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Leandro Vilar

quinta-feira, 25 de maio de 2017

A caça às bruxas: XV-XVIII

Por quase quatro séculos mulheres foram perseguidas na Europa e em algumas colônias europeias, acusadas de praticarem "magia negra" (maleficium) e/ou por terem feito um pacto diabólico. Apesar de os estudos sobre a caça às bruxas terem progredido muito nas últimas décadas, ainda hoje consiste um tema que volta e meia leva historiadores, antropólogos e outros estudiosos a retomá-lo para abordá-lo sob novas perspectivas ou corrigir erros. Não obstante, o fenômeno da caça às bruxas ainda é envolto em equívocos para o senso comum. Não é difícil encontrar sites, blogs, chats, etc., que disseminam informações erradas ou discursos desconexos sobre tal acontecimento. 

Anteriormente no texto Magia, Feitiçaria e Bruxaria na Europa medieval e moderna, eu abordei as noções conceituais sobre magia, feitiçaria e bruxaria, chegando até mesmo a tratar brevemente da caça às bruxas. Neste trabalho em questão retomarei o tema da caçada a bruxaria, dessa vez o explanando de forma mais ampla e profunda.

1. Introdução: a polêmica antimágica

“Assim, a polêmica antimágica refere-se ao fenômeno histórico no qual o termo magia foi, desde sua origem no ocidente, não só alvo de ataques, de oposição religiosa, social, política, mas, principalmente, ele próprio usado como uma categoria de exclusão, uma ferramenta de controle social para designar, estigmatizar e marginalizar as ideias, crenças, práticas e comportamentos pertencentes ao Outro – o inimigo, o estrangeiro, o herege, etc. ou para estigmatizar crenças e práticas não aceitas, de forma geral. Essa narrativa serve não só para estigmatizar um oponente, mas, principalmente, para definir por contraste ao Outro a própria identidade cultural, religiosa, social, étnica, etc., ou seja, para definir o Eu. E, obviamente, na oposição ao Outro e seus estigmas, a identidade do Eu é definida de forma positiva”. (RAMALHO, 2016, p. 1). 

Não entrarei no debate historiográfico e antropológico desse discurso, que apesar de ser antigo, ele foi sendo ressignificado e atualizado ao longo da história tanto pelo senso comum quanto pelos próprios estudiosos. Marcos Pasi (2016) e Wouter Hanegraaff (2005) comentam acerca do desenvolvimento desse debate no campo da antropologia desde o século XIX, época que teve início estudos para tentar definir o que seria a magia, mas apesar de que famosos antropólogos da época como George J. Frazer (1854-1947) e Edward B. Tylor (1832-1917), alguns dos pioneiros nos estudos acadêmicos sobre a magia, ainda assim, atribuíam uma carga depreciativa e preconceituosa para esse saber e crença. 

O que nos interessa a respeito da polêmica antimágica diz respeito de que a noção Ocidental de magia como algo sombrio, diabólico, maléfico, pernicioso, supersticioso, primitivo, herético etc., foi desenvolvida a partir do posicionamento de instituições, códigos, líderes, estudiosos e livros que abominavam tais práticas e seus praticantes. De fato, a bruxaria é um bom exemplo para se entender como a polêmica antimágica europeia do século XIV, tornou a feitiçaria em algo maléfico e diabólico. Que resultou no século seguinte no início da caça às bruxas, mas também na própria definição de bruxaria e bruxa que ainda hoje conserva alguns aspectos. 

Como muita coisa a respeito dessa polêmica antimágica foi apresentada no meu trabalho anterior, optei em comentar de forma breve alguns acontecimentos importantes, mas acrescentando novos dados. 

Desde que a Igreja Romana passou a expandir seus domínios e influência sobre a Europa a partir do século IV, o clero esbarrou em diferentes práticas mágicas e religiosas, pois a Europa ainda era um continente pagão (aqui usei o termo no sentido de se referir a aquilo que não era cristianizado), tendo levado séculos para que o cristianismo pudesse apresentar uma hegemonia sobre as nações europeias. Mas a medida que estes séculos foram passando e o processo de cristianização tenha avançado de forma pacífica ou agressiva, ainda assim, não significou que de uma hora para a outra as pessoas tivessem abandonado suas crenças pagãs. Em distintos locais do continente, as pessoas ainda prestavam cultos aos antigos deuses, realizavam ritos, ofereciam oferendas e sacrifícios, celebravam cerimônias relacionadas as suas antigas crenças. (LE GOFF, 2007, p. 19-22; GINZBURG, 1991, p. 83-85). 

Em meio a essa manutenção de antigos costumes e crenças advindos dos hábitos pagãos destes povos, a prática da magia foi um destes costumes que se manteve-se. Apesar de a Igreja em dados momentos ter solicitado de seus clérigos procurar combater esses costumes pagãos, algo como Carlo Ginzburg (1991, p. 83) observou no século X, com o De synodalibus causis et disciplinis ecclesiasticis libri duo, o qual exortava os padres e bispos a instruir os fiéis a não realizarem mais tais costumes, ainda assim, não significou que as pessoas os tivessem abandonado ou a Igreja promoveu um combate a tais práticas. Esse combate somente começaria a se desenvolver no século XII, quando a inquisição foi estabelecida para investigar seitas heréticas, como o Catarismo e o Valdinismo, ambas situadas na França. Ainda assim, as inquisições naquele tempo não estavam interessadas em investigar se a feitiçaria seria algo ruim ou não. A realidade começou a mudar no século seguinte. 

Durante o século XIII com o avançar do combate da Igreja Católica as seitas heréticas que ganhavam adeptos em distintos Estados do continente, especialmente na Itália, Suíça, França e Alemanha, a magia e outros costumes pagãos começaram a cair na mira dos inquisidores, os quais passaram a ampliar seu escopo de atuação. Inicialmente se a missão era combater pessoas que estavam aderindo a seitas as quais distorciam o dogma católico e os Evangelhos, agora passava a se investigar outras manifestações de blasfêmia e heresia, que envolveria supostamente um pacto diabólico. 


Gravura medieval representando a expulsão dos cátaros de Carcassonne, França, no ano de 1209. O Catarismo foi uma das seitas mais influentes na Europa entre os séculos XI e XIII. 
Embora práticas mágicas fossem comumente realizadas no cotidiano, como o uso de encantamentos de cura, preparo de elixires, poções, emplastros, para tratar problemas de saúde; adivinhações, encantamentos para fornecer sorte no amor, no trabalho, proteção do lar, da família, proteção contra o "mau olhado", a inveja, os inimigos, etc. Ao ponto de terem se tornado tão habituais que muitas pessoas não considerassem isso algo ruim, uma heresia ou um problema, porém, algumas pessoas consideravam que determinadas práticas mágicas fossem usadas para se causar malefícios. (PAGE, 2017, p. 29). 

Num primeiro momento a Igreja começou a investigar esse uso nocivo da magia. Apesar de que a ideia de que a magia fosse algo ruim era bem antiga. Na própria Bíblia, no Antigo Testamento há trechos que falam mal do uso da magia e outras práticas a ela envolvida. Com isso, clérigos retomaram esse discurso como Santo Agostinho, São Isidoro de Sevilha, São Jerônimo, e no caso do século XIII, temos o papa Gregório IX e São Tomás de Aquino

No ano de 1232, o papa Gregório IX expediu o decreto Vox in Rama, denunciando práticas sinistras e diabólicas no Sacro Império (a grosso modo, Alemanha), envolvendo supostamente um rito com gatos pretos. Posteriormente, São Tomás de Aquino no tratado De Malo (Sobre o Mal), parte da Suma Teológica (1275), condenava a prática de adivinhação e da "magia negra" (maleficium), alegando que ambas seriam inspiradas pelo Diabo. Tal discurso é bastante antigo, Santo Agostinho, entre outros doutores da Igreja já haviam associado determinadas práticas mágicas como sendo fruto da influência malévola de Satanás. (BAILEY, 2015, p. 365-368). 

Mas apesar da publicação dessas obras, a magia ainda continuava a ser tolerada desde que não fosse praticada para intenções maléficas. Ao mesmo tempo em que ainda não havia uma associação clara entre a feitiçaria e o Diabo. A realidade começou a mudar no século seguinte. 

"Em 1326, o papa João XXII expediu a bula Super Illius Specula, na qual decretava que a feitiçaria era oriunda da influência maléfica de Satanás, o qual através de suas mentiras enganava as pessoas e fazia que outras acreditassem nos poderes mágicos de feiticeiras e feiticeiros, os quais estavam ao seu serviço. Na época que a bula de João XXII foi promulgada, parte da Europa vivenciava um período de histeria, principalmente na França, devido ao suposto complô dos leprosos com judeus e muçulmanos; ao mesmo tempo, a inquisição episcopal desde o século XIII, já vinha perseguindo seitas heréticas no sul da França e no norte da Itália, logo, todo esse cenário de desconfiança já estava bem estabelecido". (VILAR, 2015). 

"A bula Super Illius Specula não teve efeito imediato, mas os fundamentos da perseguição a "magia negra" estavam lançados. Nas décadas seguintes, começaram a surgir termos para se referir aos praticantes de magia; as feiticeiras passaram a serem chamadas de strigestixstriastriga, termos depreciativos que aludiam as mulheres que participavam da "caçadas noturnas de Diana", ou participavam de "atividades misteriosas e ilícitas durante a noite", em ambos os casos, essas histórias já comentadas anteriormente seriam usadas para originar o sabá ou"missa negra", algo que trataremos adiante. Por sua vez, a palavra magus foi corrompida pelos clérigos e tornou-se maleficus, termo pelo qual passou-se a se referir a feiticeiros e feiticeiras em alguns documentos ainda no século XIV e começo do XV". (HUNCIAU, 2009, p. 78).

A partir de todas estas noções apresentadas nessa breve introdução, teve início ainda no século XV a Caça às Bruxas. Na próxima parte desse texto conheceremos alguns fatores que contribuíram para a instauração de uma perseguição as bruxas, sendo que essa perseguição ora era de caráter individual, mas houve casos de denúncias coletivas. Veremos como essas denúncias procediam para depois passar para a parte de como os julgamentos eram realizados. 

2. Fatores para o desencadeamento da caça às bruxas: 

Da mesma forma que tentar definir as origens da bruxaria consiste em algo complicado e sem conclusões definitivas, como Carlo Ginzburg assinalou após um estudo de longevos quinze anos para escrever seu livro História Noturna (1991), Brian Levack (1988, p. 3) também salienta que definir os fatores que levaram a caça às bruxas ainda não são conclusivos, pois os historiadores por muito tempo tentaram procurar padrões que justificassem que as perseguições teriam começado pelos mesmos motivos nos distintos territórios europeus e em suas colônias. Todavia, Levack em alguns de seus livros apresentou que cada país iniciou a caça por fatores distintos. Entretanto, ele enumerou alguns acontecimentos centrais que influenciaram vários países. Acerca destes comentarei a seguir. 

a) Intolerância com os praticantes de magia: 

Um dos primeiros fatores para entender o início da caça às bruxas é saber que a perseguição a praticantes de magia não teve início com a bruxaria, essa perseguição já vinha ocorrendo a bastante tempo. O historiador das religiões Richard Keickhefer em seu livro Magic in Middle Ages (1989), aborda ao longo da obra as manifestações da magia na Europa medieval, apontando como a magia foi praticada de diferentes formas e para diferentes intuitos, o que incluiu também o uso da magia como charlatanice, como entretenimento nas cortes e praças através de truques de mágica; o estudo da astrologia, da alquimia e da magia natural (de caráter filosófico). 

Por tal viés, Kieckhefer observava que a magia no período medieval era encarada de distintas formas: curandeirismo, misticismo, filosofia, poderes sobrenaturais, mágica, charlatanice, adivinhações, magias de boa sorte e de proteção, mas havia casos de que a magia também era usada para fazer o mal, e foi nesse ponto que a situação começou a piorar no século XIII e no XIV, desencadeando denúncias e processos. 

Nesse ponto Kieckhefer (2011, p. 94) observou que diferente do que se supôs a maioria das denúncias nos primórdios do século XIV, não advieram totalmente da zona rural, mas também vieram de regiões razoavelmente urbanizadas e até dos burgos, como no caso da Suíça, uma área bem povoada entre a França, Itália e Alemanha, apesar de ser um território montanhoso. Embora as denúncias vindas de feudos e vilas predominaram no século XIV, ainda assim, a existência de denúncias ocorridas em cidades ou nas suas cercanias revela que o temor a feitiçaria não era algo exclusivo de camponeses iletrados, ignorantes e supersticiosos. A população nas cidades possuíam em alguns casos um grau maior de instrução, mas ainda assim, estiveram suscetíveis aos mesmos temores.

Os motivos para denúncias eram variados. Mulheres acusadas de contactar espíritos para realizar curas, feitura de poções do amor, de boa sorte e de proteção; superstição (crime um tanto complicado de definir, pois o que exatamente seria superstição para a Igreja na época?), encantamentos nocivos, maldições, "mau olhado", morte de animais, desaparecimentos, assaltos, assassinatos etc. Tais casos ocorreram  em diferentes países como Itália, França, Suíça, Alemanha, Inglaterra, só para citar alguns lugares. (KIERCKHEFER, 2011, P. 95-97). 

Outro fato importante a ser comentado diz respeito ao questionamento que até pouco tempo era motivo de debate: a caça às bruxas foi motivada por paranoia e superstições, ou as pessoas realmente acreditavam que Satanás estava tramando algo? Hoje em dia se sabe que a caça às bruxas contou com histeria coletiva, paranoia, fanatismo, intolerância, pois com base no número de acusações e sentenças, muitas mulheres foram inocentadas de tais crimes, e as que foram sentenciadas com alguma pena, suas confissões como veremos eram dúbias e inexatas. Mas isso significaria que a bruxaria não existia? Que foi uma invenção do clero? Não exatamente. 

Como já mencionado anteriormente neste texto, a magia sempre foi praticada na Europa por distintos povos, desde a Antiguidade. Apesar de que nem todo mundo acreditasse que ela fosse real, pois havia charlatões, ainda assim, havia gente que acreditava. Logo, em alguns depoimentos de supostas bruxas, as acusadas diziam que realmente sabiam praticar magia, tinham feito um pacto diabólico e possuíam poderes. Como havia a crença de que realmente isso pudesse ser real, então não seria uma mera superstição ou ignorância (apesar de que hoje em dia o seja), pois a mentalidade da época aceitava tais possibilidades como realmente verídicas. É preciso situar os acontecimentos em seu tempo, pois algo que para nós hoje parece ser incompreensivo, em seu tempo, não o era. 

Nesse sentido, Carlo Ginzburg (1991) assinala que além desse fator de realmente as pessoas acreditarem que a magia existisse e pudesse funcionar, havia gente que também acreditava que essa função fosse tanto positiva quanto negativa. Entretanto, apenas isso não bastaria para iniciar uma perseguição as feiticeiras e feiticeiros. Deveriam ter outros fatores. 

b) Fanatismo, paranoia e xenofobia:

Nesse ponto Ginzburg (1991, p. 87-90) comenta que desde o século X pelo menos, encontravam-se relatos lendários e folclóricos de mulheres que se reuniam à noite em florestas para cultuar antigas deusas pagãs; de mulheres que voavam ou se transformavam em animais; de épocas do ano que fantasmas e os mortos saiam de seus túmulos para participar de marchas ou caçadas selvagens. Tais elementos continuaram a serem contados e posteriormente absorvidos pelo imaginário da bruxaria. 

Além disso, os séculos XI ao XII também foram marcados pela paranoia do "fim do mundo". Supostas tradições alegavam que o Apocalipse ocorreria por volta do ano 1000, com isso em distintos lugares da Europa ocidental, as pessoas começaram a se mostrar preocupadas com a chegada do Anticristo, de Satã e o Juízo Final

"Crenças milenaristas ou quiliásticas (termos derivados das palavras latina e grega para um milhar) existiram na Igreja primitiva e receberam renovado impulso quando se avizinhou o ano 1000. As principais idéias envolvidas estavam relacionadas com “a segunda vinda do Cristo”, a noção de um período apocalíptico de luta entre o Cristo e o Anticristo, entre o Messias e Satã, e o estabelecimento de uma nova Jerusalém na Terra. Elementos do pensamento milenarista subsistiram ao longo de toda a Idade Média, na maioria dos movimentos reformistas religiosos, e estavam normalmente associados a uma excessiva austeridade, a uma expectativa de um final catastrófico para a sociedade existente, e coincidindo, com freqüência, com períodos de intensa convulsão econômica e social". (LOYN, 1990, p. 519). 

Mas para além desses fatores de ordem imagética e religiosa, Ginzburg (1991, p. 40-42) também salienta que o combate a seitas heréticas, supostos complôs de judeus, leprosos, marginais e muçulmanos que pretendiam tomar o poder ou envenenar os cristãos, também ocorriam em determinadas regiões da França, Itália e Suíça, causando pânico e revolta, os quais resultaram em medidas drásticas de expulsão de judeus de algumas cidades, assim como, o banimento dos leprosos, mendigos, ciganos e até mesmo a proibição de estrangeiros, mesmo que estes fossem cristãos. 

Tais acontecimentos foram pontuais, mas ocorreram entre os séculos XIII e XIV. Em alguns casos, as acusações alegavam que estes "párias" estariam praticando "magia negra". Porém, havia casos de que até mesmo pessoas de renome foram acusadas de blasfêmia, de conspirar contra a cristandade, de traição, apostasia e supostamente terem feito um pacto diabólico. 

Um caso que se tornou bastante polêmico na França e repercutiu na Europa, foi a perseguição a Ordem dos Templários (1307-1314), uma das ordens militares mais respeitadas da época, que de repente tornou-se alvo do rei Felipe IV da França e do papa Clemente V. De fato a perseguição a ordem partiu por questões políticas, econômicas e pessoais do rei e do papa contra a ordem, entretanto, ambos se valeram da religião para condenar os templários, acusando-os de distintos crimes de heresia, incluindo supostamente um pacto diabólico. Ora, se uma grande ordem militar como os Templários foi alvo do pecado - embora tenha sido armação, mas para a época que a população nada sabia das reais intenções - realmente era um choque em tanto. Aqueles devotos monges-guerreiros foram tentados pelo Diabo, o que dizer do restante da população? 


Miniatura francesa do século XIV, mostrando dois templários sendo queimados na fogueira. 
Outro fator que contribuiu em parte para o medo de praticantes de magia, dizia respeito aos anos que a Peste Negra assolou o continente. Dos anos de 1347 a 1351 surtos da terrível peste acometeram várias cidades pelo continente, e mesmo passado a epidemia, anos depois, focos da peste volta e meia eclodiam em alguns lugares mesmo no século XVII. Porém, o auge da peste foi no século XIV. No período que a peste tornou-se uma epidemia, as pessoas começaram a imaginar os motivos para tão terrível calamidade. Uns consideravam que fosse culpa de Deus, o qual estava punindo a humanidade, outros diziam que era ação do Diabo; outros que era o prenúncio do fim dos tempos; outras teorias falavam de gases venenosos, água envenenada, setas envenenadas atiradas por anjos ou por demônios, magia negra etc. (DELUMEAU, 1989, p. 110-112). 

Apesar de perseguições a feiticeiras e feiticeiros já viessem ocorrendo desde 1300 pelo menos, os períodos da Peste Negra, curiosamente não tiveram surtos de perseguição aos praticantes de magia, mas existem relatos de acusações contra judeus, ciganos, estrangeiros, pobres etc., de supostamente estarem cooperando com os planos malignos de Satã para espalhar essa praga. Isso somou-se a histeria, pânico e medo que rondavam os anos do auge da peste negra. 

Entretanto, este fator por si só não é uma determinante para desencadear a caça às bruxas no século seguinte. Era necessário haver alguém que dirigisse as acusações, realizasse os julgamentos e executassem as penas. Se a feitiçaria começava a ser encarada como uma heresia, um crime, deveria ter uma "polícia" para punir esses criminosos. E essa polícia já existia, era a inquisição.

c) Reforma judicial: 

A primeira inquisição foi convocada no ano de 1184, pelo papa Lúcio III, com o objetivo de combater práticas heréticas difundidas por seitas surgidas no sul da França e noroeste da Itália, especialmente os albigenses e os cátaros. Em tais localidades as pessoas estavam difundido práticas que discordavam do dogma católico ao mesmo tempo em que clérigos como padres e bispos estavam aderindo a tais posicionamentos contrários a Igreja. No ano de 1233 o papa Gregório IX criou a Inquisição Papal, tornando regular a convocação e estabelecimento desses tribunais especiais para averiguar denúncias de heresias. (VILAR, 2012). 

No século seguinte as inquisições episcopais foram se profissionalizando e no ano de 1376, o teólogo e inquisidor catalão Nicolas Eymerich (1320-1399) publicou o Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores), obra que passou a definir e guiar a atuação dos inquisidores e de seus tribunais, pois até então não havia um código modelo pelos quais os inquisidores deveriam se guiar para agir nos processos. Robert Mandrou (1979) comenta que o manual escrito por Eymerich foi bastante importante para que as inquisições melhor se organizassem e intensificassem suas atuações, até se tornarem em instituições nacionais no século seguinte. 


Frontispício do Directorum Inquisitorum, numa edição de 1595, impressa em Veneza. 
Brian Levack (1988, p. 68-71) comenta que não foi apenas a institucionalização dos tribunais inquisitoriais que contribuíram para a caça às bruxas, mas a própria forma como os tribunais eclesiásticos e laicos passaram a atuar após o século XIII, já conotou diferenças. Com a reformulação do Direito Canônico e a revisão do Direito Romano, a justiça no final do medievo começou a passar por reformas para atualizar sua forma de atuação, uma dessas mudanças destacadas por Levack, foi a adoção do processo de inquérito, o qual instituiu um modelo de desenvolvimento processual para avaliar as denúncias, colher fontes, interrogatórios, testemunhas, procedimentos de julgamento e por fim sentenças de maneira mais eficiente do que até então era realizado na maioria dos países europeus. 


“Conforme o princípio da acusação, caracterizador da justiça da Idade Média, um crime penal era somente uma ofensa da pessoa particular que sofria o crime, ou seja, uma questão, quase exclusivamente, dela, que acusava (do Latim accusare) aquele sujeito que a tinha ofendido pessoalmente por meio do crime, diante do tribunal, requerendo uma reparação. Segundo o princípio de inquisição, que neste contexto não indicava uma justiça eclesiástica, os crimes se tornaram uma questão oficial. Tinham de ser inquiridos (do Latim inquirere) de ofício, sem uma própria acusação daquele que foi ofendido. Ou seja, a autoridade era obrigada a abrir um processo criminal. Além desse princípio oficioso, o processo da inquisição (desenvolvido primeiramente na justiça eclesiástica no fim do século XII) era caracterizado pelo princípio da instrução, isto é, “o dever dos órgãos da justiça inquirir a verdade objetiva das acusações e indagar realmente as circunstâncias de um fato.” Estes dois princípios tinham se desenvolvido e unificado na Idade Média”. (MAINKA, 2002, p. 120). 

“Ainda mais importante do que a adoção das novas modalidades de iniciação de ações penais foi a oficialização de todos os estágios do processo judicial uma vez a queixa tendo sido apresentada. Em vez de presidir sobre um conflito entre duas partes privadas em que o resultado, ao menos em teoria, era entregue às mãos de Deus, os oficiais do tribunal - o juiz e seus subordinados - passaram a assumir a investigação do crime e a determinação da culpabilidade ou não do réu. Eles o fizeram principalmente através de interrogatórios secretos tanto do acusado como das testemunhas disponíveis, registrando seus depoimentos por escrito. Dessa forma, as evidências da causa eram investigadas e, depois, avaliadas, com base em regras cuidadosamente formuladas de modo a determinar a culpabilidade ou não do réu e sentenciá-los. O processo, portanto, não apenas era totalmente oficializado como também racional. O homem passou a utilizar seu próprio juízo, condicionado pelas regras racionais do Direito, para julgar o crime. Não é de surpreender, portanto, que o crescimento do novo sistema estivesse intimamente relacionado, como causa e efeito, à emergência de um corpo de literatura científica legal. Ele esteve ainda relacionado ao grande florescimento dos profissionais da lei”. (LEVACK, 1988, p. 69).  

Por tal perspectiva, os tribunais eclesiásticos e seculares estavam devidamente organizados ainda no século XV, para dar início as investigações contra a bruxaria. Aqui se faz necessário comentar dois aspectos importantes. Primeiro, é que não foi apenas os tribunais eclesiásticos que executavam os processos de crimes envolvendo "magia negra" e bruxaria, tribunais civis (ou seculares) também faziam isso. (LEVACK, 1988, p. 80). 


“Uma vez que os tribunais seculares possuíam jurisdição sobre a magia e o maleficium, e já que voluntariamente prestavam serviços indispensáveis aos tribunais eclesiásticos no julgamento dos hereges, naturalmente assumiram um papel importante no julgamento de bruxas. Quando a caça começou, no século XV, os processos ocorriam não apenas nos tribunais dos inquisidores papais e nos tribunais episcopais, mas também em diversos tribunais municipais. As famosas campanhas de caça à bruxas de Kramer e Sprenger, na Alemanha, na década de 1480, sancionadas diretamente pelo Papa Inocêncio VIII em sua bula de 1484”. (LEVACK, 1988, p. 81). 

E tal perspectiva começou a crescer no século XVI, com algumas reformas penais promovidas por países como Alemanha, Espanha e Inglaterra, que acabaram por influenciar nações vizinhas. Podemos destacar o código penal do imperador alemão Carlos V, o Constitutio Criminalis Carolina (1532) e as Ordenações Filipinas (1595) de Felipe II de Espanha e Portugal. Nestes códigos penais seculares, a feitiçaria, a "magia negra" e a bruxaria passaram ser incluídas como crimes civis e não apenas de ordem religiosa e espiritual. Tal aspecto é importante, pois outorgou aos tribunais seculares a autoridade de caçar às bruxas independente de autorização eclesiástica. 

Outro aspecto a ser comentado também é que além dos tribunais inquisitoriais da Igreja Católica e os tribunais seculares, as igrejas protestantes e em menor número a Igreja Ortodoxa Russa, também participaram da caça às bruxas. Após a Reforma Protestante iniciada em 1517 com Martinho Lutero, primeiro a Alemanha, depois os Países Baixos, a Inglaterra e a Escócia romperam com Roma. Com isso as autoridades passaram a preferir utilizar a justiça secular para julgar as bruxas, já que não possuíam tribunais inquisitoriais. Porém, apesar de serem nações protestantes, isso não foi motivo para aumentar a tolerância religiosa, como veremos adiante, países protestantes mataram tantas bruxas quanto países católicos. 

Não obstante, além da atuação dos tribunais se fez necessário difundir e definir o que seria a bruxaria. Era necessária uma literatura que explicasse tão terrível heresia, como ela deveria ser identificada, combatida e julgada. 

d) Conceitualização da bruxaria como heresia:

A novidade é que nos séculos XIII e XIV esse antigo discurso de que a magia seria oriunda de forças diabólicas retornou com força total, dando origem as ideias que temos de Satanás, demônios, Inferno, Purgatório etc. Como apontado pelo historiador Jacques Le Goff (1989) o período que vai dos séculos XI ao XIV é uma época de transição no pensamento teológico, de uma "reforma católica". O Direito Canônico passou por revisão, novos livros de teologia foram escritos, a filosofia platônica e aristotélica voltaram a ficar em evidência, debate teológicos proliferaram sobre distintos temas; houve o confronto com seitas religiosas; manifestação de ideias apocalípticas; surgimento das inquisições etc. Somando a tais questões teológicas tivemos o surgimento da Demonologia

James Sharpe (2017, p. 65-68) comenta que a demonologia surge como parte das mudanças teológicas, dogmáticas e da tentativa da Igreja de tornar seu pensamento mais "erudito". Neste caso a demonologia seria considerada a "ciência" que estudaria os demônios. Neste caso as principais ideias da demonologia como aponta o autor, era fornecer listas de classificação dos demônios, explicar sua origem, as formas como eles se manisfestavam no mundo, meios de identificar a possessão demoníaca, métodos de praticar o exorcismo, recomendações para não cair nas mentiras e nas tentações dos demônios, meios para identificar um pacto diabólico, como proceder na caça às bruxas e no combate da bruxaria etc. 

Neste caso a demonologia começou a surgir por volta do século XV, em data ainda incerta, mas ganhou destaque nos séculos XVI e XVII. Gerhild Williams (2013, p. 1) comenta que os primeiros escritos surgiram na década de 1430, mas eram relatos breves os quais ainda estavam por inaugurar essa área dos estudos religiosos. No entanto ele aponta que na segunda metade do XV, alguns importantes trabalhos já haviam sido publicados como o  Flagellum Maleficorum (O Flagelo dos que Praticam o Mal) de 1462, e o Quaestio de Strigis (Uma Investigação sobre as Bruxas) de 1470. Posteriormente teríamos a publicação do Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas) de 1487, obra crucial para instituir a bruxaria. 

Outra obra importante foi o Formicarius (1475), livro escrito pelo padre e teólogo dominicano alemão Johannes Nider (c. 1380-1438), no qual o clérigo travava de vários aspectos referentes a bruxaria. A obra foi escrita entre 1435 e 1436, mas apenas vários anos depois foi publicada, mas antes de ser efetivamente publicada, já havia sido mencionada por outros autores. Neste livro em forma de diálogo, entre um teólogo e um homem leigo, o autor introduziu várias informações baseadas na realidade social, cultural e no imaginário de sua época, abordando lendas, questões sociais, superstições etc., todavia, no capítulo 5 ele se dedicou a falar exclusivamente sobre magia e bruxaria. (GINZBURG, 1991, p. 68-69).

Em seu livro nota-se claramente o discurso de Nider em creditar a bruxaria como sendo as práticas mágicas para intuito maléfico e associadas por um pacto com o Diabo. No entanto, além de reforçar todo essa ideia que vinha desde 1326 sendo construída, o historiador Carlo Ginzburg (1991, p. 69) assinala que na obra de Nider, encontramos uma das primeiras menções sobre supostas "seita de bruxas". Nider como coletou suas informações a partir de relatórios eclesiásticos e inquisitoriais, encontrou menções a tais grupos, então reuniu as informações acerca e as redigiu em sua obra. Tais informações são um prenúncio do que ficaria conhecido como sabá

Em dezembro de 1484, o papa Inocêncio VIII (1432-1492) expediu a bula Summis Desiderantes Affectibus, documento o qual estipulava oficialmente a existência da bruxaria e exigia medidas cabíveis para combater essa maldade. (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 24). A bula pautava-se em cinco prerrogativas:


  1. A bruxaria era real, e seus adeptos eram heréticos e apostatas (traidores da fé cristã), os quais passaram a servir a Satã;
  2. As heresias deveriam serem exterminadas para que assim a boa conduta cristã pudesse prevalecer, guiando os homens para o bem e a salvação;
  3. Autorizou que os inquisidores por quaisquer meios investigassem, julgassem e punissem os heréticos. Autorizava que os monges dominicanos Heinrich Kramer (1430-1505) e Jacob Sprenger (1436-1495), redigissem um manual para se explicar o que era a bruxaria e as formas de combatê-la;
  4. Desconsiderou todas as afirmações que alegavam que a bruxaria não existia, e consistia em fanatismo, alucinações e superstições;
  5. Exigia empenho dos inquisidores e clérigos que não pertencessem a inquisição, que pregassem a palavra de Deus por todas as igrejas e combatesse as heresias. 
A publicação da bula Summis Desiderantes Affectibus resultou no surgimento do principal livro para se combater a bruxaria, o Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), obra redigida por Heinrich Kramer Jacob Sprenger, entre os anos 1485-1486 e publicada em 1487. Este livro foi republicado ao longo de um século, como algumas pausas de anos entre uma edição e outra, mas ainda assim, tornou-se no século XVI a principal referência para os estudos de bruxaria, aqui no sentido no conceito dessa heresia, de como identificar as bruxas, de como investigá-las e puni-las. (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 25). 


Frontispício de uma edição do Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas).
Com o Martelo das Bruxas (1487) foi definitivamente instituído que a bruxa era uma mulher que praticava apostasia (renunciava a própria fé, neste caso, o cristianismo), faria um pacto com o Diabo, em troca de aprender suas artimanhas e "magia negra", tornaria-se sua serva, participando de seus rituais nefastos como o sabá. (BAILEY, 2015, p. 375). 

Apesar deste ter sido uma definição bem difundida do que seria uma bruxa e a bruxaria como consistindo na prática de magia para causar malefícios, assim como, espalhar o terror de Satanás e seus demônios, em algumas regiões da Europa, o pacto diabólico não era considerado prerrogativa para definir uma bruxa. Em certos locais da Inglaterra, Escócia, Rússia, Polônia-Lituânia, Alemanha, Irlanda, Áustria etc., uma bruxa e bruxo seria essencialmente o indivíduo que praticasse algum tipo de maleficium (magia negra). 

“Na verdade, a magia, sobretudo em sua forma popular, nunca é completamente branca, pois fazer o bem a alguns por meio de determinados métodos pode, em contrapartida, significar fazer o mal a outros... Também não é completamente negra, pois se fosse francamente diabólica ou assim se apresentasse, não teria reunido padres, adeptos de uma pequena mágica/feitiçaria inocente, à qual se convertiam para fazer o bem. É interessante salientar que, ao pronunciar alguns encantamentos para vencer a esterilidade feminina ou curar pequenos problemas, esses religiosos, movidos por bons propósitos, redobravam os sinais da cruz com o intuito de reforçar a fé”. (HANCIAU, 2009, p. 76).

"No período final da Idade Média, a astrologia foi usada em grande escala para predizer acontecimentos: em 1337, por exemplo, Godofredo de Meaux previu fome e distúrbios em conseqüência do aparecimento de um cometa e, como tantos outros, atribuiria a Peste Negra a uma conjunção planetária maligna. A Guerra dos Cem Anos também proporcionou aos astrólogos uma oportunidade de ouro para prever acontecimentos, e Carlos V da França tinha muitos a seu serviço. O uso de prognósticos astrológicos em medicina também era generalizado, e influía em matérias tais como o diagnóstico e a cura de doenças, assim como a data mais propícia para efetuar uma cirurgia. Entretanto, críticos como Tomás de Aquino tiveram seus sucessores. No começo do século XIV, o papa condenou algumas noções astrológicas como parte de sua ofensiva contra a magia e a bruxaria; e, cerca de 50 anos depois, Nicolau d’Oresme negou com veemência a influência do oculto e criticou a astrologia do seu tempo como perniciosa e desorientadora". (LOYN, 1990, p. 87).

Assim, o século XV passou a dispor de uma literatura antimagia negra, antidiabolismo, antifeitiçaria e antibruxaria. Características fundamentais para deflagrar toda uma motivação religiosa, social, moral e cultural para se combater essa preocupante ameaça que parecia se espalhar pelo continente. Mais adiante veremos alguns valores indicando anos e números de acusações e sentenças. 

Entretanto havia ainda um último fator que podemos considerar aqui, apesar de haver outros, pois não existe um número definitivo de fatores que contribuíram para a caça às bruxas. De qualquer forma o fator que aqui trago diz respeito a um comentário dito por Brian Levack (1988): a necessidade de que o imaginário da bruxaria estivesse difundido e fosse conhecido pela população no geral. 


e) Disseminação da bruxaria como um mal a ser combatido:

Apesar de a magia ser praticada comumente em distintos lugares da Europa, a noção de bruxaria como sendo um pacto diabólico e o uso de "magia negra", não se difundiu da noite para o dia. De fato foi um processo de longa duração iniciado ainda no final do século XIV e estabelecido no século XVI, em grande parte do continente. Apesar que no século XV, a caça às bruxas já tivesse tido início. Entretanto como isso se difundiu não é claro. A Igreja teve um papel central para a normatização da bruxaria como crime de heresia e no seu julgamento, mas depois que tal crime foi definido e começou a se espalhar pela Europa Ocidental, os tribunais seculares adotaram tal conceito, e não obstante, a própria população também espalhava o imaginário sobre a bruxaria. 

Richard Kieckhefer (2011, p. 93-94) comenta que a decadência do sistema feudal contribuiu não apenas para o crescimento e valorização dos burgos, mas também para ampliar o comércio e a movimentação de ideias e valores. Ele aponta que os demonologistas e teólogos viviam em cidades, e diferente do que normalmente se pensava, parte do imaginário da bruxaria não começou propriamente no campo, ideia essa preconceituosa, pois alegava-se que o medo de bruxas fosse fruto da ignorância dos camponeses. De fato os camponeses já tinham conhecimento sobre lendas, folclore, uso da magia, histórias sobre feitiçaria etc., porém, a concepção de que a bruxaria era um mal real e perigoso começou a advir das cidades e capitais, se espalhando pelo interior e se transformando. Carlo Ginzburg em História Noturna comenta variações do imaginário da bruxaria em alguns países. 


“Apesar de as acusações específicas contra bruxas variarem de lugar para lugar e até de caso para caso, ainda assim elas compartilhavam uma série de características comuns. Tais similaridades, aliadas à maneira claramente cumulativa pela qual as crenças sobre bruxas se desenvolveram, sugerem fortemente que as noções cultas sobre bruxaria foram transmitidas de uma área para outra e de uma geração para a subseqüente. É verdade, conforme já discutimos, que determinados elementos do conceito cumulativo de bruxaria, tais como a crença numa sociedade coletiva anticristã e amoral, podem surgir de modo sui generis em qualquer época e lugar, mas isto não é verdade no que tange ao conjunto completo de crenças européias cultas sobre bruxas. Tais idéias foram fundidas num amálgama relativamente distinto por volta do século XV, um produto compósito que não poderia ter surgido por si na mente de um único magistrado ou inquisidor”. (LEVACK, 1988, p. 48).

Assim, como apontado por Levack, Kieckhefer e Ginzburg o imaginário da bruxaria se espalhou e desenvolveu-se de distintas maneiras, ganhando reforço de acontecimentos locais, do fanatismo, da paranoia, da histeria, da intolerância religiosa relacionada a perseguição das seitas heréticas, da xenofobia etc. No entanto, posso também citar outro fator para desencadeamento das perseguições, neste caso, a atuação dos caçadores de bruxas

Apesar de caber as autoridades seculares e eclesiásticas o poder e dever para realizar os processos contra crimes de bruxaria, advinha do povo, aqui de todas as classes, as denúncias ou boatos pelos quais os magistrados davam início a abertura de inquéritos criminais para apurar a veracidade das acusações. Neste caso, em determinadas épocas, pessoas imbuídas por um forte dever de justiça, ou por fanatismo religioso, ou por uma intolerância agressiva, ou por paranoia ou medo, se dedicavam a caçar as bruxas por conta própria ou a incentivar as denúncias e perseguições. 

Em países como Inglaterra, Escócia, Alemanha, França e Suíça nos séculos XVI e XVII, houve grandes denúncias coletivas, as quais duravam dias ou semanas, envolvendo dezenas ou até mesmo centenas de acusações. Neste caso poderia haver o empenho de homens e mulheres os quais motivados em extirpar aquele terrível mal que era pregado, se mobilizavam para procurar pelas supostas bruxas ou incitavam a população a denunciar as bruxas e seus cúmplices. 


“Quando as autoridades não se contentavam em restringir a investigação às pessoas inicialmente acusadas, podiam desenvolver-se operações mais de acordo com o estereótipo. Uma delas era a caça de porte médio, processo que fazia entre 5 e 10 vítimas. William Monter constatou que esse tipo de caça, que ele chama de "pequeno pânico", ocorria freqüentemente na Suíça de língua francesa, podendo outros exemplos ser obtidos na Alemanha e Escócia. A principal característica da caça de médio porte era a utilização da tortura e a ocorrência de uma segunda rodada de acusações, mas o processo não escapava ao controle. Em alguns desses casos, como os julgamentos ocorridos. No cantão de Neuchâtel em 1583 e em Friburgo em 1634, o controle foi mantido pelo moderado da tortura e aplicação de sentenças não-capitais”. (LEVACK, 1988, p, 171-172). 

Entretanto, na história se destacaram poucos caçadores de bruxas. Pois diferente do que vemos na literatura, cinema, séries, desenhos e jogos, os caçadores de bruxas não eram famosos, ou pessoas que soubessem usar magia para lutar contra a bruxaria. Em geral eram pessoas anônimas e simples, que faziam pregações públicas para se incentivar as denúncias e procura das bruxas. 

Na França tivemos o jurista e professor de Direito, Jean Bodin (1530-1596) conhecido por suas obras sobre política, mas também por seu trabalho mais polêmico La Démonomanie des Sorciers (1580). Valendo-se de sua posição como jurista e doutor, Bodin foi extremamente conservador quanto aos seus argumentos para se julgar as bruxas. Para ele a maioria das denúncias realmente possuíam cabimento e não seriam meros boatos, não obstante, ele foi um ferrenho defensor da tortura como meio para conseguir confissões. (LEVACK, 2004, p. 128). 

Na Inglaterra no século XVII se destacaram dois caçadores de bruxas, Matthew Hopkins e John Stearne, os quais principalmente entre os anos de 1645-1646, viajaram por várias cidades e vilas em Essex e Suffolk, incentivando a população a se empenhar em denunciar as bruxas e seus cúmplices. Segundo relatos da época, os dois teriam conseguido identificar pelo menos 300 bruxas. Hopkins e Stearne iam de cidade em cidade se pronunciando publicamente como defensores da sociedade, do bem, da cristandade etc., com isso exortavam a caça as bruxas. No caso de Hopkins ele publicou um livro intitulado The Discovery of Witches (1647), um guia para instruir as pessoas de como elas deveriam agir para identificar as bruxas, como saber se a bruxa estava mentindo, meios de encontrar provas etc. (THOMAS, 1991, p. 365, 377). 

Uma página do livro The Discovery of Witches (1647) de Matthew Hopkins. Na gravura vemos o autor no topo, olhando para duas bruxas e seus animais de estimação. 
3. Denúncias contra bruxas: 

Após conferir alguns fatores pelos quais a caça às bruxas pôde ter início e se desenvolver, passamos para adentrar a parte processual dessa história. Como ocorriam as denúncias que levavam a abertura de inquéritos criminais de modo que as autoridades eclesiásticas e seculares pudessem investigar as acusações? 

Brian Levack (1988, p. 171-173) comenta que a perseguição as bruxas entre os séculos XV e XVIII ocorreram a partir de três formas: a caça de pequeno porte, de médio e grande porte. No primeiro caso, apenas uma mulher era denunciada e as vezes alguma outra possível bruxa ou cúmplices. A denúncia partia de diversos fatores, mas normalmente estava associada a prática do maleficium ("magia negra"). Por sua vez, nas caças de médio porte, de cinco a dez pessoas ou mais poderiam ser denunciadas. Aqui incluía-se tanto as acusadas de bruxaria quanto seus possíveis cúmplices. Em alguns casos essa denúncia coletiva poderia estar relacionada com o sabá, pois elas pertenceriam ao mesmo grupo que participava desse ritual diabólico. 


“As grandes caças a bruxas dos séculos XVI e XVII, com algo entre 10 e centenas de vítimas, e caracterizadas por um alto grau de pânico ou histeria, foram os protótipos da "caça à bruxas". Mais comuns na Alemanha, quase todos os países europeus, inclusive a Inglaterra, Espanha e Suécia, conheceram ao menos um de tais episódios. Muitos desses julgamentos em massa tomavam a forma de reação em cadeia, em que as primeiras bruxas processadas deram os nomes de seus cúmplices, que por sua vez foram detidos, processados, condenados e forçados a denunciar terceiros. A maior de tais caças teve lugar em Trier, em que um total de 306 bruxas delataram cerca de 1.500 diferentes cúmplices, cada bruxa acusada fornecendo uma média de 20 nomes”. (LEVACK, 1988, p. 172). 
Não obstante, a ideia de que as bruxas seriam mulheres velhas e feias, isso é algo que advém do folclore e foi reaproveitado nos contos de fadas e na pintura. Em países como a Inglaterra, Alemanha e Rússia haviam histórias de anciães (hag, hexe) que viviam solitárias em florestas. Mas estas histórias remontavam tradições mais antigas de origem celta, germânica e eslava, as quais necessariamente não concediam uma imagem negativa a tais mulheres, as quais eram vistas como espíritos da natureza, protetoras da floresta, almas caridosas. 

Porém, o imaginário da bruxaria acabou reutilizando essa imagem, transformando a velha anciã, na velha bruxa. Por outro lado, quando se analisa os relatórios dos inquéritos sobre bruxaria, nota-se que a maioria das mulheres julgadas eram jovens, variando sua idade entre 20 e 40 anos. Inclusive houve casos de mulheres adolescentes e com mais de 50 anos terem sido acusadas também. 

Por outro lado a denúncia também poderia advir de boatos e suspeitas. O acusador ou acusadora não tinha certeza que determinada mulher realmente praticasse bruxaria ou tivesse feito um pacto diabólico, mas com base no comportamento daquela mulher e de outras questões poderiam ser motivos para uma desconfiança. 

"Havia quem dissesse que tal mulher "olhou feio" para alguém, "olhou para seu marido", pois "mau olhado" nos filhos, na casa, no gado, na plantação. As vezes dizia-se que quando uma pessoa subitamente adoecia era culpa de alguma bruxa. Se alguma mulher fosse vista andando sozinha de noite, era suspeita de que talvez estivesse indo ao sabá ou praticar sua "magia negra". Todas essas crendices reforçavam a se manter um clima de desconfiança nas comunidades, aldeias, vilas e cidades. Logo, boatos começavam a surgir e estes chegavam aos ouvidos das autoridades. Então o governo ou as igrejas decidiam agir". (VILAR, 2015).

"Todas as pequenas querelas, todas as tagarelices de aldeia podem servir de base para denúncias, e para testemunhos acabrunhantes como os que se seguem: a aparência pouco atraente e a vestimenta do acusado, as extravagâncias do comportamento, assim como o eco ensurdecedor dos dramas conjugais, e sobretudo as desgraças as mais peonas, epizootias que dizima os estábulos e os chiqueiros, granizo sobre as vinhas, cereais enferrujados e derrubados, etc". (MANDROU, 1979, p. 80). 

4. O inquérito contra a bruxaria: 

Falar sobre caça às bruxas e falar sobre Direito. Há alguns anos eu achava essa afirmativa um tanto estranha, pois antes de me aprofundar mais a respeito do tema, para mim a caça às bruxas parecia ter sido um acontecimento mais voltado para o imaginário cultural e religioso, do que estar ligado as estâncias do Direito e da Justiça. Entretanto, após estudar a respeito, pude constatar que de fato o papel do Direito Canônico e Civil foram fundamentais para o desenvolvimento da caça às bruxas. 

Já comentei anteriormente neste texto, o fato de que tribunais eclesiásticos e seculares caçaram bruxas, assim como, houve em alguns países como Alemanha, Inglaterra, Portugal, Espanha, Escócia, França etc., a criação de códigos penais que incluíam o crime de bruxaria. 


“A grande caça às bruxas da Europa foi em essência uma operação judicial. Todo o processo de descoberta e eliminação de bruxas, da denúncia até o castigo, ocorria normalmente sob auspícios judiciais. Mesmo quando as bruxas davam cabo da própria vida, elas geralmente o faziam para evitar os tenebrosos e aparentemente inevitáveis processos legais. Às vezes, aldeões exaltados faziam justiça pelas próprias mãos executando bruxas, como se coubesse a eles o papel de vigilantes da lei. Em 1453, diversos feiticeiros da aldeia francesa de Marmande pereceram dessa forma, e durante a caça às bruxas de 1610 no País Basco imensas multidões irromperam as residências dos acusados, sujeitando-os a violentas torturas e matando ao menos uma mulher”. (LEVACK, 1988, p. 65). 

Como comentado anteriormente, a adoção do processo por inquérito no lugar do processo por acusação teve um peso significativo para entender como a caça às bruxas pôde se desenvolver e espalhar-se. Nesse caso, mencionarei alguns pontos centrais para entender essas mudanças. 

No processo de acusação, a denúncia era feita pelo prejudicado ou um parente, ou representante seu; que se dirigia até a autoridade responsável e prestava queixa contra determinada pessoa. O juiz convocaria o acusante para depor e depois convocaria o acusado. Em muitos casos não havia o uso de advogados e dependendo da condição social e crime que estava sendo julgado, nem mesmo testemunhas eram convocadas. Quanto se tratava de uma pessoa socialmente mais rica e importante, sua palavra pesava contra um servo ou uma pessoa socialmente inferior. Em alguns casos nos quais havia falta de provas, pois um dos problemas do processo de acusação era sua falha em elaborar testemunhos e coletar evidências, recorria-se ao ordálio. (BLOCH, 1998, p. 423-425).

Como apontado por Marc Bloch, o uso do ordálio era um tanto problemático, pois consistia numa prova pautada na intervenção divina de Deus, em outras palavras, Deus era convocado a atuar como juiz daquele caso. Assim, uma prova era proposta para o acusado, sendo que tal prova poderia variar em provas que iam desde por a mão na água fervente, andar sobre brasas, pegar em uma barra de ferro incandescente, beber uma poção que lhe forçaria o vômito, ser jogado num rio ou lago e ter que afundar, resistir a exposição do frio, duelar etc. Se a pessoa não se ferisse, afunda-se, não vomita-se, não desistisse etc., seria considerada inocente. Já que Deus não iria castigar aqueles que diziam a verdade. Assim era o pensamento daquela época.


Gravura do século XIV, retratando o ordálio por água fervente. 
O problema do ordálio é que ele poderia ser burlado, como também não era racional, pois constatou-se que pessoas de fato inocentes haviam reprovado no teste. Ora, isso significava dizer que Deus não era justo? Ou que Deus havia se enganado? Tais perguntas e várias outras, colocavam em cheque a certeza por trás dessa forma de julgamento. Assim como, levantava-se dúvidas quanto a veracidade do que a Igreja pregava, pois a população começava a se indagar se Deus realmente era aquilo que os padres ensinavam nas missas. A partir do século XIII o ordálio começou a ser abandonado como meio de provação, pois ele acabou perdendo seu sentido como prova racional. 

Quando passamos para o processo de inquérito a situação mudou significativamente. A denúncia não precisava ser feita necessariamente pela vítima ou por seu representante, neste caso, qualquer pessoa que dispusesse de bom senso, honestidade ou provas, poderia fazer a acusação. As denúncias eram encaminhadas aos tribunais seculares ou eclesiásticos, e caso a autoridade responsável considerasse que tal denúncia era plausível, e não uma mentira ou boato, abriria um inquérito policial, delegando funcionários para investigar a respeito. Se a investigação constata-se fundamento na denúncia, iniciaria-se a fase de recolhimento de provas, convocação do acusado para depôr e a convocação de testemunhas de acusação e de defesa. (LEVACK, 1988, p. 68-69).

O modelo de processo por inquérito acabou sendo adotado para se julgar os crimes de bruxaria, neste caso, o livro que inaugurou o processo jurídico contra bruxaria foi o próprio Martelo das Bruxas. Sua terceira parte que é a mais extensa, discorre de forma detalhada todos os trinta e cinco passos e dúvidas acerca de um processo jurídico para se julgar as bruxas. Devido a sua extensão, procurei aqui sistematizar os pontos principais pelos quais os autores abordaram.
  • A acusação deveria ser feita diretamente a justiça, mesmo que pudesse ser de forma anônima;
  • Caso o juiz julgue que a denúncia possua plausibilidade, ele deve abrir inquérito para investigação;
  • Investigação e coleta de provas e relatos;
  • Convocação de testemunhas de acusação. No caso a identidade das testemunhas deve ser mantida em sigilo, jamais caindo ao conhecimento da acusada;
  • Análise do relatório da investigação, o que inclui evidências e depoimentos de testemunhas. Se haver procedência de que realmente a acusada possa ser uma bruxa, ela é chamada a depor;
  • Interrogatório da suspeita;
  • Interrogatório de testemunhas de defesa (casa haja);
  • Confronto entre as provas e depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa contra o depoimento da ré;
  • Se for necessário, a ré poderá ter um advogado, que será indicado pelo juiz. Em geral isso não ocorria, mas havia essa possibilidade;
  • Caso o juiz percebe-se que a ré estivesse mentindo ou omitindo informações, ele poderia decretar procedimentos para se providenciar novas provas: realização do exame atrás da "marca demoníaca", prisão preventiva, provação por ordálio ou pena de tortura;
  • A pena somente pode ser dada após confissão racional da acusada. Se ela for induzida a confessar, a confissão não tem validade;
  • A pena será dada de acordo com a gravidade do crime de bruxaria;
  • A morte somente é ordenada caso a pena fosse gravíssima;
  • Caso a ré se revelasse de fato inocente, sua honra seria restituída, e os caluniadores seriam processados por difamação, falso testemunho etc. 
Estes pontos apresentam um resumo das diretrizes propostas por Kramer e Sprenger no Martelo das Bruxas. Apesar de o livro não ter sido usado em todo o período de Caça às Bruxas, e até mesmo foi rechaçado e criticado negativamente por ser considerado fanático, ainda assim, foi o modelo para várias outras obras. Todavia, não significa que os tribunais eclesiásticos e seculares o adotassem fielmente. Os juízes e inquisidores possuíam autonomia para adotar ou recusar as diretrizes deste livro e de outras obras. Inclusive houve por parte de algumas autoridades civis e eclesiásticas resistência ao adotar a obra de Kramer e Sprenger, pois era considerada de procedência fanática. 

Por exemplo, Kramer e Spranger (1997, p. 434-435) embora recomendassem o uso de tortura, faziam isso com determinadas restrições. Primeiro eles recomendavam que o juiz devesse apenas requisitar o uso da tortura caso não houvesse outro meio de conseguir provas, porém, a tortura não deveria ser uma forma de conseguir confissão, pois eles alertavam que a possível bruxa enquanto estivesse sendo torturada poderia mentir. Além disso, também era recomendado usar diferentes tipos de torturas, não necessariamente aquelas que recorriam a extrema violência. Ameaças verbais poderiam ser o suficiente. 

A respeito disso voltarei a falar mais especificamente adiante. Porém, eu quis mostrar que apesar de O Martelo das Bruxas ter sido um dos mais famosos manuais para julgamento de bruxas, não significa que suas diretrizes fossem totalmente seguidas. Como veremos adianta, em alguns casos os juízes e inquisidores não faziam uso de tortura, ou quando a adotavam, a faziam de uso severo. 

Entretanto, se vimos até aqui como procedia o julgamento, apesar de que necessariamente ele não seguisse a ordem citada, sem contar que houve casos de que os juízes foram intransigentes, e até mesmo a população decidiu fazer "justiça" com as próprias mãos, optando em matar a suposta bruxa, sem ter que aguardar um julgamento. Porém, como eram os crimes pelos quais as bruxas eram acusadas? Se vimos que as denúncias deveriam partir de qualquer membro da sociedade, e caso tivessem fundamento, seriam investigadas, a pergunta que fica é: quais motivos levavam as pessoas a denunciarem se uma dada mulher fosse supostamente uma bruxa?

a) A acusação de bruxaria: 

Em O Martelo das Bruxas (1487), Kramer e Sprenger elencaram alguns motivos e condições comuns pelos quais as bruxas eram denunciadas:
  1. As bruxas conseguiam viajar de um local para o outro com o uso da magia (normalmente para ir ao sabá);
  2. Tem relações sexuais com demônios;
  3. Profanam os sacramentos da Igreja;
  4. Conseguem tornar pessoas e animais inférteis;
  5. Arrancam o pênis dos homens, ou os deixa impotentes;
  6. Transformam os homens em animais;
  7. Matam crianças e as usariam em ritos diabólicos; 
  8. Causavam doenças ou a morte do gado e das plantações;
  9. Causavam tempestades;
  10. Causavam doenças em pessoas. 
Tais motivos entre outros realmente eram considerados durante a caça às bruxas como podendo ter sido reais. Vejamos a seguir alguns exemplos reais de mulheres que foram acusadas de bruxaria. 
  • Ana Gómez foi processada pela inquisição galega em 1582, acusada de ter feito um pacto com o diabo. (SOUZA, 1986).
  • Elizabeth Clark na Inglaterra, foi acusada na década de 1640, de se reunir regularmente à noite com outras mulheres numa casa velha, onde supostamente praticavam o sabá. (LEVACK, 1988).
  • Em 1655Rachel Dewsall amaldiçoou os próprios filhos. (THOMAS, 1991).
  • Em Salém, na Colônia de Massachusetts, entre 1692 e 1693 algumas pessoas começaram a adoecer de repente, e outras exibiam características de possessão demoníaca. Bruxas foram acusadas por tais atos. (LEVACK, 1988).
  • A portuguesa Antonia Maria foi acusada pelo Santo Ofício em 1713, de praticar adivinhação e outras feitiçarias. (SOUZA, 1986).
Robert Mandrou (1979) comenta que em muitas denúncias, essas tinham início com boatos, em geral de cunho maldoso, motivado por ignorância, desavença, ódio, inveja, vingança etc. Não obstante, dizer que uma bruxa supostamente era aquela mulher que causava o mal, isso não era uma regra de fato. Houve vários casos de parteiras, advinhas, curandeiras etc., que foram denunciadas por supostamente serem bruxas. Porém, tais atividades não eram fruto da "magia negra" ou causariam algum dano. 


Uma mulher que fizesse adivinhação, que fosse parteira, curandeira etc., poderia ser acusada de bruxaria. Uma mulher considerada “estranha”, “suspeita”, que saísse à noite, frequentasse locais suspeitos, que “olhasse esquisito”, o que tivesse feito “mau olhado”, ou dito algo numa língua estranha, poderia ser uma bruxa. (BAILEY, 2015; GINZBURG, 1991).

Não obstante, Ginzburg, Levack e Bailey comentam que em determinadas épocas e regiões da Europa, a crença de que as bruxas fossem culpadas por qualquer coisa de ruim ou mau que ocorria, era tão grande ao ponto de elas serem consideradas tão malvadas quanto os demônios. Se o inverno estava rigoroso, era porque uma bruxa havia feito aquilo. Se uma pessoa havia de repente na rua caído e quebra uma perna, isso ocorreu por "mau olhado", provavelmente foi uma bruxa que fez aquilo. Se uma criança adoecia de repente, era culpa de uma bruxa. E assim por diante. Pode parecer difícil de acreditar que as pessoas realmente chegassem a tal ponto de culpar bruxas por qualquer situação incômoda e ruim, mas de fato isso realmente ocorria mais do que costume. 

E tal condição contribuiu para surtos de pânico coletivo, levando a grandes caçadas. Um exemplo ocorreu na Alemanha, no ano de 1600, na Baviera. A humilde família Pappenheimer, acabou sendo injustiçadamente condenada de serem uma família de bruxos. Denunciada como bode expiatório por um ladrão, os Pappenheimer, o casal Paulus e Anna, e seus três filhos Jacob, Gumpprecht e Hansel foram acusados de crimes de roubo, assassinato e bruxaria. Devido a terem passado por um severo julgamento a base de tortura, todos os membros "confessaram" a culpa, sendo no final executados. Anos depois ao revisarem o caso, constatou-se que os Pappenheimer haviam sido vítimas de fanatismo, pois as acusações não tinham procedência. 

Além dos Pappenheimer vários outros casos de suposta bruxaria foram oriundos de boatos, calúnia e vingança. Outro exemplo conhecido ocorreu em Salém, nas  entre 1692 e 1693, onde algumas testemunhas de acusação confessaram cinco anos após o incidente, que deliberadamente mentiram em seus depoimentos, pois se sentiram ameaçadas, ou foram coagidas, ou por motivo de fanatismo, medo e ignorância acabaram mentindo, ajudando a condenar mais de quinze bruxas e seus cúmplices, totalizando na execução de 30 pessoas a pena de morte. (LEVACK, 2004). 


Ilustração de 1876, apresentando um dos julgamentos das bruxas de Salém. 
Entretanto fica uma dúvida, todas as acusações de crime de bruxaria teriam sido frutos de paranoia, histeria e boataria? Não se tem como confirmar isso, porém, hoje sabe-se que muitas das acusações não tiveram uma procedência devidamente averiguada. Porém, sabe-se de casos na França, Itália e Suíça de mulheres que diziam realmente ser bruxas, que havia participado do sabá e até mesmo voado em vassouras. Tais depoimentos são atípicos, mas foram registrados por tribunais seculares e eclesiásticos. 

Inclusive na época como comenta Ginzburg (1991), isso gerou uma série de dúvidas entre os juízes. Alguns alegavam que as acusadas estavam sob efeitos de drogas ou teriam problemas mentais, pois parte do clero e da população leiga não acreditava que o sabá fosse real, tão pouco achavam que bruxas poderiam voar ou se transformar em animais, apesar de acreditarem que elas realmente usavam "magia negra". Logo, isso gerava desentendimento no julgamento, pois alguns dos juízes alegavam que as supostas bruxas ou estavam mentindo ou eram loucas.

Para o ponto de vista contemporâneo tais depoimentos fossem um misto de distintos fatores: sabe-se que as bruxas faziam uso de ervas psicotrópicas e de alucinógenos como a mandrágora, a belladona, a artemísia, hipericão, cardo-santo etc. Dependendo da localidade, o uso das ervas variavam, porém, a farmacêutica e a bioquímica hoje comprovam o potencial alucinógeno de tais plantas. Neste caso pomadas, pastas, unguentos, bebidas etc., feitos com uma ou mais destas plantas podem causar alucinações que levam o indivíduo a ver pessoas, animais, monstros etc., a ter a sensação de estar flutuando ou voando, de sentir o corpo sendo contorcido, arrebatado etc. 


Imagem do século XIII, copiada a partir do original localizada na catedral de Schleswig-Holstein, Alemanha. Alguns historiadores consideram que essa mulher seja uma representação da deusa Freyja. Outros sugerem que se trate de alguma feiticeira qualquer, voando num ramo de meimendro. 
Logo, mulheres que usavam tais ervas iriam de fato dizer aos juízes que realmente voavam, ou estavam flutuando, ou viram espíritos, demônios, pessoas etc. É preciso salientar que alguns dos inquisidores e juízes queriam que de fato a acusada de bruxaria confirmasse que havia feito um pacto diabólico e participava do sabá. Logo, as mulheres influenciadas por todo o imaginário da bruxaria, acabavam por confirmar tais crendices, mesmo que na realidade não existissem, mas fossem fruto de sua imaginação distorcida. Por outro lado, havia juízes e inquisidores que não reconheciam tais depoimentos, pois consideravam o sabá uma mentira, algo fruto de superstição e fanatismo, mas acreditavam no pacto diabólico. Para eles o que importava era a acusada confessar que fez o pacto e que usou magia para causar malefícios. 

b) Uso do ordálio e da tortura

Como comentado anteriormente, o uso regular dos ordálios caiu em desuso a partir do século XIII, porém, não significou que os tribunais o tivessem abandonado por completo. Apesar de que a maioria dos tribunais eclesiásticos e seculares já não fizessem uso dos ordálios há séculos, ainda assim, houve casos em plenos séculos XVI e XVII, de ordálios sendo aplicados como meio de provar que uma mulher pudesse de fato ser uma bruxa. 

Um dos ordálios mais comuns usados contra as supostas bruxas, era o ordálio da água ou ordálio por afogamento. Uma mulher era amordaçada pelas mãos e pernas, e as vezes eram deixada com os membros soltos, então lançada num rio ou lago. Segundo a crença, a água era concebida como sendo pura, pois Cristo foi batizado na água, inclusive o batismo cristão era realizado com esta. Com isso, acreditava-se que sendo a água um elemento puro, qualquer impureza seria reprovada de alguma forma.


Uma mulher sendo sentenciada a ordálio da água. Gravura do século XVII. 
Acreditava-se que uma acusada de bruxaria se fosse jogada em um rio ou lago, sua "impureza" ou "pecado" a fariam afundar. Caso contrário, se ela flutuasse mesmo amordaçada, como comumente era executado o ordálio, significaria que a mulher era inocente, pois a pureza era leve. Porém, havia outra forma de aplicação do ordálio da água. A acusada era amordaçada e caso continuasse a flutuar, considerava-se que ela estaria usando magia para fazer aquilo, o que atestaria pelo menos que de fato ela sabia fazer uso de magia. (MAINKA, 2002).

Outra forma de ordálio também aplicado contra as acusadas era a "prova da agulha". O carrasco escolhia determinada área do corpo da mulher, então a espetava com uma agulha, caso o local perfurado não saísse sangue, significava que a acusada seria uma bruxa, pois supostamente a bruxa usaria magia para se proteger. Todavia, embora eventualmente o ordálio tenha sido aplicado como juízo em alguns casos de bruxaria, foi uma prática rara, além de ser bastante contestada e reprovada. Juízes e inquisidores criticavam e desaprovavam seus companheiros de ofício que adotavam tais métodos. (MAINKA, 2002). 


Desenho representando o ordálio da "picada de agulha". Tal prática em alguns casos também poderia ser usada como uma forma de tortura.  
Mas se enquanto o ordálio foi pouco usual nos julgamentos de bruxaria, a tortura foi algo mais recorrente, apesar de que nem sempre fosse utilizada, e em alguns casos foi proibida. Além do fato de que a tortura poderia ser de ordem psicológica e não necessariamente aquela aplicada em aparelhos, pois tornou-se uma noção equivocada de que toda a acusada de bruxaria era torturada em aparelhos mirabolantes e bizarros. 

Curiosamente por mais que a inquisição tenha sido autorizada no século XIII a fazer uso da tortura, não significou que em todos os julgamentos ela fosse utilizada, além do fato de que tribunais seculares também fizeram uso de tortura, apesar de que em cada região a forma como a tortura era aplicada variava. Peter Mainka (2002, p. 121-122) comenta que um bom exemplo para entender o uso da tortura nos julgamentos de bruxaria realizados por tribunais seculares, advém do Constitutio Criminalis Carolina (1532), do imperador Carlos V. 

No caso este código penal recomendava determinadas normas a serem seguidas, dentre as quais: a tortura deveria ser comunicada quando iria ocorrer; durante a sessão de tortura, o juiz e outros membros deveriam estar presentes para coordenar o carrasco ou carrascos. No caso da tortura de uma bruxa, o juiz ou juízes dirigiam perguntas para a ré, querendo inquerir que realmente ela fosse culpada de tais atos. Dependendo da ocasião, os juízes perguntavam se a ré havia feito um pacto diabólico, se praticava magia, se participava do sabá, se havia causando algum malefício a alguém, ou familiares ou propriedade etc. 

Entretanto, o código penal recomendava que a confissão dada por tortura não deveria ser tomada como palavra final. Tal fato já era comentado no Martelo das Bruxas, onde Kramer e Sprenger salientavam que a confissão sob tortura poderia ser ilusória. Com isso, o Constitutio Criminalis Carolina entre outros códigos e normas adotavam tal condição. O motivo se devia a dois pontos de vistas: um que dizia que a vítima poderia acabar mentindo para se livrar do sofrimento; segundo, caso a bruxa tenha feito algum pacto ou tenha sido possuída, o demônio ou o Diabo poderiam protegê-la da dor ou obrigá-las em outra situação, também a mentir. (LEVACK, 1988, p. 12-13). 


Gravura representando uma acusada de bruxaria sendo torturada por afogamento e por estiramento dos membros. 
Outro ponto a ser comentado diz respeito a fala de Brian Levack (1988, p. 14-15) que assinalou a condição de que em alguns depoimentos de julgamentos de bruxaria, as suspeitas haviam sido acusadas de praticarem maleficium (magia negra) e não necessariamente haviam feito o pacto diabólico. Porém, após serem torturadas elas confessaram o pacto. Um caso conhecido ocorreu na Inglaterra em 1617, país no qual a tortura não foi usual em várias regiões. Na ocasião três supostas bruxas estavam sendo processadas por praticarem magia negra, tendo causado danos a pessoas e animais. 

Nenhuma delas havia confessado os crimes, só que uma das acusadas, chamada Collette Du Mont posteriormente disse que era uma bruxa. O juiz exigiu que Du Mont confessasse seus crimes, mas ela se negou, então ele ordenou a tortura. Para surpresa de todos, durante as sessões de tortura ela confessou que participava do sabá e havia feito um pacto com o Diabo. O mais intrigante neste caso mostrado por Levack, foi a condição de que durante o processo em momento algum as rés assumiram a culpa, além do fato de a tortura não ser usualmente usada como forma apelativa para conseguir confissão, pois o juiz somente a usou após uma das acusadas dizer que realmente havia feito magia e se negou a confessar os crimes. Logo, o juiz recorreu a tortura para pressionar a ré a confessar. 

Para Levack (1988, p. 16-17), o uso da tortura em alguns processos judiciais possa ter contribuído para difundir o imaginário da bruxaria. Pois excetuando-se o caso de mulheres que usavam alucinógenos ou que possuíam desequilíbrio mental, dificilmente as acusadas de bruxaria diziam que faziam um pacto ou participavam do sabá. Mas durante a tortura é provável que os investigadores as "obrigassem" a confessar tais práticas, mesmo que elas não tenham sido realizadas. Hoje muitos historiadores questionam até onde era espontâneo das acusadas essa confissão de que participavam do sabá e haviam feito um pacto diabólico. Entendendo o pacto aqui não no sentido de dizer "eu fiz um juramento", mas participar de todo o rito desse juramento. 

Entretanto, por mais que houvesse essa recomendação de que a confissão por tortura não deveria ser totalmente validada, em vários casos os juízes a tomavam como confissão derradeira, mesmo havendo a possibilidade de que a acusada estivesse mentindo e fosse inocente. Porém, é preciso ressalvar que a tortura era aplicada de distintas formas e nem sempre foi usada. No Martelo das Bruxas e em outros livros recomendava-se o uso da tortura apenas em último caso, nunca como condição inicial ou exclusiva para determinar a culpa ou inocência da acusada. 

A respeito disso, Peter Mainka (2002, p. 121-122) comenta que de acordo com o Constitutio Criminalis Carolina, a tortura deveria ser aplicada de três maneiras: a primeira seria através de ameaças verbais (territio verbalis), onde o juiz ameaçava de enviar a ré para a tortura. O medo de ser torturada poderia fazer a acusada confessar. A segunda forma era mostrar os instrumentos de tortura (territio realis) ou até mesmo colocar a acusada em um deles, mas sem ativá-los. Aquilo poderia causar medo e fazê-la confessar. Nestes dois exemplos a tortura era mais de ordem psicológica, incitando o medo ao sofrimento.

Caso a ré não confessasse mesmo após essa tortura psicológica, outros meios poderiam ser usados para coagi-la a falar. Em alguns casos as condenadas eram enviadas para a prisão que consistia numa cela lúgubre e asquerosa, onde ela poderia ser sentenciada a passar fome e sede por algumas horas ou dias, de forma que através desse sofrimento ela espontaneamente decidisse confessar. O ato de deixar os presos passarem fome e sede é uma forma de tortura bem antiga e usada nas mais distintas ocasiões e épocas, não sendo exclusivo dos julgamentos de bruxaria. Inclusive no caso das Bruxas de Salém, cinco suspeitas de serem bruxas, acabaram morrendo na prisão, enquanto aguardavam julgamento. Embora isso tenha sido uma falha no processo, pois na teoria, a Justiça não poderia ter deixado isso acontecer. 

Não obstante, além da tortura da fome e da sede, a forma mais comum de torturar as suspeitas de bruxaria era através de instrumentos e aparelhos, alguns bem aterrorizantes e outros bem simples, mas nem por isso, causassem menos dor. Um dos instrumentos mais comuns foi o strappado. Esse tipo de tortura poderia ser realizado de diferentes formas, mas em geral envolvia o uso de cordas, pesos e da gravidade. Os condenados eram geralmente pendurados pelos braços enquanto pesos eram amarrados em suas pernas, fazendo-as esticar. 


Pintura retratando uma acusada de bruxaria sendo torturada no strappado. Nicolay Bessonov, 1877.
O strappado foi usado por diferentes povos e consistia numa tortura anterior a Caça às Bruxas. Mas além dessa forma de tortura outras praticadas envolviam: afogamento, uso de fogo para queimar a sola dos pés, arrancamento de unhas, perfurações e cortes, espancamento, estiramento etc. É preciso fazer uma ressalva acerca de alguns detalhes a respeito do uso da tortura contra as acusadas de bruxaria. No caso as mulheres eram despedidas, isso era uma prática comum tanto para homens e mulheres que respondiam diferentes crimes. A nudez era uma forma também de humilhação, além de haver o fato de que as roupas poderiam afetar o desempenho da aplicação da tortura. 

Porém, uma condição central é dizer que diferente do que se vê em alguns sites e blogs, a tortura não eram tão letais no sentido de levar a morte. A ideia não era matar o acusado, mas lhe causar dor o suficiente para que isso pudesse fraqueza-lo e fazê-lo posteriormente falar. Tornou-se um estereótipo de ver imagens e comentários de que na Idade Média as pessoas eram torturadas até a morte. De fato isso ocorria em alguns casos, mas é preciso diferenciar execução de tortura. No caso dos tribunais modernos houve caso de pessoas que morreram durante as sessões de tortura, mas habitualmente isso não ocorria e inclusive era mal visto tanto pela Justiça quanto pela população, pois havia o risco de matar gente inocente. 

c) a pena de morte:

Além da tortura outra questão que se tornou estereotipada a respeito da Caça às Bruxas, diz respeito a ideia de que todas as bruxas foram queimadas vivas, como o fato de que toda a bruxa que fosse sentenciada, era condenada a pena de morte. Ainda hoje isso é uma ideia traiçoeira e nem sempre devidamente compreendida.

Comecemos pela questão da pena morte. Tornou-se senso comum dizer que todas as bruxas foram condenadas a morte. A realidade não foi bem assim. Até os anos de 1980-1990, alguns livros apontavam cifras entre 80 a 100 mil mortes. Porém, hoje em dia os historiadores ao revisarem os dados e analisarem novos documentos apontam valores entre 40 a 60 mil execuções, valores ainda altos, mas menores do que anteriormente apontados. Tal mudança se deve a algumas condições: descoberta de novos documentos processuais; revisão da documentação conhecida; novos cálculos quanto as estimativas apresentadas por autores modernos e contemporâneos; uso de estatísticas baseadas na quantidade de denúncias, processos e execuções etc. A tabela abaixo, elaborada por mim, reúne as estimativas aproximadas dos territórios que mais executaram bruxas. 


Tabela apresentando valores aproximados pra os territórios que mais executaram bruxas. Produção minha com base nos valores apresentados por Voltmer (2017), Levack (1988) e Monter (2002). 
No caso a pena de morte não foi algo generalizante como costuma-se acreditar. Paula Hughes (2013) e Brian Levack (1988) comentam os casos de bruxaria na Inglaterra e Escócia, ambos países vizinhos e predominantemente protestantes. Os autores salientam que o número de execuções na Escócia foi superior ao da Inglaterra em quase mil vítimas. Os motivos se deviam a condição de que a justiça inglesa agiu de forma moderada nas investigações e julgamentos de bruxas, enquanto a justiça escocesa foi mais severa. 

Na Inglaterra a pena de morte contra bruxas não era capital (ou seja, única alternativa). Nesse ponto Keith Thomas (1991) comenta que em alguns casos as bruxas poderiam ser sentenciadas ao banimento ou prisão, não necessariamente a execução. Além do fato de que a maioria das bruxas inglesas foram enforcadas e não queimadas. Quanto na Escócia, a justiça tomou a bruxaria como uma ameaça grave e deveria ser expurgada a todo o custo. A bruxaria tornou-se pena capital. O juri escocês requisitava maioria simples para condenar uma bruxa a morte, enquanto o juri inglês requisitava maioria absoluta para isso. Embora nem todas as supostas bruxas escocesas acabaram sendo sentenciadas a morte, ainda assim, em comparação a outros países, a execuções na Escócia foram bem elevadas. 

Isso nos leva a inquerir sobre uma dúvida que muitas pessoas têm, ainda mais depois de verem a tabela acima. Portugal, Espanha e Itália possuíram inquisições até o século XIX, mas por que tais territórios não constam entre as nações com maiores índices de execuções de bruxas? Diferente do que se imagina, as inquisições não julgaram tantos crimes de bruxaria. Francisco Bethencourt (2000), historiador especializado no estudo da história das inquisições, ao analisar centenas de processos inquisitoriais, elaborou tabelas apresentados valores quanto aos crimes mais julgados pelas inquisições em Portugal, Espanha e Itália. 

Ele assinala que o crime de bruxaria estava associado ao crime de "artes mágicas" e "superstição", ou seja, quando um inquérito era aberto nos tribunais inquisitoriais destes territórios entre os séculos XVI e XVII, a bruxaria não constava como categoria própria, mas era um crime inserido numa categoria bem abrangente, pois "artes mágicas" se referia ao uso de diferentes tipos de magia como adivinhação, curandeirismo, magias de proteção, sorte, amor etc., ou seja, não eram necessariamente magias danosas. No que se refere a categoria "superstição" essa também era problemática de ser definida. O que seria necessariamente algo supersticioso para a Igreja, não seria para o senso comum e a cultura popular, e isso gerava dúvidas não apenas entre a população e as autoridades, mas entre os próprios inquisidores e demais funcionários da justiça.

Todavia, quando Bethencourt analisou os índices de tais denúncias constatou que a bruxaria não era desassociada nessa documentação, o que dificulta levantar dados específicos a respeito. Neste caso, ele observou que nos tribunais do norte da Itália (lembrando que a Itália não era um país unificado naquele tempo), como em Veneza e Friulli, e no sul, com Nápoles, houve centenas de denúncias por crimes relacionados ao uso da magia, entretanto, ele observou que a pena de morte para tais crimes não foi usual. A maioria dos praticantes de magia eram punidos com multas, cadeia, banimento, apenas em casos que envolvessem assassinato ou danos mais graves, poderia se sentenciar a morte, que não seria na fogueira propriamente. 

O mesmo é válido para os tribunais portugueses e espanhóis. E o detalhe é que nos tribunais espanhóis houve tantas denúncias de praticantes de magia quanto nos tribunais italianos, sendo que em Portugal o número de denúncias foi menor. Provavelmente tal condição se deveu as dimensões geográficas e populacionais do reino lusitano.  

Entretanto, apesar de termos em alguns períodos mais de mil ou duas mil denúncias de praticantes de magia, o número de pessoas que foram executados as vezes nem passavam do 10% desse total. Embora tais valores variassem com a época e a localidade. Tamar Herzig (2013, p. 250-252) comenta que no caso da Itália, entre 1450 a 1542 o número de bruxas executadas foi bem menor do que os estudiosos da época sugeriram. Herzig comenta que houve relatos que exageraram na época quanto ao número de bruxas mortas. Ele assinala o caso de quatro autores que juntos disseram que entre 1514 e 1517, mais de 500 bruxas foram queimadas. Todavia, ao analisar a documentação inquisitorial com atenção, Herzig percebeu que de 1450 a 1542, houve cerca de 251 a 269 execuções oficialmente declaradas. O historiador assinala que tal valor diz respeito a um período de 142 anos. Ou seja, como que em três anos puderam executar 500 bruxas? E onde tais informações estariam contidas? Se nem nos documentos da igreja e dos tribunais civis eles existem. 

Não obstante, William Monter (2013, p. 268) comenta que no caso da Espanha a situação não foi tão diferente. Houve autores que exageraram na quantidade de relatos, mas quando passamos para a documentação inquisitorial e secular dos tribunais, os dados apontados são bem inferiores. Sabe-se que na Espanha houve grandes perseguições a bruxas no País Basco e na Catalunha, em fins do XVI e começo do XVII, porém, em outras províncias isso não foi habitual. No caso de Portugal, o auge da perseguição ocorreu no século XVIII, porém, é um caso peculiar, pois a maioria dos acusados dizia respeito a praticantes de magia, o que incluíam homens também. E não necessariamente a acusações contra bruxas.

Monter assinala que a partir da segunda metade do século XVI na Espanha e em Portugal, a crença que a bruxaria na verdade fosse fruto de histeria e paranoia da população começou a ganhar adeptos em vários locais destes reinos e isso acabou por influenciar os inquisidores a terem cautela nas investigações e nos processos. Nesse caso, Bethencourt (2000, p. 310-311) assinala que apesar de que no período de 1600-1700 houve um aumento nas denúncias de "artes mágicas", ainda assim, o número de pessoas acusadas por serem bruxas era baixo, e a maioria dos acusados não pegava pena de morte, pois praticar magia era visto na ocasião não como um crime grave, mas de caráter leve a moderado, dependendo das especificidades dos atos mágicos. 

O fator da histeria e paranoia coletivos era importante para intensificar a perseguição e condenação de bruxas. Tomemos um outro exemplo, o caso da Suécia. Neste país escandinavo, as primeiras acusações e execuções de bruxas tiveram início na década de 1580, nesse período, a pena de morte por crime de bruxaria ainda não existia, porém, a realidade mudou a partir de 1593, quando no país foi baixado decreto autorizando a pena capital para as bruxas. No século XVII, houve grandes surtos de denúncias e execuções de bruxas, especialmente entre 1660-1670. Apesar da rainha Cristina ter em 1649 proibido a pena de morte para a bruxaria, os tribunais não acataram tal exigência e em 1668 tivemos um elevado número de bruxas executadas. (LEVACK, 1988, p. 206). 

Por mais que existam outros exemplos que eu poderia mencionar, no entanto, estudar a pena de morte de bruxas consiste num assunto que variou ao longo do tempo e de local, pois cada país e região possuiu suas especificidades. Mas de qualquer forma, os exemplos mencionados anteriormente são suficientes para mostrar que a execução das bruxas não foi algo unânime ou generalizante. Nem todas as acusadas foram mortas, aos mesmo tempo em que entramos numa segunda questão: a pena de morte não necessariamente era através da fogueira. 


Gravura alemã representando três bruxas sendo queimadas vivas em Durenberg. 1555. 
Não foram as inquisições que instituíram a pena capital na morte na fogueira. A morte pelo fogo foi utilizado por distintos povos em diferentes lugares e épocas, por motivos e crimes diferentes. Logo, o fato dos cristãos medievais condenarem em alguns casos, pessoas a fogueira não era uma novidade. Entretanto, no caso europeu o principal motivo que levava as pessoas a morte na fogueira deveu-se a questões religiosas. Entre os séculos XII e XIV pessoas que faziam parte de seitas heréticas, que foram acusadas de heresia e blasfêmia; judeus, marranos, muçulmanos, leprosos, seitas protestantes etc., todos foram sentenciados em dado momento a morte na fogueira. Observa-se nesse sentido uma tradição de queimar o pecadores infiéis. E no caso de que as bruxas em alguns lugares eram consideradas apostatas, fazia sentido também serem queimadas. Pois o fogo "purificador" era concebido como uma forma de "livrar a alma" do pecado da heresia e da blasfêmia. (DELUMEAU, 1991; 2000). 

Após o surgimento das inquisições a partir do final do século XII, a prática da morte na fogueira foi adotada, embora não necessariamente fosse uma condenação aplicada a qualquer crime. Apenas crimes gravíssimos eram sentenciados a fogueira, como também dependia da decisão do juiz e do juri em se condenar ou não o criminoso/pecador a fogueira. 

Quando a Caça às Bruxas surgiu no século XV, houve casos de bruxas que foram queimadas na França, Alemanha, Suíça, Itália etc., porém, isso não era uma decisão unânime. Nos séculos XVI e XVII, período do auge da caça, muitas mulheres condenadas não foram mortas na fogueira, mas eram executadas por enforcamento, garroteamento, afogamento, decapitação, apedrejamento etc. 


Gravura inglesa retratando bruxas sendo enforcadas. Na Inglaterra a condenação à fogueira não foi habitual, em geral as bruxas quando pegavam pena de morte, era por enforcamento. 1655. 
Embora a maioria das bruxas não foram condenadas a morte, e quando eram, não significava que morriam na fogueira, ainda assim, houve várias mulheres que de fato foram queimadas vivas, algo terrível de se presenciar. Mas como a prática de queimar pessoas eram comum em algumas regiões desde o século XII, então o impacto cultural e social não era alarmante, apesar de que houve juristas e autoridades que fizeram campanha para abolir tal pena de execução. Em alguns lugares optava-se em se enforcar ou garrotear a bruxa e depois queimar-lhe o corpo. 

5. A geografia da Caça às Bruxas:

Nesse penúltimo tópico do texto, falarei de forma generalizante e superficial acerca de como a caça às bruxas se espalhou pela Europa e suas colônias. No caso, adianto que falar de como a perseguição a bruxaria se desenvolveu é algo de caráter específico, pois em cada país os fatores que levaram ao início das perseguições começaram por causas diferentes e em épocas distintas. Embora existam determinados fatores-chaves, os quais foram comentados no início desse estudo, ainda assim, a maneira que eles se desenvolveram diverge para o contexto de cada país e suas regiões administrativas. 

Aos interessados em conhecer um pouco mais a respeito de como a caça às bruxas atuou e se desenvolveu em distintas regiões da Europa, recomendo a leitura dos livros The Oxford Handbook of Witchcraft in Early Modern Europe and Colonial America (2013) e o The Witcht-Hunt in Early Europe Modern (2003). Em ambas as obras os autores abordaram informações específicas em alguns países, apresentando ainda assim, panoramas generalizantes para cada região. 

Mas retomando ao assunto, não se sabe certamente onde a caça às bruxas teve início, pois como comentado por Richard Keickhefer (2011), perseguições e execuções a praticantes de magia passaram a ocorrer regularmente na Europa Ocidental desde o ano de 1300. Em sua pesquisa Kieckhefer percebeu que a maioria das denúncias e execuções entre os anos de 1300-1500, ocorreram na França, Itália, Alemanha e Inglaterra. Nesse ponto Carlo Ginzburg (1991) comenta que a região alpina que marca a fronteira entre Itália, França, Suíça e Alemanha, foi uma região que na segunda metade do século XV, houve um elevado número de denúncias de bruxaria e execuções de bruxas. Documentos inquisitoriais confirmam tais casos.


Bruxa sendo executada na fogueira em 1447, em Wilisau, Suíça. 
Por se tratar de uma região bastante movimentada. No século XIV tais territórios sofreram com a perseguição aos judeus, leprosos, ciganos e com a Peste Negra. Nesse caso, Ginzburg chama a atenção por existir um alto nível de superstição e desconfiança com os estrangeiros e os elementos párias da sociedade, nessa região, pois acreditou-se que os marginalizados e os estrangeiros fossem responsáveis por conspirações, golpes de Estado e pela peste. Sendo assim, havia um cenário fértil para se desenvolver a histeria do medo da bruxaria. 

Apesar de que na Suíça, bruxas já fossem executadas ainda no século XV, a caça às bruxas nesse século foi bastante significativa na Itália e na Alemanha. A respeito da Itália, Tamar Herzig (2013) assinalou que no século XV houve surtos de perseguições e execuções de bruxas em Veneza, Roma, Florença, Todi, Perugia, Milão, Como, Mântua, Bolonha, Parma, Brescia etc. A região norte e central da península vivenciou pequenos surtos de caça às bruxas ainda no século XV. Posteriormente teríamos novos incidentes no sul da península. Todavia, as regiões de Piemonte e Lombardia no norte da Itália, vivenciaram surtos de caça às bruxas nos séculos XV e XVI. 

A Alemanha também foi um território que logo cedo deu início as perseguições a bruxaria. Porém se faz necessário salientar que na Idade Moderna não havia o país hoje conhecido como Alemanha, existia o Sacro Império Romano-Germânico (962-1806), a reunião de vários territórios alemãs, holandeses, franceses, austríacos, italianos, suíços, poloneses etc., que em determinadas épocas estavam sob controle do imperador ou dos príncipes alemãs. Tal característica é importante a ser salientada pois o Sacro Império detém o maior número de denúncias, julgamentos e execuções de bruxas. Estimativas apontam que entre 20 a 35 mil bruxas foram executadas em seus domínios, entre os séculos XV e XVIII. (VOLTMER, 2017). 

Desde o começo do século XV, denúncias as bruxas já eram ouvidas nos territórios do Sacro Império, tal fato é visível na condição de que o padre Johannes Nider começou a escrever seu livro O Formicarius na década de 1430, apesar de a obra ter sido apenas publicada em 1475. Na época que Nider escrevia seu livro a bruxaria ainda estava se formalizando no continente, porém, histórias sobre os poderes de bruxas que conseguiam voar e se transformar em animais já existiam, inclusive o terrível sabá, termo usado para se referir a reunião demoníaca dessas bruxas, também já era contado em alguns lugares. Nas décadas seguintes a perseguição a bruxaria se intensificou ao ponto de que O Martelo das Bruxas (1487) foi escrito em território alemão, com base nos processos alemãs de caça às bruxas. 


Três bruxas sendo queimadas em Baden, na Suíça. Johan Jacob Wick, 1585. 
A França foi o terceiro Estado que ainda no XV deu início a perseguição massiva a bruxaria. William Monter (2013, p. 220-221) destaca que nessa época, houve várias denúncias e execuções de bruxas principalmente nos territórios fronteiriços com o Sacro Império, a Suíça e Piemonte (região noroeste da Itália). Porém, o surto de uma grande caça às bruxas somente começou na França no século seguinte. 

Todavia, quando adentramos o século XVI, outros países que estavam de fora da caça às bruxas começaram relatar casos, processos e execuções. O País Basco, província no norte da Espanha, entre 1507-1539 relatou vários casos de bruxaria. Um novo surto voltaria ocorrer na década de 1610. Os Estados Italianos passaram por novos surtos na década de 1520, assim como, começou a se relatar casos de bruxaria nos Países Baixos. 

No caso o século XVI é um período paradoxal na história da caça às bruxas. A Reforma Protestante, a Contrarreforma e o Renascimento Italiano com suas mudanças filosóficas, teológicas, sociais, morais, culturais etc., causaram certo impacto no imaginário da bruxaria, contribuindo para que as perseguições diminuíssem em algumas localidades, entre as décadas de 1520 e 1550. Porém, a ideia de que o Protestantismo teria causado uma redução drástica na caça às bruxas ou não teria se empenhado nessa missão, hoje sabe-se que não é verídica. Em Estados protestantes se matou tanto ou mais bruxas do que em Estados católicos. Nesse ponto, Brian Levack (1988, p. 99-100) comenta que alguns dos mais importantes reformistas como Lutero e Calvino, acreditavam no temor a bruxaria e defendiam seu combate, apesar de não terem feito apologia a caça às bruxas, ainda assim, não descartavam que fosse algo necessário. 


“Nem Lutero, nem Calvino estavam preocupados com a bruxaria como tal. Apesar de Lutero ter dito em certa ocasião serem todas as bruxas prostitutas do Diabo e, em outra, que deveriam ser todas queimadas, sua preocupação não era com as formas tradicionais de bruxaria mas com qualquer que fosse a forma de idolatria, para ele uma feitiçaria divina. De fato, ele acreditava não ser a bruxaria do feiticeiro tão comum quanto fora no passado, antes de a verdade do Evangelho ter sido revelada. Calvino disse ainda menos que Lutero sobre a bruxaria per se. Com base no Êxodo 22, 18, ele insistiu em que as bruxas "tinham que ser eliminadas", mas a bruxaria não era de fundamental importância para ele. Mesmo assim, a preocupação dos dois reformadores com o poder de Satã aumentou a determinação de muitos de seus seguidores em agir contra as bruxas sempre que aparecessem. A preocupação luterana e calvinista com Satã também fez aumentar a ênfase no aspecto herético da bruxaria, em lugar do aspecto mágico, o que, por sua vez, fez aumentar a determinação em extirpá-la”. (LEVACK, 1988, p. 100-101). 

Gary K Waite (2013) sublinha que nas nações protestantes tanto quanto nas nações católicas, a histeria e paranoia contra a bruxaria se enraizou de forma profunda. Inclusive ele comenta que países protestantes como Escócia, Suíça, Inglaterra, Suécia, Finlândia e alguns Estados alemãs, os quais eram protestantes, mataram mais bruxas do que territórios católicos como Portugal, Espanha e os Estados Italianos. Apesar de que a Grande Polônia e a Hungria e a França foram as nações católicas que mais executaram bruxas. Tais dados revelam rompem com a ideia de que o Protestantismo agiu de forma menos fanática contra bruxaria, relegando toda a culpa a Igreja Católica.


“Um segundo efeito da Reforma sobre a bruxaria resultou da ênfase que tanto os reformadores protestantes como os católicos atribuíam à piedade e santidade pessoal. Uma das características mais salientes da Reforma foi a exortação evangélica dos pregadores protestantes e católicos para que todos os cristãos, inclusive os leigos, levassem uma vida moral exemplar e fossem responsável pela própria salvação. Em vez de simplesmente estimularem a observação de determinadas práticas religiosas (como freqüentar a igreja), os reformadores dos séculos XVI e XVII instruíram o povo a levar uma vida mais exigente e moralmente rigorosa. Esse tipo de exortação, reflexo da preocupação corrente com o perigo da tentação diabólica, estimulou a cristianização da Europa de uma maneira sem precedente. Todas as pessoas, inclusive os habitantes de áreas rurais atrasadas, foram exortadas a se tornarem cristãos ativos e moralmente conscientes. O processo iniciou-se no próprio clero, cuja conduta moral não era, em muitos casos, muito mais elevada do que a de seus párocos, estendendo-se, através dele, ao laicato”. (LEVACK, 1988, p. 102). 

Tais condições levaram ao surgimento do Puritanismo anos depois, cujo movimento ganharia grande destaque na Inglaterra. Os puritanos, os quais defendiam uma vida mais rigorosa em obedecer os mandamentos bíblicos, tornaram-se bastante conservadores em tudo que envolvesse heresia, blasfêmia e pecado. De fato as colônias inglesas onde predominaram os puritanos, o índice de bruxas julgadas e executadas foi maior. 

De qualquer forma, observa-se enquanto a caça às bruxas havia decaído em alguns territórios entre 1520 e 1550, na segunda metade do século XVI ela chegou a novas regiões como os Países Baixos, a Bélgica, Luxemburgo, Inglaterra, Escócia e a Escandinávia. Neste exemplos, os Países Baixos, a Suíça, a França, o Sacro Império, a Escócia, a Dinamarca e a Noruega vivenciariam surtos de caça às bruxas entre 1560 e 1600. (LEVACK, 1988, p. 189).


A execução de Ann Hibbins, ocorrida em 1656, em Boston. 
Quando adentramos o século XVII, a caça às bruxas ainda continua com vigor, apesar de começar a apresentar sinais de desgaste em alguns países. A Holanda antes da metade do século, começou a iniciar gradativamente a abolição das caçadas. Porém, em outros países como Inglaterra, Escócia, França, Sacro Império, Dinamarca e Noruega novos surtos de perseguição ainda continuaram. Nesse ponto Rita Voltmer (2017, p. 101) destaca a condição de que nações como a Suécia, Finlândia, Polônia, Hungria e a Rússia adentraram às grandes perseguições apenas a partir da segunda metade do século XVII. No caso se faz necessário alguns rápidos comentários.

Começando pela Suécia, essa desde o século XVI, já vinha caçando bruxas, apesar de fazer isso de forma moderada, que somente se acentuou após 1593, quando foi decretada a pena de morte para esse crime. Mesmo com a decisão da Rainha Cristina (1626-1689) de abolir a pena de morte e interromper as caçadas, isso não surtiu efeito pleno. Cristina governou de 1632 e 1654, optando por abdicar do trono. Após sua abdicação estourou duas décadas de perseguições violentas às bruxas na Suécia e na Finlândia, território que passou a estar sob governo sueco. 

Enquanto a Suécia e a Finlândia que testemunharam grandes execuções nas últimas décadas do século XVII, eram países protestantes, a república da Polônia e o reino da Hungria também na segunda metade do século adentraram as grandes perseguições as bruxas. Embora fossem nações católicas, mas por se encontrarem no leste europeu, houve uma demora para que o imaginário da bruxaria chegasse com força nestas terras, apesar de que bruxas eventualmente já fossem executadas anteriormente. Mas duas características chamam atenção no caso polonês e húngaro, ambos os países mantiveram grandes caçadas de 1660 até meados do século XVIII, mais ou menos entre as décadas de 1720 e 1750, sendo alguns dos países que mais tardiamente manteve-se na caça. A outra característica diz respeito ao fato de que a Polônia foi um dos países que mais se executou bruxas. 


“O rigor da caça polonesa às bruxas pode ser atribuído a três fatores relacionados entre si: a presença de teorias diabólicas, a ausência de um efetivo controle central sobre os julgamentos e o uso irrestrito da tortura. As teorias diabólicas eram essencialmente importadas, como também o eram em grande parte na Grã-Bretanha e Escandinávia. Os poloneses acreditavam em maleficium desde longa data, mas a crença em pactos formais com o Diabo e no sabá vieram da Alemanha na segunda metade do século XVI. Tais crenças apareceram primeiramente nas partes da Polônia próximas à Alemanha, com uma população predominantemente de língua alemã e com vínculos comerciais e culturais estreitos com as nações alemãs. De lá, as idéias espalharam-se para as demais províncias do país, apesar de aparentemente nunca terem deitados raízes na região extremo-oriental da Lituânia (que se integrou plenamente ao estado polonês no século XVI) ou na Galícia, ao sul. Não nos devemos surpreender se essas regiões da Polônia não vivenciaram em sua plenitude a caça européia a bruxas”. (LEVACK, 1988, p. 210). 

O caso da Rússia é curioso também. Não se sabe exatamente quando começou a caça às bruxas no país e quando ela terminou. Rita Voltmer (2017, p. 100) em um dos estudos mais recentes sobre a datação da caça às bruxas, indica que os russo adentraram a caça às bruxas no século XVII e a deixaram por volta de meados do XVIII. A autora também assinala que são conhecidos de 650 a 1000 processos de acusação de bruxaria, porém, essa documentação está incompleta e boa parte não foi encontrada, não se sabendo exatamente quantas mulheres foram executadas. 

Brian Levack (1988, p. 214-125) comenta que a execução de feiticeiras e feiticeiros na Rússia, já ocorria desde o medievo, havendo relatos nos séculos XI ao XIII. No século XV tivemos em 1410, o caso de 12 bruxas que foram queimadas em Pskov. Porém, Levack aponta que tais acontecimentos eram pontuais, apenas nos XVII, houve realmente uma caçada, promovida principalmente pelos tribunais seculares. Nesse ponto a Rússia foi o único país predominantemente ortodoxo a aderir a caça às bruxas, pois outros territórios ortodoxos não fizeram isso. Não obstante, Levack salienta que no caso russo, as bruxas e bruxos eram principalmente indiciados por praticarem magia negra, não por terem feito um pacto diabólico. 
Um último aspecto a ser relacionado a geografia da caça às bruxas, diz respeito as perseguições ocorridas fora da Europa, no caso, nas colônias europeias no Novo Mundo. As colônias britânicas, espanholas e portuguesas foram as únicas a registrarem com mais clareza processos contra bruxaria e até mesmo a ter vivenciado surtos, em destaque para as colônias britânicas. Embora, desde o século XVI houvesse denúncias de feitiçaria, foi apenas no XVII, que ocorreu a maioria das execuções de bruxas. 

Nesse caso é necessário salientar que a caça às bruxas possuiu características específicas no contexto americano. Em colônias como o México, Peru e Brasil, a feitiçaria era algo complicado de ser julgado e processado, pois devido a forte influência das culturas indígenas e africanas, as quais trouxeram seus costumes no uso da magia, desenvolveu-se um forte sincretismo mágico-religioso, inclusive mais marcante do que nas colônias inglesas. Esse sincretismo se enraizou de tal forma, que isso dificultou a atuação dos tribunais inquisitoriais em identificar crimes de magia, pois as autoridades coloniais não vinham a magia como algo ruim, da mesma forma que as autoridades metropolitanas. 

A historiadora Laura de Mello em seu livro O diabo e a terra de Santa Cruz (1986), estudou como os crimes de feitiçaria e bruxaria foram julgados na colônia portuguesa do Brasil. Laura salienta que no caso brasileiro o sincretismo foi realmente significativo para entender os números baixos de denúncias contra feitiçaria e bruxaria, sem contar que não havia uma distinção clara entre os dois, além do fato de que homens também foram acusados e condenados. Outro fato que a historiadora destaca é a questão que a Inquisição Portuguesa não possuiu um tribunal fixo no Brasil e nem autorizou os clérigos e juízes da colônia a julgar casos de ordem religiosa, como a feitiçaria e a bruxaria. 

Logo, só se conhece denúncias contra bruxas no Brasil, nos anos que marcam as visitas do Santo Ofício, sendo que o auge dessas denúncias se deu no século XVIII, entre 1720 e 1770, legando ao Brasil a ser junto a Portugal, um dos últimos lugares a se julgar bruxas, embora que estimativas apontem que houve cerca de 119 acusações, mas um pequeno número pegou pena de morte, pois em geral os condenados eram deportados. 

Já na América Espanhola a situação foi um pouco diferente. A Inquisição Espanhola instituiu três tribunais inquisitoriais, sediados na Cidade do México, em Cartagena na Colômbia, e em Lima no Peru. Estes tribunais ainda fundados no século XVI, possuíam direito de julgar os crimes contra a fé cristã e a igreja, entretanto, devido ao forte sincretismo mágico-religioso, já comentado, isso dificultou os julgamentos contra o uso de magia. Iris Gareis (2013) aponta que juntos os três tribunais indiciaram menos de 400 bruxas, se desconhecendo o número exato de execuções. Além disso, Gareis observa que o auge das denúncias ocorreu entre 1600-1620, período que na Espanha, havia surtos de grandes caçadas, como as ocorridas no País Basco. Como no caso do Brasil, é provável que a atmosfera da metrópole espanhola tenha refletido num aumento de denúncias e condenações de bruxas nas colônias. 

Por fim, chegamos ao caso das colônias britânicas, as quais vivenciaram seu auge de perseguição as bruxas entre 1660 a 1680, sendo que o incidente em Salém, 1692-1693 ocorreu após esse auge, sendo o último grande caso de denúncia e execução coletiva de bruxas nas colônias inglesas. Como o caso de Salém já foi comentado, apenas citarei algumas breves considerações. Diferente das colônias espanholas e portuguesa que eram territórios católicos, as colônias britânicas eram territórios protestantes, sendo que uma grande leva de puritanos se estabeleceram na região chamada de Nova Inglaterra, que na época abarcava os atuais estados de Massachussetts, Maine e New Hampshire, embora houve casos em Boston, Filadélfia, Nova York etc. (GODBEER, 2013). 

Porém, o fato de a Nova Inglaterra ter concentrado um grande número de denúncias, pelo menos 150, possa está relacionado com o alto nível de conservadorismo das comunidades puritanas, que inclusive possuíam desavenças com as comunidades anglicanas, luteranas, calvinistas etc. Esse nível de radicalismo somado as ideias de bruxaria que já estavam implantadas na colônia e ainda fervilhavam na metrópole inglesa, contribuiu para disseminar a caça às bruxas na região. Porém, Richard Godbeer (2013) comenta que além da Nova Inglaterra, o arquipélago das Bermudas, curiosamente também vivenciou um surto de perseguição as bruxas, entre as décadas de 1660-1670, tendo havia pelo menos 70 denúncias apenas naquelas ilhas. 

6. O declínio da Caça às Bruxas: 

Da mesma forma que a perseguição e o combate a bruxaria começou em épocas distintas por fatores diversos, seu fim também seguiu as mesmas condições. Rita Voltmer (2017) listou alguns países que encerraram as caça às bruxas apenas no século XVIII, período que em geral marca a época de declínio desse terrível acontecimento. Entre as nações que encerraram as perseguições às bruxas tardiamente, estiveram: Portugal, Rússia, Suécia, Finlândia, Inglaterra, Estônia, Polônia, Hungria e Suíça. Outros países aqui mencionados, encerraram as caçadas ainda no século XVII, porém se faz necessário explicar que não significou o fim a condenação de bruxas. 


Voltmer (2017) explica que existe uma diferença entre encerrar a caça às bruxas, entendendo isso como um processo em massa de paranoia, fanatismo e histeria que condenou ao longo de três séculos dezenas de milhares de mulheres e algumas centenas de homens; para a condenação eventual de bruxas. Levack (1988) comenta que mesmo após meados do século XVIII, bruxas esporadicamente eram acusadas e mortas, as vezes pelos tribunais ou, mais comumente por iniciativa popular, através de linchamento. 

Entretanto, se vimos que as perseguições se encerraram propriamente no século XVIII, além de ter noção de que os motivos variaram de lugar para lugar, poderia se apontar alguns fatores mais ou menos generalizantes para indicar o porque do fim dessa paranoia?

a) mudanças intelectuais: 

Alguns dos motivos dizem respeito as tentativas de clérigos, juristas, políticos, intelectuais etc., em tentarem banir a caça às bruxas. Vimos anteriormente que desde o século XVI houve padres, bispos, inquisidores e juízes que não foram a favor do Martelo das Bruxas (1487) e outros livros antibruxaria, alegando que se tratavam de obras que incitavam o ódio e o fanatismo. 

As Inquisições Espanhola e Romana na segunda metade do século XVII, praticamente haviam parado de julgar crimes de bruxaria, embora que a Inquisição Portuguesa ainda julgou alguns casos no século XVIII. O Conselho dos XIX da República Holandesa por volta da década de 1630, proibiu as execuções em massa de bruxas. O parlamento inglês também tentou fazer o mesmo, porém, só no XVIII conseguiu abolir as caçadas definitivamente. Essa defesa de que a caça às bruxas era fruto de fanatismo, ignorância e ódio chegou ao ouvido de alguns monarcas. A rainha Cristina da Suécia tentou abolir as caçadas, mas como visto, após sua abdicação, estas retornaram. Na França, Luís XIV e Luís XV proibiram a caça às bruxas, alegando se tratar de fanatismo e superstição. 


Retrato da rainha Cristina da Suécia, uma das monarcas europeias que tentou por fim a caça às bruxas. 
Keith Thomas (1991, p. 523-525) elenca entre as mudanças intelectuais que podem ter contribuído para o fim das perseguições em massas, o seguintes fatores: diminuição do medo de magia negra; opinião de que a magia não passava de charlatanismo ou não funcionasse; o pacto diabólico nunca existiu, foi uma invenção de clérigos fanáticos e de mulheres loucas; o medo de bruxas era resultado de gente paranoica, ignorante e histérica, não tendo sido uma ameaça real, mas fruto de uma imaginação perturbada. Tais acusações contra o fenômeno da caça às bruxas começaram a se desenvolver ainda no XVII e continuaram no XVIII, abarcando os períodos da Revolução Científica e do Iluminismo. Os quais contribuíram para racionalizar cada vez mais o mundo, espantando as brumas da ignorância e da superstição. 

Esses movimentos intelectuais contribuíram para que aos poucos não apenas as elites intelectuais, mas também as classes populares fossem se tornando cada vez mais racionais, ao ponto de não acreditarem piamente em discursos de caráter duvidoso, em ameaça de bruxaria, demônios etc., embora que isso não ocorreu da noite para o dia, havendo locais que demorou-se para que essa reflexão se implementasse. 

b) mudanças judiciais: 

Brian Levack (1988, p. 230) diz que mudanças judiciais na forma de como proceder no julgamento de bruxaria, foram cruciais para diminuir o número de execuções e até mesmo de afetar na abertura de inquéritos. Devido a problemas envolvendo a execução de gente inocente, de acusações motivadas por boatos, calúnias, vingança etc., e até mesmo testemunhos falsos, alguns tribunais passaram a agir de forma mais rigorosa quanto ao julgamento de tais crimes. 


"Houve três importantes circunstâncias judiciais e legais que contribuíram para o declínio da bruxaria: (1) a exigência de evidências convincentes no que tange ao maleficium e ao pacto; (2) a adoção de regras mais rigorosas para o uso da tortura; e (3) a promulgação de decretos restringindo ou eliminando os julgamentos por bruxaria. A primeira delas, a exigência de evidências mais sólidas da bruxaria, expressou-se de muitas maneiras diferentes. Podia tomar a forma de uma decisão judicial declarando não haverem evidências suficientes para justificar o uso da tortura; exigindo uma investigação para determinar se um maleficium poderia ter tido causas naturais; insistindo numa prova segura do pacto demoníaco, ou fazendo um apelo global de cautela maior nas causas de bruxaria. Às vezes, a exigência cética de evidência podia resultar da dificuldade em comprovar a real ocorrência do maleficium".(LEVACK, 1988, p. 230).

"Uma segunda mudança nos procedimentos legais que conduziu à significativa redução nos julgamentos e condenações por bruxaria foi a crescente resistência ao uso da tortura como instrumento de interrogatório judicial. A administração da tortura havia sido criticada no período da grande caça a bruxas, por motivos humanitários e pela razão eminentemente prática de que as confissões obtidas sob tortura não eram confiáveis. Mesmo assim, o uso regular da tortura persistiu na maioria das jurisdições européias, e foi por causa da tortura, muito mais do que por qualquer outro fator individual, que as grandes repressões puderam se desenvolver. No século XVII, porém, várias jurisdições européias adotaram regras bem mais rigorosas do que as anteriormente obedecidas para a aplicação da tortura e a admissão de provas obtidas através dela. Tais regras foram promulgadas na Espanha em 1614, na Itália na década de 1620 e na Escócia na década de 1660. Restrições semelhantes também surgiram em vários principados alemães no período posterior a 1630, talvez em parte como resultado da publicação da obra de Friedrich Spee, Cautio Criminalis, uma crítica devastadora dos procedimentos usados nos processos de bruxaria alemães". (LEVACK, 1988, p. 231). 

Frontispício do Cautio Criminalis (1631) do jesuíta Friedrich von Spee, um dos principais defensores do fim da caça às bruxas e a abolição do uso da tortura nos interrogatórios. 
Tais mudanças levaram cada vez mais aos tribunais seculares, os quais na segunda metade do XVII e na primeira metade do XVIII, eram os principais responsáveis pela caça às bruxas, a adotarem posturas para descriminalizar a bruxaria, passando em alguns países a reconhecê-la não mais como um crime, em outros, a tornaram um crime de grau moderado, e não mais severo, que anteriormente seria passível de pena de morte. Mas em geral, essa descriminalização somente se tornou oficial a partir do século XVIII. (LEVACK, 2013, p. 434). 

c) revolta popular: 

Por outro lado, as grandes caçadas, as denúncias coletivas, o caos, a paranoia, a histeria, o constrangimento público de ser acusado de bruxaria ou ter algum conhecido sendo acusado, e por fim, as execuções públicas, levaram a revoltas em distintas localidades. A população enfurecida com essa atitude severa da justiça e das autoridades, em alguns casos protestaram contra a manutenção dessas caçadas. 


"Um dos melhores exemplos da maneira como o povo de uma comunidade podia tomar medidas eficazes para interromper uma caça a bruxas vem da pequena cidade alemã de Linheim, onde em 1661 o magistrado George Ludwig Geisz executou uma parteira e seis outras mulheres por matarem um recém-nascido e usarem os despojos mortais para preparar um ungüento mágico. Ele também prendeu a mãe e o pai da criança, que haviam testemunhado não suspeitarem da parteira, havendo até exumado o corpo do bebê para mostrar que estava intacto. No desenvolvimento da causa (houve 30 execuções ao todo), quando o pai, um próspero moleiro, foi torturado, o sentimento da cidade voltou-se contra o magistrado. O moleiro e alguns outros prisioneiros conseguiram escapar e apresentar queixa contra Geisz no supremo tribunal imperial em Speyer, que deu ordens para que os processos de bruxaria cessassem. Essa providência foi tardia demais para salvar a vida da esposa do moleiro, mas a resistência popular aos processos tornou-se tão forte que um homem agrediu fisicamente a autoridade judicial que veio prender sua esposa, e o próprio Geisz foi forçado a fugir". (LEVACK, 1988, p. 229). 

d) outros fatores: 


Brian Levack (1988, 2004, 2013) menciona outros três aspectos bastante interessantes para entender o declínio da caça às bruxas, embora ele saliente de que tais fatores são questionáveis, tratando-se de hipóteses, ainda não totalmente corroboradas. Primeiro ele salienta que mudanças econômicas ocorridas em determinadas regiões possam ter influenciado nas denúncias, e não nos julgamentos em si. No caso, Levack lembra que no Martelo das Bruxas e em outras obras, alegava-se que a miséria, pragas, secas, nevascas etc., pudessem ser ocorrências originadas por bruxas, as quais supostamente possuiriam poderes sobre a natureza. 

Logo, se pensarmos que de fato houve tais acontecimentos entre os séculos XV ao XVIII, como a ocorrência de invernos rigorosos, o retorno de surtos de Peste Negra no XVII, pragas nas colheitas e morte do gado, isso poderia ter levado a população a procurar um culpado, logo, as bruxas tornariam-se o catalizador de todo esse descontentamento e revolta. Por outro lado, ele sugere que o fato de mudanças econômicas que geraram melhorias em países como Inglaterra, França, Sacro Império, Portugal, Espanha etc., podem ter contribuído para pôr de lado esse pensamento de que essas calamidades naturais fossem frutos de bruxaria. 

Tal condição é complementada com a segunda hipótese de Levack, ao sugerir que para além de problemas naturais que afetavam as comunidades agrícolas, o abastecimento das cidades e a economia, instabilidade social devido a revoltas, guerras, invasões e crises políticas também poderiam ter sido associadas com a bruxaria. Lembrando que em territórios mais fanáticos, tudo de ruim era associado como sendo resultado da ação de bruxas ou do Diabo. Em territórios luteranos e calvinistas apesar de que Lutero e Calvino não tenham dado muita atenção as bruxas, eles não negavam que as tragédias, calamidades e crises pudessem ser fruto das ações de Satanás, e reflexo do desvirtuamento dos cristãos. Com o retorno dessa estabilidade social, as perseguições as bruxas começaram a diminuir em alguns casos, em outros anos. 

Um último ponto sugerido por Levack, que dá segmento aos anteriores é o fato de que o estado de tensão gerado pelas guerras que varriam a Europa Ocidental, possam ter contribuído para a disseminação de uma paranoia, histeria e medos generalizantes. As pessoas temiam que a guerra chegassem até suas vilas, aldeias e cidades; temia-se a invasão e rapina de exércitos inimigos. Sabe-se que os ingleses, holandeses, belgas, franceses, espanhóis, alemãs, prussianos, poloneses e húngaros mantiveram-se constantemente em distintas guerras pelo continente, e isso espalhavam todo um medo, que poderia ser aproveitado por elementos fanáticos que direcionariam este as bruxas. Levack sugere que soldados alemãs podem ter disseminados histórias sobre bruxas na Dinamarca e Suécia, e de lá elas seguiram para a Polônia, quando os suecos invadiram o país no século XVII. 

Considerações finais: 

Por fim podemos sublinhar que a Caça às Bruxas foram acontecimentos reais que se desenvolveram de forma diferente, ora mais moderada, e ora mais violenta por quase toda a Europa, entre os séculos XV e XVIII, levando a denúncias de dezenas de milhares de mulheres e uma parte dessas foram executadas de distintas formas, não apenas na fogueira. Além das supostas bruxas, também morreram supostos bruxos, apesar de terem sido algumas centenas, assim como, os cúmplices que acobertavam essas bruxas e bruxos também acabaram em alguns casos pagando com a vida. 

As caças tiveram em cada país auges e quedas, mas em geral as décadas que vão de 1560 a 1630 marcaram o auge dessas perseguições. A maior parte das bruxas denunciadas e condenadas ocorreu no território mutável do Sacro Império Romano-Germânico, alcançando também a Suíça, regiões fronteiriças da França, a Prússia, a Áustria. Porém, países como a Escócia e a Polônia também tiveram grandes índices de execuções. 

Além do fato de que as caçadas não se limitaram apenas ao território europeu, mas também foram vistas nas colônias britânicas, espanholas e portuguesa, ocorrendo entre os séculos XVII e XVIII, denúncias e execuções de bruxas nas Américas, embora tenham sido em número bem pequeno se comparado com a Europa. 

A caça às bruxas pode ter surgido como um fenômeno religioso, inicialmente promovido apenas pelas inquisições, mas acabou ganhando proporções continentais e dramáticas através dos tribunais seculares, quando no século XVI, a bruxaria tornou-se um crime civil e uma preocupante ameaça pública, que sofreu influência de fatores religiosos, políticos, sociais, militares, econômicos etc. 

No caso, tanto a Igreja Católica quanto as Igrejas Protestantes contribuíram para o desenvolvimento de uma literatura antibruxaria, antimagia negra e a criação da demonologia, que repercutiu na forma de como os clérigos e os laicos interpretavam o fenômeno da bruxaria como sendo em geral um pacto diabólico, tornando as bruxas não apenas praticantes de magia, mas também servas de Satã. Por outro lado, a Igreja Ortodoxa somente caçou bruxas propriamente na Rússia, vindo a iniciar essa perseguição em data incerta no século XVII. Porém, os territórios católicos e ortodoxos sob jurisdição otomana, não apresentaram casos de caça às bruxas, revelando que o governo muçulmano dos turco-otomanos não aderiu a paranoia do combate da bruxaria, vistas em várias regiões da Europa. 

Enquanto alguns defendiam ferrenhamente o combate e execução de bruxas, outros defenderam que isso não passou de exagero, fanatismo, paranoia, ódio, ignorância etc. Essas duas formas de pensamento, entre aqueles que acreditavam na veracidade da bruxaria como um mal maior, e aqueles que acreditavam que isso era mera superstição e fanatismo, coexistiram entre os séculos XV e XVIII, apesar de que o elemento que aderiu a causa maligna de Satanás em usar as bruxas para corromper a humanidade, prevaleceu mais tempo do que a opinião daqueles que diziam que isso não era verdadeiro. 

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