e sexo podem ser estudados por uma perspectiva do entretenimento e da satisfação. Aqui entra novamente a pornografia e a prostituição, mas acrescenta-se o fetichismo sexual, o strip-tease, o vouyerismo, a masturbação, a arte erótica, as casas de swing etc. Tais práticas sexuais expressam formas de entretenimento, satisfação sexual, assim como, podem ser analisadas socialmente, moralmente, psicologicamente, pois elas podem levar ao vício, a imoralidades, a transtornos e até distúrbios mentais. 

O psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939) chegou a comentar sobre o ato de masturbação e sua relação com a percepção da sexualidade, da identidade do masculino e feminino, da relação familiar e com outras pessoas etc., em três ensaios que compõem a Teoria da Sexualidade (1905). 

Uma edição que reúne os ensaios de Freud sobre sexualidade. 

3) Orientação sexual e identidade de gênero

Ambos os termos costumam serem confundidos pelo senso comum, mas são distintos, embora tenham conexão entre si por conta da forma como a sexualidade é compreendida. A orientação sexual refere-se a condição pela qual um indivíduo sente atração sexual, condição essa que o define como heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual, assexual etc. Por sua vez, a identidade de gênero diz respeito a forma como uma pessoa se identifica culturalmente com as noções tradicionais de masculino e feminino. Assim, aplica-se conceitos como cisgênero, transexual, queer, não-binário etc. 

Sendo assim, a história da sexualidade pode abordar ambas as perspectivas. Por exemplo, analisar como o homossexualismo e o bissexualismo eram compreendidos na Grécia Antiga e na Roma Antiga, ou na Índia, na China, em populações indígenas, e até mesmo na Europa cristã medieval e no mundo islâmico. A orientação sexual nos permite fazer análises históricas mais longínquas no passado, diferente da identidade de gênero, que é um conceito contemporâneo que foi formalizado no século XX, apesar de haver alguns estudos que apliquem essa percepção para antes do século passado, o que é problemático por conta de gerar anacronismo. Embora se diga que no passado já houvesse pessoas que questionassem sua identidade de gênero, o conceito e a compreensão do que seria isso não existia, o que torna difícil sua aplicação.

Entretanto, estudar a identidade de gênero sua relação com a orientação sexual, a sensualidade e a sexualidade, é algo que vem sendo feito normalmente nas últimas décadas, condição que os estudos de gênero consistem numa área já formalizada, com suas próprias teorias e abordagens. Vale ressalvar que tais estudos não abordam apenas outros tipos de gênero, mas também estudam a própria noção sociocultural de masculino e de feminino, algo visto em livros como a trilogia História da Virilidade e O segundo Sexo de Simone de Beauvoir


Nesta temática insere-se também estudos sobre o preconceito sobre as orientações sexuais e as identidades de gênero, abordando como isso ocorreu em diferentes épocas da História, estudando os métodos aplicados para se proibir isso, o repúdio (homofobia, lgbtfobia, transfobia etc.), o deboche; passando até para os atos de violência como agressões físicas, verbais, psicológicas, culminando em crimes de assassinato. 

4) Sexo e saúde

Um dos temas abordados por Michel Foucault foi a relação entre sexo e saúde, já que ele tratou a questão da saúde em outras de suas obras, abordando-o por outras temáticas. Sendo assim, a partir da história da saúde é possível compreender o sexo de diferentes maneiras, sendo elas positivas ou negativas. Dessa forma é possível analisar através da História o que foi escrito pela literatura médica a respeito das diferentes compreensões sobre o sexo, sua necessidade, as práticas sexuais permitidas e proibidas, as doenças venéreas, os transtornos psicológicos como parafilia, pedofilia, zoofilia, necrofilia etc. 

Assim, no âmbito da saúde o historiador ou pesquisador pode analisar desde o passado ao presente como a saúde sexual foi sendo percebida, definida e desenvolvida. Aqui entra-se também questionamentos culturais, sociais e religiosos que influenciaram a percepção médica, como o caso da teoria dos quatro humores surgida na Grécia Antiga e em voga ainda na Idade Média; as proibições religiosas para o sexo antes do casamento, a promiscuidade, a iniciação sexual de jovens (como a pederastia na Grécia Antiga), a permissão ou proibição da masturbação etc.

Pelo viés da saúde também pode-se estudar os tratamentos para doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis, a gonorreia, a candidíase, até chegarmos a doenças mais recentes como a AIDS e os tabus e preconceitos a ela associada. O estudo da saúde sobre o sexo e a sexualidade engloba também pesquisas sobre medidas anticoncepcionais, gravidez precoce, natalidade, aborto, educação sexual, tratamento de vítimas de abusos sexuais ou de estupro etc.