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sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Contribuições feministas para o pensamento político brasileiro: as sufragistas nos anos 1920

Contribuições feministas para o pensamento político brasileiro: as sufragistas nos anos 1920


Ma. Lenina Vernucci da Silva


Este trabalho, fruto da pesquisa em andamento de Mestrado, objetiva inserir a luta feminina pelo direito ao voto enquanto fator importante para a construção da cidadania republicana brasileira, estabelecendo os possíveis diálogos deste primeiro momento do feminismo no país com os pensadores e políticos do período. O movimento feminista que surgiu com a exclusão das mulheres do espaço público; as lutas travadas; a pressão política e ousadia em publicação de artigos, manifestos e pedidos de apoio público em jornais mostram uma parte importante da historiografia brasileira ainda esquecida ou marginal dentro do debate mais amplo de cidadania, História do Brasil, lutas sociais e pensamento político. De origem burguesa, essas mulheres letradas questionaram poderes e barreiras impostas durante séculos e ousaram ocupar o espaço masculino da política e, mesmo com o conservadorismo do movimento, foi o início de uma série de ações para que as mulheres brasileiras ampliassem sua inserção social, política e econômica na vida nacional.

O trabalho insere-se no campo de Estudos de Gênero e História das Mulheres e suas interseções com a Ciência Política e a Sociologia. Os dois primeiros campos de estudos problematizam o sexo na história: reconhecem que homens e mulheres ocupam posições diferentes na sociedade e que as relações de poder entre eles escondeu o segundo em detrimento do primeiro, como se a história fosse feita apenas de homens (SCOTT, 1990; PERROT, 2005). Conforme Perrot (2005):

"As mulheres são mais imaginadas do que descritas ou contadas e fazer a sua história é, antes de tudo, inevitavelmente, chocar-se contra este bloco de representações que as cobre e que é preciso necessariamente analisar [...]".

Essa análise que a autora chama atenção contribui para que os demais campos de estudos – no caso, a Sociologia e a Ciência Política – passem a reconhecer e problematizar a presença do elemento feminino e possibilitem “novas perspectivas às velhas questões” (SCOTT, 1990). Neste sentido, o que se propõe aqui é pensar as lutas das sufragistas da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF), em particular sua ramificação estadual, a Aliança Paulista para o Sufrágio Feminino, na figura de Diva Nolf Nazário e seu livro Voto Feminino e Feminismo, como um movimento importante para questionar as igualdades proposta pela República e o espaço destinado à mulher para a concretização do projeto de nação proposto pelos republicanos.

As mulheres sempre estiveram presentes na História, no centro – como rainhas, princesas ou feiticeiras – ou nas margens – as mulheres camponesas, trabalhadoras, operárias, escravas – mas são pouco estudadas ou reconhecidas em seus próprios termos, ou seja, sob uma perspectiva feminina (HAHNER, 1981). É importante ressaltar que a FBPF não foi o único movimento feminista do período, tampouco a primeira expressão de mulheres que se reuniram por uma causa em comum; porém foi o movimento que ganhou maior expressão e reconhecimento no país, talvez por ser composto por mulheres da elite ou talvez por não ser radical, embora, nas palavras da principal liderança, Bertha Lutz:

"O movimento feminino é geralmente uma reforma pacífica, mas nem por isso deixa de ser uma revolução de costumes, praxes e leis. A nenhum movimento melhor se aplica o conceito de Revolução permanente, criado por um observador contemporâneo" (LUTZ apud SOIHET, p. 220).

Essas mulheres, sem dúvida, romperam com os ideais modernos de mulher e buscaram expandir seu conhecimento e adentrar em espaços que não eram bem-vindas. O presente trabalho é dividido da seguinte forma: em primeiro lugar será feita uma breve explanação sobre a visão dos pensadores modernos sobre a mulher e a sociedade moderna que se constitui sem reconhecê-las como cidadãs; em seguida pretende-se mostrar como esse pensamento, em certa medida, influenciou a sociedade brasileira republicana, que igualmente excluiu as mulheres da vida pública, mesmo com debates travados sobre o assunto quando da Constituinte de 1891; o item 3 traz o debate da Federação Brasileira para o Progresso Feminino que surgiu em 1922, ano de extrema importância para a historiografia brasileira, e suas lutas em prol da instrução feminina e dos direitos políticos; por fim, o item 4 debate as ideias de uma feminista que publicou um livro sobre a temática do voto feminino, retratando as lutas e os debates em torno da causa do voto feminino. Trata-se de Diva Nolf Nazário, acadêmica de Direito no Largo de São Francisco e que trouxe a público sua angústia por não ter podido votar nas conturbadas eleições de 1922. O livro provavelmente não teve um grande alcance público, mas deve ser visto à luz dos estudos de gênero e reconhecido como material histórico importante para a compreensão de um período controverso na História do país. Afinal, as promessas de igualdade da República não foram cumpridas até os dias hodiernos e localizar na História suas falhas e suas exclusões é uma maneira entender quais as mudanças e permanências para a construção de uma sociedade mais justa.

1 O anjo do lar: o papel da mulher para pensadores modernos

Segundo Varikas (2003) a sociedade moderna resignificou o político como artifício humano livre de quaisquer intervenções divinas ou religiosas, colocando o natural como o limite da liberdade política, e o contrato civil como forma de garantir aos indivíduos as promessas da propriedade, da liberdade, da vida pública. Nessa divisão, as mulheres acabaram ficando ligadas à natureza e, portanto, incapazes de participar da vida pública e do fazer político.

Para os filósofos modernos do contrato social, a razão era a fundadora da sociedade política. O que o contrato esconde, porém, é o sexo dessa razão, fundando junto com o contrato social um contrato sexual não revelado (PATEMAN, 1988). Para esses teóricos “as mulheres naturalmente não têm atributos e as capacidades dos indivíduos. A diferença sexual é uma diferença política” (p. 21). Rousseau afirmava que a posição dos órgãos sexuais determinava a posição dos sujeitos na sociedade. A influência do homem é para fora, enquanto da mulher é para dentro (SCOTT, 2005). Para o autor a mulher fala aquilo que agrada, aquilo de seu gosto, enquanto que o homem detém a fala das coisas úteis e tem a necessidade do conhecimento, afinal, “a mulher não tem que pensar, só amar (STREY; CABEDA; PREHN, 2004).

Hobbes define que o estado de liberdade, o estado de natureza, é o local onde todos são iguais e livres, inclusive livres para matar e satisfazer seus desejos. Segundo Varikas (2003, p. 183) nesse estado “as mulheres são iguais aos homens, pois não existe entre os dois sexos uma diferença de força ou previdência capaz de determinar o direito sem guerra (grifo da autora)”. Sua preocupação consiste em estabelecer que a “dominação, toda dominação, tem origem política, contratual, voluntária, nascida do consentimento” (p. 183), ou seja, é artifício humano, refutando, assim como os demais pensadores iluministas, as doutrinas absolutistas, no sentido de colocar como natural o poder do pai de família. Mas se a mulher é igual ao homem no estado de natureza, com igual capacidade de matar e detentora do privilégio de saber quem é seu filho (algo que um homem não pode ter certeza absoluta), então o poder caberia naturalmente à ela. Isso implica que a família moderna, assim como o Estado é um artifício humano, surgida de um contrato que os indivíduos cedem à um poder uno e indivisível. Portanto, a:

"relação de dependência natural, anterior ao artifício político: a dominação dos homens sobre as mulheres não é natural, vem depois do artifício; do mesmo modo, a família é uma associação política, no sentido de que é um produto humano e é regulada pelo princípio fundador de toda instituição política: ninguém pode servir a dois senhores" (p.184).

Então por que a responsabilidade da família ficou para os pais? Ora, para Hobbes é porque foram os homens, em outras palavras, os pais, que fundaram a República.

As revoluções burguesas trazem os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, mas o indivíduo desses ideais caminha na linha dos teóricos citados acima: são homens. É nesse contexto que a Declaração Universal do Homem e do Cidadão toma forma e funda o quadro assimétrico de igualdade de gênero.

Os ideais da Declaração não citavam a mulher. O indivíduo universal e livre não incluía a mulher simplesmente porque ela não existia enquanto sujeito político. Não que ela não fosse importante. Pelo contrário, a mulher é um elemento importante para a família moderna, para o bom espírito do lar, o andamento saudável para o desenvolvimento e progresso da nação. Quando Olympe de Gouges propõe, apenas dois anos depois, a Declaração Universal dos direitos da Mulher e da Cidadã, é incompreendida e esnobada pelos revolucionários, entre os quais Robespierre e Marat. Embora encaminhe para a Assembleia aprovar, tal qual foi feito com a Declaração do Homem, ela dedica à Rainha Maria Antonieta, esposa de Luís XVI, daí talvez, ser considerada traidora e condenada à forca. Mesmo diante da morte, mantém sua crença na igualdade da mulher, tendo afirmado: “A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; ela deve ter igualmente o direito de subir à tribuna”. Na declaração, levanta a crítica à “ignorância, esquecimento ou menosprezo” da mulher e dos seus direitos e lança igualmente 17 artigos com foco no direito da mulher.

A finalização da declaração é interessante. Reforça a crítica à revolução, que em nada melhorou a situação da mulher, pelo contrário, usou-a para o processo e depois a traiu. Antes era desprezada, mas respeitada, agora, é respeitada, mas desprezada. Essa frase do pós-âmbulo da Declaração de Gouges resume o papel da mulher na sociedade pensada pelos modernos: deve-se respeitá-la como um anjo do lar, como o mais belo dos seres, sensível e amado, cujos dons naturais são úteis para a paz e a preservação da família, junto com a construção da nação2, mas este é o seu espaço e só. A dura vida pública deve ficar a cargo dos homens.

A cidadania moderna, construída a partir deste momento histórico e revolucionário não apenas exclui a mulher, mas é construída em oposição a ele, enfatizando a função da mulher na esfera doméstica como fonte importante para a elevação moral da sociedade que se quer construir. O inglês Stuart Mill, no século seguinte (XIX) já avança e reconhece a importância da mulher. Em 1869, como Deputado dos Comuns, torna-se porta voz do movimento feminista e sua obra, A sujeição das mulheres, é traduzida por toda Europa. É, entretanto, uma exceção no pensamento político dos séculos XVIII e XIX. E não é o pensamento vencedor dentro dessa temática específica, ainda que os demais temas que trata – principalmente sobre o indivíduo e a liberdade – irradiaram grandes influências.

Embora o processo de Proclamação da República tenha seguido um rumo muito distante das demais revoluções burguesas na Europa, a formação assimétrica da cidadania em relação ao gênero manteve-se. Não é foco deste trabalho as exclusões de classe e de raça/etnia do processo, visto que são recortes amplos e importantes que exigem um espaço maior para trabalhar na intersecção com o gênero e poucas linhas não seriam suficiente para retratá-los3. Tampouco é foco entender a Revolução Francesa ou o pensamento dos filósofos modernos, usados aqui somente para ilustrar a situação da mulher moderna em âmbito mundial e as influências que irradiaram na sociedade brasileira, como é possível perceber em alguns discursos que serão apresentados mais adiante.

2 A República, a Constituinte e os debates sobre o voto feminino

A Proclamação da República em 1889 ocorreu em meio às crises do Império e suas relações com os proprietários rurais, os setores militares e a Igreja, gerando insatisfações e movimentações entre esses setores e entre civis. O exército, após a chamada Questão Militar4 passou a ter um papel importante na política nacional além de construírem uma autoimagem que os identificavam como os detentores da solução para a regeneração do país; também ganhava força no país a ideia de que a melhor forma para essa regeneração fosse uma intervenção rápida e pacífica (sem desordem ou violência) para a realização da república, tal qual foi a independência, sem maiores riscos (LINHARES, et al, 1990).

A Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi realizada na madrugada, conduzida pelos militares que depuseram o ministério reunido no quartel-general do Exército, sem reação de setores da sociedade ou manifestação popular de apoio. O Imperador nada fez e dois dias depois a família imperial partia para a Europa (LINHARES et al, 1990). Carvalho (1989) descreve, com base na fala de Aristides Lobo, que o povo assistiu bestializado o que se passava. Em termos de conquista cidadã, de ampliação de direitos e participação política, a jovem República já começava com problemas: a apatia política da população, falta de identidade – e a necessidade de produção de novos símbolos – e uma disputa entre as camadas da elite dominantes que, no regime anterior, não conseguiram avançar no poder político e apareciam com força no novo cenário.

O estabelecimento da República, a bem da verdade o estabelecimento da Federação, permitiu que as diversas oligarquias locais ascendessem ao poder, no seu âmbito regional, assumindo o controle da máquina administrativa, em particular da fiscalidade, construindo mecanismos para sua eternização no poder. Essa era a alma do coronelismo (LINHARES, et al, 1990)

Do ponto de vista da representação política e da descentralização do governo, a aproximação deste com o povo, sua concretização só deu-se através das elites locais, favorecendo a prática oligárquica e coronelista e dificultando qualquer oposição. As fraudes políticas e a corrupção – alvos de inúmeras críticas por parte dos republicanos à monarquia – não foram resolvidas. E muitos dos ideais que vinham sendo construídos pelos desejosos da República foram minados diante da situação real. À sua maneira mantém, da mesma forma que as modernas revoluções burguesas, a população alheia aos acontecimentos, reprimindo-a quando necessário. Para as mulheres, a situação é ainda mais grave:

"É uma “história onde os pobres, os negros e os índios são somente coadjuvantes eventuais, e as mulheres (sem distinção de raça ou classe social) simplesmente não existem” (COSTA, 1998, 91).

Seus idealizadores ou seus opositores (monarquistas ou republicanos frustrados com os resultados) retratam os fatos e eventos conforme seus lugares e seus papéis no decorrer do processo histórico. Ao mesmo tempo, personagens e narradores, constroem símbolos, imagens e discursos, em um país que tentava a todo custo acompanhar as nações mais desenvolvidas sem, contudo, mexer nas estruturas de poder.  As interpretações sobre os eventos que levaram à República, bem como seus desdobramentos, são variáveis e contraditórias. Segundo Costa (2010):

"Cada grupo explica a realidade à sua maneira, de forma diversa, quando não oposta aos demais, o que complica o trabalho do historiador e dificulta a crítica histórica. Um mero confronto das opiniões entre si não basta para esclarecer o que se passou" (p. 388).

Ainda mais quando se trata de reformas políticas ou processos revolucionários, que envolvem também aspectos sociológicos e políticos. No caso deste trabalho, o olhar de gênero para a história traz outra forma de ver os fatos do período em questão. Conforme já foi dito, este olhar implica em contextualizar como a sociedade estabelece os papéis para homens e mulheres em determinados contextos sociais, políticos e econômicos e problematizar as relações de poder entre eles. Nesta parte, as narrativas que serão analisadas foram feitas por personagens esquecidos na história, que simplesmente não existem: as mulheres e o diálogo que estabeleceram com outros personagens importantes, como os políticos responsáveis pela Constituição Republicana. Estas moças educadas da elite estiveram em contato com os políticos e pensadores de seu tempo para que estes as envolvessem em suas agendas, para que pudessem contribuir para a formação do país, visto que:

"É de esperar que o Brasil, consciente da grandeza de sua alma nacional e da nobreza do conceito de suas filhas, em breve acompanhe o sagrado movimento regenerador de uma raça" (NAZÁRIO, 2009, p. 32).

As mulheres de elite, que já começaram a se reunir pela causa abolicionista e já publicavam jornais voltados para a educação das mulheres5, queriam, portanto, continuar contribuindo para o progresso que o país necessariamente caminhava, e fazer parte da política era um passo fundamental. Nas primeiras décadas que seguiram a Proclamação, a luta pelo sufrágio passou a ser a bandeira dessas mulheres, que já estavam exigindo sua participação desde a Assembleia Constituinte de 1891, mas que fora negada. A causa reuniu alguns homens que estavam em contato com os acontecimentos na Europa e nos Estados Unidos sobre o direito de voto por parte delas (HAHNER, 1981). A frase de Diva Nolf Nazário faz parte do comentário que escreveu em seu livro, assunto que será retomado no item 4 deste trabalho, sobre o despacho negativo que recebeu do Juiz Eleitoral sobre seu alistamento eleitoral para participar das eleições de 1922. Na ocasião, a paulista decidiu que, com base em seus estudos sobre a Constituição e das aulas e apoio de seus professores na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, não havia nada que a impedisse de participar das eleições e lutou por esse direito.

De fato, a Constituição de 1891 não excluía explicitamente as mulheres, como se pode ver em seu artigo 70:

São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.
§ 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados:
1º) os mendigos;
2º) os analfabetos;
3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior;
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
§ 2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro De 1891)

Outras mulheres igualmente lutaram por isso, unindo-se a candidatos e políticos simpatizantes de suas causas, organizando movimentos e até mesmo passeatas, buscando formar uma opinião pública a seu favor e à sua causa. Muitas tentaram seu alistamento eleitoral. Josefina Alvares de Azevedo, que editava o jornal A Família desde 1888, era uma que incitava as brasileiras “agir como ser complexo, intelectual, moral e materialmente considerada” (apud HAHNER, 1981, p. 82). Como não tinha precedentes para citar afirmava que “alguma nação deverá ser a primeira a iniciar-se nesse grande melhoramento: por que não ser o Brasil?” (idem, p. 82).

Em 1910 é fundado o Partido Republicano Feminino. A ideia era representar a mulher na esfera política, de forma direta (daí fundar um partido e não uma associação). Segundo Pinto (2003):

"O estatuto do partido dá uma idéia muito clara do que pretendiam essas mulheres: não defendiam apenas o direito ao voto, mas falavam de emancipação e independência. Atribuíam à mulher qualidades para exercer a cidadania no mundo da política (o patriotismo) e no do trabalho. E, extrapolando a questão dos direitos, propugnavam o fim da exploração sexual, adiantando em mais de 50 anos a luta das feministas da segunda metade do século XX". (p. 18)

Mas é em 1920 que as lutas pelo voto ganharam força, com a volta de Bertha Lutz da Europa e a criação da Federação Brasileira para o Progresso feminino, maior expressão do feminismo na época (PINTO, 2003), antes, porém, é importante acompanhar o debate travado na Constituinte e suas consequências para as mulheres.

Entre os políticos essa não era uma questão simples. Poderia a mulher participar da política sem colocar em risco a família brasileira? Teria ela capacidade intelectual para a vida pública?

As opiniões se dividam. Entre os defensores, havia figuras tão ilustres como os posteriores presidentes da República, Nilo Peçanha, e Hermes Fonseca. Entre seus opositores, Pedro Américo, Lauro Nina Sodré e Epitácio Pessoa (que reconhecia parte dos direitos da mulher, mas opunha-se ao voto). Estes e outros travaram debates sobre a temática com base na suposta função natural da mulher e sua aptidão ou não para o mundo agressivo da política.

No trecho abaixo, de Muniz Freire6, percebe-se claramente que a sociedade moderna tem a política como um artifício humano, mas fundamenta-se em bases pré-políticas e anteriores ao fazer humano quando situa parte do elemento humano – as mulheres – na natureza, conforme análise de Varikas (2003), diz o seguinte sobre estender o voto às mulheres:

Com o maior respeito, que devo aos autores de semelhante ideia e àqueles que a adotam, devo declarar, Sr. Presidente, que essa aspiração me afigura imoral e anárquica [...], porque, no dia em que a convertermos em lei pelo voto do Congresso, teríamos decretado a dissolução da família brasileira [...]. a mulher sempre teve, e cada vez mais, a função que lhe é própria [...] querer desviar o espírito feminil desse dever, dessa função, que é a base de toda organização social, cujo primeiro grau é a família, para levá-lo ao atrito das emulações práticas, no exercício de funções públicas, é decretar uma concorrência dos sexos em relações da vida ativa, nulificar esses laços sagrados da família em torno da vida puramente doméstica da mulher, e corromper a fonte preciosa da moralidade [...]

E continua:

"O homem é, pela sua superioridade de caráter, votado principalmente para as labutações da vida ativa, a mulher, pela superioridade de afetos, tem na sua vida doméstica o seu destino a realizar.

Sua concepção é de que a mulher é um elemento importante para a conservação de valores morais e da família e que o espaço da vida pública pode corrompê-la, portanto, não é seu lugar natural. Segundo o congressista Barbosa Lima não é por uma questão de direito ou de capacidade da mulher, mas por seu papel social e conceder o voto não faria diferença, pois:

[...] Toda sua dedicação para com o filho não só quando o alimenta, como durante a primeira infância, é pouco atenta quanto a complexidade da educação. [...] Dê a mulher a faculdade de votar e raríssimas serão as que troquem os encantos do seu nobre emprego pela ingratidão dos embates eleitorais ou pela secura e aridez das lutas parlamentares [...]".

Segundo Besse (1999) essa obsessão com os papéis e comportamentos da mulher aumentava conforme o rápido progresso que passava o país, a chegada de imigrantes, a migração do campo para a cidade, a introdução de novas ideologias, entre elas o feminismo, tudo isso somado as invenções que o fim do século trazia, como o trem, o cinema, rádio, a fotografia, o telégrafo, o telefone, vários utensílios domésticos. No âmbito científico, as aplicações das modernas teorias científicas, o contato que a elite tinha com os altos estudos das sociedades mais avançadas, a educação de prestígio que inclusive algumas mulheres podiam gozar em outros países, tudo levava à um avanço que tinha que ser controlado, para que o progresso fosse o único caminho possível. Era necessário vigiar a sexualidade das raças e das mulheres, cuidar para que o casamento e a maternidade e a educação feminina não se desvirtuassem.

Mesmo os que defendiam o direito de voto às mulheres o fazem sem questionar seus papéis, isso inclusive por parte das sufragistas como será visto mais adiante. Costa Machado afirma que se a questão se encontra no terreno dos direitos, as mulheres devem gozar dos mesmos direitos e cita a fala de Olympe de Gouges quando subiu ao cadafalso. E acredita que assim como a República foi vista como utopia pelos monarquistas, mas venceu, há de vencer também o direito das mulheres:

Estou convencido que esses que contestam o direito das mulheres na vida pública quando vencidos farão melífluos discursos e dirão – sempre fui partidário da mulher; sempre combati para que ela tivesse na direção do país o mesmo direito que os homens, como poderia consentir que os verdadeiros anjos tivessem posição subalterna!

Depois continua:

A mulher é dotada de inteligência, ela ama este país, ela é instruída, ela paga imposto, e entretanto não pode votar, não pode exercer o direito de voto, que é tão pequenino e mesquinho, ao passo que um homem que só tem a enxada, que apenas sabe ler e escrever um bocadinho, pode votar e ser votado?

E na conclusão de sua defesa questiona como que o fato dela exercer uma profissão pública (magistério, medicina, advocacia, entre outras) que exigem muito mais tempo e dedicação não desorganiza a família, mas ir para um dia para deixar seu voto iria atrapalhar?

Mas encerram-se as sessões e a Constituição não define se deve ou não a mulher votar. Os políticos mantêm suas plataformas em seus mandatos ou programas eleitorais. As eleições de 1909, por exemplo, primeira campanha eleitoral vivenciada no país com candidatos em lados opostos, desperta a opinião pública, visto que o candidato vitorioso – o militar Hermes Fonseca – não foi unanimidade: Rui Barbosa se elege em cidades mais independentes. Este último, apesar de defensor dos direitos liberais, não inclui a bandeira do sufrágio feminino, mas durante a constituinte havia manifestado a igualdade política entre os sexos (PINTO, 2003). Juvenal Lamartine é outro que irá, no Rio Grande do Norte, propor projetos que incluam a mulher, especialmente em relação ao voto.

Com essas exclusões e as diversas manifestações e revoltas populares que eclodiam, a República dava seus passos conforme previu Silvio Romero: incapaz de fundar uma república democrática e livre (COSTA, 2010). Segundo Carvalho (2002), os direitos políticos e civis beneficiavam poucos e os direitos sociais nem eram alvos do governo, ficando a cargo das instituições religiosas ou particulares. Com o coronelismo e as fraudes eleitorais, mesmo com a preocupação em votar, qual seria a real vantagem nesse sistema? Por que as mulheres de elite tanto se preocuparam com essa questão?

Duas razões podem ser pensadas: porque o espaço da política é difícil de transpassar, masculino, da fala e do debate e provar que eram capazes de ocupar esse espaço sem masculinizar-se era algo importante para essas moças dos novos tempos e porque era uma forma de participar do estimado progresso do país, contribuindo para a elevação moral do país e sua grandeza. Segundo Soihet (2006), o tom moderado do movimento sufragista também era uma estratégia: era possível provar que podiam fazer parte do mundo da política sem prejudicar a família e as estruturas sociais.

"(...) uma sociedade de brasileiras que compreendessem que a mulher não deve viver parasitariamente do seu sexo, aproveitando os instintos animais do homem, mas que deve ser útil, instruir-se e a seus filhos e tornar-se capaz de cumprir os deveres políticos que o futuro não pode deixar de repartir com ela". (Bertha Lutz apud SOIHET, 2006, p. 29).

Os debates em jornais e em reuniões promovidos pela Federação Brasileira para o Progresso Feminino mantinham o tom moderado, porém enfático, do dever da mulher em ser instruída e cidadã participativa. Era preciso mostrar para seus contemporâneos que interessava a todos o envolvimento da mulher nas questões públicas, tornando-a útil para a sociedade e para si mesma, conforme os objetivos da própria Federação.

3 A década de 1920 e a FBPF

O Brasil dos anos 1920 passa, segundo Lourenzo e Costa et al (1997) por uma espécie de aceleração histórica, com novas ideias e transformações que vão refletir em todos os aspectos da sociedade: artístico, cultural, econômico e político. Do ponto de vista econômico e político o país passava pela emergência da indústria e a crise do modelo primário-exportador e, consequentemente, a contestação do poder da burguesia cafeeira e o acirramento da polarização das elites. Vários movimentos expressam esse momento: o tenentismo, a criação do Partido Comunista Brasileiro, nas artes o movimento Modernista inaugura uma crítica antropofágica da arte nacional e com mais força e organização, o movimento feminista.

"Em suma, foi um momento de grande efervescência e busca de soluções para os problemas do Brasil nos mais diferentes âmbitos, observando-se o empenho de inúmeros intelectuais em dar ao país uma face nacional e moderna, através da valorização de uma cultura que integrasse as diversidades. E o movimento em busca de reconhecimento de direitos das mulheres inseria-se neste bojo” (SOIHET, 2006, p. 33).

A cientista Bertha Lutz participa da Primeira Conferência Inter-Americana de Mulheres, em Baltimore, realizada em 1922. começa a ligação com a NAWSA – National American Woman’s Suffrage Association, organização sufragista estadunidense, que vai ser a grande influência do feminismo liderado por Lutz no Brasil. É fundada a Associação Pan-Americana de Mulheres, Bertha é eleita Vice-Presidente, e fica determinado que cada país teria uma Associação Nacional, subdividida em associações estaduais. Com o apoio da sufragista estadunidense Carrie Chapman Catt para a elaboração dos estatutos da nova associação é fundada a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, FBPF, substituindo a Liga para a Emancipação Intelectual da mulher que tinha sido criada um ano antes. Data da inauguração oficial é em nove de agosto de 1922, com a presença da líder americana, considerada por Bertha Luta a mãe espiritual da entidade. Os primeiros objetivos consistem na educação e instrução das mulheres e a luta pelos direitos políticos: mulheres incluídas na palavra “cidadãos” da Constituição Republicana.

Conforme dito anteriormente a Constituição não excluiu nem incluiu a mulher como eleitor e, consequentemente, como candidata. Com aliados importantes, como o governador e depois Senador Juvenal Lamartine, a FBPF consegue pareceres favoráveis para uma nova discussão sobre o voto feminino no congresso, em 1927, mas sequer é votado no Congresso. Durante os anos 20 a Federação promove palestras e encontros sobre a temática da política e do sufrágio em inúmeras cidades que tiveram filiais da federação.

Figura 1 - Diário Oficial 1927 - Estrato de Estatutos. Sobre a formação da FBPF em nove de agosto de 1922. 

A principal tática era a pressão direta aos membros do Congresso, por meio de suas influências e de seus familiares, participavam de reuniões e escreviam cartas sobre a temática feminista.

Em razão do Centenário da Independência, a FBPF realiza na capital Federal entre os dias 19 e 23 de dezembro de 1922 a Conferência pelo Progresso Feminino. Realizada no Edifício da Ordem dos Advogados, contou com grande assistência e pessoal interessado. Entre os presentes que compuseram a mesa estavam: a Vice-Presidente da Associação Pan-Americana de Mulheres e a Presidente da FBPF, Bertha Lutz; Carrie Chapman Catt, presidente da Associação Americana de Mulheres; a delegada norte-americana Van Lennap; O. Manys delegada da Aliança dos Sufrágios da Holanda; a escritora Júlia de Almeida; Jeronyma Mesquita e Stella Duval. Essa mesa mostra o diálogo travado entre as feministas brasileiras com as demais feministas ao redor do mundo. Segundo Alves (1980) a aproximação maior ficou com as sufragistas estadunidenses, o que decorre em certa medida o feminismo mais liberal e com foco em um aspecto dos direitos. Ainda para essa autora, o fato de Bertha Lutz carregar em torno de si as lutas travadas pela Federação foi o ponto forte e fraco do movimento, pois mantinha a luta de forma comportada e dentro dos limites possíveis. Por outro lado, reconhece que se tivesse feito um embate mais direto o movimento não teria conquistado a simpatia e a repercussão que alcançou.

Segundo Besse (1999) e Alves (1980) as feministas ligadas à Federação de maneira geral adotaram uma postura conciliadora com os homens, de tal forma que seus atos não pudessem lembrar as segregacionistas radicais da Inglaterra e da França, ou de algumas brasileiras isoladas que foram mais agressivas em suas lutas, como a Pagu7 e Maria Lacerda Moura8. De maneira geral essas feministas sufragistas ajudaram a legitimar os ideais burgueses.

Um dos principais interlocutores, o Senador Juvenal Lamartine teve um parecer sobre o voto feminino publicado no jornal A Noite em 14 de dezembro de 1921, antes da emenda que ele propôs em 1927. Na notícia é interessante perceber a crítica feita para as feministas radicais que, segundo o jornal não conseguiam manter o tom pacífico, assumindo

um caráter irritante e grave, determinando uma crise muito séria devida à ação tumultuosa das “sufragetes”, que foram ao extremo do emprego de medidas violentas, enquanto as “sufragistas” se mantinham dentro da ordem, na propaganda das suas ideias.

Apesar das críticas contemporâneas, no trecho em questão é possível perceber que se a Federação Brasileira não se “comportasse” provavelmente teria ficado a margem, tal qual ficaram outros movimentos, ou seriam seriamente reprimidas, como era de praxe o tratamento dispensado aos movimentos sociais do período. Neste sentido, a visão de Soihet sobre o feminismo tático de Bertha Lutz faz muito sentido:

a utilização deste recurso revela uma das táticas próprias a sujeitos submetidos a relações desiguais de poder, que percebem sua incapacidade, num dado momento, de questionarem as prerrogativas da vontade dominante. Pelo contrário, reverenciam as regras estabelecidas, embora busquem perseguir objetivos próprios. Nesse sentido, impossibilitados de lutar abertamente por seus objetivos, tentam alcança-los, fazendo crer aos dominantes que é vontade deles, fazer o que eles, dependentes, querem que seja feito e para conseguir seus objetivos recorrem a alguns signos consagrados por aqueles.

E mesmo assim foi um movimento que encontrou resistência, conforme foi visto no item 2. Para além das falas citadas por políticos, tem também as charges e peças de teatro que ironizam as mulheres que tinham interesse por política, como machonas, feias, amorais. Por isso é importante analisar a situação dentro do seu contexto histórico, sem cair no anacronismo de exigir maiores questionamentos – como a questão da sexualidade ou dos próprios papéis de gênero – quando estavam ainda em um primeiro momento e a visibilidade política era a mais urgente.

O discurso de Catt na Conferência do Centenário é ilustrativo para o presente trabalho. Primeiro por mostrar as estreitas relações que o Brasil buscava ter com os Estados Unidos em pleno período da chamada Doutrina Monroe9 que, segundo a sufragista, em princípio “se resumia em evitar que alguma monarquia tomasse pé no Novo Mundo” e depois deu lugar as relações comerciais e a “união das mulheres deste continente para o progresso geral” (apud NAZÁRIO, 2009, p. 82). Mas o mais interessante talvez seja a compreensão que teve de seu período histórico quando discursa sobre a mulher e o lar. Para ela os que ainda se opõe ao voto feminino não percebem as mudanças que o novo tempo trouxe e que a mulher já está há algum tempo fora do lar, principalmente após o surgimento da grande indústria.

A exaltação do moderno, do desenvolvimento econômico e da cultura e arte que o tempo trazia era característico dos pensadores, artistas e políticos do período e as feministas usavam disso em seus textos e discursos. E a comparação com as outras sociedades evoluídas era ao mesmo tempo a plataforma e a crítica: tinha que acompanhar o progresso, porém tinha que encontrar seu caminho e autonomia com base em sua própria realidade. Na Constituinte isso ficou bem claro: os contrários ao sufrágio feminino enfatizavam o perigo que isso poderia representar e que por isso nenhuma nação tinha ousado aprová-lo. Os que defendiam afirmavam que infelizmente o Brasil não tinha coragem para ser pioneiro, mas que tão logo fosse feito em outra nação mais avançada provavelmente não ficaria atrás, conforme o discurso de Costa Machado que, na ocasião, afirmou: “o que é o progresso senão a novidade?”. E o Brasil não conseguiu ser a novidade!

4 Diva Nolf Nazário e o Voto Feminino

Em São Paulo é fundada a Aliança Paulista pelo Sufrágio Feminino cuja finalidade é “Assegurar às mulheres brasileiras o direito de sufrágio devendo manter-se independente de partido político e orientação sectária” conforme estatuto10. Ligada à FBPF tem entre suas finalidades a educação e a instrução feminina, o estímulo à organização em temas de comum interesse das mulheres e “estreitar as relações de amizade com os demais países americanos” (art. 9).

As informações sobre a Aliança Paulista são encontradas no Arquivo Nacional juntamente com os documentos da FBPF, porém nesta parte o objetivo é compreender alguns discursos feitos pela paulista Diva Nolf Nazário em seu livro, publicado em meio às lutas promovidas pela Federação e demais ligas estaduais e municipais.

Regina Cecília Maria Diva Nolf Nazário11 nasceu no município de Batatais, interior do estado de São Paulo, em 22 de novembro de 1897, filha do Belga Ivão Nolf e da brasileira Maria Rita de Paula Pinto Nazário. Com dez anos de idade empreendeu uma viagem para a Bélgica em companhia de seus pais, onde permaneceu até 1917 e realizou seus estudos. Provavelmente, assim como Bertha Lutz, teve seu contato com o feminismo europeu durante sua estadia no país. Em sua volta ao Brasil, decide cursar direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde ingressa em 1921 e se forma com louvor em 1924. Seu companheiro de sala é também seu futuro marido. A pesquisa de campo feita em Batatais conseguiu localizar alguns outros recortes em jornais de publicações feitas pela acadêmica depois de formada, porém não conseguiu até o presente momento descobrir se chegou a exercer a profissão.

Diva Nolf Nazário, secretária da Aliança, participa da Conferência promovida pela FBPF no Rio de Janeiro e traz a liderança de Catt para São Paulo que faz seu discurso pela emancipação da mulher, traduzido por Diva Nolf. Em seguida, a paulista também faz um discurso. O conteúdo desse encontro e outros assuntos foram publicados por Diva Nolf em 1923 em um livro que ela intitulou Voto feminino e feminismo: um ano de feminismo entre nós, com o objetivo de reunir artigos sobre voto feminino, direitos políticos da mulher ou assuntos equivalentes, reproduzidos com seus comentários no jornal de sua cidade natal Gazeta de Batataes que ela elogia em seu prefácio, visto que ele “amavelmente, franqueou suas colunas a um pouco de propaganda feminista”.

Figura 2 – Capa do exemplar original do livro de Diva Nolf Nazário, com dedicatória para a Gazeta de Batates. A obra encontra preservada pelo Memorial dos Caiapós, em Batatais/SP.

De maneira humilde, apresenta a obra como um livrinho sem grandes pretensões para além de colaborar com “a nobre causa do Feminismo que, no Brasil, há de ser brevemente vencedora, para a glória da nossa Pátria e o respeito de suas magnas leis” (NAZÁRIO, 2009, p. 17). O tom quase se desculpando é muito presente em outros discursos seus, mas não esconde suas convicções. Na verdade, consegue fazer um debate ousado com sutileza e charme. Seu livro é uma coletânea de publicações de artigos que escreveu sobre feminismo (ou que respondeu para quem escreveu) e dos discursos que acompanhou sobre a temática. Dentre tantos temas interessantes, o recorte para o trabalho será seu pronunciamento na Conferência em São Paulo e o discurso de Catt.

Nas páginas 61 a 68, a autora traz os resumos das reuniões feministas em São Paulo. Segundo ela, o discurso de Chapmann Catt fazia uma análise de conjuntura sobre “a evolução social, moral e intelectual da mulher nos diferentes países da Europa e das Américas” (p. 61-62) e uma análise do pan-americanismo (a questão da Doutrina Monroe, já citada) e dos direitos políticos do sexo.

Os dados que traz inflamam as sufragistas brasileiras: das 54 nações independentes, 28 já concederam o voto às mulheres, “começando pela América, desde a ponto do Alaska até o México as mulheres votam. Na Europa o mesmo se dá do Norte até a Itália, com exceção da França12 e da Suíça” (p. 67). E pensar que o Brasil poderia ser pioneiro! Em suas palavras:

"No entanto um continente escapou, o continente sul-americano, onde há ausência total dos direitos femininos. Entretanto esta situação não pode deixar de ser transitória. O voto é uma questão vencida, não podendo a América Latina, sempre progressiva, escapar a este movimento que representa um destino mundial" (p. 67)

É recorrente o uso das palavras progresso, moderno, grandiosa, entre outros adjetivos ufanistas, um discurso presente em praticamente todos os idealizadores da nação. Ao final de sua fala, Catt ressalta a importância dos homens que apoiam o movimento visto que “trabalharão pelo interesse único do lar, para o estreitamento dos laços da família, ao lado do homem trabalhando pelo progresso constante deste grande país” (p. 68). O homem não representava o inimigo e muito menos era objetivo questionar a família. Pelo contrário, é constante no movimento a exaltação da família e o reconhecimento do papel da mulher enquanto mãe e responsável pela boa educação dos filhos para atuarem na formação do país.

Após aplausos, segue com a fala da Srta Dra. Walkyria Moreira Silva, advogada do fórum paulista dissertou “com brilhantismo” sobre a situação jurídica da mulher no país. Nesse discurso – sua dissertação – fez uma apreciação da mulher no direito romano até a época presente, focando no Código Civil Brasileiro. Embora Nazário não detalhe esse discurso em seu livro (ela não justifica o motivo, mas lamenta não ter tido a oportunidade de publicar o “bem fundamentado discurso da simpática advogada”), é interessante pensar seu conteúdo, pela atualidade do tema em discutir direitos sociais da mulher, principalmente em relação ao casamento e quem disse, visto que a jovem Silva era advogada em um período em que poucas mulheres tinham ensino superior: Diva Nolf também estava na academia de Direito13 e em sua turma havia apenas ela e outra aluna; Bertha Lutz era cientista e foi a segunda mulher a entrar em um cargo público; tantas outras eram professoras, profissão mais aceita para uma mulher do período.

O discurso de Diva Nolf foi publicado na Revista Feminina, número 105, em fevereiro de 1923 com o título O voto feminino; no Diário Popular de 25 de janeiro de 1923; no jornal O comércio de 15 de janeiro do mesmo ano e na Gazeta de Batatais, números 843 e 844. A Revista Feminina faz uma introdução sobre ela em que destaca o fato de ser acadêmica de Direito e uma jovem que já tanto fez em prol dos direitos femininos. Sua alocução começa dando mais um alerta da função da FBPF e da Liga Paulista, não são radicais, são “senhoras pacíficas”. Conforme já foi dito, o movimento adquiriu esse tom por sua aproximação estratégica dos políticos, o que não tira seu caráter conservador. A fala abaixo esume bem o que foi o feminismo do período:

"A ideia de perturbação da ordem deve absolutamente ser-lhe tirada, visto não ser possível admitir-se que o Papa enviasse a sua benção às sufragistas inglesas por considera-las anarquistas e incendiárias, a desejarem a completa destruição da sociedade e da família em troca apenas da satisfação de ver realizado o voto feminino. Elas são o que nós somos: simples mulheres que desejam tomar parte na discussão, na aprovação e na aplicação de leis que regem a sociedade a que pertencem, muitas dessas leis referindo-se unicamente à sua pessoa" (p. 63).

Não deixam de ser revoltadas, pois tiveram seus direitos negados. Mas sua luta é melhorar a nação, engrandece-la. São colaboradoras e exigem somente isso: colaborar com sua pátria. E não tardarão em fazer isso visto que:

"O projeto que se acha na mesa das altas Câmaras da República, a do Exmo Sr. Maurício de Lacerda, na Câmara dos Deputados do Estado do Rio, e a infelizmente tão recente, mas ainda assim bem grata, do Exmo. Sr. Fontes Junior, no Senado Paulista, vem provar à sociedade que homens importantes neste país não pretendem deixar a pátria vegetar num recanto esquecido do grande e belo jardim do progresso das nações civilizadas" (p. 63).

Aproveita a citação sobre o Senado e a Câmara e expõe alguns argumentos debatidos tanto na Constituinte como na carta que recebeu em 1922 negando seu alistamento eleitoral. Dentre esses a questão do lar volta a cena: agora é possível usar exemplos dos países que já concederam o direito ao sufrágio feminino e perceber o que ocorreu lá. Diva afirma que ao contrário dos temores o que se tem visto é justamente uma melhoria concorrência, uma melhoria para uma cooperação mais eficaz para a paz universal e o bem estar da humanidade. Depois questiona: “o que muitas mulheres escrevem nos jornais, e reuniões como esta não equivalem a manifestação em praça pública?” Após mais algumas falas sobre os apoios que o movimento constantemente recebe, finaliza com vivas para o país e ao voto feminino.

Analisar discursos, revistas e livros históricos é sempre um desafio para o pesquisador. Sabe-se de suas limitações e imparcialidades, suas posturas e ideais políticos, que quem escreveu é narrador e personagem, é sujeito e objeto do seu tempo presente, mas, bem trabalhados, servem para uma reconstituição de um período de forma muito rica e, neste caso, o livro publicado sobre um ano de feminismo entre nós possui um valor inestimável para um novo olhar para a História. Ainda que pouco usado nos cursos e disciplinas, os estudos de gênero oferecem compreensões de relações de poder que são marcadas por continuidades e rupturas. A questão da mulher na política ainda é um tema contemporâneo, então por que não entender as raízes dessa exclusão? Entender que a questão não é saber o porquê não houve grandes estadistas na história, mas indagar qual o espaço que a História reservou às mulheres, ou até que ponto esse é o espaço mais importante de ser estudado (daí os estudos sobre cotidiano e vida privada). Afinal, se a Deusa Clio é a deusa da História, responsável por escrevê-la, nada mais justo do que reconhecer a escrita e as falas das mulheres.

NOTAS: 
2 O poema de Victor Hugo O homem e a mulher é ilustrativo do período, já que “o homem está colocado onde termina a terra, A mulher, onde começa o céu”. Se a mulher não é do mundo terreno, então não deve se envolver em suas questões. Por isso ela é somente o “anjo do lar” e assim deve permanecer.  
3 A questão de raça/etnia e classe social aparece o tempo todo nos diálogos com o gênero, visto que as mulheres que aqui serão tratadas são da elite, ou seja, brancas e ricas.
4 Segundo Linhares (et al,1990) a Questão Militar foi um conjunto de incidentes entre o Exército e o governo, sendo que o principal problema estava na tentativa do governo Imperial em disciplinar oficiais que questionassem publicamente seu poder. Essas e outras punições severas revoltaram os militares.  
5 Sobre esse assunto ver os livros de Buitoni, Dulcília Schroeder. Mulher de Papel: A Representação da Mulher na Imprensa Feminina Brasileira. São Paulo: Loyola, 1981; e Imprensa Feminina. São Paulo: Ática, 1990.  
6 As citações da Constituinte foram retiradas do livro de Diva Nolf Nazário, mas é possível sua consulta online no seguinte endereço:
http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/PQ_Pesquisar.asp  
7 A vida de Pagu é retratada em várias obras, entre elas FURLANI, Lucia Maria Teixeira. Pagu, Patricia Galvão: livre na imaginação, no espaço e no tempo. Santos/SP: Editora da UNICEB, 1989.
8 Sobre a história de Maria Lacerda Moura verificar a obra de LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. A outra face do feminismo. Maria Lacerda Moura. São Paulo: Ática, 1984.  
9 Em linhas gerais, a Doutrina Monroe tinha como objetivo a independência das Américas em relação à quaisquer formas de governo. Porém foi uma maneira dos Estados Unidos estender sua área de influência aos demais países do continente. ALVES, Júlia Falivene. A invasão cultural norte-americana. São Paulo: editora Moderna, 1989.  
10 Os arquivos da Federação Brasileira para o Progresso Feminino estão disponíveis no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, sob a anotação QO.ADM.CPA na seção de Coordenação de Documentos Escritos. A pesquisa foi realizada em janeiro deste ano.
11 A história da escritora é contada a partir de um artigo feito pela historiadora Clotilde de Santa Clara Medina Cardoso, publicado em uma revista local de Batatais. Além disso, a pesquisa de campo conseguiu localizar uma parente de Diva Nolf, acrescentando informações necessárias sobre sua história.  
12 A França foi um país que demorou para reconhecer os direitos das mulheres, sendo incluídas na lista eleitoral apenas em 1944. A Suíça foi o último país ocidental a reconhecer esse direito, em 1971.  
13 Sobre as mulheres na USP, a professora Eva Blay escreveu o livro Mulheres na USP: horizontes que se abrem (editora Humanitas). O livro retrata as dificuldades das primeiras mulheres ingressantes que posteriormente tentaram a carreira docente em sua universidade. O livro traz muitos dados da obra de Diva Nolf Nazário para contextualizar o período, o que prova que o livro é de fato uma fonte histórica importante.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BONACCHI, Gabriella; GROPPI, Angela (org). O dilema da Cidadania. Direitos e Deveres das Mulheres. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995
CARDOSO, Clotilde de Santa Clara Medina. Diva Nolf Nazário, uma batataense defensora dos direitos políticos da mulher. In: Amicus. Sociedade Amigos da Cultura. Ano VI, n. 11. Maio, 2005.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letra, 1989.
COSTA, Ana Alice Alcantara. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/UFBa -Assembléia Legislativa da Bahia, 1998.
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: editora UNESP, 2010.
HAHNER, June. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981.
LINHARES, Maria Yedda (org.) História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.
LORENZO, H. C. de & COSTA, W. P. da (org.) A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora da UNESP/FAPESP, 1997.
NAZÁRIO, Diva Nolf. Voto feminino & feminismo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003
RIBEIRO, Antonio Sérgio. A mulher e o voto. Artigo Disponível no site da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.
http://www.al.sp.gov.br/web/eleicao/mulher_voto.htm. Acesso em 29 de abril de 2013.
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__________. O enigma da igualdade. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005.
SOIHET, R. O feminismo tático de Bertha Lutz. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006. Série Feministas.
STREY, Marlene Neves; CABEDA, Sônia T. Lisboa; PREHN, Denise Rodrigues. Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004
VARIKAS, E. Naturalização da dominação e poder legítimo na teoria política clássica. Estudos Feministas, Florianópolis, 11(1): 336, 2003.


Fonte: SILVA, Lenina Vernucci. Contribuições feministas para o pensamento político brasileiro: as sufragistas nos anos 1920. Anais da I Semana de Pós-Graduação em Ciência Política: interfaces da Ciência Política, 2013. 


sábado, 6 de janeiro de 2018

Religiosidade popular e Folia de Reis

No dia 6 de janeiro é comemorado anualmente em alguns países cristãos de maioria católica a chamada Festa de Reis, Folia de Reis, Reisada, Dia de Reis, Dia dos Três Reis Magos etc., festejo antigo que remonta suas raízes no período medieval europeu, associando-se a outras festividades que marcavam o período de dezembro, janeiro, fevereiro e março, época conhecida na Baixa Idade Média (XI-XV) e na Idade Moderna (XVI-XVIII) como um período de festejos que ia do Natal ao Carnaval. Sobre essa festividade trago o seguinte texto, o qual aborda um pouco a respeito. 


Religiosidade popular e Folia de Reis


Ma. Gabriela Marques Gonçalves


Introdução

Este artigo tem como objetivo fazer uma explanação inicial sobre o tema da religiosidade popular tendo como referência a Folia de Reis, a partir de uma revisão bibliográfica. Para isso é importante ressaltar que o debate teórico a cerca do conceito e as próprias características da festa na contemporaneidade exigem um olhar atento na tentativa de não reduzir essas esferas a suas fundamentações mais tradicionais.

Ressalta-se, assim como Renata Menezes (2004), que todo o esforço para delimitar este campo de estudo, bem como teorizá-lo, é de fundamental importância para a compreensão das mudanças e ressignificações que ocorreram na sociedade e, logo, nestes dois domínios que serão aqui abordados, a religiosidade popular e a Folia de Reis.

Por isso, não considera-se pertinente abandonar o conceito de religiosidade popular ao se trabalhar teoricamente algumas manifestações, no entanto é preciso ter em mente que estas já não possuem características idênticas àquelas de quando o conceito foi fortemente delimitado e por isso já não abarcam algumas definições de maneira tão sistemática quanto antes. Essas manifestações continuam sofrendo influências não só da fé de seus sujeitos e interferências da Igreja, mas também da vida social, política, cultural e econômica como um todo.

"Deveremos sempre situar as religiões que desejamos conhecer em seu contexto histórico e social, buscando as razões de sua existência na nossa realidade. [...] como conjunto de crenças e práticas sagradas professadas por determinados grupos sociais". (OLIVEIRA, 1988, p. 107).

Assim, não se deve pensar a Folia de Reis e sua religiosidade popular a partir de uma perspectiva de ingenuidade dos seus sujeitos, ou mesmo de uma supersticiosidade presente nessas narrativas das interpretações do sagrado, mas sim por meio de construções simbólicas que contribuem na (re)construção de discursos que envolvem inclusive disputas de hegemonia.

"… a ideia de uma religiosidade popular nos lembra que as religiões envolvem questões de legitimidade e estão marcadas por disputas, configurando campo de tensões entre seus membros ou fiéis, questões que devem ser incorporadas à análise, isso significa não apenas reproduzi-las, num deslizamento ingênuo por sobre as categorias nativas, mas tomá-las como um dos problemas a serem explicitados e explicados". (MENEZES, 2003, p. 2).

Partindo dessa perspectiva pode-se, como sugere Heloísa Martín (2003), desconstruir esferas fortemente delimitadas historicamente, como a própria religião. Com isso, o que antes estava demarcado dentro do conceito de religiosidade popular, pode ser entendido como constituindo uma rede complexa de elementos que compõem a própria vida, em sua cotidianeidade, assim como já destacado por Bakhtin (1999) quando nos mostra as relações de manifestações culturais como as festas, a literatura, a escultura e o teatro populares com a própria prática cotidiana da vida.

"... siguiendo Giumbelli, la religión en cuanto categoría ‘[d]essubstantivada e perpassando todo o espaço social... ficaria disponibilizada tanto para ser tratada através de seus usos nativos, quanto para sofrer reformulações conceituais e propiciar empreendimentos teóricos’ (Giumbelli 2002: 428-429) [...] es necesario analizar las prácticas – designadas como ‘religiosas’ y ‘populares’ a partir de lugares empíricos específicos – a partir de los flujos que dan integridad a la red que organiza lo social y que nos permiten dar cuenta de esos ‘híbridos’ de religión, política, etnicidad, música, género, emociones que constituyen las prácticas nativas". (MARTÍN, 2003, p. 5).

Dessa forma, será feito, primeiramente, um breve histórico sobre as origens da Folia de Reis, tradicionalmente festejada entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro, que ainda hoje vive processos de reconstrução a partir dos contextos e das comunidades nas quais está inserida. Em seguida, se tentará fazer um debate a partir do diálogo entre os trabalhos de Brandão, Zaluar, Pedro Oliveira, Renata Menezes, Da Matta e Eloísa Martín sobre o que se pode entender hoje da religiosidade vivida nessa manifestação e pelos seus sujeitos. Para em seguida fazer não uma conclusão sobre o tema, mas uma síntese sobre o assunto proposto neste artigo.

Folia de Reis

A Folia de Reis tem sua origem na Europa e remonta a passagem bíblica de Mateus que conta a visita de alguns Magos a Jesus Cristo no seu nascimento. Guiados pela Estrela do Oriente, eles encontraram a manjedoura onde estava o menino e ali lhe entregaram os presentes que levavam: ouro, mirra e incenso. Mesmo com a rápida referência aos Magos, o imaginário popular conseguiu construir ao longo dos séculos uma rica narrativa sobre a visita. Os Magos foram então ganhando nome, idade, origem, quantidade e o status de Reis.

Mas antes de se tentar compreender a festa da Folia de Reis, é preciso conhecer o próprio caráter festivo existente na Idade Média entre as sociedades que ajudaram a construir a narrativa da visita dos Reis Magos, bem como o papel da Igreja na sua função de transmitir os fatos bíblicos e suas interpretações. Assim, o próprio surgimento do teatro medieval em muitos países europeus tem como base as encenações de textos litúrgicos principalmente ligados ao Natal e à Páscoa (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 132). À medida que estas se desenvolviam, agregavam mais elementos e enriqueciam as narrativas. Além disso, Bahktin (1999, p. 66) mostra que a própria Igreja fazia coincidir as datas das festas oficiais cristãs com as festas pagãs, a fim de cristianizá-las, sendo portanto inevitável as misturas e influências mútuas.

Paralelo às encenações da Igreja, comemorava-se no ciclo natalino a Festa dos Loucos ou Festa dos Foliões, “... ela acontecia geralmente no dia 1º de janeiro e dela tomavam parte até mesmo padres piedosos e cidadãos ordeiros, sempre portando máscaras grotescas e cantando modinhas insinuantes.” (FÉLIX e PESSOA, 2007, pg. 133). Nestas festas, a ordem estabelecida já não tinha espaço e até membros da alta sociedade estavam sujeitos à sátira dos foliões.

"Dentre os diversos temas religiosos que eram alvos de sátiras, estava também a Festa dos Reis Magos. E ela foi passada de 1 de janeiro para a Epifania, mas durava o ano todo, sob o comando de um rei - que não era um dos Magos - eleito no início de cada ano para comandar os festejos". (Heers apud FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 133).

Tais manifestações se espalharam por grande parte da Europa e só perderam um poucode sua força por volta do século XVI com influência direta da Reforma e Contrarreforma, período marcado “pelo enrijecimento hierárquico, pela doutrinação paternalista das massas, pela extinção da cultura popular, pela marginalização mais ou menos violenta das minorias e dos grupos dissidentes.” (GINZBURG, 1987, p. 33-34).

Devido a essa grande difusão da festa pela Europa, às vezes se torna difícil definir suas origens, mas no caso da Folia de Reis é possível reconhecer Portugal como a região onde se originou a dança “Folia”. Já a tradição de se cantar os Reis, também conhecida como reisadas1 ou janeiras, não era exclusividade deste país e, segundo Jadir Pessoa e Madeleine Félix (2007, p. 139), na Alemanha estaria a provável origem desses cantares.

É a partir de todo esse contexto de influências e construções simbólicas acumuladas ao longo de quinze séculos que a Festa da Folia de Reis chega ao Brasil junto com os padres jesuítas no período da colonização portuguesa se incorporando “de maneiras diferenciadas às diversas realidades econômicas e culturais do território brasileiro” (FËLIX e PESSOA, 2007, p. 155).
Os primeiros registros da Folia de Reis no Brasil datam do século XVIII e desde então a festa se difundiu pelos estados brasileiros tendo ainda hoje grande presença na zona rural. O grande fluxo de pessoas vindas do campo para as cidades, principalmente a partir da década de 1960, fez com que a celebração também tomasse forma nas áreas urbanas brasileiras, em muitos casos com menos visibilidade e em outros com estilos próprios.

"… expressões religiosas tradicionais que, sobrevivendo nas periferias das grandes cidades, ganharam novas formas, devido às especificidades do grande contexto urbano. Mesmo sabendo que essa população das cidades guarda muitas tradições de origem rural, sabemos também que ela já tem um estilo de vida próprio, estilo este que certamente influi nas suas práticas religiosas". (OLIVEIRA, 1983, p. 911)

Apesar de ser uma festa de caráter religioso e de ter sido trazida ao Brasil pelos próprios jesuítas, é importante dizer que ela não dependia de representantes oficiais da Igreja para ocorrer, além de carregar as próprias crenças vindas com portugueses pobres que não tinham relação direta com o clero oficial ou mesmo com uma elite da Coroa. Assim, apesar das boas relações com padres e párocos de regiões próximas às de realização das festas, elas ocorriam de forma autônoma agregando valores próprios, bem como a parte profana das danças e bebidas.

É por isso que a própria divisão tradicional entre sagrado/profano elaborada por Durkheim (MARTÍN, 2003, p. 2), não tem espaço garantido nas manifestações populares da religiosidade, já que seus sujeitos não veem as danças e bebidas como um desrespeito ao santo para o qual se está comemorando, mas como elementos a mais nessa forma de devoção. O sagrado e o profano são assim parte de um mesmo ritual em uma dada comunidade.

Esta autonomia fez com que, da mesma forma como a Festa dos Loucos sofrera interferência direta da Reforma e da Contrarreforma no século XVI, o processo de romanização implementado pela Igreja Católica na segunda metade do século XIX e o Concílio Vaticano II na segunda metade do século XX também atingissem diretamente a realização das Folias de Reis no país já que, segundo Pedro Oliveira,

"se a romanização não aboliu inteiramente as práticas religiosas tradicionais, é entretanto inegável que ela contribuiu para retirar delas o seu caráter coletivo e público, relegando muitas daquelas práticas para a esfera doméstica e privada". (1983, p. 911).

Apesar disso muitos grupos de Folia de Reis conseguem manter sua devoção fazendo o giro2 em pequenas cidades, fazendas ou pelos bairros das grandes áreas urbanas. Ainda hoje, o comando das Folias seguem nas mãos de leigos, que por uma tradição familiar ou pelo envolvimento e dedicação à festa, têm a legitimidade e o respeito da gente local para manter-se à frente de sua organização. Atualmente, a função da Igreja na manifestação, quando existe, é a de ser local de saída dos grupos na noite de 24 de dezembro ou a de receber uma grande missa ao final do giro ou no domingo próximo ao dia 6 de janeiro.

"Mestre, embaixador, tirador e capitão são os nomes mais empregados na designação de uma mesma função, de enorme importância em qualquer Folia de Reis. Ele atua decisivamente na organização de todo o ritual, posicionando vozes, direcionando o giro, conferindo afinação de instrumentos etc. Mas, acima de qualquer dessas tarefas, está a sua identidade maior, a de ser o depositário do conteúdo estruturante do ritual – o ‘guardião do sagrado’ (Gomes; Pereira, 1995, p. 71). É ao embaixador que se dirigem sempre para o esclarecimento de todos os fundamentos da devoção (Pessoa, 1993). Ele deve saber o relato bíblico das origens, transformando-o em versos ou em explicações práticas do andamento da folia...". (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 207-208)

No caso das Folias de Reis, por exemplo, é possível encontrar muitos mestres que sabem contar toda a narrativa sobre a viagem dos Reis Magos com detalhes e acréscimos, mesmo sem terem lido a pequena passagem bíblica que narra o fato. Este conhecimento vem do aprendizado 'de ouvido' e assim contribui para dar continuidade à tradição e até mesmo enriquecer a história.

"Um tipo de saber que vive de reconstituir, o que já é conhecido de todos; que vive de recriar na memória de cada tipo de agente o repertório de crenças e ritos que fogem da prisão da leitura de todos, logo, de um tipo secular de controle erudito sobre a memória coletiva do popular. Ali é importante para o agente conhecer os segredos da cultura da classe e da comunidade e fazer sobre ela o mundo da religião local". (BRANDÃO, 2007, p. 308).

Apesar de todo esforço de interrupção das práticas de devoção mais festivas, a Folia de Reis, assim como várias outras festas religiosas, consegue manter algumas de suas características mais tradicionais. Segundo Alba Zaluar, as festas “são parte de um sistema de reciprocidade com as divindades do cosmo construído socialmente pelos homens. Esse sistema de reciprocidade, por sua vez, integra a própria visão de mundo dos agentes sociais.” (1983, p. 80).

Nas festas em geral, essa reciprocidade está presente, por exemplo, por meio do que Pedro Oliveira (1983, p. 913-914) chama de oferta de dom, forma de culto mais simples existente no catolicismo, que pode ser uma oração, os enfeites da bandeira que carrega a imagem do santo durante o giro e a oferta de esmolas ao santo, no caso da Folia de Reis. Segundo o autor, estes elementos são considerados como agrados ao santo, mantendo assim uma relação pessoal entre ele e seu devoto.

Fé e crenças na construção de uma religiosidade popular

Na bibliografia que discute a religiosidade popular parece lugar comum incluir nesta categoria as promessas, festas, novenas, peregrinações, milagres, culto aos santos, etc. No entanto, já não há um consenso quando se quer delimitar uma significação para o conceito de popular na religiosidade presente nestas manifestações. Segundo Fernandes (apud Menezes, 2003, p. 2) o “popular” apresentaria pelo menos três sentidos diferentes nos estudos produzidos até os anos 1980.

"O termo pode significar ‘a maioria da população’, por oposição à minoria; algo ‘pertencente a extratos inferiores da população’, por oposição a práticas da elite; ou ainda ‘extra-oficial’, no sentido de estar fora do controle ou da regulamentação da autoridade instituída, por oposição a uma religião ‘oficial’". (MENEZES, 2003, p. 2).

Ao se pensar a Folia de Reis, por exemplo, têm-se as duas últimas características presentes em sua manifestação, principalmente quando ela passa para o espaço urbano, onde as relações de classe se complexificam e as diferenças sociais podem ser percebidas pela própria localização dos bairros nas cidades3. Na cidade de Juiz de Fora (MG), por exemplo, todos os treze grupos de Folia em atividade atualmente são de bairros de periferia. Além disso, como foi visto, a construção e consolidação das diversas manifestações religiosas existiram sempre em espaços de disputas simbólicas, culturais, políticas, etc.

Assim, as relações entre a Igreja e o Estado ao longo da história fazem com que o caráter oficial dessas instituições, que são políticas e sociais, influencie em uma diferenciação mais facilmente demarcada com as religiosidades populares que conseguem manter-se de forma autônoma, ainda que em diálogo com elas.

"A variedade de elementos simbólicos empregados no culto aos santos, elementos estes que extrapolam largamente o código da liturgia oficial da Igreja [...] não trazem em si mesmos uma ruptura com o código simbólico católico, embora nem sempre sejam bem vistos pelas autoridades eclesiásticas. São, muitas vezes, gestos discrepantes dos gestos da liturgia oficial, mas não gestos divergentes ou antagônicos a ela. […] Suas diferenças em relação aos gestos e orações da liturgia oficial devem ser atribuídas às diferenças de classe social e de culturas, e não interpretados como formas não-católicas de culto ao santo. Tanto assim que o povo sente-se perfeitamente dentro da Igreja Católica, sem atribuir ao culto aos santos uma conotação de contestação religiosa. Não se trata, pois, de um culto paralelo ao culto oficial, e muito menos, de um culto contestador, antagônico ou substitutivo do culto oficial; trata-se, sim, de um culto onde a liberdade expressiva dos devotos não fica limitada ao código da liturgia oficial, assumindo por isso os traços próprios à cultura de cada grupo ou classe social". (OLIVEIRA, 1983, p. 918-919)

Ao mesmo tempo, a própria autonomia que provoca reações às vezes mais agressivas, como já mostrado anteriormente, por parte das religiões oficiais, faz com que essas instituições repensem suas atividades, suas maneiras de agir para com outros grupos e remodelem suas práticas em uma dialógica constante de trocas simbólicas entre o popular e a elite (GINZBURG, 1987, p. 12-13). Isso consta nas próprias Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, que recomenda que essas manifestações sejam valorizadas e estimuladas já que elas têm grande importância na iniciação à vida cristã (2011, p. 72).

No que se refere às crenças e fé desses sujeitos adeptos de uma religiosidade popular, algumas características são comuns como a devoção aos santos, o pagamento de promessas, a espera de milagres para casos de doenças e sofrimento e o pedido de proteção. Os Reis Magos, assim como outros santos católicos, são objeto de três ações do devoto: o culto, maneira de mostrar o apreço e carinho ao santo; a invocação, pedido de proteção, favores e graça; e punição, quando o santo deixa de atender um pedido ou dar proteção aos fiéis (OLIVEIRA, 1983, p. 913).

Tais características não são de exclusividade popular, mas se diferenciam de acordo com os contextos nos quais estão inseridas. É por isso que Da Matta afirma que

"todas as religiões em todos os tempos e sociedades sempre estiveram voltadas para duas tarefas simultâneas: a de justificar a ordem social existente e a de dar sentido ao sofrimento, ao acidente, à doença e à morte. A grande questão é que cada uma delas faz isso de modo diverso". (1986, p. 141).

Se antes “tudo podia ser explicado, em última análise, pela manifestação da vontade divina” (ZALUAR, 1983, p. 86), hoje os santos repartem essas responsabilidades com novas crenças ou mesmo com a falta delas trazidas com os avanços científicos, por exemplo. Além disso, no caso da Folia de Reis, alguns de seus membros participam hoje do giro não para pagar uma promessa ou pedir proteção aos santos, mas pelo fato de fazer parte de um grupo que muito vezes é visto mais pelo seu caráter artístico que religioso.

No entanto, outras características estão presentes nas festas até os dias de hoje, consideradas um espaço de reforço dos laços da rede de relações da qual fazem parte seus sujeitos, de “competição pelo prestígio e para expressar simbolicamente a unidade e os conflitos inerentes a essas relações sociais estabelecidas” (idem, p. 95).

Da mesma forma, Pedro Oliveira afirma que “promover ou participar da festa do santo é ao mesmo tempo promover ou participar do trabalho social de restauração e reforço dos laços de solidariedade do grupo” (1983, p. 929). A própria preparação da festa já é ela mesma “um ato coletivo de culto, com profundo sentido religioso” já que combina “diversos rituais durante um período mais ou menos longo de preparação e na sua realização propriamente dita” (idem, p. 921-922).

É por isso que, mesmo mantendo neste trabalho o uso do conceito de religiosidade popular, devemos compreender sua complexidade, já que nos dias atuais até a fé e as crenças partem de outros contextos e estão em processo dialógico constante com as ações de seus sujeitos. Assim, “es posible pensar que puede haber un ‘sagrado’ fuera de los grupos definidos como estrictamente ‘religiosos’ y que lo ‘religioso’ puede ser construido con elementos ‘no sagrados’...” (MARTÍN, 2003, p. 5).

Logo, as práticas de pertencimento a uma dada religião podem mudar ao longo dos tempos, mas elas provavelmente vão acompanhar também as mudanças sociais vividas pelos seus sujeitos e vice-versa, já que elas não são “apenas capazes de ‘dizer’ coisas sobre a ordem social, mas também de influir nessa ordem e, num certo sentido, contribuir para construí-la e reconstruí-la” (MENEZES, 2004, p. 28). Estas diferenças não significam dizer que uma manifestação seja mais autêntica ou verdadeira que outra, mas apenas que elas fazem parte da própria maneira de ver o mundo de cada um dos grupos sociais e assim a legitima.

Considerações finais

Todo esse debate sugere que mesmo com todas as mudanças vividas na sociedade brasileira, por exemplo, é possível destacar a característica popular de determinadas manifestações religiosas ainda que muitas de suas ações de fé e devoção não sejam exclusividade de grupos populares. Essa afirmativa pode ser feita considerando-se que “há várias maneiras possíveis de uma religião ser concretamente vivida” (MENEZES, 2003, p. 2). E é a partir dessas especificidades que o caráter “popular” deverá ser delimitado em uma dada religiosidade, já que cada grupo social mostra uma forma própria de viver a religião,

Por mais que haja normas e modelos a serem seguidos, cada grupo realizará seu giro de Folia de Reis, por exemplo, à sua maneira.

De uma região para outra e até entre folias da mesma região, cada uma tem suas características, detalhes que lhe são próprios, embora todas guardem o mesmo objetivo. Isto se deve ao fato de ser cultura popular. Os grupos não têm forma rígida, pois não há escola de formação de folião. É a continuação de uma cultura que teve início há séculos e por povos originários de várias culturas. Conforme é a cultura dos participantes, é a riqueza das participações (Vigilato, apud FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 179).

Assim, a festa possui um caráter ambíguo da própria vida humana, pois ela consegue ser ao mesmo tempo uma representação dos pensamentos e modos de vida das pessoas em sua cotidianeidade, e também carrega seu caráter extraordinário por ser um espaço/tempo que quebra as rotinas rígidas impostas ou apresentadas principalmente pelo trabalho, pelo sistema oficial, bem como pelas relações hierárquicas. Aqui ocorre uma inversão da hierarquia social; os sujeitos tidos como subordinados, passam ao status de líderes, principalmente pelos seus conhecimentos relativos às crenças nos santos e à organização da folia.

A continuidade no uso do conceito de religiosidade popular deve vir, portanto, acompanhada da clareza de que esse conceito não é fixo e imutável e, por isso, acompanha as mudanças sociais, políticas e culturais de cada comunidade, já que, como lembra Brandão … uma formação social como a brasileira [...] opõe grupos, classes e etnias, sobrevivendo das contradições entre eles, e soma diferenças sobre categorias de pessoas dentro da classe e, sobretudo, entre as elas, multiplicando tipos diversos de interesses e aflições para todas e para cada uma (2007, p. 277).

É por isso que os cruzamentos, fusões, similitudes e até mesmo as negações de um pelo outro são constitutivos do próprio campo religioso brasileiro, mas não uma exclusividade sua. Como aponta Sanchis (1997), o processo de sincretismo estende-se ao campo, genérico, da cultura. O próprio reconhecer-se ou negar-se no outro produz de alguma forma proximidades resultando em um processo contínuo de reconstrução de conceitos e campos de estudos, estando aí o desafio de constante renovação na pesquisa acadêmica.

Segundo Bakhtin (1999, p. 43), a carnavalização da consciência ajudaria a destruir “pretensões de significação incondicional e intemporal”, liberando o pensamento e a imaginação humana para que fiquem disponíveis ao desenvolvimento de novas possibilidades, necessárias ao campo da religiosidade, como vimos.

NOTAS:
1.   Em alguns estados brasileiros a festa de Folia de Reis é conhecida como Reisado, como no estado de Alagoas. 
2.   Giro é a peregrinação feita pelos foliões que inclui um ponto inicial, a festa de partida, e um ponto final, a festa de chegada. O percurso é composto pela visita a casas de devotos que recebem a bandeira dos santos e lhes dão oferendas, fazem rezas de pedidos e agradecimentos. (FELIX e PESSOA, 2007, p. 8).
3.   Segundo o coletivo do Ponto de Cultura Escola Livre de Comunicação Compartilhada, “a questão urbana no Brasil é um reflexo da questão econômica e social. Quer dizer, os padrões de crescimento e estruturação da nossa sociedade e da nossa economia se refletem especial e espacialmente na cidade. Quer dizer, a maneira como as cidades foram organizadas no país tem a ver com a maneira com que foram organizadas nossa economia e nossa sociedade.” Disponível em http://www.ipiranga895.outraspalavras.net/site/home acesso em 10 de junho de 2012.   

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Milhail Milhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo – um estudo sobre a religião popular. Uberlândia: EDUFU, 2007.
DA MATTA, Roberto. Uma religião democrática. In Explorações – Ensaios de Sociologia Interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
DIRETRIZES GERAIS DA AÇÃO EVANGELIZADORA DA IGREJA NO BRASIL 2011-2015. Documentos da CNBB 94. Edições CNBB, 49a Assembleia Geral Aparecida-SP, de 4 a 13 de maio de 2011.
FÉLIX, Madeleine e PESSOA, Jadir. As viagens dos reis magos. Goiânia: Ed. Da UCG, 2007.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
MARTÍN, Eloísa. “Religiosidad popular”: revisando un concepto problemático a partir de la bibliografía argentina. In Estudios sobre Religión. N. 15, jun. 2003 p. 1-9.
MENEZES, Renata de Castro. A benção de Santo Antônio e a “religiosidade popular”. In Estudios sobre Religión. N. 16, dez. 2003 p. 1-6.
_________________________. A dinâmica do sagrado – Rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Expressões religiosas populares e Liturgia. In Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 43, fasc. 172, dez. 1983, p. 909-948.
______________________________. Religiões populares. In Curso de Verão II. O. Beozzo (org.). São Paulo: Paulinos, 1988.
SANCHIS, Pierre. As tramas sincréticas da história – Sincretismo e modernidades no espaço luso-brasileiro. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_28/rbcs28_10 Acesso em 02 de junho de 2012.
ZALUAR, Alba. Os homens de Deus - um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

Fonte: GONÇALVES, Gabriela Marques. Religiosidade popular e Folia de Reis. Anais do III Congresso Internacional de História da UFG: História e diversidade cultural, Jataí, 25 a 27 de novembro de 2012.