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Leandro Vilar

terça-feira, 26 de maio de 2015

História da Ciência da Religião

História da Ciência da Religião

Frank Usarki



O status quo “ideal” da disciplina como referencial


O termo Ciência da Religião refere-se a um empreendimento acadêmico que, sustentado por recursos públicos, norteado por um interesse de conhecimento específico e orientado por um conjunto de teorias específicas, dedica-se de maneira não normativa ao estudo histórico e sistemático de religiões concretas em suas múltiplas dimensões, manifestações e contextos socioculturais.


A formulação “religiões concretas” alude ao fato de que a Ciência da Religião encontra seus objetos no mundo empírico. Trata-se de uma consequência do axioma de que religiões representam sistemas simbólicos elaborados em relação a uma “realidade culturalmente postulada não falsificável”1 que transcende o alcance de qualquer método cientificamente comprovado.


A investigação de elementos religiosos empiricamente acessíveis tem como único objetivo aprofundar e aperfeiçoar o conhecimento sobre os fatos da vida religiosa.2 Isso significa que a Ciência da Religião não instrumentaliza seus objetos em prol de uma apologia a uma determinada crença privilegiada pelo pesquisador. De acordo com essas ambições, a Ciência da Religião defende uma postura epistemológica específica baseada no compromisso com o ideal da “indiferença” diante do seu objeto de estudo. Trata-se de uma técnica de observação e descrição que na literatura especializada é frequentemente associada a termos como “ateísmo metodológico” ou “agnosticismo metodológico”. Comprometido com este ideal, o cientista da religião exclui da sua agenda a questão da “última verdade” e não se permite avaliar aspectos religiosos em comparação com as normas de outra religião ou com quaisquer outros critérios ideológicos.


A formulação “empreendimento acadêmico” aponta para o status consolidado da respectiva área de estudo. Trata-se, em outras palavras, de uma matéria institucionalizada que faz parte integral do sistema universitário de alcance internacional. Esta posição representa uma conquista relativamente recente e constitui uma das marcas simbólicas para distinguir a Ciência da Religião propriamente dita de movimentos intelectuais precedentes e em termos do seu estatuto legal ainda “provisórios”.


O status institucional da disciplina é, em parte, fruto de uma demanda pública no sentido da relevância prático-social da disciplina que, por sua vez, sanciona o apoio político e material da disciplina por órgãos públicos. A essa demanda corresponde uma oferta da Ciência da Religião no sentido de produção de um conhecimento específico não fornecido por nenhuma outra disciplina acadêmica. A originalidade desta oferta é epistemologicamente baseada em um matiz heurístico subjacente que norteia o trabalho de um cientista da religião. Na literatura especializada, tal matiz é tematizado em termos de um etos intelectual3 ou de escolas próprias de investigação. Em outras palavras, a diferença entre a Ciência da Religião e outras disciplinas engajadas no estudo das religiões se dá no sentido de uma determinada tradição da segunda ordem, isto é, uma visão coletiva das principais escolas de interpretação, métodos operacionais, herança de erudição e, sobretudo, uma memória vital compartilhada das maneiras mediante as quais todos esses fatores constitutivos são inter--relacionados. Na prática acadêmica da comunidade científica em questão, a compartilhada tradição da segunda ordem manifesta-se em um consenso sobre a legitimidade ou não de um problema de pesquisa do ponto de vista disciplinar.4


Ao mesmo tempo, implica um acordo sobre a estrutura interna da disciplina no sentido de duas áreas complementares nas quais o trabalho diversificado da Ciência da Religião se encaixa. A definição no início do artigo alude a essa dupla estrutura da disciplina quando destaca estudos históricos e sistemáticos como tarefas da Ciência da Religião.


Todos os elementos esboçados apontam para uma ciência paradigmaticamente madura e homogênea. Em vários pontos, essa descrição está em tensão com a atual situação diversificada da disciplina no âmbito mundial. As respectivas contradições, porém, não invalidam essa imagem “pura”, desde que o leitor tenha em mente que os constituintes encontrados no início deste artigo foram destacados por razões heurísticas em prol da reconstrução do caminho através do qual a Ciência da Religião tem se aproximado do ideal construído.


Desse ponto de vista, a época mais instigante pode ser datada, grosso modo, entre 1875 e a Primeira Guerra Mundial. Trata-se de um período altamente produtivo durante o qual convergiram vários impulsos intelectuais já rudimentarmente identificáveis em momentos anteriores. Antes de fornecer um esboço dessa fase-chave da história disciplinar, vale um olhar genérico sobre conquistas e movimentos intelectuais centrais que antecederam a consolidação da Ciência da Religião propriamente dita.


Tendências constitutivas para a formação da Ciência da Religião


O longo caminho do estudo das religiões na direção da sua formação programática e institucionalização é marcado por duas tendências principais inter-relacionadas, a saber: (a) o crescente conhecimento sobre outras culturas, inclusive suas características religiosas; (b) a crescente submissão do estudo das religiões ao pensamento científico-racional em desfavor das abordagens apologéticas e exigências dogmáticas.


O CRESCENTE SABER SOBRE OUTRAS RELIGIÕES


O processo da acumulação do saber sobre outras religiões foi durante muito tempo uma função imediata do avanço tecnológico que facilitou a comunicação entre as diferentes culturas. Grosso modo, vale como regra que a frequência e a intensidade do contato entre as religiões repercutiram na quantidade e qualidade do conhecimento sobre “o outro”. Exemplos para narrativas rudimentares resultando de contatos relativamente esporádicos entre povos interessados na delimitação do “próprio” diante do “vizinho diferente” encontram-se no Antigo Testamento, no qual o discurso negativo em relação a práticas “alheias” revelam esforços retóricos em prol da plausibilização da veneração exclusiva de Yahweh. Motivos apologéticos também predominam na maioria dos Padres da Igreja que tematizaram os cultos “pagãos” e seus desafios para a fé cristã. Mais tarde, obras teológicas mostraram-se preocupadas com cultos de tribos germânicas e finalmente, sobretudo, com o Islã.


Apenas na segunda metade do século XI surgiu, com a Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum de Adam von Bremen (circa 1050 a circa de 1085), uma obra de um autor cristão que — na tentativa de recuperar detalhes de práticas religiosas de tribos saxônias resistentes a esforços de cristianização no século IX — contenta-se com uma mera descrição de fatos históricos. Cerca de dois séculos mais tarde, o franciscano Roger Bacon (1214-1294) completou seu Opus maius, que opta por uma abordagem alternativa a um tratamento generalizante e normativo dos “outros” como “incrédulos” e apresenta uma classificação sêxtupla das religiões conhecidas na sua época.


Paralelo ao crescimento do conhecimento sobre aspectos de outras religiões no âmbito da tradição judaico-cristã, foram produzidos relevantes relatos e reflexões por autores gregos, chineses e muçulmanos. Um representante dos “estudos” primordiais da religião na Grécia antiga é Heródoto (484-425), com suas descrições sobre os costumes religiosos do Egito, da Babilônia e da Pérsia. Os contatos entre os gregos e outras culturas tornaram-se mais frequentes a partir do período helenista.


Um representante dessa época e testemunha das oportunidades aperfeiçoadas para adquirir um conhecimento sobre os povos localizados no império expandido foi o etnógrafo Megástenes (cerca 350-cerca de 290 a.C.). Mandado por Seleuco I Nicator, primeiro rei do Império Selêucida, como diplomata para Índia, Megástenes dedicou-se à elaboração dos quatro volumes de sua Índica. Nessa obra, encontra-se uma série de informações sobre o Hinduísmo, porém diversas delas prejudicadas por material fictício que o autor tinha ouvido de terceiros. Quanto a protagonistas chineses, vale a pena lembrar o peregrino chinês Fa-Hien (cerca de 337-cerca de 422 d.C.), que permaneceu entre 399 e 413 d.C. na Índia.


Um ano mais tarde, publicou seu Relato sobre países budistas, que contém um grande contingente de informações, inclusive anotações exatas de dados históricos e detalhes sobre as rotinas de comunidades budistas monásticas nas regiões visitadas. Cerca de duzentos e quarenta anos mais tarde, Hieun-Tsiang (603-664 d.C.), outro viajante chinês famoso, voltou para sua terra depois de uma longa viagem pela Índia trazendo do subcontinente uma série de artefatos e manuscritos budistas assim contribuindo para o conhecimento dos chineses sobre as doutrinas e práticas indianas da época.


A partir do século IX, autores muçulmanos começaram a se articular sobre outras religiões. Entre eles encontram-se Tabari (838-923) interessado na religião persa, e Mas’udi (morte 956), cuja obra contém dados sobre o Judaísmo, o Cristianismo e as religiões indianas. Outros estudantes da religião reputados foram Al Biruni (973-1050), que informou seus leitores sobre as crenças e práticas na Índia e Pérsia, e o erudito multidisciplinar andaluz Ibn Hazm (994-1064), que colecionou um grande espectro de informações sobre o Judaísmo e o Cristianismo. Nessa lista não pode faltar o nome do historiador das religiões persa Sharastani (1086-1153), que — devido à sua descrição sistemática de todas as religiões então conhecidas — foi retrospectivamente considerado o autor de um livro excepcional que supera qualquer contribuição de autores cristãos anteriores e contemporâneos.


Do ponto de vista europeu, progressos filológicos a partir da segunda o século XVII foram responsáveis por um grande salto em termos de aquisição de conhecimento sobre outras religiões. Nesse contexto, vale lembrar conquistas como a decifração de hieróglifos egípcios e de caracteres cuneiformes mesopotâmios, a elaboração de dicionários e gramáticas de línguas orientais (como o árabe, o chinês, o malaio, a língua persa, o páli ou o sânscrito) e o lançamento da gramática comparada de Franz Bopp (1833).


Baseado nessas e em outras contribuições, os filólogos começaram a tradução de uma série ampla de textos religiosos dos povos que tinham despertado o interesse dos intelectuais europeus.5 Este trabalho teve seu início com fragmentos de textos filosófico-religiosos chineses por jesuítas engajados em atividades missionárias no Reino do Meio. Os referentes esforços culminaram na publicação da primeira tradução completa dos quatro clássicos confucianistas por Francisco Noël (1651-1729) para o latim em 1711. Sessenta anos mais tarde, Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron (1731-1805) lançou, depois de um estudo intenso de cerca de 180 manuscritos avésticos em Surat, Índia, sua tradução de textos zoroastrianos para o francês. Em 1785, Charles Wilkins (1749-1836) publicou à primeira tradução do Bhagavad Gita para o inglês. O especialista na língua páli George Tornour (1799-1843) apresentou em 1837 sua tradução do Mahavamsa para o inglês.


Entre 1840-1847, Eugène Burnouf (1801-1852) lançou os três volumes da sua tradução francesa do Bhagavad Purana. Em 1855, o filólogo dinamarquês Michael Viggo Fausböll (1821-1908), professor de sânscrito em Copenhagen, ofereceu sua tradução latina do Dhammapada, texto budista originalmente escrito em páli. Também não devem ser esquecidos os méritos arqueológicos dos séculos XIX e XX, como, por exemplo, as escavações em Troia, em Creta, na Turquia, no Egito e no vale do Indo, bem como a descoberta da arte rupestre em grutas no sul da França.


A CRESCENTE ORIENTAÇÃO DO ESTUDO DAS RELIGIÕES AO ESPÍRITO MODERNO


Um pré-requisito intelectual sine qua non para o estabelecimento da Ciência da Religião no sentido estrito foi que o termo “religião” tinha se libertado de sua identificação dogmática com uma determinada tradição, na maioria dos casos com o Cristianismo. À medida que a religião deixou de ser tratada como uma “naturalidade cultural”, ganhou plausibilidade o entendimento histórico dos fenômenos associados.


A literatura especializada é uma fonte rica de atribuições, suspeitas e especulações relativas a movimentos, impulsos e raízes de elementos que por volta da virada do século XIX para o século XX se consolidariam como o estatuto da Ciência da Religião no sentido moderno. A lista de eventos, nomes e publicações supostamente decisivos no sentido da formação final da disciplina é longa e não necessariamente consensual nas obras interessadas na recuperação da pré-história da disciplina.


Autores mais “generosos” na identificação de abordagens que — de uma forma ou outra — teriam antecipado o “etos intelectual” da Ciência da Religião rejeitam o tratamento pejorativo de religiões “alheias” pela tradição bíblica e Teologia patrística, e apontam para exemplos positivos precoces representados por determinadas correntes do pensamento grego. Nesse contexto, são lembrados filósofos como Tales (585 a.C.), Anaximandro (610-540 a.C.) ou Xenófanes (cerca de 570-457) como precursores da disciplina.


Esses e outros intelectuais da época chamariam a atenção, não por suas críticas explícitas a convicções e práticas religiosas “naturalmente” aceitas por seus contemporâneos, mas por causa de sua postura emancipada do então senso comum, ou seja, graças a uma atitude que se aproximaria de maneira “protodisciplinar” ao ideal epistemológico do cientista da religião moderno. Um mérito ainda maior é atribuído ao historiador e mitógrafo Evêmero (cerca de 350-290 a.C.). Com seu relato fictício Hiera anagraphê, no qual defende a ideia de que as divindades e os mitos associados teriam sua base antropológica em reminiscências de personagens heroicos, iniciou uma especulação sobre a origem da religião posteriormente conhecida como “evemerismo”.


Restringindo a busca a sinais de uma abstração do pensamento de predefinições religiosas a tendências mais recentes, vale a pena lembrar os esforços de intelectuais leigos do século XII para elaborar raciocínios em oposição à até então dominante visão histórica defendida pelos clérigos. Um resultado dessas aspirações foi a valorização da história mundana como verdadeiro cenário do progresso humano, um conceito que se especificou em uma posterior “história das religiões” do ponto de vista secular.


Entre os protagonistas que a médio prazo se beneficiaram dessas conquistas intelectuais, encontra-se Jean Bodin (1530-1596), cujo trabalho é considerado uma obra paradigmática em termos da reflexão “distanciada” sobre o pluralismo religioso da época. Apesar da sua atitude religiosa subjacente e de um quadro referencial normativo, Bodin abordou o tema da religião, inclusive o Cristianismo, de maneira crítica e privilegiou o princípio da razão em detrimento da ideia da revelação. Mais consequentemente do que Bodin, Edward Herbert de Cherbury (1583-1648) rejeitou a referência à revelação como fonte de conhecimento.


Sensibilizou seus leitores para a necessidade do controle de convicções religiosas no âmbito da ciência e argumentou que conclusões sobre a vida religiosa deveriam ser tomadas exclusivamente a partir de dados empíricos. Algo semelhante valeu para Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757), representante do pré-iluminismo francês, e sua busca por raízes psicológicas da religião. Outro pensador citado como um dos antecipadores de abordagens compatíveis com a Ciência da Religião atual é o filosofo e historiador italiano Giambattista Vico (1668-1744), apreciado por seu esforço de pôr sua fé católica entre parênteses enquanto elaborava sua descrição naturalista de todas as instituições humanas, inclusive a religião. Logo, depois Charles de Brosses (1709-1777) lançou seu tratado Du culte des dieux fétiches, ou, Parallèle de l’ancienne religion de l’Egypte avec la religion actuelle de Nigritie (1760), visto como uma das primeiras obras programáticas em termos de uma posterior Ciência da Religião comparada.


O “mentor” precoce do estudo científico da religião mais frequentemente citado, porém, é David Hume (1711-1776) devido a sua abordagem da religião dentro de um quadro referencial estritamente científico. Conforme a literatura especializada, Hume, não interessado na defesa mas sim na explicação do seu objeto, fechou o círculo aberto por intelectuais anteriores e inaugurou uma tradição do tratamento racional da religião que, no âmbito da Filosofia, foi retomada por pensadores mais recentes, entre eles Jean-Jaques Rousseau (1712-1778), Immanuel Kant (1724-1804), Friedrich Schleiermacher (1768-1834), Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Arthur Schopenhauer (1788-1860). Nessa sequência encaixa-se também Johann Gottfried Herder (1744-1803), lembrado como o primeiro autor moderno a destacar a importância de um olhar histórico para a Filosofia em geral e para as reflexões sobre religião em particular.6


Embora todas essas contribuições tenham sido passos importantes na direção do estudo da religião no sentido moderno, elas foram articuladas sem a perspectiva do surgimento da Ciência da Religião no sentido de uma disciplina própria e institucionalmente contextualizada no sistema universitário europeu. Igualmente, acadêmicos associados ao chamado “círculo de Göttingen”, como Johann Gottfried Immanuel Berger (1773-1803), Karl Friedrich Stäudlin (1761-1826) ou Christian Wilhelm Flügge (1773-1827), mencionaram termos como “História das Religiões” ou “Ciência da Religião” nos seus cursos ou publicações, porém sem se referirem a uma disciplina autônoma e distinta da Teologia.7


A fase formativa da Ciência da Religião


CRESCENTE NITIDEZ DA NOMENCLATURA


No decorrer da segunda metade do século XIX, aumentaram os sinais de uma consciência disciplinar cada vez mais consolidada. Uma das primeiras expressões dessa tendência encontra-se no uso aperfeiçoado do termo “Ciência da Religião”, que deixa de ser uma nomenclatura vaga e aleatória e assume uma denotação específica apontando para uma matéria acadêmica própria. De certo modo, isso já vale para a percepção cristã de diversas religiões de Théodore Prosper Le Blanc d’Ambonne (1802-1868) elaborada na obra Les Religions et leur Interprétation Chrétienne, publicada em 1852 em Paris, e para o livro sobre a mitologia comparada de Ferdinand Stiefelhagen (1822-1902) Theologie des Heidenthums, lançado em 1858 em Regensburg.


Um passo decisivo foi dado pelo indólogo alemão e desde 1854 professor na universidade de Oxford Friedrich Max Müller (1823-1900). No horizonte da institucionalização de uma série de novas matérias universitárias, entre elas a Sociologia, a Etnologia ou a Psicologia, Müller declarou no prefácio do seu livro Chips from a German Workshop (1867) que o termo Ciência da Religião devia ser reservado para designar uma disciplina autônoma.


INÍCIO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO


Os desenvolvimentos subsequentes comprovaram a pertinência da visão de Müller. Em 1873 foi fundada a primeira cátedra em História Geral da Religião na Universidade de Genebra, Suíça. Em 1877 seguiram quatro cátedras nas universidades holandesas de Amsterdã, Leiden, Groningen e Utrecht. Em 1879 foi inaugurada a primeira cátedra em História das Religiões na França, seguida por uma cátedra na universidade de Bruxelas, Bélgica (1884).


No mesmo ano surgiu em Roma a primeira cátedra de História das Religiões. Dois anos mais tarde, porém, ela foi transformada na cátedra de História do Cristianismo. O resultado foi que a Ciência da Religião na Itália ganhou um status autônomo duradouro apenas em 1924. A força da Teologia e sua abertura para métodos estritamente históricos dificultaram também a institucionalização da Ciência da Religião na Alemanha, onde a primeira cátedra foi fundada em 1910 (Berlim).


À primeira vista, surpreende também o fato de que a institucionalização da Ciência da Religião na Grã-Bretanha tenha demorado até 1904 (Universidade de Manchester). Todavia, esse atraso não reflete o grande interesse público por temas relacionados à disciplina. A atenção acadêmica para assuntos afins articulou-se explicitamente no âmbito de séries de palestras regulares oferecidas em diferentes centros universitários. Esses eventos tinham uma base financeira sólida devido a fundações de cidadãos que mantiveram uma relação forte com a universidade onde se formaram ou com o sistema acadêmico nacional.


Em termos cronológicos, a primeira série de palestras que deve ser lembrada é a das chamadas Burnett Lectures, possibilitadas por uma contribuição financeira do negociante escocês John Burnett (1729-1784). Os eventos foram organizados a partir de 1887 em Aberdeen.


Logo depois, foi convidado Robertson Smith, que entre 1888 e 1891 deu três palestras sobre a religião de semitas, aproveitando essas oportunidades para chamar a atenção para a Ciência da Religião como uma nova disciplina acadêmica em ascensão. Algo semelhante vale para as chamadas Hibbert Lectures, intituladas assim em homenagem ao negociante inglês Robert Hibbert (1769-1849), cuja doação generosa em 1847 possibilitou a posterior realização dos respectivos eventos no Manchester College. A palestra inaugural em 1878 foi proferida por Friedrich Max Müller, que falou sobre as religiões da Índia. Em 1881 foi convidado um dos melhores especialistas britânicos da época no Budismo, T. W. Rhys Davids (1843-1922).


Alguns anos mais tarde, o nome de William James (1842-1910), conhecido como um dos fundadores da Psicologia da Religião, apareceu no programa das comunicações em Manchester. Alguns dos eruditos que honraram as Hibbert Lectures apresentaram-se também no âmbito das Gifford Lectures, financiadas por um fundo criado pelo advogado e juiz escocês Adam Lord Gifford (1820-1887), que tinha laços fortes com a universidade de Glasgow. Entre os palestrantes, encontra-se novamente Friedrich Max Müller, que entre 1888 e 1892 deu quatro palestras em Glasgow sobre temas relacionados ao seu trabalho como cientista da religião. Algo semelhante vale para William James e suas comunicações sobre as variedades da experiência religiosa oferecidas entre 1900 e 1902 em Edinburgh.


ESFORÇOS FILOLÓGICOS COORDENADOS E SISTEMATIZADOS


Durante as “décadas formativas”, o trabalho filológico como um dos subsídios centrais para a investigação ampla e profunda de religiões concretas ganhou uma nova qualidade. Na área da sinologia destaca-se, entre outros, o escocês James Legge (1815-1897). Legge, na sua função como tradutor de diversas fontes fundamentais para a religiosidade chinesa, desempenhou um papel importante em relação à famosa seleção de Sacred Books of the East. Atuou junto com Max Müller como coorganizador dessa coletânea publicada entre 1879 e 1910.


A série é composta por 50 volumes de textos sagrados-chave do Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Confucionismo, Zoroastrismo, Jainismo e Islã traduzidos por filólogos reputados, entre eles o inglês especialista em Zoroastrismo Edward William West (1824-1905), o orientalista inglês e conhecedor da língua árabe Edward Henry Palmer (1840-1882), o orientalista francês James Darmesteter (1849-1894), o indólogo alemão George Frederick William Thibaut (1848-194), o orientalista inglês e especialista na língua chinesa Samuel Beal (1825-1889) e outros, além de Müller e Legge, também os já citados especialistas Michael Viggo Fausböll e T. W. Rhys Davids.


Além da sua contribuição para os Sacred Books of the East, Rhys Davids é lembrado por seu engajamento na Pali Text Society. A sociedade foi fundada em 1881 com o objetivo de promover o estudo de textos em páli e ganhou fama no mundo acadêmico através do corpo maciço de traduções de textos do Budismo primitivo para o inglês, além do lançamento de dicionários, concordâncias e manuais úteis para o estudo de fontes budistas escritas na língua páli.


REFERÊNCIAS, PERIÓDICOS E CONGRESSOS


Ao lado de esforços filológicos, intensificou-se por volta da virada do século XIX para o século XX o trabalhou com enciclopédias e compêndios que serviram aos pesquisadores da religião como referências comuns. Uma dessas obras foi a enciclopédia Die Religion in Geschichte und Gegenwart, cujos cinco volumes foram lançados entre 1900 e 1913. Outros manuais na língua alemã foram as edições do Religionsgeschichtliches Lesebuch, publicadas por Alfred Bertholet (1868-1951) a partir de 1908, e o Textbuch zur Religionsgeschichte, organizado pelo historiador das religiões dinamarquês Johannes Edvard Lehmann (1862-1930), cuja primeira versão surgiu em 1912. Provavelmente a fonte mais relevante da época (e até hoje frequentemente consultada) é a Encyclopedia of Religion and Ethics, coordenada pelo presbiteriano e biblista escocês James Hastings (1852-1922). Os treze volumes dessa obra magna foram lançados entre 1908 e 1927.


Outro parâmetro para o avanço do processo da consolidação da Ciência da Religião nas décadas em questão é a fundação de periódicos dedicados à divulgação da pesquisa e do trabalho teórico da área. Entre esses jornais encontram-se a Revue de l’histoire des religions (1880), o Archiv für Religionswissenschaft (1898) e o periódico Anthropos (1904). Paralelamente, foram organizados os primeiro congressos associados à Ciência da Religião. Em 1897, os pesquisadores da religião encontraram-se pela primeira vez em âmbito internacional em Estocolmo; esse encontro foi seguido por um congresso na Exposição Mundial em Paris (1900). Outros eventos de destaque até a Primeira Guerra Mundial ocorreram na Basileia (1904), em Oxford (1908) e em Leiden (1912).


ARTICULAÇÕES EM PROL DA “SECOND-ORDER TRADITION”


As décadas em torno da virada do século XIX para o século XX foram também o período da fixação de “caminhos intelectuais proeminentes específicos para o estudo da religião”.8 Diversas publicações hoje consideradas clássicas contribuíram para essa delineação do perfil disciplinar no sentido de uma second-order tradition.


Em 1877, ou seja, no mesmo ano em que assumiu a primeira cátedra em Ciência da Religião na Universidade de Leiden, Cornelius Petrus Tiele (1830-1902) lançou em Londres sua primeira obra programática na área da História das Religiões intitulada Outlines of the history of religion: to the spread of the universal religions. Cinco anos mais tarde, Müller publicou em Oxford sua obra Introduction to the Science of Religion, nela exigindo dos seus colegas uma postura neutra diante das reivindicações da verdade pelas religiões pesquisadas. Na vida cotidiana prática, seria errado não se posicionar normativamente diante de perspectivas conflituosas de diferentes tradições religiosas.


Mas o cientista da religião se aproximaria dos seus objetos com uma perspectiva elevada e mais serena, tomando uma atitude de indiferença igual a um historiador da ciência que se dedica a um estudo histórico da alquimia. Além da formulação de um dos princípios epistemológicos centrais da Ciência da Religião até hoje, Müller vislumbrou também a organização interna da disciplina no sentido da distinção entre um ramo que se ocupa com as formas históricas da religião e um ramo sistemático interessado na explicação das condições sob as quais as religiões se manifestam.


Em 1893, por ocasião do Parlamento Mundial das Religiões, novamente Tiele deixou claro que a comparação das religiões não deveria ser confundida com um empreendimento apologético. Em vez disso, tratar-se-ia de um estudo não preconceituoso de dogmas, textos, ritos e crenças.9


Independentemente do uso explícito da Ciência da Religião, a comparação das religiões como tarefa-chave dos estudos da religião no sentido moderno é também um assunto destacado em outras publicações lançadas na década de 1890, entre elas o livro Ten Great Religions, de James Freeman Clarke, e as Lectures on the Religion of the Semites, de Robertson Smith. Mais uma vez, Tiele, na sua obra de dois volumes Elements of the Science of Religion, publicados em 1897 e 1899, respectivamente, informa seu leitor não apenas sobre as manifestações e constituintes da religião e sua evolução histórica, mas também oferece uma introdução à constituição, ao objetivo e aos métodos da Ciência da Religião.


Em 1901, Edmund Hardy (1852-1904), professor de indologia na universidade de Friburgo (Suíça), delineou no seu artigo “Zur Geschichte der vergleichenden Religionsforschung”, publicado no volume inaugural do novo órgão Archiv für Religionswissenschaft (1901), o método da Ciência da Religião comparada enquanto uma abordagem sistemática baseada na pesquisa histórico-empírica. Quatro anos mais tarde, o pesquisador das religiões canadense Louis Henry Jordan (1855-1923) lançou em Edinburgh sua obra Comparative Religion. Its Genesis and Growth, sobre a gênese e o desenvolvimento da sua disciplina. Conforme o prefácio, o livro representa uma tentativa de oferecer um esboço da emergência de uma nova linha de pesquisa, as dificuldades que ela enfrenta, os problemas que ela pretende resolver e os resultados obtidos até então.


Essa nova ciência tem uma raison d’être própria que consiste em colocar as inúmeras religiões do mundo lado ao lado com o objetivo de compará-las. Diferentemente da apologética cristã, não tem o objetivo de assegurar a superioridade de uma religião diante das outras.


A história inacabada da Ciência da Religião


A história mais recente comprova a receptividade de sistemas acadêmicos em todas as partes do mundo para a implementação de estudos da religião no sentido moderno. Um olhar atual panorâmico revela a existência de inúmeros cursos, ofertas de estudo em programas de Ciência da Religião institucionalizados, bem como a presença de associações que representam e coordenam os interesses de cientistas da religião no âmbito nacional e, na maioria dos casos, no âmbito da Internacional Association for the History of Religion (IAHR), fundada em 1950 com o objetivo de promover as atividades de todos os membros (42 associações nacionais e seis regionais em 2012) que contribuem para o estudo histórico, social e comparado da religião.


O início e a velocidade da internacionalização da Ciência da Religião, bem como os resultados desse processo variam de país para país, dependendo de uma série de fatores intra e extra-acadêmicos. Para o Japão, por exemplo, foi decisiva a abertura do país para o Ocidente e suas tradições intelectuais a partir do último terço do século XIX. A Fundação da Japanese Association for Religious Studies em 1930 é uma das manifestações dessa nova atitude e indica que nas décadas anteriores da criação do órgão nacional os estudos da religião se articularam em algumas universidades locais.


Para o Leste Europeu, a queda da cortina de ferro criou um novo horizonte para os estudos da religião, seja no sentido de uma retomada de uma tradição mais antiga representada por renomados filólogos e orientalistas como o húngaro Alexander Csoma de Körös (1784-1842) ou os russos Vasili P. Vasiliev (1818-1900), Nikolai F. Petrovsky (1837-1908) e Ivan Pavlovich Minaev (1840-1890), seja no sentido de fundação de departamentos de Ciência da Religião, como na Ucrânia (1991), em Bucareste (2003) ou em Budapeste (2005).


Uma pesquisa profunda sobre a situação atual nos respectivos países teria que também abranger associações acadêmicas no âmbito nacional como, por exemplo, a Czech Association for the Study of Religions, que existe desde 1990, a Slovak Association for the Study of Religions, inaugurada um ano depois, ou a Romanian Association for the History of Religions, fundada em 1997.


Na Austrália, a Ciência da Religião se beneficiou de uma onda de institucionalizações na década de 1970 que culminou na fundação da Australian Association for the Study of Religions em 1976. Três anos mais tarde, surgiu a Association for the Study of Religions in Southern Africa, que, do ponto de vista da IAHR, atua no nível sub-regional diferentemente, por exemplo, da Nigerian Association for the Study of Religions (nacional), por um lado, e da African Association for the Study of Religions, fundada em 1992 como associação regional, por outro lado. A Asociación Latinoamericana para el Estudio de las Religiones (ALER) foi fundada em 1990 e associou-se no mesmo ano à IAHR como associação regional.


Do ponto de vista de associações nacionais como a Associação Brasileira da História das Religiões (ABHR, fundada em 1999 e associada à IAHR desde 2000) ou a Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (Anptecre, que iniciou suas atividades em 2008), os modos de cooperação com a ALER e a representatividade atribuída a ela pela IAHR mereceriam um esclarecimento melhor.


Todos os exemplos mencionados não apenas comprovam a dinâmica contínua da história da Ciência da Religião em geral, mas sensibilizam também para a heterogeneidade cultural dos contextos em que a disciplina se articula e busca manter sua identidade. Essa busca torna-se particularmente delicada em situações em que uma determinada comunidade científica sente a necessidade de conciliar exigências disciplinares originalmente formuladas a partir do último quarto do século XIX por eruditos europeus com os princípios e o “estilo” da tradição intelectual nacional. Nesses casos, os respectivos cientistas da religião estão diante da tarefa de reinterpretar os padrões predominantes na discussão internacional. Não cabe a este resumo da história disciplinar se posicionar diante dos riscos e ganhos de esforços de aculturação da Ciência da Religião.


Referências bibliográficas:

CAPPS, Walter. Religious Studies; the Making of a Discipline. Minneapolis: Fortress Press, 1965.

COLPE, Carsten. Religious Studies. In: The Encyclopedia of Christianity. Grand Rapids: Eerdmans-Brill, 2005. pp.637-638.

HARDY, Edmund. Zur Geschichte der vergleichenden Religionsforschung. Archiv für Religionsforschung, n. 4 (1901), pp. 45-66; 97-135; 193-228.

KIPPENBERG, Hans G. Die Entdeckung der Religionsgeschichte; Religionswissenschaft und Moderne. München: Beck, 1997.

SANTOS, F. Delfim. Cronologia das traduções e das obras filológicas orientalistas (séc. XVIII e XIX). Nuntius antiquus, n. 5 (2010), pp.149-159.

SEAGER, Richard Hughes. The World’s Parliament of Religions; the East/West Encounter. Chicago: s.n., 1893.

USARSKI, Frank. O caminho da Institucionalização da Ciência da Religião — Reflexões sobre a fase formativa da disciplina. Religião & Cultura, v. II, n. 3 (2003), pp.11-28.

VAN BEEK, W. E. A.; BLAKELY, T. D. Introduction. In: BLAKELY, T. D.; VAN BEEK, W. E. A.; THOMSON, D. L. (eds.). Religion in Africa. London: James Currey, 1994. pp.1-20.

WIEBE, Donald. The Politics of Religious Studies. New York: Palgrave, 1999.


Notas

1 Van Beek; Blakely, Introduction, p. 2.

2 Hardy, Zur Geschichte der vergleichenden Religionsforschung, p. 45.

3 Wiebe, The Politics of Religious Studies, pp.3ss.

4 Capps, Religious Studies, p. xv.

5 Santos, Cronologia das traduções e das obras filológicas orientalistas.

6 Kippenberg, Die Entdeckung der Religionsgeschichte.

7 Colpe, Religious Studies.

8 Capps, Religious Studies, p. xiii.

9 Seager, The World’s Parliament of Religions, p. 69.

Fonte: USARKI, Frank. História da Ciência da Religião. Revista Ciberteologia: teologia e cultura, ano X, n. 47, 2013, p. 139-150. 

2 comentários:

diversao120 disse...

seu site é excelente parabéns

Leandro Vilar disse...

Obrigado por ter gostado de meu trabalho. Venho fazendo isso desde 2009. Quando decidi me tornar historiador, durante o período da graduação, percebi que muito do conhecimento histórico que eu via na universidade, pouco saía de seus muros. Decidi criar esse blog para levar a história as pessoas de forma mais ampla, interessante, instigante e boa de se ler. A História é um bem da humanidade, porque ela perfaz nossa identidade, seja em aspectos bons ou ruins.