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Leandro Vilar

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A Pedra de Roseta: a decifração dos hieróglifos egípcios

A Pedra de Roseta consiste num dos grandes marcos para se estudar a história egípcia antiga, embora na prática seu conteúdo como será visto adiante, tratava-se de uma homenagem ao rei Ptolomeu V, mas a grande importância da Pedra de Roseta não está propriamente em seu conteúdo, mas na forma de como ele foi escrito. A homenagem ao rei foi escrita em três alfabetos e em duas línguas. E graças a essas traduções, no século XIX se foi capaz de desvendar a escrita hieróglifica, há muito esquecida pelos próprios egípcios. Com o deciframento dos antigos hieróglifos, tornou-se possível ler tudo o que antes era visto como enigmático, e as portas para a história e os mistérios do Egito Antigo foram abertos de vez. 

Neste texto procurei contar um pouco da história sobre a descoberta e decifração da Pedra de Roseta, e sua importância para o estudo do Egito Antigo, mas também para o início da egiptologia.

A descoberta da Pedra:

No ano de 1799, época na qual o Egito estava sob controle francês, graças a vitória obtida pelo general e cônsul Napoleão Bonaparte em 1798, mesmo assim, os franceses disputavam o Egito com os ingleses e os turcos. Naquele ano, próximo a cidade de Roseta (atual Rashad), localizada a beira do Nilo, ficando a poucos quilômetros de Alexandria; alguns soldados sob comando do lugar-tenente Bouchard, faziam reparos numa antiga fortificação, a qual foi rebatizada com o nome de Forte de São Juliano. Durante as escavações para reparar os alicerces do forte, os soldados encontraram uma estela de granito negro (antigamente se pensava que fosse feita de basalto) tendo 1,14 m de altura, 72,3 cm de largura e 27,9 cm de espessura; pesando cerca de 760 quilos. A estela apresentava sinais de desgaste e dano, talvez tenha sido quebrada ou cortada.

A Pedra de Roseta. Atualmente se encontra no Museu Britânico em Londres.
Ao analisarem a estela descoberta constatou-se que havia inscrições nela. Na época não se soube distinguir claramente tais inscrições, mas depois descobriu-se que três tipos de alfabetos foram usados: hieróglifo, demótico e grego antigo. Napoleão foi avisado sobre tal singela rocha que no início pareceu ser um achado insignificante, mas alguns estudiosos mostraram interesse, pois acreditavam que poderiam traduzir os então desconhecidos alfabetos hieróglifico e demótico a partir do grego. Então Napoleão ordenou comunicar aos estudiosos sobre tal achado e até mesmo deu ordens que cópias em gesso das inscrições fossem enviadas para quem quisesse estudá-las. 

Napoleão o qual possuía admiração pela história egipcía, empreendeu a primeira missão científica francesa ao país das pirâmides e faraós; a Expedição Francesa (1799-1802) seguiu junto a Campanha do Egito (1798-1801), que consistiu numa série de campanhas militares lideradas nos dois primeiros anos pelo próprio Napoleão com intuito de conquistar o Egito, tornando-o a porta de entrada para o Oriente Médio. Mas além de terem seguidos militares para o país, estudiosos também aproveitaram o momento para realizarem suas pesquisas. 

Napoleão observando uma múmia.
"Dentro de um reduzido número de meses (junho de 1798 - setembro de 1802) foram escalpelados todos os aspctos do Egito: flora, fauna, geologia, a natureza das suas águas, de seus poços, sua geografia: levantou-se um mapa, de Assuâ até o Mediterrâneo, transformado posteriormente em um Atlas de cinquenta e uma folhas. Os habitantes foram descritos, estudados os seus costumes, seus tipos físicos, sua música, seus misteres e sua maneira de viver e de trajar, seu sistema de medidas e de moedas; o regime dos turcos e seu sistema fiscal foi objeto de uma exposição demorada assim como as indústrias do país, seu comércio e suas condições sanitárias... Descreveu-se, finalmente, o próprio país, de norte a sul, tendo sido assinalados, desenhados, medidos, todos os monumentos visíveis naquela época, fossem eles faraônicos, cristãos, árabes ou turcos". (SAUNERON, 1970, p. 12-13).

No ano de 1801, os franceses foram derrotados, e acabaram sedendo o controle do Egito para a Inglaterra, ao assinarem o Tratado de Alexandria (1801). Como a Pedra de Roseta na época ainda estava no país, acabou fazendo parte dos espólios de guerra que os ingleses receberam. Por sua vez os ingleses também se interessaram por tal pedra e uma outra gama de objetos antigos, e encaminharam tudo para Londres, para o acervo do Museu Britânico. Embora tenha mudado de dono, os ingleses ainda continuaram a ceder cópias das inscrições para os interessados. 

A decifração do conteúdo:

A partir da leitura do texto em grego descobriu-se que aquela estela quebrada fazia parte de um monumento erigido a honra do rei Ptolomeu V Epifânio (ca. 210 a.C - 181 a.C) o qual governou o país entre 205 a.C a 181 a.C. As inscrições datam do ano de 196 a.C, consistindo numa gloriosa homenagem ao rei por sua generosidade. Se as inscrições não exageraram, as reformas que o rei fez, realmente foram aclamadas pelo povo do Egito. 

Ptolomeu V segundo consta na estela:
  • Diminuiu impostos;
  • Isentou os sacerdotes de pagarem mais caro para poderem assumir o sacerdócio;
  • Realizou doações aos templos;
  • Perdoou dívidas de pessoas que deviam a Coroa;
  • Libertou prisioneiros que haviam ficado muito tempo preso; 
  • Baniu a obrigatoriedade dos sacerdotes em terem que anualmente irem até Alexandria; 
  • Suspendeu o alistamento obrigatório na marinha; 
  • Doou comida e dinheiro para a infantaria, cavalaria e marinha, tornando-os mais bem equipados e remunerados para poderem melhor proteger a nação;
  • Ordenou a construção de canais e barragens para evitar alagamentos durante as cheias do Nilo;
  • Ordenou a punição de rebeldes e criminosos;
  • Isentou os templos de pagarem o imposto do grão e do vinho, para cada lote de terra;
  • Propôs descontos para as multas aplicadas a aqueles que vendiam tecidos finos a Coroa. 
  • Ordenou a construção de templos, santuários e altares, como também a reforma de outros;
  • Realizou oferendas aos deuses e os animais sagrados.
Diante dessa lista de grande realizações, de certa forma contestáveis pelo fato de que em 196 a.C o rei seria um adolescente imaturo, mas provavelmente muito do que foi feito adveio de seus conselheiros e ministros que souberam como bem governar o país. De qualquer forma, Ptolomeu V foi vangloriado e louvado como um deus. E pelo que informa o final do relato, em todos os principais templos do país, haveria uma estela dessa ao lado da imagem do rei.


Moeda de prata com a efígie do rei Ptolomeu V Epifânio.
Embora a estela relate esses feitos atribuídos ao rei Ptolomeu V, no que nos revela ter feito um bom governo, pelo menos até a data que tal homenagem foi prestada, mas como dito anteriormente, a grande importância da Pedra de Roseta não se deve a homenagem prestada pelo bom governo do rei, mas por fornecer uma tradução da escrita hieroglífica e demótica. 

As tentativas de decifrar os hieróglifos:

A inscrição na Pedra de Roseta foi relatada em três escritas diferentes, pois representava particularidades da língua no país. A escrita hieroglífica foi a principal forma de escrita usada no Egito por milhares de anos; os mais antigos hieróglifos datam de pelo menos 3000 a.C. Logo, os hieróglifos tornaram-se a forma de escrita oficial da língua egípcia antiga. Na época de Ptolomeu V, poucos eram aqueles que ainda sabiam ler os hieróglifos, estando sua leitura mais restrita aos sacerdotes e escribas, pois tendo o governo da Dinastia Ptolomaica sido fundado por Ptomoleu I, antigo general de Alexandre, o Grande, o novo governo de origem macedônica, implantou a língua grega no país. 

Logo, os hieróglifos na Pedra de Roseta representavam a escrita tradicional, por sua vez, a língua grega, era o então idioma usado pela Corte ptolomaica e pelo Estado. Não obstante, a terceira escrita usada na estela, é o demótico egípcio, uma escrita que evoluiu dos hieróglifos, tornando-se um sistema letrado mais fácil de ser reproduzido e compreendido. O demótico surgiu por volta do século VII a.C, passando a ser recorrente no Egito pelos séculos seguintes. Alguns estudiosos no passado chegaram a dizer que o demótico era a escrita dos incultos, pois esses não teriam toda a erudição dos sacerdotes e escribas, mas isso é um equívoco. Os próprios sacerdotes passaram a escrever em demótico também. 

As três formas de escrita encontradas na Pedra de Roseta. Da esquerda para direita: hieróglifos, demótico e grego.
Não obstante, antes da descoberta da Pedra de Roseta, houve várias e várias tentativas de outros povos em se tentar compreender os hieróglifos. Os gregos e romanos chegaram a escrever comentários sobre tal sistema de escrita, mas pelos textos que conhecemos hoje, nenhum erudito grego ou romano na Antiguidade conseguiu traduzir os hieróglifos ou tenha deixado algum dicionário ou gramática. Os árabes na Idade Média também tentaram traduzir os hieróglifos, mas não obtiveram sucesso, pelo menos não que saibamos hoje. No entanto, eles fizeram uma gramática copta, uma outra língua egípcia surgida com os cristãos no Egito. 

"Quando o cristianismo triunfou, eram poucos os egípcios ainda capazes de ler os hieróglifos de seus antepassados; dentro em pouco, já ninguém lhes conhecia o segredo. Foi o início de um imenso silêncio que perdurou cerca de quinze séculos, o grane silêncio anunciado pela "profecia" atribuída a Hermes Trismegisto: "Tempo virá em que há de parecer que os egípcios em vão veneraram seus deuses... Estes voltarão ao céu, abandonando o Egito... Então essa terra sacrossanta, pátria dos santuários e dos templos, cobrir-se-á de sepulcros e de mortos. Ó Egito! Egito! de teus cultos restarão apenas fábulas e teus filhos nelas, mais tarde, já nem mesmo acreditarão; so hão de sobreviver palavras gravadas nas pedras narrando tuas piedosas façanhas... Sem deus e sem homens, o Egito não será mais que um deserto". (SAUNERON, 1970, p. 8). 

Pela Idade Moderna, eruditos italianos, franceses, alemãs, ingleses e de outras nações, obtiveram contato com objetos egípcios, pois era época das Grandes Navegações, colonização e do expansionismo mercantil pelo mundo. Logo, os europeus modernos passaram a entrar em contato com povos das Américas, África e Ásia. Ao mesmo tempo, o fascínio gerado pelos relatos de viajantes, começaram a atiçar a curiosidade de alguns homens ricos, os quais passaram a se tornar colecionadores de "relíquias", e assim por volta do século XV surgiram os "gabinetes de curiosidades" ou antiquários. Logo, com a chegada de objetos vindos do Egito, alguns passaram a se interessar em tentar decifrar aquela estranha forma de escrita. 

No século XVII um padre jesuíta alemão de nome Athanasius Kircher (1602-1680), o qual era um filósofo natural, homem de erudição, tentou realizar a decifração de hieróglifos que ele via nos obeliscos em Roma. Kircher não foi o primeiro a tentar tal projeto, mas ficou conhecido na época pelas várias traduções que fez. Os métodos pelos quais ele tentou fazer essa tradução não são totalmente conhecidos, mas se sabe que ele tentou guiar-se pelo alfabeto copta, uma escrita desenvolvida pelos cristãos egípcios, baseada no alfabeto grego. O copta expressava a língua egípcia, a qual Kircher considerava ser a última manifestação de sua forma escrita, pois com a colonização árabe, o Egito passou a falar e escrever nessa língua. Mesmo assim, o copta em seu tempo fosse diferente do egípcio falado séculos antes, pois é preciso lembrar que a língua está em transformação. Logo, por mais que um mesmo idioma seja falado num país, a forma de se falá-lo não será a mesma. O inglês falado hoje na Inglaterra não é igual ao inglês falado na Idade Média, ou o português falado hoje no Brasil, não é igual ao português falado na época do descobrimento no século XV. Embora a intenção de Kircher fosse boa, ele não levou em consideração essa diferença e imbuído por pretensões simbólicas e mistíticas, suas traduções publicadas em alguns de seus livros como Oedipus Aegyptiacus, Lingua aegyptiaca restituta (1643), Obelisci Aegyptiaci (1666), estavam todas erradas, embora que na época outros estudiosos usaram sua pesquisa como base para realizar as suas. 

Pelas décadas seguintes os mais diversos estudiosos tentaram decifrar os hieróglifos, como também a proporem teorias para seu uso e criação, algumas mirabolantes. De qualquer forma o grande erro que todos vinham cometendo desde Kircher era se pensar que os hieróglifos fossem apenas uma escrita ideográfica e não possuísse valor fonético. Devido a essa linha de pensamento, muitos erraram após o outro. 

Na segunda metade do século XVIII o erudito alemão Jörgen Zoega (1755-1809), o qual já vinha a alguns anos estudando o grego e o copta, como também estudando as obras que pretendiam traduzir os hieróglifos, ele publicou um trabalho sobre os obeliscos, intitulado De origine et usu obeliscorum (1797), onde defendia os seguintes pontos: a escrita hieroglífica seria mista, sendo tanto ideográfica quanto fonética. Segundo, os hieróglifos não foram uma escrita restrita apenas ao uso dos sacerdotes, estando apenas ligada a questões religiosas e místicas, ideia essa bastante difundida até então, onde se considerava que apenas os sacerdotes e alguns escribas eram os conhecedores desse saber. Mas Zoega defendia que os hieróglifos fossem usados por outras pessoas para assuntos não religiosos. 

Ele não conseguiu desenvolver mais profundamente seu trabalho, embora que a meta de seu livro fosse abordar a origem e o uso dos obeliscos, como o próprio título em latim deixava bem claro. No entanto, pelo fato de não poder traduzir os hieróglifos encontrados nos obeliscos, seu trabalho não pode ser concluído. 

Posteriormente, com a descoberta da Pedra de Roseta, a comunidade científica europeia passou a saber que tal estela continha a tradução em grego de um texto também escrito em hieróglifo e demótico. A pedra se tornava a chave para decifrar a antiga escrita egípcia. No entanto, não foi uma tarefa nada fácil, mesmo contando com essa grande ajuda. 

No ano de 1802 Antoine-Isaac, barão de Silvestre de Sacy (1758-1838), na época renomado filólogo e linguista, estudando a pedra, conseguiu identificar alguns nomes próprios, comparando os textos em grego e demótico. Posteriormente o orientalista sueco Johan David Ackerblad (1763-1819), também realizou estudos comparando os dois textos, conseguindo identificar outros nomes próprios. Ackerblad constatou que o demótico retratava fonemas parecidos com os vistos na língua grega, e isso poderia ser uma pista para se entender a fonética dos hieróglifos. O problema da hipótese Ackerblad é que o demótico no século II a.C já havia sofrido influência da língua grega, mas na prática em sua origem ele não se assemelhava ao grego. Por tal condição dizer que o grego se assemelhava ao demótico não era exato.


Thomas Young
Com base no trabalho de Ackerblad, o físico, médico, professor, inventor e erudito inglês Thomas Young (1773-1829) interessou-se pelos estudos da Pedra de Roseta. Young era um homem de muitos saberes, poliglota versátil, falava mais de dez línguas; conhecedor da história antiga clássica e oriental, decidiu tentar traduzir os hieróglifos. Usando um alfabeto com 29 caracteres criado por Ackerblad, Young descobriu que 14 caracteres estavam errados, publicando em 1814 sua própria tradução do texto demótico, onde ele conseguiu identificar 86 caracteres. Young afirmou que o erro de Ackerblad foi ter pensado que todas as palavras em demótico fossem fonéticas como no grego, mas na verdade, muitas não eram, embora no que se refere aos nomes próprios ele estivesse certo. No ano de 1818, Young publicou suas pesquisas num artigo intitulado Egypt. Assim como outros, ele acabou ficando em dúvida se o demótico possuiria fonética, ou essa era apenas reservada para os nomes próprios. Ele tentou traduzir os hieróglifos, mas acabou não conseguindo. No entanto, sugeriu em seu artigo que os nomes nos cartuchos aparentavam ser nomes próprios. As duas primeiras décadas do século XIX se encerravam sem grandes avanços na tradução dos hieróglifos. 


A descoberta de Champollion:

Jean-François Champollion tornou-se um nome eternamente ligado a Pedra de Roseta pelo fato de ter sido de sua autoria a decifração dos hieróglifos não apenas contidos na estela, mas da própria escrita hieroglífica egípcia. Todavia, não podemos desmerecer os trabalhos anteriores, pois embora não tenham alcançado o mesmo êxito que Champollion, eles foram necessários para o desenvolvimento dessas pesquisas linguísticas relacionadas ao povo egípcio. Champollion nasceu em 22 de dezembro de 1790 em Figeac, sendo filho do livreiro Jacques Champollion e da dona de casa Jeanne-Françoise Guailleu. Foi o caçula da família. Devido a venda de livros de seu pai, Jean-François logo cedo teve contato com a leitura e as portas que essa proporcionava, embora que necessariamente seu pai não lhe deu muita atenção, devido a ser um comerciante que viajava muito. Champollion cresceu aos cuidados de sua mãe, de seu irmão mais velho Jacques-Joseph e de suas três irmãs, Thérèse, Pétronille e Marie-Jeanne

Em 1801, mudou-se para Grenoc, para viver com seu irmão mais velho e iniciar os estudos escolares, pois até então havia estudado apenas em casa. Mas mesmo essa educação domiciliar foi bastante significativa, pois despertou o interesse dele para a leitura, a história antiga e os idiomas. Aos 16 anos de idade, Champollion já sabia grego, latim, italiano, alemão e inglês. Seu interesse e facilidade em aprender outros idiomas foi essencial para seus estudos futuros. Até o fim da vida ele ampliou os idiomas que conhecia, aprendendo árabe, hebreu, siríaco, caldeu, persa, etc. Tornando-se equiparável a Thomas Young, como um grande poliglota. 

Seu interesse por história oriental antiga, o levou a procurar estudar os idiomas a fim de ler os documentos na língua materna. Muitos dos idiomas que ele aprendeu, os estudou com professores particulares, pagos pelo seu irmão. Já mais velho, mudou-se para Paris onde foi estudar no Còllege de France e depois na École Pratique des Langues Orientales, a fim de se especializar no estudo da linguística voltada para língua orientais, especialmente a língua copta, a qual aprendeu com maestria. Embora o Egito fique na África e no Ocidente, ele era tratado como sendo uma cultura oriental, algo que hoje ainda ocorre nos estudos históricos. 

Em 1809, recebeu a oferta de torna-se professor de história adjunto na Universidade de Grenoble. Bonapartista declarado, Champollion e seu irmão Jacques-Joseph temeram que o pior ocorreria com a França quando Napoleão foi deposto em 1814. Em 1815 a Faculdade de Letras da Universidade de Grenoble foi fechada pelo novo governo, Champollion ficou desempregado, mas ainda conseguiu se manter por alguns meses, dando aulas particulares até a situação piorar em 1816, obrigando ele e seu irmão com a família a regressarem para casa, passando a morar com seu pai alcoólatra e as três irmãs, pois sua mãe havia falecido já nesta época. Foram anos difíceis para a família. Apenas em 1818, Champollion foi readmitido na universidade, retornando para Grenoble, onde se casou com Rosine, mulher que há anos tentava pedir em casamento. 

Tendo voltado a estabilizar a sua vida, Champollion foi retomando os estudos linguísticos, e focando sua atenção nas línguas egípcias. Em 1820 doente e novamente desempregado, mudou-se com a esposa para Paris, indo morar de favor na casa do irmão que conseguiu um trabalho na capital. Curiosamente, as descobertas que ele realizou adveio desse momento no qual ele estava com dificuldades, problemas de saúde e desempregado.

Champollion posteriormente relatou em seus trabalhos que ele preferiu aprender tudo o que conseguiria saber sobre o copta, o qual ele considerava o último estágio da língua egípcia falada e escrita, opinião a qual concordava com Kirchner. A ideia dele era fazer um estudo retroativo. A partir do copta, ele regressaria ao demótico, ao hierático e finalmente aos hieróglifos. Champollion tinha ciência que a escrita e a língua evoluíam, mudavam, transformavam-se, e para compreender essas mudanças entre o sistema de escrita original até o copta, era necessário conhecer essa evolução. 

Entre os anos de 1820 e 1821 chegou a conclusão que o demótico consistia numa simplificação do hierático, o qual por sua vez era uma simplificação dos hieróglifos, pelo menos essa era a tese que ele defendia. Posteriormente seguindo a hipótese de Zoega, Champollion percebeu enquanto estudava o demótico e o hierático, que estes possuíam sinais tanto ideográficos quanto fonéticos, e como ele considerava tais escritas como uma evolução dos hieróglifos cogitou que essa também possuiria sinais fonéticos. 

Para provar sua tese de que os hieróglifos possuíam sinais fonéticos, Champollion isolou um conjunto de hieróglifos que apareciam num cartucho, o qual repetiam-se seis vezes. Comparando a posição dos hieróglifos no texto com a tradução para o demótico e o grego, ele cogitou que aquele nome que se repetia, era o nome do rei Ptolomeu V. Para fazer isso, ele traduziu o nome Ptolomeu que era de origem grega, para o alfabeto copta, e depois para o demótico, hierático até chegar ao que deveria ser a sua forma nos hieróglifos. Embora tenha identificado oito sinais que representariam o nome Ptolomeu (Ptolmiis em egípcio), ele não tinha certeza se estava correto e como seria a forma de leitura.

O nome de Ptolomeu (Ptolmiis) na escrita hieroglífica.
Por não saber a forma de como se lia tais sinais em sequência, Champollion se baseou no modelo comum de se ler da esquerda para a direita, então enumerou cada um dos sinais, e deduziu as possíveis letras que cada um representaria para formar o nome Ptolmiis. Posteriormente ele recebeu a cópia da inscrição de um obelisco recuperado na Ilha de Filis, o qual continha um texto também bilíngue. No texto grego dizia que se tratava do rei Ptolomeu II e de sua esposa Cleópatra III. A partir de seu estudo, reconheceu a similaridade entre os hieróglifos que representavam o nome Ptolomeu II naquele obelisco com os que representavam o nome de Ptolomeu V na Pedra de Roseta, então concluiu que suas deduções estavam certas.

Então passou a estudar o nome de Cleópatra, seguindo o mesmo método anterior feito com o nome Ptolomeu. Chegando ao nome Qliopatrat, ao comparar com a versão contida no cartucho, percebeu que o hieróglifo que representava a letra "T" era diferente do visto no nome de de Ptolomeu. Após estudar aquele problema, ele deduziu que se tratasse de um caractere homófono, ou seja, escrito de forma diferente, mas possuindo o mesmo som, algo como "F" e "PH" ou "SS" e "Ç".


O nome de Cleópatra (Qliopatrat) na escrita hieróglifica.
Após analisar esses dois nomes de origem grega, Champollion conseguiu identificar doze hieróglifos que simbolizavam letras. Então os chamou de fonogramas. Posteriormente em outros estudos ele foi identificando outros tipos de hieróglifos. De qualquer forma, se valendo desse método ele começou a analisar outros cartuchos contendo nomes de origem grega, conseguindo identificar outros hieróglifos e as suas respectivas letras. 

No ano de 1822, após ter traduzido dezenas de nomes e reunido vários hieróglifos que representavam letras e suas variações, ele decidiu traduzir nomes de origem egípcia, conseguindo traduzir os nomes Ramsés e Tutmés. Nomes de importantes faraós. Com tal façanha ele passou a analisar não apenas nomes próprios, mas palavras no geral que fossem formadas por fonogramas, já tendo como referência a classificação dos hieróglifos que havia feito. E no mesmo ano surgiu sua primeira grande obra sobre seu trabalho. 

Representação dos hieróglifos fonogramas.
No ano de 1822, já tendo decifrado em parte a escrita hieroglífica com base na tradução de nomes próprios, Champollion redigiu Lettre M. Dacier... Relative a l'alphabet des hieroglyphes phonétiques, emplóyes par les égyptiens pour inscrire sur leurs monuments le titres, les noms et les surnoms des souverains crecs et romains. Com a publicação desse livro, ele ganhou fama internacional, despontando como o descobridor dos hieróglifos. De fato, é de seu mérito o primeiro grande passo para se compreender os hieróglifos, mas como ele deixou sugerido no título da obra, esse primeiro livro abordava sua pesquisa referente ao estudo dos hieróglifos fonéticos. 

Frontispício de Lettre M. Dacier... Relative a l'alphabet des hieroglyphes phonétiques de Jean-François Champollion (1822).
Como o próprio título indica, originalmente o texto consistiu numa carta enviada por Champollion ao secretario da Academie des Inscriptions et Belles Lettrres em Paris, Bon-Joseph Dacier. Nessa extensa carta, posteriormente transformada em livro, Champollion relatava ao secretário sua descoberta e seu método de estudo. A obra depois que foi publicada, ainda no mesmo ano foi traduzida, tornando-se a principal referência na área. Muitos pesquisadores ao tomarem conhecimento da descoberta de Champollion passaram a usar seu método para desenvolver outras pesquisas, pois é importante lembrar que muitos outros hieróglifos ainda não haviam sido traduzidos.


Enquanto outros estudiosos passaram a desenvolver suas pesquisas, o próprio Champollion no restante da sua vida continuou a estudar os hieróglifos, escrevendo uma gramática e um dicionário. No entanto, devido a falta de fontes para abordar a obra de Champollion, preferi me restringir a esse primeiro momento de seus estudos, no que resultou na Carta a M. Dacier.

Em 1824 ele publicou Précis du systeme hiéroglyphique des Anciens Egyptiens, consistindo num estudo acerca dos conceitos fundamentais da escrita hieroglífica. No ano de 1826 ele recebeu a oferta de emprego para se tornar diretor da coleção egípcia no Museu do Louvre. Passou os anos seguintes organizando as exposições sobre temática egípcia. 

No entanto, sua grande realização dessa fase de reconhecimento, se deu no ano de 1828, quando após solicitar ao rei da França, Carlos X e ao grão-duque da Toscana, Leopoldo II, ambos os nobres firmaram um acordo, e assim foi criada a Expedição Franco-Toscana (1828-1829), liderada por Champollion, com a missão de ir ao Egito e realizar uma longa pesquisa de campo. Era sonho de Champollion conhecer o país, e finalmente pôde realizá-lo. Na ocasião ele contou com a companhia do italiano Ippolito Rosellini (1800-1843), o qual havia se tornado seu discípulo preferido, e o primeiro grande nome da egiptologia na Itália.

Pintura retratando a Expedição Franco-Toscana ao Egito, diante das ruínas em Karnak. Ao centro, o homem barbudo e sentado é Jean-François Champollion, ao seu lado, o homem que segura uma folha de papel é Ippolito Giuseppe.
Champollion passou 18 meses trabalhando no Egito, ao retornar sua saúde estava novamente frágil, mas isso não o impediu de se dedicar aos seus estudos. Em 1831 concluiu sua Grammaire égyptienne (Gramática egípcia). Como também deixou apontamentos para seu Dictionaire égyptien en écriture hiéroglyphique. No entanto, devido aos seus problemas de saúde, Champollion faleceu em 4 de março de 1832, de um ataque cardíaco, morrendo aos 41 anos. No ano de 1831 havia sido nomeado professor de arqueologia egípcia do Collège de France, cargo que não conseguiu exercer direito, devido a sua saúde ter-se agravado.

Sua gramática e seu dicionário foram publicados respectivamente em 1836 e 1841, contando com o apoio de seu irmão Jacques-Joseph e de seu discípulo Ippolito Rosellini, o qual lhe acompanhou na expedição ao Egito. Champollion é considerado por alguns como o "Pai da Egiptologia", por causa da sua descoberta que permitiu a primeira vez a possibilidade de se entender o que estava escrito nos papiros, monumentos e objetos, desse ponto em diante a egiptologia e a egiptomania se iniciaram.

NOTA: No Egito, Champollion reuniu uma grande quantidade de objetos com inscrições hieroglíficas, mas também mandou fazer desenhos de hieróglifos encontrados em monumentos. Esse material de campo ajudou a ampliar suas fontes, como também ele aplicou seu conhecimento na tradução de tais escritos, passando a compreender o que estava escrito nas paredes de templos, em obeliscos, estátuas, papiros, etc. 
NOTA 2: Ippolito também foi responsável por coordenar as cópias e desenhar muitas das inscrições hieroglíficas, tendo reunido um gigantesco acervo que resultou na sua coleção em 14 volumes intitulada I monumenti dell'Egito e della Nubia (1832-1844). Ele também cedeu parte do acervo que trouxe do Egito para o Museu de Florença, criando a primeira exposição egipcía na Itália.
NOTA 3: O governo egípcio por várias vezes tentou negociar com o governo inglês para reaver a Pedra de Roseta e outros artefatos para sua terra natal. No entanto, os ingleses recusaram tais acordos. 
NOTA 4: Embora Champollion tenha se dedicado a estudar os hieróglifos em 1821, ele desde seus 18 anos já havia iniciado tais estudos, embora não manteve uma continuidade neste meio tempo. A primeira vez que teve contato com os hieróglifos, ele tinha dez anos, onde um primo seu que serviu na Campanha do Egito, lhe mostrou uma cópia das inscrições da Pedra de Roseta. Aquilo o fascinou profundamente.
NOTA 5: Os hieróglifos podem ser classificados como ideográficos, fonogramas, nomofonogramas, duofonogramas, triofonogramas, pseudo-vogais, determinativos, complementares, etc.

Referências Bibliográficas:
BUDGE, E. A. Wallis. The Roseta Stone. London, British Museum, 1913. 
CERAM, C. W. Deuses, túmulos, e sábios: o romance da arqueologia. Tradução de João Távora. São Paulo, Biblioteca do Exército-Editora/ Edições Melhoramentos, 1971.

CERAM, C. W. O mundo da arqueologia. Tradução de Octávio Mendes Cajado. 2a ed, São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1973. 
OLIVEIRA, Francis Lousada Rubiini de. A Escrita Sagrada do Egito Antigo. Dicionário Hieróglifo-Português. Ibitirama/ES, edição do autor, 2008.
ORTIZ, Airton. O Egito dos Faraós: da antiga Mênfis à Moderna Cairo: 5.000 anos de aventuras. Rio de Janeiro, Record, 2011. 
SAUNERON, Serge. A egiptologia. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.
SILLIOTI, Alberto. Egito. Tradução de Francisco Manhães. Barcelona, Ediciones Folio S. A, 2006.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A Companhia das Índias Ocidentais da Holanda: alguns aspectos administrativos

Desde tempos antigos os homens guerreiam por recursos naturais; disputam terras para a agricultura e a pecuária, territórios com minas e florestas, zonas de pesca, rotas de comércio, etc. Todavia, foi na Idade Moderna que guerras por motivos econômicos se tornaram mais habituais e ganharam proporções globais. Talvez possamos falar que a Idade Moderna inaugurou as "guerras mercantis", as quais se espalharam pelos quatro cantos do mundo, seguindo o rastro das Grandes Navegações e da colonização europeia em outros continentes. De fato, entre os principais motivos que levaram algumas nações europeias como Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda a se lançarem aos mares e colonizar outras terras e povos, adveio da necessidade de se conseguir mercadorias, mercados e recursos naturais. 

Logo, nesse mundo no qual o mercantilismo se espalhava entre algumas nações europeias, tal sistema político-econômico moldou as relações internacionais no Ocidente e no Oriente por onde os europeus passaram e mantiveram negócios. E no caso da Holanda isso não foi diferente, pois esse pequeno país tornou-se uma potência ultramarina em poucos anos, chegando a rivalizar a altura de outras nações que já vinham há mais de um século explorando os mares do mundo, como Portugal e Espanha. 

A proposta desse texto foi contar um pouco da história de uma das mais importantes companhias comerciais surgidas no século XVII, a Companhia das Índias Ocidentais dos holandeses, a qual é principalmente lembrada por ter fundado a colônia da Nova Holanda no Brasil, dando início as "guerras pelo açúcar". Logo, nesse texto procurei contar um pouco da história da sua fundação e algumas características da sua organização administrativa.

Bandeira da Companhia das Índias Ocidentais.
Introdução: 

Antes de iniciar a história da fundação da Companhia das Índias Ocidentais, é preciso apresentar de forma breve um panorama da situação que a Holanda se encontrava em relação a Espanha e Portugal, pois foi devido a uma desavença com os espanhóis que a história holandesa mudou, e anos depois repercutiria na criação de suas companhias mercantis.

A Europa moderna era um continente bastante fragmentando, com centenas de Estados esbarrando suas caóticas fronteiras um nos outros, prontos a pegar em armas por qualquer mal entendido, e ao mesmo tempo, muitos tinham planos de expansão, e por outro lado, outros possuíam carência de produtos, e a solução para o crescimento da Europa era ir à África e a Ásia buscar mercadorias, mas a muralha muçulmana encarnada na figura do poderoso Império Otomano que viria subjugar o último baluarte da cristandade no Oriente, a cidade de Constantinopla, capital do decadente Império Bizantino do século XV, era um grande empecilho para esses projetos. 

A solução encontrada por alguns países que não tinham a versatilidade dos italianos em negociar com os turcos e os árabes, foi encontrada, ou melhor, tentada por Portugal. A ousada empreitada lusitana pelo vasto e desconhecido Atlântico contada ricamente nas oitavas de Os Lusíadas de Luís de Camões ou no breve Mensagem de Fernando Pessoa; abriu as portas da Europa para a “Era dos Descobrimentos” ou “Era das Grandes Navegações”, as quais trouxeram aos europeus novos caminhos a seguir: o futuro estava no comércio ultramarino e na colonização de terras em outros continentes.

No final do século XV, Cristóvão Colombo “descobriu” em 26 de outubro de 1492, novas terras no Ocidente, talvez fosse alguma parte das Índias como ele pensava. Quinze anos depois, já se chamavam aquelas terras de América. Passados mais de cem anos desde então, as Américas já estavam em adiantado processo de colonização europeia, e nessa época o comércio das cobiçadas especiarias que motivaram Portugal a procurar um caminho para as Índias por via marítima mais de um século antes, estava em baixa, contudo, as Índias Ocidentais como alguns chamavam as Américas, eram as terras da oportunidade, e na primeira metade do século XVII uma das mercadorias mais lucrativas da época era fruto da ostentação das elites europeias, o açúcar. O ouro branco da época.

“A Espanha foi, no século XVI, talvez o mais rico e poderoso país do mundo. Quando os homens inteligentes de outros países perguntavam a razão disso, julgavam encontrar a respostas nos tesouros que ela recebia das colônias. Ouro e prata. Quanto mais tivesse, tanto mais rico o país seria - o que se aplicava às nações e também às pessoas. O que fazia as rodas do comercio e indústria girarem mais depressa? Ouro e prata. O que permitia ao monarca contratar um exército para combater os inimigos de seu país? Ouro e prata. O que comprava a madeira necessária para fazer navios, ou o cereal para as bocas famintas, ou a lã que vestia o povo? Ouro e prata. O que tornava um país bastante forte para conquistar um país inimigo - que eram os "nervos da guerra"? Ouro e prata. A posse de ouro e prata, portanto, o total de barras que possuísse um país, era o índice de sua riqueza e poder”. (HUBERMAN, 1981, p. 130).

No entanto, a Holanda não possuía minas de ouro e nem de prata em seu pequeno território, e muito menos possuía colônias, logo, segundo Huberman [1981] a solução encontrada nesse caso era desenvolver políticas econômicas que investissem numa “balança comercial favorável”, ou seja, desenvolver o comércio de forma a exportar mais e importar menos, e cobrar como dinheiro, moedas de ouro e prata. Logo, a Holanda e outras nações europeias como a Inglaterra, e alguns Estados alemães e italianos passaram a se dedicar a essa política mercantil, que depois foi adotada por Portugal, Espanha e França.

“O negócio, portanto, era exportar mercadorias de valor, e importar apenas o que fosse necessário, recebendo o saldo em dinheiro sonante. Isso significa estimular a indústria por todos os meios possíveis, porque seus produtos valiam mais que os da agricultura, e portanto obteriam mais dinheiro nos mercados estrangeiros. E o que era também importante, ter indústria produzindo as coisas de que o povo necessitava significava não ser necessário comprá-las do estrangeiro. Era um passo na direção da balança de comércio favorável, bem como no sentido de tornar o país auto-suficiente, independente de outros países”. (HUBERMAN, 1981, p. 133).

Na segunda metade do século XVI, os holandeses eram um dos principais compradores do açúcar brasileiro, responsáveis pelo seu refino e revenda na Europa, algo que resultou em um negócio bastante lucrativo até que os espanhóis interviram contra isso.

“Em 1594, Roterdã dispunha de três refinarias, enquanto Amsterdã naquele mesmo ano devia dispor de quatro refinarias. A partir de século XVII, a importância do açúcar para a economia holandesa tornou-se cada vez maior, contribuindo consideravelmente para a pujança dos Países Baixos. O açúcar refinado era vendido e distribuído ao resto da Europa”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 27).

Na segunda metade do século XVI a Espanha governava Portugal e, assim, o Brasil. Eram tempos de União Ibérica (1580-1640). Se no passado os portugueses não possuíam problemas com os holandeses, sob o novo governo, eles tiveram que tomar partido desse desentendimento surgido com o monarca Filipe II (1527-1598). E é nesse ponto que a história holandesa sofreria mudanças drásticas.

No ano de 1556 o então soberano do Sacro Império Romano-Germânico, Carlos V abdicou do trono em favor de seu irmão mais novo, Fernando I; por sua vez, como também era rei da Espanha, governando com o nome de Carlos I, ele também escolheu abdicar do trono em favor de seu filho Filipe II. Na época que Filipe assumiu o governo, a região dos Países Baixos estava sob o domínio espanhol e os flamengos estavam prosperando no comércio.

Antes do ano de 1556, a região dos Países Baixos (não confundir com o atual Países Baixos) consistia num aglomerado de províncias vassalas ao Sacro Império Romano-Germânico, chamados de Dezessete Províncias, e pelo fato de serem subordinadas ao Sacro Império, isso significava que o rei espanhol Filipe II, o qual era filho de Carlos I de Espanha, possuía direito sobre aquelas províncias batavas.

Mapa das Dezessete Províncias em 1477.
A região dos Países Baixos era um território vasto, embora compartilhasse como língua o alemão, o holandês, o flamengo, o frísio, o francês, etc., contudo suas culturas eram bastante próximas e todos eram protestantes.

Filipe II defendendo seu posicionamento antirreformista, pois nessa época o rei havia se unido a chamada Liga Católica, criada em 1576 na França, onde encabeçava uma guerra religiosa entre os católicos e os protestantes (mais conhecidos como huguenotes). O rei francês Luís XIII, o Justo e o papa Sixto VI foram alguns dos importantes membros dessa liga Black (2002, p. 18-19, 103-104). O rei Filipe II ameaçou impor o catolicismo a toda região dos Países Baixos, assim como, também ameaçou enviar a Inquisição Espanhola (lembrando que as inquisições só atuavam em nações católicas). Pelo fato de grande parte da população ser protestante, isso se tornou uma ameaça bastante séria, a ponto que alguns nobres decidiram fazer algo a respeito.

“Nove fidalgos, moços, saídos quase todos da escola de Genebra, reúnem-se no dia 5 de abril de 1566 no castelo do Príncipe de Orange, em Breda, para o fim de acordar na declaração dos direitos que deveriam ser impostos como condição à monarquia espanhola. Eis as conclusões dessa declaração redigida por Marnix e destinada a ser o prospecto da guerra: “Tendo bem devidamente considerado todas as coisas, entendemos que é de nosso dever obstar, a fim de não sermos presa daqueles que, sob a cor da religião ou de inquisição, querem enriquecer à custa do nosso sangue e da nossa fazenda. Pelo que, deliberamos fazer uma boa, firme e estável aliança e confederação, obrigando-nos e prometendo uns aos outros, por juramento solene, impedir que a dita inquisição se recebe e sustente, sob qualquer pretexto que seja...”. (ORTIGÃO, 1988, p. 10).

O rei não atendeu às solicitações desse manifesto e dois anos depois algumas províncias se uniram e declararam guerra, no que originou a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648). Em 1579 as mesmas Províncias Rebeldes, as quais eram: Frísia, Gronigen, Güeldres, Holanda, Overijssel, Utrecht e Zelândia, realizaram a União de Utrecht. Onde se propôs a autonomia administrativa, militar e religiosa das províncias que pactuassem ao trato, algo que resultou em 1581 na independência destas províncias, no que levou ao surgimento da República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos. No entanto, Filipe II não reconheceu essa independência, opinião essa que manteve até o fim da vida. Então as sanções às províncias rebeldes se iniciaram, e o estado de guerra se postergaria pelas décadas seguintes.

“Os holandeses conseguiram sustentar a resistência por tanto tempo por dois motivos: graças ao acesso ao mar e ao controle das rotas fluviais que subiam para a Europa central, já estavam se tornando uma nação mercantil que logo se igualaria em riqueza a Veneza; e essa riqueza permitiu-lhes construir as fortalezas que lhes asseguraram sua independência”. (KEEGAN, 1995, p. 336).

Diante desse impasse bélico, do crescimento econômico e da independência não reconhecida, uma das medidas que Filipe II tomou, foi proibir que todos os portos espanhóis comercializassem com os holandeses, o que incluiu os portos dos Países Baixos do Sul (equivaleria grosso modo o que hoje é a Bélgica, região que ele havia conseguido reconquistar no final do século XVI), assim como Portugal e suas colônias, pois em 1580 havia se iniciado a União Ibérica, no que resultara na aclamação de Filipe II como rei de Portugal, assumindo com o nome de Filipe I de Portugal.

Embora Filipe tenha dado autonomia administrativa a Portugal e suas colônias, que na prática significava que os portugueses poderiam nomear seus governadores, juízes, capitães-mores, etc., tanto para a metrópole quanto para as colônias, mesmo assim, sua proibição comercial foi imposta a todos os seus domínios, logo, como a Holanda era um dos principais compradores do açúcar português produzido no Brasil, isso foi um duro golpe para a economia holandesa.

Quase a metade do território holandês fica abaixo do nível do mar, e por séculos os seus habitantes travaram uma constante batalha contra a maré do Mar do Norte, algo que os levou a se especializarem na construção de diques e barragens para combater as constantes ameaças de inundações. Além desse problema com as inundações, o diminuto território holandês não permitia que o país investisse numa agricultura latifundiária de exportação. A economia agropecuária dos holandeses eram bem desenvolvida, sendo uma das melhores do continente, mas não dispunha de grande quantidade de grãos para ser exportada massivamente (BRAUDEL, 1998, p. 161-162). 

Os holandeses exportavam grãos, carne, leite, vinho, mas também exportavam bastante arenque e óleo de baleia, pois a pesca era uma das fontes de lucro do país. Por outro lado, havia também a produção manufatureira de tecidos, tinturaria, tabaco, equipamentos navais, entre outros produtos. O país também exportava peles, âmbar, sal, e outros produtos (BRAUDEL, 1998, p. 164).

O embargo econômico espanhol naquele momento afetou gravemente a economia holandesa (EBERT, 2003, p. 51), pois não apenas bloqueou o lucrativo comércio açucareiro, como também barrou os outros produtos que os holandeses negociavam com os portugueses como: tecidos, vinho, pescado, etc. Por outro lado, a diminuição do açúcar que era enviado para ser refinado em Amsterdã e Rotterdã, também prejudicou a revenda desse para nações como Inglaterra, França e Sacro Império, os quais a Holanda era responsável diretamente pelo comércio do açúcar refinado. 

No entanto, o embargo espanhol aos Países Baixos não foi contínuo. Quando Filipe II o decretou, fez isso em 1585, tendo o embargo perdurado até o ano de 1590, quando o rei o suspendeu a fim de negociar com a república holandesa seu retorno a Coroa espanhola, como não deu certo as negociações, ainda assim o embargo se manteve suspenso, pois a Espanha necessitava vender seus produtos, e os holandeses eram bons compradores. 

Não obstante, em 1598 o rei Filipe III declarou um novo embargo, perdurando esse até 1603, sendo ele segundo Ebert (2003) mais severo do que o primeiro. No entanto, no ano de 1604, o rei suspedeu parcialmente o embargo, em troca de que 30% do valor das mercadorias comercializadas com Espanha e Portugal, fosse pago a Coroa. O governo holandês aceitou. Entretanto, além dessa descontinuidade do embargo, os holandeses encontraram formas de burlar ele, agindo clandestinamente e sagazmente.

De qualquer forma, os embargos comerciais foram um dos fatores para que posteriormente acirrasse ainda mais a disputa entre a República Holandesa e a Monarquia Hispano-lusa, o que viria a iniciar ainda em 1598-9 ataques ao arquipélago de São Tomé e Príncipe, colônia portuguesa na costa ocidental africana, iniciando segundo Boxer (2002, p. 123) uma “guerra global”, que se estenderia até o ano de 1663, quando os portugueses perderiam parte do controle da costa do Malabar, na Índia.

O início do século XVII para a Holanda, Portugal e Espanha foi problemático, pois acirrou-se os confrontos entre as três nações. Maravall (2009, p. 65) disse que o Seiscentos foi um século marcado por crises em âmbito econômico, político, social e religioso. Cenário conturbado esse que realmente refletiu em guerras pelo continente europeu, as quais acabaram motivando conflitos nas colônias espalhadas pelo mundo.

Enquanto os conflitos entre neerlandeses e espanhóis ainda se mantinham nas fronteiras da república holandesa, a entrada do Estado neerlandês na economia mercantil ultramarina os levaria a confrontar a hegemonia luso-hispânica nesse cenário econômico ultramarino, para isso, os holandeses decidiram criar sua própria companhia de comércio, e assim surgiu em 1602 a Companhia das Índias Orientais (Vereenigde Oost-Indische Compagnie).

 Bandeira da Companhia das Índias Orientais.
“Os nomes de algumas dessas companhias organizadas nos séculos XVI e XVII mostram onde realizaram suas empresas de comércio ou de colonização, ou ambas. Havia sete companhias das "Índias Orientais", sendo as mais famosas as britânica e holandesa; havia quatro companhias das "Índias Ocidentais", organizadas na Holanda, França, Suécia e Dinamarca; companhias do "Levante" e companhias "Africanas" também eram populares; e de interesse particular para nós, na América, eram as companhias "Plymouth" e "Virginia", organizadas na Inglaterra. Fácil é adivinhar que qualquer companhia criada com o objetivo de levar a cabo essas aventuras dispendiosas e arriscadas estava certa de receber de seu governo, todas as vantagens comerciais possíveis. Uma das mais importantes, sem dúvida, era o direito a um monopólio do comércio”. (HUBERMAN, 1981, p. 87).

Projeto de iniciativa privada, a VOC recebeu do governo direito ao monopólio comercial no Oriente, como também anos depois criou-se o Banco de Amsterdã (1609) para arrecadar fundos para se investir nas expedições da companhia, como também vender-se ações destas. De qualquer forma, os holandeses passaram a disputar na Ásia, especialmente com os portugueses o controle de alguns importantes mercados na Índia, Malásia, Indonésia, China e Japão. Com o sucesso da VOC, alguns comerciantes e políticos começaram a planejar a criação de uma nova companhia, dessa vez voltada para o ocidente, para as Américas, as Índias Ocidentais.

Embora os planos para se fundar uma nova companhia tenham começado vários anos antes da fundação da mesma, um dos principais motivos que levou ao adiamento da criação dessa companhia, dizia respeito a Trégua dos Doze Anos (1609-1621). Desde a proclamação da independência das sete províncias, Filipe II continuou a tentar recuperar seu domínio sobre aqueles estados, e com a sua morte, seu filho, Filipe III procurou firmar uma trégua com os holandeses, no que resultou na assinatura de uma trégua por doze anos. Entre os termos assinados, constava que os espanhóis permitiriam o livre comércio neerlandês na Europa e na Ásia, contudo, a África Ocidental e as Américas permaneceriam fechadas a eles.

Durante a Trégua dos Doze Anos dos Países Baixos com a Espanha, de 1609 a 1621, os Estados Gerais, o Governo Central dos Países Baixos, não autorizaram a fundação da Companhia das Índias Ocidentais, com o receio de que Madri interpretasse esta fundação como uma declaração tácita de guerra, um a violação da Trégua dos Doze Anos. Para levar adiante seu projeto expansionista nas Américas e na África Ocidental, com a fundação da Companhia das Índias Ocidentais, os Países Baixos, pretendendo evitar uma confrontação direta com a Espanha, decidiram aguardar”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 26).

Durante esse período da trégua o governo e os comerciantes se propuseram a debater acerca dos planos de fundação da segunda companhia, debatendo acerca dos possíveis investidores, fornecedores, acionistas, diretores, assim como se decidir os locais os quais a companhia investiria seus recursos. Contudo, um dos debates importantes nessa época dizia respeito ao rumo que a companhia tomaria acerca da colonização.

A VOC havia fundado colônias em Sumatra e Java (ilhas hoje pertencentes à Indonésia), mas eram colônias de exploração, que produziam cravo-da-índia, pimenta, chá, baunilha, posteriormente até mesmo café. Em 1614 o governo holandês criou a Colônia dos Novos Países Baixos (Nieuw Nederland), localizada no que hoje são os estados americanos de Nova Jersey e Nova York. A capital ficava na ilha de Manhattan, chamada de Nova Amsterdã (atual cidade de Nova York). Essa colônia foi criada numa época que a Inglaterra ainda estava fundando suas colônias nas quais originariam as Treze Colônias, e ao mesmo tempo em que os franceses e espanhóis também exploravam a América do Norte, a fim de colonizar o continente.

Mapa da colônia dos Novos Países Baixos (1656).
Contudo, tratava-se de uma colônia de exploração, voltada para o comércio de peles com os nativos, sendo administrada pela Companhia dos Novos Países Baixos (Nieuw Nederland Compaigne), a qual acabou sendo também uma das inspirações para a Companhia das Índias Ocidentais.

Em 1618 eclodiu a Guerra dos Trinta Anos, motivada principalmente por conflitos religiosos entre os protestantes e católicos no Sacro Império. Filipe III optou por apoiar seu primo que era o então sacro imperador, e, por sua vez, os holandeses aderiram a Liga Protestante que surgiu para se opor a Liga Católica. Isso reacendeu os conflitos entre holandeses e espanhóis, mesmo havendo oficialmente uma trégua entre as duas nações.

A fundação da Companhia das Índias Ocidentais: 


Os Estados Gerais holandeses perceberam que com o sucesso da colônia dos Novos Países Baixos na América do Norte e da própria Companhia das Índias Orientais, eles deveriam se arriscar em expandir seus domínios pelo restante das Américas e também na África Ocidental, mas para isso teriam que confrontar o poderio hispânico. 
“A Companhia das Índias Ocidentais não foi concebida apenas como uma sociedade anônima, com o capital social dividido e m ações e sujeita completamente às leis do mercado. Para que ela fosse criada, foi necessário que tanto a Holanda quanto a Zelândia, as principais regiões dos Países Baixos, concluíssem que a fragmentação do monopólio ibérico da navegação e do comércio da Europa com as Américas e a África Ocidental entre várias companhias holandesas não tinha futuro. A livre concorrência ameaçava levar todas as companhias à ruína. À semelhança da Companhia das índias Orientais, que tinha como objeto o comércio asiático, para promover a hegemonia holandesa no Hemisfério Ocidental era necessário fundar uma companhia estabelecida mediante concessão dos Estados Gerais, com o monopólio na exploração da navegação e do comércio com as Américas e a África Ocidental. Para que a hegemonia holandesa se firmasse no Hemisfério Ocidental, era necessário que a hegemonia ibérica fosse superada. A Companhia das Índias Ocidentais nasce com u m objetivo claro. Invadir as colônias portuguesas e espanholas, ocupá-las militarmente e explorá-las comercialmente”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 30). 

Sede da WIC em Amsterdã, entre os anos de 1623 a 1647.
Willem Ussenlincx (1567-1647), um comerciante, investidor e diplomata flamengo, um dos idealizadores do que um dia viria a ser a WIC, defendia que a futura Companhia das Índias Ocidentais deveria investir na colonização de povoamento. Ussenlicx chegou a viajar para Portugal e Espanha, onde conheceu de perto a organização comercial marítima dos dois países, assim como, testemunhou a variedade de mercadorias e a pujança das cidades, que cresceram com o ouro e a prata dos domínios espanhóis, e o comércio das especiarias e do açúcar dos domínios portugueses.

“Ele chegou a defender que a Companhia das índias Ocidentais deveria promover a criação de colônias de povoamento, e não de exploração. O meio mais eficaz para promover a navegação e o comércio dos Países Baixos com as Américas e a África Ocidental seria mediante o estabelecimento de colônias povoadas por cidadãos de origem holandesa. Milhares de holandeses deveriam migrar para as Américas, para a Nova Holanda e para os Novos Países Baixos. A s colônias de povoamento produziriam matérias-primas que seriam consumidas na metrópole, os Países Baixos. Nos Países Baixos, na metrópole, seriam produzidas manufaturas que seriam consumidas nas colônias de povoamento. Regiões ainda não controladas pelos ibéricos, como as Guianas e os atuais Argentina e Chile, também deveriam receber cidadãos de origem holandesa para assegurar o controle político, militar e comercial dos Países Baixos na América do Sul”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 31).

A proposta de Ussenlincx foi rejeitada pelos investidores e pelo próprio governo. Isso fica mais evidente quando pensamos que a colônia da Nova Holanda no Brasil, foi uma colônia de exploração. Embora João Maurício de Nassau-Siegen tenha fundado a cidade Mauricestadt próxima ao Recife em Pernambuco, essa foi à única cidade fundada pelos holandeses durante vinte e quatro anos de ocupação.

Por mais que a ideia de Ussenlincx fosse promissora, a Companhia e seus investidores estavam interessados no lucro a curto prazo, ou seja, os investimentos seriam retomados em pouco tempo. Para uma colônia de povoamento necessitava-se de investimentos a médio e longo prazo, e era algo que os Países Baixos não estavam interessados.


Retrato de Willem Usselincx, um dos homens que propuseram a criação da WIC.
Por exemplo, no século XVI e XVII até que um canavial estivesse pronto para ser colhido, levava-se de dois a cinco anos, para que as canas estivessem maduras. Depois disso uma vez ao ano ou a cada dois anos, uma nova safra poderia ser colhida, isso dependeia da regularidade das chuvas, fertilidade do solo, ausência de pragas, etc. Além desse tempo de espera, havia a necessidade de se construir as dependências da fazenda, o engenho, contratar trabalhadores e comprar escravos. Sendo assim, na óptica dos holandeses naquele momento, era mais interessante se apossar da estrutura pronta do que ter que construir a sua própria. O Brasil era então o maior produtor de açúcar do mundo, mais de 300 engenhos pela colônia. Para que se construir engenhos, se poderia tomá-los dos portugueses? 

“O importante era conquistar, ocupar e explorar colônias portuguesas e espanholas. Com o monopólio na exploração da navegação e do comércio nas Américas, da Terra Nova até o Estreito de Magalhães, e na África Ocidental; dotada de autoridade judicial e militar à luz do previsto no privilégio que lhe foi concedido pelos Estados Gerais, a Companhia das índias Ocidentais tinha como missão erguer o imperium holandês à custa dos portugueses e dos espanhóis. O projeto de Usselincx não foi acolhido pelos Estados Gerais. Seu maior temor, o de que se fundaria uma companhia que não teria nenhum outro interesse a não ser o lucro, confirmou-se”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 31). 

Por mais que os planos para se criar a Companhia das Índias Ocidentais tenham surgido vários anos antes da sua fundação, mas devido a Trégua dos Doze Anos como já foi mencionado, os holandeses tiveram que aguardar alguns anos até poderem criar a companhia, de forma que isso não fosse entendido como uma quebra da trégua, embora que na prática a trégua já tinha sido "rompida" devido a Guerra dos Trinta Anos, onde espanhóis e holandeses voltaram a se confrontar. 


Outro problema que rondou a criação da Companhia das Índias Ocidentais era o perigo em se enfrentar a Espanha. Alguns possíveis investidores e políticos alegavam que os gastos para se manter um exército no Brasil seriam muito altos e não compensariam o risco, pois todos eram unânimes em dizer que mesmo que a Espanha abandonasse o Brasil, Portugal não faria isso, e além do mais, os próprios colonos também não se sujeitariam facilmente aos novos conquistadores. 

"Mesmo antes da revolta dos portugueses no Brasil, que terminou com a expulsão dos holandeses, a Companhia das Índias Ocidentais revelare-se um empreendimento discutível. Vira-se obrigada a gastar mais de 1 milhão de florins por ano para defender suas bases em Pernambuco e lucrara apenas 400 mil florins com o comércio de escravos, açúcar e madeira corante. Desde sua criação, a companhia era vista com desconfiança pela comunidade mercantil mais conservadora de Amsterdã". (SCHAMA, 1992, p. 252). 

Por mais que Simon Schama apresente uma posição pessimista, mas para outros historiadores o investimento de risco no Brasil compensou (pelo menos por alguns anos). Quando a WIC concluiu a conquista das capitanias do Rio Grande, Paraíba, Itamaracá, Pernambuco e Sergipe, ela passa a deter o controle de mais de 100 engenhos, exportando toneladas de açúcar para a Holanda. Evaldo Cabral de Mello em Rubro Veio e O Negócio do Brasil apresenta dados os quais mostram que o investimento da WIC valeu apena, e a Companhia conseguiu arrecadar muito, mas também sofreu prejuízo em alguns momentos, principalmente devido a falta de compromisso dos seus devedores. 

Finalmente no ano de 1621, no dia 3 de junho em Amsterdã era fundada a Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compaigne), dotada de privilégios concedidos pelos Estados Gerais, assim como, era chamado o órgão republicano. 


A organização da WIC:

Joannes de Laet (1581-1649), diretor da Câmara de Amsterdã, uma das cinco câmaras da WIC, mercador, sócio, "geógrafo" e "historiador" da Companhia, registrou os privilégios, diretrizes e determinações concedidos pelo governo a WIC, no que atribuía seus direitos de monopólio, como também, as diretrizes de sua organização. Ao todo foram quarenta e cinco artigos destacados na ocasião, os quais foram copilados no livro História ou Anais da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais (1644) escrito pelo próprio Laet. 


Retrato de Joannes de Laet, um dos diretores da Câmara de Amsterdã.
“Companhia das Índias Ocidentais não nasceu motu próprio com a livre subscrição de seu capital social, como ocorre com as sociedades anônimas pela integralização de suas ações. Para que a Companhia surgisse em 3 de junho de 1621, foi necessário que os Estados Gerais, o Governo Central dos Países Baixos, interviesse com a expedição de uma carta-patente que lhe outorgou o privilégio durante vinte e quatro anos na exploração da navegação e do comércio com as Américas e a África Ocidental. A Companhia das Índias Ocidentais deve suas origens a um ato de Estado que lhe conferiu o controle da navegação e do comércio com as Américas e a África Ocidental, com características de monopólio. A Carta-Patente da Companhia tinha quarenta e cinco artigos, com um conteúdo semelhante ao da Companhia das índias Orientais, de 1602. O objetivo era claro. D a mesma maneira que na Ásia, onde os holandeses haviam conquistado uma posição política, militar e comercial crescentemente hegemônica à custa dos portugueses, nas Américas e na África Ocidental a hegemonia holandesa precisava ser construída à custa dos portugueses e dos espanhóis”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 33). 

Devido aos quarenta e cinco artigos da carta-patente serem bastante extensos, fiz um esquema apresentando os assuntos tratados nesses artigos, os quais alguns podem ser organizados em grupos:

  • I: Delimita o prazo de monopólio, os limites territoriais e determina algumas diretrizes sobre o que se fazer em caso da quebra do direito de exclusividade de navegação e comércio.
  • II: Direitos que a Companhia dispunha quanto ao seu território de ação.
  • III: A Companhia detêm autoridade para eleger seu governador-geral, vice-governador e outros cargos altos.
  • IV: Em caso da Companhia for atacada, enganada; os empréstimos não forem pagos, etc. Ela detêm autoridade de agir como bem achar certo, o que inclui o uso da força. 
  • V-VII: Designa o direito de formar exército e marinha próprios, como também as medidas a tomar com suas forças armadas e das forças de outros países que forem capturadas.
  • VIII-X: Alguns privilégios fiscais concedidos.
  • XI-XIV: Regulamentos sobre a organização das câmaras de diretores e o cargo de diretor. 
  • XV: Relatórios sobre a situação, equipamento e mercadorias transportadas pelos navios devem ser enviados a cada três meses as câmaras. 
  • XVI-XVII: Diretrizes para a realização do balanço geral, o qual deveria ocorrer a cada seis anos.
  • XVIII-XXIII: Deliberações sobre a convocação da Assembleia Geral, composta por 19 membros das câmaras. 
  • XXIV: Diretrizes para a publicação dos editais convocando investidores e acionistas.
  • XXV-XXVII: Das obrigações das câmaras. 
  • XXVIII-XXXVI: Dos deveres e restrições ao cargo de diretor.
  • XXXVII: Os generais e comandantes são obrigados em até um prazo de dez dias ao retornar para a Holanda, reportar sua viagem e tempo de serviço por escrito. 
  • XXXIX-XLIII: Diretrizes para em caso de haver guerra. 
  • XLIV: Cobrança de lealdade e equidade dos diretores. 
  • XLV: Retificação dos pontos anteriores. 
Escolhi alguns desses artigos para traçar alguns comentários sobre eles:


a) Organização geral:

"I. Dentro do prazo de 24 annos nenhum habitante dos Paizes Baixos Unidos ou do estrangeiro poderá, a não ser em nome da Companhia Unida, negociar e navegar nas costas e paizes da Africa, desde o Tropico de Cancer até o Cabo de Bôa Esperança, nem nos paizes da America ou Indias Occidentaes, a começar da extremidade Sul da Terra Nova, pelos estreitos de Magalhães, le Maire ou outras passagens e estreitos próximos até o Estreito de Anjan, tanto no mar do Norte como no mar do Sul, nem em algumas ilhas situadas de um e d'outro lado e entre ambos, e juntamente nas terras Austraes ou do Sul, que se estendem entre ambos os meridianos e attingem a Leste do Cabo da Bôa Esperança e a Oeste a extremidade oriental da Nova Guiné, inclusive". (LAET, 1912, p. 8). 


O primeiro ponto exprime os limites territoriais nos quais a WIC atuaria, como também apresentava o direito de monopólio pelo prazo de 24 anos. Não obstante, o restante do ponto um o qual não escrevi aqui por ser extenso, delibera das ações que devem ser tomadas em caso desse direito de monopólio for descumprido durante os primeiros 24 anos. Por exemplo, recomenda-se que se navios ou mercadores forem pegos comercializando sem autorização, suas cargas seriam confiscadas e até mesmo as embarcações. Em caso das mercadorias já terem sido vendidas, o valor pelo qual eles receberam pela venda das mercadorias, seria confiscado. A ideia era da WIC possuir controle o máximo possível.  


Em laranja a máxima extensão dos domínios coloniais holandeses.
"II. Além disso a referida Companhia em nosso nome a autoridade pode fazer contractos, pactos e allianças com os principes e naturaes dos paizes comprehendidos dentro dos limites já mencionados, e igualmente alli construir algumas fortalezas ou fortificações, admitir gente de guerra, nomear governadores e funccionarios de justiça e outros, para todos os serviços necessários á conservação das praças, manutenção da ordem e policia, distribuição de justiça e desenvolvimento do commercio, deportar e demitir funccionarios e collocar outros em seu logar, segundo achar convenientes ás circunstâncias, e além disso prover de população as regiões ferteis e deshabitadas e fazer tudo que for util ao paiz e o que o interesse e o adiantamento do commercio exigirem". (LAET, 1912, p. 8).

Percebe-se nesse ponto além do direito de promover contratos, pactos e alianças com os povos das terras as quais a Companhia tinha interesse; detinha-se o direito de se erguer fortificações e nomear funcionários nas suas colônias, como  também poderia enviar colonos para determinadas áreas. Aqui se ver que por mais que os Estados Gerais e os investidores da companhia foram contrários a proposta de povoamento de Ussenlincx, ainda assim, havia traços de suas ideias. Mas é importante lembrar que o número de colonos foi baixo, a maioria eram homens, e por outro lado, alguns não tinham interesse em viver nos trópicos por muito tempo, por reclamarem do calor e da "incivilidade" daquelas terras. Uns preferiram vir para as Américas, ganhar dinheiro e depois retornar para casa, algo visto também entre os portugueses, espanhóis, franceses e ingleses. 



“A Companhia das Índias Ocidentais estava autorizada, sob supervisão dos Estados Gerais, a manter guarnições militares, a dispor de navios de guerra, a indicar governadores, a celebrar alianças com povos nativos. Seu objetivo maior, exercer o monopólio na exploração e na navegação do comércio com as Américas e a África Ocidental, só poderia ser alcançado com a invasão, à ocupação militar e a exploração comercial das colônias portuguesas e espanholas. A Companhia das Índias Ocidentais não tinha apenas objetivos comerciais. Ela era uma máquina de guerra a serviço dos Países Baixos. Os Estados Gerais podiam encarregar-se, quando fosse necessário, do fornecimento de armas, munições, navios de guerra e tropas militares para que a Companhia das índias Ocidentais cumprisse sua finalidade, substituir a hegemonia ibérica pela hegemonia holandesa nas Américas e na África Ocidental. Aos comandantes e governadores a serviço da Companhia das índias Ocidentais, era exigido que eles prestassem u m juramento de dupla fidelidade, à Companhia e aos Estados Gerais”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 32). 

b) Organização militar:

"V. E como para o estabelecimento, segurança e defesa desse commercio, será preciso empregar tropas, proveremos a Companhia, segundo a sua situação do paiz e circunstâncias, de soldados e officiaes para o campo e para as fortificações, tanto quanto necessário, com a condição de serem pagos e mantidos pela Companhia". (LAET, 1912, p. 9).


Assim como a VOC, a WIC também dispunha do direito de formar seus exércitos e marinhas. De fato quando falamos das guerras luso-holandesas no Brasil, não foi uma guerra entre o governo espanhol e o governo holandês propriamente, mas entre o governo espanhol e uma companhia mercantil que representava os interesses econômicos do governo holandês. Os soldados e oficiais eram homens particulares, eram funcionários da Companhia. Era eram homens advindos de vários países da Europa, pois a baixa população da Holanda, não permitia com seu contingente formasse grandes exércitos. 


A população masculina holandesa era insuficiente para atender a crescente demanda econômica do país, fosse no setor rural, manufatureiro e comercial, logo, para contornar esse problema da falta de mão de obra, o governo autorizou a entrada massiva de emigrantes. No século XVII os Países Baixos era uma terra de oportunidades: grande disponibilidade de vagas de emprego, salários bons, prosperidade econômica, desenvolvimento social e cultural, tolerância religiosa, neste último caso, bastante importante para esse período da história europeia, pois a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) tivera entre alguns motivos para ser desencadeada conflitos religiosos entre católicos e protestantes; conflitos esses que vinham ocorrendo desde meados do século XVI. Sendo assim, por mais que os Países Baixos fossem predominantemente protestante, os católicos e judeus eram bem-vindos. 



"Entre 1600 a 1800, mais de 2 milhões de imigrantes foram para regiões centrais no oeste da República, com o objetivo de residir, trabalhar temporariamente ou servir em suas tropas, navios e colônias. Nesse período, entre as muitas regiões da Europa Ocidental, a área da República era vista como a mais atrativa, por conta da sua prosperidade econômica, melhores salários e de maior liberdade religiosa". (MIRANDA, 2011, p. 31-32).

Desses dois milhões de emigrantes, alguns milhares trabalharam apenas para a WIC. Bruno Miranda (2011, p. 36) indicou que entre 1629 a 1651 mais de 26 mil homens foram enviados ao Brasil, embora que nem todos fossem estrangeiros. Mesmo assim um número alto de emigrantes, e interessante pois normalmente quando estudamos as guerras contra os holandeses, tendemos a chamar todos os seus soldados de holandeses, mas em alguns casos, quase a metade das forças era formada de estrangeiros. 


"O próprio exército da República das Províncias Unidas, por exemplo, tinha percentuais de estrangeiros, entre suboficiais e soldados, flutuavam entre 40 a 60%, enquanto que as diferentes atividades da marinha, de guerra e mercante, e das companhias comerciantes neerlandesas - VOC E WIC - possuíam quantias semelhantes. Durante a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), a maioria dos corpos militares que lutavam contra as tropas do Império Habsburgo - também  formada por homens de diferentes localidade - não eram compostas somente de neerlandeses, mas por alemães, valões e outros estrangeiros. Regimentos inteiros de escoceses e ingleses serviram no exército das Províncias Unidas por muitos anos, embora os soldados neerlandeses não fossem tão raros". (MIRANDA, 2011, p. 40).


Além de soldados alemães, valões, escoceses e ingleses, houve soldados flamengos, franceses, dinarmaqueses, suecos, noruegueses, suíços, irlandeses, etc. Entre esse grande número de homens que engressaram nas forças armadas da WIC, alguns deles foram ao Brasil e se tornaram nomes conhecidos. Por exemplo Ambrósio Richshoffer, nascido em Estrasburgo (atualmente na França, mas na época dele pertencia ao Sacro Império), serviu no Brasil entre 1630 e 1632, tendo escrito um diário sobre sua viagem como soldado da WIC.  Considerado um dos mais importantes soldados que viajaram ao Brasil, devido ao relato que fez.


Johann Gregor Aldenburgk, nascido em Coburgo (Alemanha), participou da primeira invasão holandesa em terras brasileiras, realizada no ano de 1624 contra a cidade de Salvador, capital da Capitania da Bahia, e capital da Colônia do Brasil. Zacharias Wagener, nascido em Dresden (Alemanha), serviu no Brasil entre 1634 e 1641. Cuthbert Pudsey, de nacionalidad desconhecida, serviu no Brasil entre 1630 e 1640, tendo participado de várias batalhas importantes. Peter Hansen, dinarmaquês que serviu no Brasil entre 1644 a 1654. 


Percebe-se pela menção desses soldados que eles vieram de diferentes nacionalidades, mas também o fato que alguns deles chegaram a servir a Companhia por uma década apenas no Brasil, na colônia da Nova Holanda. O recrutamento militar das companhias era livre para qualquer homem que tivesse condições físicas e mentais de poder lutar. A maioria dos soldados que se alistavam tinham entre 18 e 30 anos, mas havia casos de homens e 15 anos ingressando nas forças armadas. Por exemplo, Richshoffer tinha 17 anos quando se alistou, já Hansen alistou-se com 19 anos. 


O modelo militar da WIC era o mesmo do exército holandês, seguindo o mesmo nível de comando hierarquico e funções para cada patente. Um soldado possuía chanche de subir de patente se fizesse um bom trabalho, embora muitos não conseguiram isso, pois morriam de doenças, desastres, ferimentos ou na guerra. O tempo de serviço não era extenso, Richshoffer serviu por dois anos e pediu baixa. No entanto, o soldado poderia renovar seu contrato. 


Os militares que ingressavam a serviço da WIC tinham que realizar um juramento para a Companhia e para o Estado holandês, estando passíveis de serem punidos por traição e deserção. Antes de ingressarem para as expedições os recrutas recebiam treinamento militar, recebiam sua farda, equipamento e armas. Dispunha de comandantes e navegantes de experiência. O exército da WIC não era o mais poderoso do mundo, mas era bem abastecido, municiado e equipado. Além disso, segundo é informado na carta-patente em caso de necessidade, o Estado poderia fornecer dinheiro, armas, munição, navios, equipamentos e soldados para reforçar as tropas da Companhia. 


Um outro aspecto a salientar é que a autonimia fornecida a Companhia, permitia que batalhas fossem travadas para se defender e conquistar territórios que interessassem a Companhia e o governo. Claro que declarações de guerra a colônias ou a nações estrangeiras era um assunto a ser debatido com cautela pela Assembleia Geral e representades do Estado. Por mais que se inicia-se uma guerra, a ideia era realizá-la com efeito de conquista em tempo curto, para se apoderar das terras almejadas. Realizar uma guerra que acabasse saindo do controle e durasse anos, era algo que a Companhia procurava evitar. A não ser que o prêmio fosse grande.


Por exemplo, no caso do Brasil, em 1624 invadiu-se e conquistou-se Salvador, mas no ano seguinte os holandeses foram derrotados pela Armada dos Vassalos enviada pelo rei de Espanha, Filipe IV. No entanto, o açúcar brasileiro era muito valioso, era o "ouro branco" da época. Cinco anos após a derrota em Salvador, a WIC retornou e dessa vez tomou Olinda e Recife em Pernambuco e ali se fixaram pelos próximos vinte e quatro anos. Durante essas quase duas décadas e meia de ocupação, várias batalhas foram travadas para se conquistar ou se manter os territórios conquistados. 



Em verde o território da colônia da Nova Holanda no Brasil (1630-1654).
c) Organização administrativa:

"XI. E para a Companhia se organise com um bom governo, para o maior interesse e satisfação de todos os co-participantes, ordenamos que o mesmo governo se componha de cinco camaras de Directores, a saber: uma de Amsterdam, que terá 4/9 partes da administração; uma da Zelandia, com 2/9; uma da Mosa com 1/9; uma da Hollandas Septentrional com 1/9; uma quinta da Frisia e Groninga com 1/9, nas condições determinadas no Registo das nossas resoluções e no acto que neste sentido se passou. As outras provincias devem ter tantos Directores distribuidos pelas mencionadas Camaras quantos cem mil florins houverem fornecido á Companhia". (LAET, 1912, p. 10). 


A Câmara de Amsterdã que era a maior, possuía 20 diretores, a da Zelândia contava com 12 diretores, e as demais câmaras de Mosa, da Holanda Septentrional, Frísia e Groninga dispunham de 14 diretores. Esses números foram pensados inicialmente durante a fundação da WIC, mas posteriormente foi aumentado ou diminuído conforme a necessida da época, pois a Companhia teve mais de cem anos de funcionamento.


Antigo prédio que serviu de armazém da WIC, em Amsterdã.
Cada diretor era encarregado de cuidar da administração da sua câmara, resolvendo assuntos administrativos, assuntos financeiros sobre importação e exportação, cuidando de pagamentos das mercadorias, equipamentos, armas, navios, funcionários; expedindo ordens para seus funcionários no país ou que estivessem em outras terras, etc. 

Os diretores recebiam gratificações por seu trabalho, recebiam diárias de viagem, desde que fosse exclusivamente para participar de reuniões com outros diretores, representantes do governo ou na Assemblea Geral; mas se fosse para outro serviço, mesmo relacionado a Companhia, eles não recebiam essa diária de quatro florins, como Laet (1912, p. 11-12). Se os diretores recebiam mercadorias em natura, como presentes, gratificações ou recompensas, deveriam publicar em um edital tudo que recebeu e o valor dessas mercadorias. O edital seria informado aos demais diretores e ao conselho geral.


Mas para se evitar a corrupção desses, proibia-se que eles vendessem bens particulares seus ou de familiares ou amigos, para a Companhia, assim como, também não poderiam comprar direta ou indiretamente os produtos que chegassem aos portos e armazéns da Companhia, podendo só adquirí-los em outros mercados. Os diretores também tinham que pagar seus caixeiros e guarda-livros com suas próprias gratificações. Em caso de um diretor fosse pego quebrando essas regras, eles poderiam perder suas gratificações durante o prazo de um ano, e até mesmo poderiam ser demitidos, passando a responder na justiça por seus crimes. 


Embora a WIC tentou combater a corrupção, ela não conseguiu extirpa-la totalmente. Quando Maurício de Nassau chegou ao Brasil em 1637, um dos objetivos dele como governador da Nova Holanda, era combater a corrupção que se espalhava pela colônia. Funcionários recebendo dinheiro e mercadorias ilicitamente, acordos de compra e venda de engenhos realizados de forma inapropriada, sonegação de impostos, abuso de poder, contrabando, etc. Todavia, Nassau conseguiu contornar muito desses problemas, durante os oito anos de seu mandato, mas após a sua saída em 1644, os velhos problemas retornaram a colônia.


Embora se falasse de uma "república unida das sete províncias", na prática havia uma grande disputa entre a Holanda e a Zelândia, assim como também entre as outras províncias. Por tal disputa política e econômica, preferiu-se ao invés de centralizar a administração da Companhia em uma determinada província, optou-se em federalizá-la, dividindo o controle administrativo entre cinco câmaras, no intuito de se evitar essas disputas. Logo, cada Câmara foi criada para apaziguar os ânimos dos políticos, sócios, investidores e acionistas. 


Cada Câmara na prática possuía as mesmas funções administrativas das outras, no entanto, cada uma dispunha de seu próprio pessoal, equipamentos e navios, como também, autonomia nas finanças, mas todas era obrigadas a fazer prestação de contas ao Conselho dos XIX e as demais câmaras. Por exemplo, durante a ocupação holandesa no Brasil, cada Câmara era responsável por enviar seus navios, homens e recursos. Embora todos fossem funcionários da WIC, cada um se reportava a sua Câmara. 


O número de diretores não era igual para todas as câmaras como visto, mas havia um conselho maior, chamado de Conselho dos XIX ou Senhores XIX (Heren XIX), o qual era composto por dezenove membros da Companhia, advindos das cinco câmaras, os quais debatiam os assuntos mais importantes, problemáticos, além de decidir o futuro das ações da Companhia. O fato de serem dezenove, devia-se a condição que em caso de houvesse empate numa votação, o décimo nono concederia o voto de minerva, ou se fosse o caso, pederia-se por uma nova votação. Além disso, desses dezenove, oito proviam da Câmara de Amsterdã a maior de todas, e os outros nove, advinham das demais câmaras.



“No Conselho Federal de Administração, os Senhores XIX, Amsterdã tinha oito representantes; Zelândia, quatro; as três pequenas câmaras dois cada; e os Estados Gerais, um. O Conselho Federal de Administração reunia-se de duas a três vezes por ano. Durante estas sessões, decidiam-se questões vitais para a Companhia das índias Ocidentais, como a adoção de diretrizes políticas, a preparação de expedições marítimas, a distribuição de dividendos. O Conselho também era responsável pela prestação de contas da Companhia aos acionistas, elaborada a partir dos registros contábeis fornecidos pelas cinco câmaras”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 34-35). 

“A política geral a ser seguida pela Companhia como um todo seria determinada pelo Conselho Federal de Administração, os Heren XIX, os Senhores XIX. O direito de voto de cada câmara no Conselho Federal de Administração seria fixado em função do capital subscrito em cada uma delas. A Holanda estava em condições de investir mais na Companhia das Índias Ocidentais do que as outras regiões dos Países Baixos. Sendo assim, ela desejava ter mais voz no Conselho Federal de Administração, determinando suas decisões. Amsterdã, capital econômica da região da Holanda e dos Países Baixos como u m todo, teria uma participação na companhia de 50 %; a Zelândia, principal rival comercial da Holanda, com Midelburgo como capital, ficaria com 25 %; e um grupo de cidades da Holanda e da Frísia Ocidental, uma região periférica dos Países Baixos, contaria cada um com uma participação de 12,50%. A intenção da Holanda era clara. Controlar com a maioria absoluta dos direitos de voto no Conselho Federal de Administração o processo de tomada de decisões que estabeleceria os rumos da Companhia das Índias Ocidentais”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 34).


NOTA: A WIC manteve suas operações até o ano de 1792.

NOTA 2: A VOC manteve suas operações até o ano de 1799.
NOTA 3: A colônia dos Novos Países Baixos foi perdida definitivamente para os ingleses em 1674. Embora que sua capital, a cidade de Nova Amsterdã havia sido capturada pelos ingleses em 1664, sendo renomeada para Nova York. 
NOTA 4: Com a expulsão dos holandeses do Brasil e o fim da Nova Holanda, a WIC concentrou sua atenção e recursos nas Antilhas e na África Ocidental, em regiões como Costa da Mina, Congo e Angola. Nas Antilhas a Companhia desenvolveu seus canaviais os quais passaram a concorrer com a produção brasileira, afetando os senhores de engenho brasileiros; em África, a Companhia investiu principalmente no comércio de escravos.
NOTA 5: Os portugueses encerraram as hostilidades oficialmente com os holandeses ao assinarem o Tratado de Haia de 1661, no qual a Holanda e a WIC se comprometiam em não mais tentar invadir o Brasil e outras colônias lusas. Embora que Portugal para firmar tal tratado, teve que pagar uma indenização aos holandeses. 

Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A Companhia das Índias Ocidentais: uma sociedade anônima? Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 105, 2010, p. 25-38.
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. O apogeu dos Países Baixos e a Companhia das Índias Ocidentais. Revista do IHGB, a. 173, n. 454, 2012, p. 45-72. 
BLACK, Jeremy. European Warfare, 1494-1660. New York: Routledge, 2002.
BOXER, Charles Ralph. O império marítimo português: 1415-1825. Tradução de Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Séculos XV-XVIII, vol. 3 (O Tempo e o Mundo). Tradução Telma Costa. São Paulo, Martins Fontes, 1998. 
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GELDEREN, Martin Van. The political thought of the Dutch Revolt: 1555-1590. New York: Cambridge University Press, 1992.
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 17ª ed, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.
KEEGAN, John. Uma história da guerra. Tradução de Pedro Soares Maia. São Paulo: Companhia das Letras 1995.
LAET, Joannes de. Historia ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes desde seu começo até o fim do anno de 1636, vol. I. Traduções de José Hygino Duarte Pereira e Pedro Souto Maior. Rio de Janeiro: Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro/Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional, 1912. 13v.
MELLO, Evaldo Cabral de. O bagaço da cana: os engenhos de açúcar do Brasil holandês. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2012. 

MIRANDA, Bruno Romero Ferreira. Gente de Guerra: Origem, cotidiano e resistência dos soldados do exército da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654). 2011. 397 f. Tese (Doutorado em História) – Institute of History/Faculty of the Humanities, Leiden University, Leiden, 2011.

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SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza: a cultura holandesa na época de ouro. Tradução Hildegard Feist. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.