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sábado, 6 de janeiro de 2018

Religiosidade popular e Folia de Reis

No dia 6 de janeiro é comemorado anualmente em alguns países cristãos de maioria católica a chamada Festa de Reis, Folia de Reis, Reisada, Dia de Reis, Dia dos Três Reis Magos etc., festejo antigo que remonta suas raízes no período medieval europeu, associando-se a outras festividades que marcavam o período de dezembro, janeiro, fevereiro e março, época conhecida na Baixa Idade Média (XI-XV) e na Idade Moderna (XVI-XVIII) como um período de festejos que ia do Natal ao Carnaval. Sobre essa festividade trago o seguinte texto, o qual aborda um pouco a respeito. 


Religiosidade popular e Folia de Reis


Ma. Gabriela Marques Gonçalves


Introdução

Este artigo tem como objetivo fazer uma explanação inicial sobre o tema da religiosidade popular tendo como referência a Folia de Reis, a partir de uma revisão bibliográfica. Para isso é importante ressaltar que o debate teórico a cerca do conceito e as próprias características da festa na contemporaneidade exigem um olhar atento na tentativa de não reduzir essas esferas a suas fundamentações mais tradicionais.

Ressalta-se, assim como Renata Menezes (2004), que todo o esforço para delimitar este campo de estudo, bem como teorizá-lo, é de fundamental importância para a compreensão das mudanças e ressignificações que ocorreram na sociedade e, logo, nestes dois domínios que serão aqui abordados, a religiosidade popular e a Folia de Reis.

Por isso, não considera-se pertinente abandonar o conceito de religiosidade popular ao se trabalhar teoricamente algumas manifestações, no entanto é preciso ter em mente que estas já não possuem características idênticas àquelas de quando o conceito foi fortemente delimitado e por isso já não abarcam algumas definições de maneira tão sistemática quanto antes. Essas manifestações continuam sofrendo influências não só da fé de seus sujeitos e interferências da Igreja, mas também da vida social, política, cultural e econômica como um todo.

"Deveremos sempre situar as religiões que desejamos conhecer em seu contexto histórico e social, buscando as razões de sua existência na nossa realidade. [...] como conjunto de crenças e práticas sagradas professadas por determinados grupos sociais". (OLIVEIRA, 1988, p. 107).

Assim, não se deve pensar a Folia de Reis e sua religiosidade popular a partir de uma perspectiva de ingenuidade dos seus sujeitos, ou mesmo de uma supersticiosidade presente nessas narrativas das interpretações do sagrado, mas sim por meio de construções simbólicas que contribuem na (re)construção de discursos que envolvem inclusive disputas de hegemonia.

"… a ideia de uma religiosidade popular nos lembra que as religiões envolvem questões de legitimidade e estão marcadas por disputas, configurando campo de tensões entre seus membros ou fiéis, questões que devem ser incorporadas à análise, isso significa não apenas reproduzi-las, num deslizamento ingênuo por sobre as categorias nativas, mas tomá-las como um dos problemas a serem explicitados e explicados". (MENEZES, 2003, p. 2).

Partindo dessa perspectiva pode-se, como sugere Heloísa Martín (2003), desconstruir esferas fortemente delimitadas historicamente, como a própria religião. Com isso, o que antes estava demarcado dentro do conceito de religiosidade popular, pode ser entendido como constituindo uma rede complexa de elementos que compõem a própria vida, em sua cotidianeidade, assim como já destacado por Bakhtin (1999) quando nos mostra as relações de manifestações culturais como as festas, a literatura, a escultura e o teatro populares com a própria prática cotidiana da vida.

"... siguiendo Giumbelli, la religión en cuanto categoría ‘[d]essubstantivada e perpassando todo o espaço social... ficaria disponibilizada tanto para ser tratada através de seus usos nativos, quanto para sofrer reformulações conceituais e propiciar empreendimentos teóricos’ (Giumbelli 2002: 428-429) [...] es necesario analizar las prácticas – designadas como ‘religiosas’ y ‘populares’ a partir de lugares empíricos específicos – a partir de los flujos que dan integridad a la red que organiza lo social y que nos permiten dar cuenta de esos ‘híbridos’ de religión, política, etnicidad, música, género, emociones que constituyen las prácticas nativas". (MARTÍN, 2003, p. 5).

Dessa forma, será feito, primeiramente, um breve histórico sobre as origens da Folia de Reis, tradicionalmente festejada entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro, que ainda hoje vive processos de reconstrução a partir dos contextos e das comunidades nas quais está inserida. Em seguida, se tentará fazer um debate a partir do diálogo entre os trabalhos de Brandão, Zaluar, Pedro Oliveira, Renata Menezes, Da Matta e Eloísa Martín sobre o que se pode entender hoje da religiosidade vivida nessa manifestação e pelos seus sujeitos. Para em seguida fazer não uma conclusão sobre o tema, mas uma síntese sobre o assunto proposto neste artigo.

Folia de Reis

A Folia de Reis tem sua origem na Europa e remonta a passagem bíblica de Mateus que conta a visita de alguns Magos a Jesus Cristo no seu nascimento. Guiados pela Estrela do Oriente, eles encontraram a manjedoura onde estava o menino e ali lhe entregaram os presentes que levavam: ouro, mirra e incenso. Mesmo com a rápida referência aos Magos, o imaginário popular conseguiu construir ao longo dos séculos uma rica narrativa sobre a visita. Os Magos foram então ganhando nome, idade, origem, quantidade e o status de Reis.

Mas antes de se tentar compreender a festa da Folia de Reis, é preciso conhecer o próprio caráter festivo existente na Idade Média entre as sociedades que ajudaram a construir a narrativa da visita dos Reis Magos, bem como o papel da Igreja na sua função de transmitir os fatos bíblicos e suas interpretações. Assim, o próprio surgimento do teatro medieval em muitos países europeus tem como base as encenações de textos litúrgicos principalmente ligados ao Natal e à Páscoa (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 132). À medida que estas se desenvolviam, agregavam mais elementos e enriqueciam as narrativas. Além disso, Bahktin (1999, p. 66) mostra que a própria Igreja fazia coincidir as datas das festas oficiais cristãs com as festas pagãs, a fim de cristianizá-las, sendo portanto inevitável as misturas e influências mútuas.

Paralelo às encenações da Igreja, comemorava-se no ciclo natalino a Festa dos Loucos ou Festa dos Foliões, “... ela acontecia geralmente no dia 1º de janeiro e dela tomavam parte até mesmo padres piedosos e cidadãos ordeiros, sempre portando máscaras grotescas e cantando modinhas insinuantes.” (FÉLIX e PESSOA, 2007, pg. 133). Nestas festas, a ordem estabelecida já não tinha espaço e até membros da alta sociedade estavam sujeitos à sátira dos foliões.

"Dentre os diversos temas religiosos que eram alvos de sátiras, estava também a Festa dos Reis Magos. E ela foi passada de 1 de janeiro para a Epifania, mas durava o ano todo, sob o comando de um rei - que não era um dos Magos - eleito no início de cada ano para comandar os festejos". (Heers apud FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 133).

Tais manifestações se espalharam por grande parte da Europa e só perderam um poucode sua força por volta do século XVI com influência direta da Reforma e Contrarreforma, período marcado “pelo enrijecimento hierárquico, pela doutrinação paternalista das massas, pela extinção da cultura popular, pela marginalização mais ou menos violenta das minorias e dos grupos dissidentes.” (GINZBURG, 1987, p. 33-34).

Devido a essa grande difusão da festa pela Europa, às vezes se torna difícil definir suas origens, mas no caso da Folia de Reis é possível reconhecer Portugal como a região onde se originou a dança “Folia”. Já a tradição de se cantar os Reis, também conhecida como reisadas1 ou janeiras, não era exclusividade deste país e, segundo Jadir Pessoa e Madeleine Félix (2007, p. 139), na Alemanha estaria a provável origem desses cantares.

É a partir de todo esse contexto de influências e construções simbólicas acumuladas ao longo de quinze séculos que a Festa da Folia de Reis chega ao Brasil junto com os padres jesuítas no período da colonização portuguesa se incorporando “de maneiras diferenciadas às diversas realidades econômicas e culturais do território brasileiro” (FËLIX e PESSOA, 2007, p. 155).
Os primeiros registros da Folia de Reis no Brasil datam do século XVIII e desde então a festa se difundiu pelos estados brasileiros tendo ainda hoje grande presença na zona rural. O grande fluxo de pessoas vindas do campo para as cidades, principalmente a partir da década de 1960, fez com que a celebração também tomasse forma nas áreas urbanas brasileiras, em muitos casos com menos visibilidade e em outros com estilos próprios.

"… expressões religiosas tradicionais que, sobrevivendo nas periferias das grandes cidades, ganharam novas formas, devido às especificidades do grande contexto urbano. Mesmo sabendo que essa população das cidades guarda muitas tradições de origem rural, sabemos também que ela já tem um estilo de vida próprio, estilo este que certamente influi nas suas práticas religiosas". (OLIVEIRA, 1983, p. 911)

Apesar de ser uma festa de caráter religioso e de ter sido trazida ao Brasil pelos próprios jesuítas, é importante dizer que ela não dependia de representantes oficiais da Igreja para ocorrer, além de carregar as próprias crenças vindas com portugueses pobres que não tinham relação direta com o clero oficial ou mesmo com uma elite da Coroa. Assim, apesar das boas relações com padres e párocos de regiões próximas às de realização das festas, elas ocorriam de forma autônoma agregando valores próprios, bem como a parte profana das danças e bebidas.

É por isso que a própria divisão tradicional entre sagrado/profano elaborada por Durkheim (MARTÍN, 2003, p. 2), não tem espaço garantido nas manifestações populares da religiosidade, já que seus sujeitos não veem as danças e bebidas como um desrespeito ao santo para o qual se está comemorando, mas como elementos a mais nessa forma de devoção. O sagrado e o profano são assim parte de um mesmo ritual em uma dada comunidade.

Esta autonomia fez com que, da mesma forma como a Festa dos Loucos sofrera interferência direta da Reforma e da Contrarreforma no século XVI, o processo de romanização implementado pela Igreja Católica na segunda metade do século XIX e o Concílio Vaticano II na segunda metade do século XX também atingissem diretamente a realização das Folias de Reis no país já que, segundo Pedro Oliveira,

"se a romanização não aboliu inteiramente as práticas religiosas tradicionais, é entretanto inegável que ela contribuiu para retirar delas o seu caráter coletivo e público, relegando muitas daquelas práticas para a esfera doméstica e privada". (1983, p. 911).

Apesar disso muitos grupos de Folia de Reis conseguem manter sua devoção fazendo o giro2 em pequenas cidades, fazendas ou pelos bairros das grandes áreas urbanas. Ainda hoje, o comando das Folias seguem nas mãos de leigos, que por uma tradição familiar ou pelo envolvimento e dedicação à festa, têm a legitimidade e o respeito da gente local para manter-se à frente de sua organização. Atualmente, a função da Igreja na manifestação, quando existe, é a de ser local de saída dos grupos na noite de 24 de dezembro ou a de receber uma grande missa ao final do giro ou no domingo próximo ao dia 6 de janeiro.

"Mestre, embaixador, tirador e capitão são os nomes mais empregados na designação de uma mesma função, de enorme importância em qualquer Folia de Reis. Ele atua decisivamente na organização de todo o ritual, posicionando vozes, direcionando o giro, conferindo afinação de instrumentos etc. Mas, acima de qualquer dessas tarefas, está a sua identidade maior, a de ser o depositário do conteúdo estruturante do ritual – o ‘guardião do sagrado’ (Gomes; Pereira, 1995, p. 71). É ao embaixador que se dirigem sempre para o esclarecimento de todos os fundamentos da devoção (Pessoa, 1993). Ele deve saber o relato bíblico das origens, transformando-o em versos ou em explicações práticas do andamento da folia...". (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 207-208)

No caso das Folias de Reis, por exemplo, é possível encontrar muitos mestres que sabem contar toda a narrativa sobre a viagem dos Reis Magos com detalhes e acréscimos, mesmo sem terem lido a pequena passagem bíblica que narra o fato. Este conhecimento vem do aprendizado 'de ouvido' e assim contribui para dar continuidade à tradição e até mesmo enriquecer a história.

"Um tipo de saber que vive de reconstituir, o que já é conhecido de todos; que vive de recriar na memória de cada tipo de agente o repertório de crenças e ritos que fogem da prisão da leitura de todos, logo, de um tipo secular de controle erudito sobre a memória coletiva do popular. Ali é importante para o agente conhecer os segredos da cultura da classe e da comunidade e fazer sobre ela o mundo da religião local". (BRANDÃO, 2007, p. 308).

Apesar de todo esforço de interrupção das práticas de devoção mais festivas, a Folia de Reis, assim como várias outras festas religiosas, consegue manter algumas de suas características mais tradicionais. Segundo Alba Zaluar, as festas “são parte de um sistema de reciprocidade com as divindades do cosmo construído socialmente pelos homens. Esse sistema de reciprocidade, por sua vez, integra a própria visão de mundo dos agentes sociais.” (1983, p. 80).

Nas festas em geral, essa reciprocidade está presente, por exemplo, por meio do que Pedro Oliveira (1983, p. 913-914) chama de oferta de dom, forma de culto mais simples existente no catolicismo, que pode ser uma oração, os enfeites da bandeira que carrega a imagem do santo durante o giro e a oferta de esmolas ao santo, no caso da Folia de Reis. Segundo o autor, estes elementos são considerados como agrados ao santo, mantendo assim uma relação pessoal entre ele e seu devoto.

Fé e crenças na construção de uma religiosidade popular

Na bibliografia que discute a religiosidade popular parece lugar comum incluir nesta categoria as promessas, festas, novenas, peregrinações, milagres, culto aos santos, etc. No entanto, já não há um consenso quando se quer delimitar uma significação para o conceito de popular na religiosidade presente nestas manifestações. Segundo Fernandes (apud Menezes, 2003, p. 2) o “popular” apresentaria pelo menos três sentidos diferentes nos estudos produzidos até os anos 1980.

"O termo pode significar ‘a maioria da população’, por oposição à minoria; algo ‘pertencente a extratos inferiores da população’, por oposição a práticas da elite; ou ainda ‘extra-oficial’, no sentido de estar fora do controle ou da regulamentação da autoridade instituída, por oposição a uma religião ‘oficial’". (MENEZES, 2003, p. 2).

Ao se pensar a Folia de Reis, por exemplo, têm-se as duas últimas características presentes em sua manifestação, principalmente quando ela passa para o espaço urbano, onde as relações de classe se complexificam e as diferenças sociais podem ser percebidas pela própria localização dos bairros nas cidades3. Na cidade de Juiz de Fora (MG), por exemplo, todos os treze grupos de Folia em atividade atualmente são de bairros de periferia. Além disso, como foi visto, a construção e consolidação das diversas manifestações religiosas existiram sempre em espaços de disputas simbólicas, culturais, políticas, etc.

Assim, as relações entre a Igreja e o Estado ao longo da história fazem com que o caráter oficial dessas instituições, que são políticas e sociais, influencie em uma diferenciação mais facilmente demarcada com as religiosidades populares que conseguem manter-se de forma autônoma, ainda que em diálogo com elas.

"A variedade de elementos simbólicos empregados no culto aos santos, elementos estes que extrapolam largamente o código da liturgia oficial da Igreja [...] não trazem em si mesmos uma ruptura com o código simbólico católico, embora nem sempre sejam bem vistos pelas autoridades eclesiásticas. São, muitas vezes, gestos discrepantes dos gestos da liturgia oficial, mas não gestos divergentes ou antagônicos a ela. […] Suas diferenças em relação aos gestos e orações da liturgia oficial devem ser atribuídas às diferenças de classe social e de culturas, e não interpretados como formas não-católicas de culto ao santo. Tanto assim que o povo sente-se perfeitamente dentro da Igreja Católica, sem atribuir ao culto aos santos uma conotação de contestação religiosa. Não se trata, pois, de um culto paralelo ao culto oficial, e muito menos, de um culto contestador, antagônico ou substitutivo do culto oficial; trata-se, sim, de um culto onde a liberdade expressiva dos devotos não fica limitada ao código da liturgia oficial, assumindo por isso os traços próprios à cultura de cada grupo ou classe social". (OLIVEIRA, 1983, p. 918-919)

Ao mesmo tempo, a própria autonomia que provoca reações às vezes mais agressivas, como já mostrado anteriormente, por parte das religiões oficiais, faz com que essas instituições repensem suas atividades, suas maneiras de agir para com outros grupos e remodelem suas práticas em uma dialógica constante de trocas simbólicas entre o popular e a elite (GINZBURG, 1987, p. 12-13). Isso consta nas próprias Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, que recomenda que essas manifestações sejam valorizadas e estimuladas já que elas têm grande importância na iniciação à vida cristã (2011, p. 72).

No que se refere às crenças e fé desses sujeitos adeptos de uma religiosidade popular, algumas características são comuns como a devoção aos santos, o pagamento de promessas, a espera de milagres para casos de doenças e sofrimento e o pedido de proteção. Os Reis Magos, assim como outros santos católicos, são objeto de três ações do devoto: o culto, maneira de mostrar o apreço e carinho ao santo; a invocação, pedido de proteção, favores e graça; e punição, quando o santo deixa de atender um pedido ou dar proteção aos fiéis (OLIVEIRA, 1983, p. 913).

Tais características não são de exclusividade popular, mas se diferenciam de acordo com os contextos nos quais estão inseridas. É por isso que Da Matta afirma que

"todas as religiões em todos os tempos e sociedades sempre estiveram voltadas para duas tarefas simultâneas: a de justificar a ordem social existente e a de dar sentido ao sofrimento, ao acidente, à doença e à morte. A grande questão é que cada uma delas faz isso de modo diverso". (1986, p. 141).

Se antes “tudo podia ser explicado, em última análise, pela manifestação da vontade divina” (ZALUAR, 1983, p. 86), hoje os santos repartem essas responsabilidades com novas crenças ou mesmo com a falta delas trazidas com os avanços científicos, por exemplo. Além disso, no caso da Folia de Reis, alguns de seus membros participam hoje do giro não para pagar uma promessa ou pedir proteção aos santos, mas pelo fato de fazer parte de um grupo que muito vezes é visto mais pelo seu caráter artístico que religioso.

No entanto, outras características estão presentes nas festas até os dias de hoje, consideradas um espaço de reforço dos laços da rede de relações da qual fazem parte seus sujeitos, de “competição pelo prestígio e para expressar simbolicamente a unidade e os conflitos inerentes a essas relações sociais estabelecidas” (idem, p. 95).

Da mesma forma, Pedro Oliveira afirma que “promover ou participar da festa do santo é ao mesmo tempo promover ou participar do trabalho social de restauração e reforço dos laços de solidariedade do grupo” (1983, p. 929). A própria preparação da festa já é ela mesma “um ato coletivo de culto, com profundo sentido religioso” já que combina “diversos rituais durante um período mais ou menos longo de preparação e na sua realização propriamente dita” (idem, p. 921-922).

É por isso que, mesmo mantendo neste trabalho o uso do conceito de religiosidade popular, devemos compreender sua complexidade, já que nos dias atuais até a fé e as crenças partem de outros contextos e estão em processo dialógico constante com as ações de seus sujeitos. Assim, “es posible pensar que puede haber un ‘sagrado’ fuera de los grupos definidos como estrictamente ‘religiosos’ y que lo ‘religioso’ puede ser construido con elementos ‘no sagrados’...” (MARTÍN, 2003, p. 5).

Logo, as práticas de pertencimento a uma dada religião podem mudar ao longo dos tempos, mas elas provavelmente vão acompanhar também as mudanças sociais vividas pelos seus sujeitos e vice-versa, já que elas não são “apenas capazes de ‘dizer’ coisas sobre a ordem social, mas também de influir nessa ordem e, num certo sentido, contribuir para construí-la e reconstruí-la” (MENEZES, 2004, p. 28). Estas diferenças não significam dizer que uma manifestação seja mais autêntica ou verdadeira que outra, mas apenas que elas fazem parte da própria maneira de ver o mundo de cada um dos grupos sociais e assim a legitima.

Considerações finais

Todo esse debate sugere que mesmo com todas as mudanças vividas na sociedade brasileira, por exemplo, é possível destacar a característica popular de determinadas manifestações religiosas ainda que muitas de suas ações de fé e devoção não sejam exclusividade de grupos populares. Essa afirmativa pode ser feita considerando-se que “há várias maneiras possíveis de uma religião ser concretamente vivida” (MENEZES, 2003, p. 2). E é a partir dessas especificidades que o caráter “popular” deverá ser delimitado em uma dada religiosidade, já que cada grupo social mostra uma forma própria de viver a religião,

Por mais que haja normas e modelos a serem seguidos, cada grupo realizará seu giro de Folia de Reis, por exemplo, à sua maneira.

De uma região para outra e até entre folias da mesma região, cada uma tem suas características, detalhes que lhe são próprios, embora todas guardem o mesmo objetivo. Isto se deve ao fato de ser cultura popular. Os grupos não têm forma rígida, pois não há escola de formação de folião. É a continuação de uma cultura que teve início há séculos e por povos originários de várias culturas. Conforme é a cultura dos participantes, é a riqueza das participações (Vigilato, apud FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 179).

Assim, a festa possui um caráter ambíguo da própria vida humana, pois ela consegue ser ao mesmo tempo uma representação dos pensamentos e modos de vida das pessoas em sua cotidianeidade, e também carrega seu caráter extraordinário por ser um espaço/tempo que quebra as rotinas rígidas impostas ou apresentadas principalmente pelo trabalho, pelo sistema oficial, bem como pelas relações hierárquicas. Aqui ocorre uma inversão da hierarquia social; os sujeitos tidos como subordinados, passam ao status de líderes, principalmente pelos seus conhecimentos relativos às crenças nos santos e à organização da folia.

A continuidade no uso do conceito de religiosidade popular deve vir, portanto, acompanhada da clareza de que esse conceito não é fixo e imutável e, por isso, acompanha as mudanças sociais, políticas e culturais de cada comunidade, já que, como lembra Brandão … uma formação social como a brasileira [...] opõe grupos, classes e etnias, sobrevivendo das contradições entre eles, e soma diferenças sobre categorias de pessoas dentro da classe e, sobretudo, entre as elas, multiplicando tipos diversos de interesses e aflições para todas e para cada uma (2007, p. 277).

É por isso que os cruzamentos, fusões, similitudes e até mesmo as negações de um pelo outro são constitutivos do próprio campo religioso brasileiro, mas não uma exclusividade sua. Como aponta Sanchis (1997), o processo de sincretismo estende-se ao campo, genérico, da cultura. O próprio reconhecer-se ou negar-se no outro produz de alguma forma proximidades resultando em um processo contínuo de reconstrução de conceitos e campos de estudos, estando aí o desafio de constante renovação na pesquisa acadêmica.

Segundo Bakhtin (1999, p. 43), a carnavalização da consciência ajudaria a destruir “pretensões de significação incondicional e intemporal”, liberando o pensamento e a imaginação humana para que fiquem disponíveis ao desenvolvimento de novas possibilidades, necessárias ao campo da religiosidade, como vimos.

NOTAS:
1.   Em alguns estados brasileiros a festa de Folia de Reis é conhecida como Reisado, como no estado de Alagoas. 
2.   Giro é a peregrinação feita pelos foliões que inclui um ponto inicial, a festa de partida, e um ponto final, a festa de chegada. O percurso é composto pela visita a casas de devotos que recebem a bandeira dos santos e lhes dão oferendas, fazem rezas de pedidos e agradecimentos. (FELIX e PESSOA, 2007, p. 8).
3.   Segundo o coletivo do Ponto de Cultura Escola Livre de Comunicação Compartilhada, “a questão urbana no Brasil é um reflexo da questão econômica e social. Quer dizer, os padrões de crescimento e estruturação da nossa sociedade e da nossa economia se refletem especial e espacialmente na cidade. Quer dizer, a maneira como as cidades foram organizadas no país tem a ver com a maneira com que foram organizadas nossa economia e nossa sociedade.” Disponível em http://www.ipiranga895.outraspalavras.net/site/home acesso em 10 de junho de 2012.   

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Milhail Milhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo – um estudo sobre a religião popular. Uberlândia: EDUFU, 2007.
DA MATTA, Roberto. Uma religião democrática. In Explorações – Ensaios de Sociologia Interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
DIRETRIZES GERAIS DA AÇÃO EVANGELIZADORA DA IGREJA NO BRASIL 2011-2015. Documentos da CNBB 94. Edições CNBB, 49a Assembleia Geral Aparecida-SP, de 4 a 13 de maio de 2011.
FÉLIX, Madeleine e PESSOA, Jadir. As viagens dos reis magos. Goiânia: Ed. Da UCG, 2007.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
MARTÍN, Eloísa. “Religiosidad popular”: revisando un concepto problemático a partir de la bibliografía argentina. In Estudios sobre Religión. N. 15, jun. 2003 p. 1-9.
MENEZES, Renata de Castro. A benção de Santo Antônio e a “religiosidade popular”. In Estudios sobre Religión. N. 16, dez. 2003 p. 1-6.
_________________________. A dinâmica do sagrado – Rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Expressões religiosas populares e Liturgia. In Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 43, fasc. 172, dez. 1983, p. 909-948.
______________________________. Religiões populares. In Curso de Verão II. O. Beozzo (org.). São Paulo: Paulinos, 1988.
SANCHIS, Pierre. As tramas sincréticas da história – Sincretismo e modernidades no espaço luso-brasileiro. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_28/rbcs28_10 Acesso em 02 de junho de 2012.
ZALUAR, Alba. Os homens de Deus - um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

Fonte: GONÇALVES, Gabriela Marques. Religiosidade popular e Folia de Reis. Anais do III Congresso Internacional de História da UFG: História e diversidade cultural, Jataí, 25 a 27 de novembro de 2012. 



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