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Leandro Vilar

domingo, 2 de agosto de 2020

Charles Darwin e seu espanto com a escravidão no Brasil

No ano de 1832, o jovem Charles Robert Darwin (1809-1882), partiu numa viagem de volta ao mundo abordo do HMS Beagle, em uma expedição naturalista. Com então 23 anos, Darwin ainda estava longe de ser o mundialmente conhecido naturalista que escreveu A origem das espécies (1859), no entanto, foi nessa viagem que ele coletou suas primeiras amostras e dados para os estudos que realizaria nas décadas seguintes. E nos primeiros meses de 1832, o primeiro país que Darwin visitou nas Américas, foi o Brasil, terra pela qual ele ficou deslumbrado pela riqueza natural e cultural, mas também ficou assombrado pela escravidão e a corrupção. Neste texto, utilizei passagens do diário de viagem de Darwin, para apresentar as impressões que ele teve acerca da escravidão no Brasil, algo que o marcou. 

O jovem Charles Darwin visitou o Brasil duas vezes, em 1832 e 1836, permanecendo quase seis meses no país. 

No dia 16 de fevereiro, Darwin avistou os Rochedos de São Pedro e São Paulo, o primeiro contato com terras brasileiras. Quatro dias depois o Beagle chegou ao arquipélago de Fernando de Noronha, o primeiro lugar do Brasil que Darwin teve contato, e achou deslumbrante a paisagem. Nove dias depois a expedição aportou em Salvador, na Bahia, onde permaneceram 18 dias. Nesse tempo, Darwin aproveitou para visitar as florestas, conhecer a cidade, observar seus costumes, vivenciar o Carnaval, festa que ele disse ser bastante animada, barulhenta e até inconveniente, pois havia foliões que pregavam travessuras, atirando balões de água e jogando farinha nos transeuntes. Em Salvador ele relatou suas impressões quanto a grande concentração de pessoas negras naquela cidade, e que elas eram escravizadas. Todavia, em sua estadia na Bahia, Darwin não deu muita atenção a escravidão, pois estava interessado em sua pesquisa. Somente quando ele chegou ao Rio de Janeiro é que seus comentários se tornam mais nítidos. 

O Beagle aportou no Rio de Janeiro em 4 de abril, Darwin permaneceu naquela província por 93 dias. Ele se hospedou numa casa alugada no bairro do Botafogo, próximo ao Corcovado. Darwin relatou sua primeira má impressão quanto a burocracia brasileira, dizendo que os funcionários eram desatenciosos, lerdos e mal-educados. Mas foi no dia 8 de abril, enquanto ele visitava a Fazenda de Itaocaia em Maricá, Darwin relatou sua primeira impressão negativa sobre a escravidão. No dia seguinte ele e seus companheiros avistaram um grupo de capitães-do-mato que se dirigiam para reaver escravos fugidos, pois naquelas terras havia um quilombo. Darwin avistou parte do ocorrido, em que um grupo de escravos foi encurralado próximo a um precipício, no qual uma idosa preferiu pular para a morte do que voltar a ser escrava. Aquilo o chocou, inclusive ele disse que se fosse uma nobre senhora romana que cometesse suicídio, seria ovacionada por seu "amor à liberdade", mas no caso daquela idosa, era um ato de desespero. (DARWIN, 1839, p. 20).

Em 13 de abril, em visita a Fazenda do Sossego, em Conceição de Macabu, Darwin relatou novos testemunhos. Ele ficou três dias hospedado naquela fazenda que pertencia ao senhor Manuel Figueiredo. Darwin escreveu que as refeições durante sua estadia ali eram bastantes fartas, porém, durante o almoço e o jantar, não era incomum ver cães e crianças negras mendigando sobras de comida. E quando aquilo se tornava bastante inconveniente, o senhor Figueiredo mandava algum empregado afastar aqueles cães e crianças. Nesse ponto, Darwin diz que enquanto a escravidão perdurasse, cenas como aquela seriam consideradas comuns. (DARWIN, 1839, p. 24).

Apesar dessa reprovação quanto ao trato dado aos escravizados, Charles Darwin ainda se mostrava um homem ingênuo naquela época. Ele chegou a escrever que achava que os escravos levassem uma vida feliz em algumas fazendas, pois nos sábados e domingos, seria seu "dia de folga", em que eles trabalhavam para si e suas famílias. E como a terra era fértil, bastava apenas aqueles dois dias de trabalho, para conseguir o sustento pelo resto da semana. (DARWIN, 1839, p. 24).

Ainda em visita na Fazenda Sossego, Darwin relatou que o senhor Figueiredo estava com dívidas, ele não sabia exatamente os detalhes, mas teve um dia que ele pediu para reunir mulheres e crianças de trinta famílias, pois esses seriam vendidos no Rio de Janeiro, para quitar tais dívidas. Filhos seriam separados de suas mães e vendidos individualmente. Darwin diz que aquela cena era infame, era um ato sem compaixão, desumano, de puro interesse egoísta. (DARWIN, 1839, p. 25).

Posteriormente, ele comentou outra surpresa que o chateou. Ele estava conversando com um escravo numa balsa, o qual não entendia inglês, então Darwin diz que gesticulou para ele e ao aproximar sua mão do rosto do homem, esse se encolheu como se estivesse prestes a ser surrado. Darwin disse que ficou surpreso com aquilo, pois era um homem grande, mas que segundo ele, "havia sido domesticado" para se acovardar diante da mão de seu senhor. Ato que ele comparou aos animais quando eram treinados para se amedrontarem diante de seus donos. (DARWIN, 1839, p. 25).

No restante do mês de abril e ao longo de maio e junho, o diário de Charles Darwin quanto a sua estadia no Brasil, centra-se em seus comentários sobre seu trabalho como naturalista, e breves menções de cunho sociológico. No dia 5 julho o Beagle deixou o Rio de Janeiro partindo para o Uruguai. Darwin somente retornaria ao Brasil, quatro anos depois. 

Em agosto de 1836 o capitão FitzRoy que comandava o Beagle, optou em fazer nova parada no Brasil, pois originalmente a rota prevista deveria seguir para Cabo Verde, mas os ventos não eram favoráveis, o que atrasaria não apenas a viagem, mas poderia levá-los a se afastarem bastante da costa africana, adentrando o Atlântico Sul, com isso, FitzRoy aproveitou para usar as correntes marítimas que vão da África a América do Sul, retornando a Salvador. Após cinco dias de estadia na capital baiana, o Beagle zarpou para Recife, em Pernambuco. A expedição chegou ao Recife no dia 7 de agosto e permaneceu ali até o dia 12, enquanto aguardava bons ventos para seguir viagem para Cabo Verde. Foi em Recife que Darwin teve seu último aborrecimento com a escravidão brasileira. 

Desenho do navio HMS Beagle, que esteve operante de 1820 a 1845. Em 1870 foi desmanchado. 

Além de visitar Recife, ele também passeou por Olinda, onde se encantou com belos jardins e até pediu permissão de visitar alguns para fazer anotações, mas os proprietários se negaram. Darwin relatou em seu diário que havia brasileiros muito rudes e pouco afeitos aos estudos, mas num país onde vigorava intensamente a escravidão por séculos, era de se esperar ser uma degradação moral. (DARWIN, 1839, p. 528). 

No relato do dia 19 de agosto, já tendo deixado o Brasil, Darwin escrevia com lamento sobre alguns atos vis que testemunhou naquele país. Ele escreveu que certa vez em Pernambuco, passava ao lado de uma casa, onde ouvia os gritos de um negro que estava sendo espancado (ou torturado como ele escreveu), mas infelizmente ele lamentou que nada pudesse ter feito naquela ocasião, pois era comum num país escravocrata, bater nos escravos. Ele comentou que aquilo lhe gerou pesadelos, pois toda vez que despertava com alguém gritando à noite, lhe vinha a memória aquele ocorrido. Aquilo o fez lembrar de recordações de 1832, onde ele também relatou que uma casa vizinha na qual ele esteve hospedado em Botafogo, havia uma senhora que usava pregos para castigar suas escravas, fazendo-as pisar nos mesmos. Depois ele comentou que ficou numa casa, onde um jovem escravo era insultado e ameaçado todo o tempo, cena que dava pena. Em alguns momentos ele levava alguns tapas. Darwin diz que nem mesmo animal merecia isso. Ele também comentou que viu e ouviu outros relatos repulsivos, mas preferiu não escrevê-los, para não se aborrecer ainda mais, e mesmo que ele tenha reclamado algumas vezes, nada adiantava, pois a escravidão era legalmente aceita e considerada um "mal necessário". Darwin nesse ponto de seu diário agradece a Deus por estar indo embora do Brasil e prometeu que nunca mais voltaria a pisar num país escravocrata. (DARWIN, 1839, p. 530). 

Apesar de sua péssima impressão sobre o Brasil quanto aos valores morais e éticos, em que Darwin condenou a escravidão, a corrupção, a imoralidade, a ignorância, a falta de educação, por outro lado, sua pesquisa foi bastante produtiva, pois ele coletou centenas de amostras e dados. No entanto, seu testemunho sobre a crueldade da escravidão, somente o fez ter mais convicção de manter suas ideias abolicionistas, algo já defendido por seu avô Erasmo Darwin

Rota da viagem do Beagle que Darwin participou entre 1832 e 1836. 

NOTA: Darwin relatou um caso que ele testemunhou na colônia espanhola, a qual ele não nomeou. Disse que certa vez estava numa casa, onde um menino de seis ou sete anos, foi lhe levar um copo de água, mas o dono dele disse que o garoto pegou um copo sujo e começou a dar tapas na cabeça do menino. O pai da criança estava presente no recinto, mas estava acuado na parede, ele via seu filho ser espancado, mas não podia agir, pois seria pior. Darwin disse que não aguentou a cena e levantou-se, indo reclamar com o dono da casa. Ele não fornece mais detalhes sobre o que sucedeu.  
NOTA 2: Charles Darwin prometeu que jamais pisaria em outro país escravocrata, de certa forma sua promessa foi cumprida. Ao retornar a Inglaterra, o governo havia abolido a escravidão em 1834. Após a volta ao mundo, Darwin passou o restante da sua vida na Inglaterra. 
NOTA 3: No ano da visita dele em 1832, o imperador D. Pedro I havia abdicado do trono brasileiro e voltado para Portugal. As duas vezes que visitou o país, o Brasil se encontrava no período regencial (1831-1840), pois o infante Pedro II, era uma criança ainda. 
NOTA 4: Embora Darwin critique os brasileiros, chamando-os de ignorantes e mal-educados, é preciso ter cuidado com a compreensão de tais comentários. Ele como um homem de seu tempo, era imbuído por uma visão eurocêntrica de superioridade, em que os europeus se consideravam melhores do que os demais povos. Então gestos simples poderiam ser mal interpretados por conta desse pensamento. Porém, Darwin estava certo quanto a burocracia morosa, a escravidão hipócrita e violenta, e a corrupção. 

Referência bibliográfica: 
DARWIN, Charles. A Naturalist's Voyage round the World. 1839. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/3704/3704-h/3704-h.htm#chi


domingo, 19 de julho de 2020

Devoradores de homens: os leões assassinos de Tsavo

No final do século XIX, a região de Tsavo, no Quênia, tornou-se palco de uma história violenta, sangrenta e assustadora. Falava-se que leões devoradores de homens estavam mantando muitas pessoas naquele local. Realmente aquela história foi real, inclusive inspirou livros e filmes. E nesta postagem contarei um pouco dessa sinistra história, apontando as diferenças entre ficção e fato.

Os leões de Tsavo, empalhados no Museu Field de História Natural, em Chicago. 

A ponte de Tsavo

Durante o período do neocolonialismo em África, países como Inglaterra, França e Bélgica, dominava várias colônias naquele continente. No caso dos ingleses, em 1895 eles deram início a Estrada de Ferro de Uganda, a qual iniciava-se no atual território de Uganda, mas adentrava as terras do Quênia, rumo a Mombaça e o litoral. A ideia daquela ferrovia era criar um caminho da costa até o interior do continente, facilitando o transporte e escoamento de produtos. A medida que esse caminho férreo era construído, ele chegou até o rio Tsavo no Quênia, onde se viu que era necessário construir uma ponte ali. Na época a Companhia Britânica da África Oriental, nomeou o capitão John Henry Patterson (1867-1947) para supervisionar as obras da ponte de Tsavo. Naquele tempo era comum os militares exercerem cargos nas companhias coloniais do Império Britânico, com isso Patterson seguiu para o Quênia. (PATTERSON, 1925, p. 91). 

Fotografia da ponte de Tsavo, Quênia. A ponte ainda hoje existe, embora não seja com a mesma estrutura. 

As obras da ponte já estavam em andamento quando Patterson chegou por volta de março e 1898. Na ocasião empregavam-se trabalhadores locais, mas também havia indianos, recordando que a Índia naquele tempo também era colônia britânica. Com isso muitos indianos que passavam a trabalhar para as companhias coloniais inglesas, seguiam para outros países. Patterson comenta que poucos dias após ele ter chegado a Tsavo, algo de estranho aconteceu, dois trabalhadores sumiram misteriosamente. (PATTERSON, 1925, p. 98).

Sublinha-se que a região de Tsavo fica em meio as savanas quenianas, sendo um território hostil devido aos grandes predadores desse habitat. Além disso, o sumiço de trabalhadores não era incomum, pois alguns acabavam se perdendo, enquanto iam caçar, e outros também aproveitavam para fugir do trabalho degradante, e as vezes análogo a escravidão. Além disso, havia a ameaça de leões que viviam naquela região. Patterson (1925, p. 98-99) comentou em seu livro que quando soube do sumiço de dois trabalhadores durante à noite, e lhe foi informado que eles teriam sido levados por leões, ele disse que não acreditou naquilo, pois leões normalmente atacavam em bando, e não havia bandos daqueles felinos por vários quilômetros nos arredores. Além disso, o acampamento operário, moravam dezenas de trabalhadores. Seriam muito difícil ninguém conseguir ver tais animais saindo dali, arrastando dois homens adultos. Porém, os oficiais seguiam confirmando que aquilo foi ataque de leões, então Patterson disse que decidiu investigar. Dando início a quase dez meses de terror. 

Fotografia de John Henry Patterson, o caçador dos leões assassinos de Tsavo. 

O relato de Patterson

Quase dez anos depois o ocorrido em Tsavo, Patterson escreveu o livro The man-eating lions of Tsavo (1907), cuja obra o deixou relativamente famoso na época. O livro conta a tensa e assustadora experiência dele em ter vivido aquele ano de 1898, sob a ameaça de dois ferozes leões devoradores de homens. De fato, muito da popularidade dessa história deve-se a publicação desse livro, mesmo que ele tenha saído alguns anos depois dos fatos ali narrados. 

A obra embora tenha sido considerada como um genuíno relato real, hoje é encarada de forma diferente, sendo vista mais como um romanceamento daqueles acontecimentos. Algo perceptível no linguajar de Patterson, que escreveu aquele relato como se fosse um livro de aventura, além de que ele também provavelmente alterou determinados relatos, e um dos mais mais nítidos diz respeito ao número de mortos, onde ele sugeriu que entre 130 a 140 homens foram assassinados por aqueles dois leões. 

Mas apesar do relato romanceado de Patterson, realmente os assassinatos ocorreram. Os leões somente foram abatidos em dezembro, após meses de ataques realizados à noite, onde eles de fato chegavam a invadir o território dos acampamentos, e atacando os empregados que ali andavam, ou estavam ocupados com algum afazer, ou até mesmo dormindo. Patterson também relata que ele e caçadores locais foram atrás daqueles animais em várias ocasiões, mas sempre perdiam seus rastros. Armadilhas foram montadas, mas os leões não caíram em nenhuma delas. 

A medida que os meses passavam, alguns dos trabalhadores começaram a fugir e outros relutavam em trabalhar devido a insegurança. Histórias de assombração começaram a ser difundidas entre os nativos, os quais diziam que tais leões seriam "demônios", "monstros" ou "espíritos vingativos". E a condição de eles atacarem principalmente durante à noite, e de forma sorrateira, contribuía para deixar tais relatos ainda mais vívidos e aterrorizantes. (PATTERSON, 1925, p. 101, 106). 

Embora que biologicamente leões costumam caçar durante à noite, e eles como outros felinos, tendem a ser silenciosos enquanto espreitam suas presas. Logo, isso não seria algo incomum, mas para aquele contexto o era, ainda mais pelo fato daqueles animais terem se especializado em atacar pessoas, sendo algo atípico, pois as presas dos leões nas savanas eram animais, não pessoas. Assim, começou a se dizer que eles tinham "apresso por carne humana".

As feras são abatidas

O primeiro leão foi abatido em 9 de dezembro. Patterson relata que o caçou sozinho durante à noite, tendo o matado com dois tiros e quase sendo morto por ele. Não se sabe exatamente ele fez isso tudo sozinho, ou vangloriou-se da façanha. De qualquer forma, no dia 10, o corpo do animal foi levado ao acampamento. Na ocasião ele tirou uma foto ao lado do animal. A morte daquele leão foi recebida como uma agradável notícia, pois um dos devoradores estava morto. (PATTERSON, 1925, p. 120-122).

Patterson ao lado do primeiro leão. Foto talvez de 10 de dezembro de 1898. 

A morte da segunda fera ocorreu quase no final daquele ano, no dia 29 de dezembro. Patterson relatou uma caçada ainda mais tensa e violenta, onde ele disparou várias vezes para acertar o animal e até consegui-lo matá-lo. Inclusive ele conta que montou um posto de caça numa árvore, e usou bodes como isca. De seu esconderijo ele atirou várias vezes contra a fera, a qual segundo ele, tentou escalar a árvore, mas acabou sendo morta, enquanto fazia isso. (PATTERSON, 1925, p. 125-126).

O segundo leão morto por Patterson. Foto talvez de 30 de dezembro de 1898. 

Uma história que ganhou fama

A ponte de Tsavo foi concluída em 1899, e Patterson foi dispensado dessa missão, deixando posteriormente o Quênia. Ao retornar a Inglaterra, foi parabenizado por sua façanha na África, sendo considerado um bravo caçador e até um herói. Na ocasião, John Patterson conservava consigo as peles e crânios dos dois leões, os quais exibiu para familiares, amigos e admiradores. Em 1907 como dito anteriormente, ele publicou seu livro sobre o ocorrido em Tsavo, e a obra foi bem recebida na Inglaterra. Posteriormente ele continuou a seguir com sua carreira militar.

No ano de 1924, já estando aposentado do Exército, e precisando de dinheiro, ele vendeu as peles e crânios dos leões, para o Museu Field de História Natural em Chicago, por 5 mil dólares. As peles estavam em péssimo estado naquela época, tendo que serem reconstruídas para serem empalhadas. No ano seguinte, Patterson publicou uma segunda edição do livro sobre sua caçada, obra inclusive bancada pelo Museu Field, como forma de atrair o público para exposição dos leões devoradores de homens de Tsavo. Após isso, John Patterson seguiu vivendo nos Estados Unidos com sua esposa Frances Helena, pelo resto da vida. O casal morreu na velhice, sem deixar herdeiros. 

Sua história gerou três filmes: Bwana Devil (1952), Killers of Kilimanjaro (1956) e The Ghost and the Darkness (1996), sendo o terceiro filme o mais famoso dos três e o que levou alguns prêmios como um Oscar e três Globos de Ouro. Além disso, o terceiro filme é o mais fidedigno a história contada por Patterson em seu livro. E inspirou alguns livros de aventura e drama. (PETERHANS; GNOSKE, 2001, p. 2). 

Pôster do filme A Sombra e a Escuridão (The Ghost and the Darkness), estrelando Val Kimer e Michael Douglas, 1996. 

Fatos sobre os leões devoradores de homens em Tsavo

Uma das primeiras coisas que chama atenção é o fato de estes leões não terem juba. Pois normalmente acreditamos que todo leão possui juba, e a ausência dessa seria algo das fêmeas, leões jovens ou doentes. Porém, já se sabe há vários anos que não é bem assim. Existem diferentes tipos de jubas, inclusive leões com pouca juba ou até mesmo "carecas". E isso necessariamente não seria por fator de doença, mas por questões ambientais. Logo, observou-se que leões de zonas quentes e de baixa altitude, tem disposição a terem jubas menores. E no caso de Tsavo, é comum isso acontecer lá. 

Um segundo aspecto salientado por Peterhans e Gnoske (2001, p. 4), diz respeito ao tamanho dos felinos. Patterson chegou a dizer que os dois teriam quase três metros de comprimento, mas em média os leões de Tsavo ficam entre 2,60 a 2,70 m de cumprimento. Ou Patterson errou na medição, ou deliberadamente ele escreveu que eram maiores, para fim de gerar mais impacto. 

Um terceiro ponto questionável diz respeito do porque esses leões atacariam apenas pessoas. Aqui há uma série de casos atípicos. Primeiro, os dois felinos não são irmãos, mas talvez seriam do mesmo bando; segundo, leões não costumam caçar em dupla, geralmente um macho possui um bando e ele coloca as leoas e os leões jovens para caçar. Quando um macho não tem um bando, ele caça por conta própria, mas as vezes pode ocorrer de ele trabalhar ocasionalmente em parceria. Os dois leões de Tsavo eram uma dupla de assassinos que se especializou em caçar humanos, algo realmente incomum. 

Várias teorias foram propostas para tentar responder por que aqueles dois machos se uniram para caçar humanos nas obras da ponte de Tsavo? As mais aceitas sugerem que havia escassez de presas naturais naquela localidade, e devido a abundância de pessoas ali, as quais eram tidas como alvos fáceis, os dois leões decidiram ir caçá-los. Porém, isso por si só não responde o mistério todo. Peterhans e Gnoske (2001, p. 6-8) apontam com base no estudo osteológico dos crânios e dentes dos dois leões, que eles possuíam problemas dentários de má formação, algo que poderia ter atrapalhado na hora de eles caçarem, não concedendo força suficiente para prender e executar animais de grande porte. Logo, eles procuraram por presas menores, e os humanos entraram para seu cardápio. Não obstante, os dois pesquisadores também salientam que ambos os leões não seriam tão velhos, teriam uma idade estimada entre 4 a 6 anos, fator que poderia indicar o porque eles não tivessem um bando, já que normalmente por essa idade leões jovens são expulsos de seus bandos, tendo que viver sozinhos ou procurar por outro grupo. 

Por qual motivo tais felinos teriam escolhido Tsavo para ser seu território de caça, uma das pistas é dada pelo próprio John Patterson, o qual disse que não havia preocupação de se enterrar ou cremar os corpos dos operários que morriam. Seus cadáveres eram jogados em valas ou abandonados ao relento. Além disso, sabe-se que uma rota clandestina de escravos passava por aquela região, e os que morriam durante a viagem, também eram despejados ao relento. Logo, o cheiro de sangue e carne atraía carniceiros e provavelmente atraiu os dois leões. Os quais vendo a abundância de presas naquele território e como era fácil de caçá-los, se estabeleceram por ali. Condição essa plausível, pois os dois animais somente chegaram ali em 1898, antes disso não se sabe de onde vieram. 

Outro ponto analisado por Peterhans e Gnoske (2001, p. 8), diz respeito ao número de vítimas desses leões. Na época a companhia férrea disse que apenas 28 trabalhadores teriam sido mortos por tais animais. Porém, Patterson relatou em seu livro, algo entre 135 a 140 mortes. Todavia, os autores ao analisar o consumo diário de carne que um leão adulto precisaria para sobreviver num ambiente de savana, constataram que o volume de carne gerado pelo abate de mais de cem pessoas seriam algo tremendamente desnecessário e até questionável, pois se um leão conseguisse se alimentar muito bem, ele inclusive nem precisaria comer todos os dias. 

Nesse ponto, Patterson disse que na época que os nativos consideravam que aqueles leões matassem não para comer, mas por vingança ou pura maldade. Animais até podem matar por raiva e até cometem vingança, porém, quais motivos aqueles dois leões teriam para atacar aquelas pessoas, se desconhece, embora que na época dissessem que eles fossem assombrações. De qualquer forma, Peterhans e Gnoske (2001) sugeriram com base em seus dados, que os leões teriam matado entre 30 a 38 pessoas, um valor que se aproxima do sugerido pela companhia, mas bem abaixo apontado por John Patterson. Além disso, tal dado aponta uma média de 3 ataques por mês, o que indicaria que tais felinos não se alimentariam apenas de humanos, pois a carne fornecida por três pessoas não seria suficiente para sustentar tais animais por 30 dias. Sendo assim, os ataques não ocorreriam regularmente como Patterson sugeriu. Mas apesar de tais imprecisões, ainda assim, é uma história real e até incomum. 

NOTA: Os leões de Tsavo não possuíam juba, mas nos filmes eles aparecem com juba, pois lhe concede uma aparência maior, mais bela e intimidadora. 
NOTA 2: Os dois leões empalhados são menores do que realmente foram, o fato deve-se que como as peles estavam tão desgastadas, pois foram usadas como tapete por vários anos, os taxidermistas tiveram que reconstruir parte das peles, com isso, os leões em exposição tem porte menor. 
NOTA 3: Os leões são catalogados como FMNH 23970 (para o primeiro) e FMNH 23969 (para o segundo). Tal numeração consiste no número pelos quais foram registrados no Museu Field. 
NOTA 4: Sombra e Escuridão ou no original Ghost e Darkness, são nomes fictícios criados para o filme homônimo. Patterson historicamente não nomeou propriamente os leões que abateu.
NOTA 5: John Patterson escreveu outros três livros: um segundo sobre outra missão sua na África, intitulado In the grip of the nyika (1909), e os dois últimos sobre sua participação na Primeira Guerra Mundial ao lado de judeus, With Zionists in Gallopili (1916) e With the Judeans in the Palestine Campaign (1922). 
NOTA 6: Patterson lutou na Primeira Guerra, inclusive comandando tropas de judeus, pois ele era defensor da causa sionista, defendendo a criação do Estado de Israel. 

Referências bibliográficas:
PATTERSON, John H. The man-eating lions of Tsavo. Chicago, Field Museum Natural History, 1925. 
PETERHANS, Julian C. Kerbis; GNOSKE, Thomas Patrick. The science of "Man-Eating" among lions Panthera leo with a Reconstruction of the Natural History of the "Man Eaters of Tsavo". Journal of East Africa Natural History, v. 90, n. 1, 2001, p. 1-40. 

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Uma nota sobre as fortalezas modernas

A existência de fortificações é algo que remonta milhares de anos, com a construção de muros, muralhas, fossos, torres, cidadelas, trincheiras, cercas, paliçadas, etc. Os próprios castelos eram essencialmente um tipo de fortaleza antes de ganharem novos contornos e estilos, influenciado pelos palácios. Em essência o papel de uma fortificação é promover estruturas que sirvam para a defesa de uma localidade, seja um forte, um acampamento, base, vila, cidade, posto, assentamento etc. Mas quando se fala em defesa, não significa excluir a possibilidade de atacar, pois tais estruturas possuíam funções diferentes, por exemplo, trincheiras serviam para retardar e dificultar o avanço de tropas, mas também eram pontos para proteger terreno e gerar contra-ataque. Já um muro essencialmente serve para proteger, sendo uma barreira que dificulte que forças inimigas tenham acesso fácil. Porém, o muro por si só não é suficiente, por isso, desenvolveu-se torres, torreões, seteiras, ameias etc. para que soldados ali posicionados, pudessem contra-atacar os invasores. 

No entanto, o objetivo desse breve texto foi comentar um pouco sobre as fortificações militares surgidas a Idade Moderna, na Europa, os chamados fortes abaluartados, forte com bastião, traço italiano, fortificação com pontas, fortaleza-estrela, são alguns nomes dados para um tipo de arquitetura militar que se tornou padrão na Europa dos séculos XV ao XVIII, inclusive tendo sido influenciada devido as formas de como se fazer guerra e a introdução da pólvora e de armas de fogo no continente europeu, o que levou os engenheiros militares a reformular as estruturas defensivas, pois as antigas não eram adequadas para resistir a cercos ou assaltos promovidos com artilharia.

O traço italiano

No século XV os turcos haviam difundido no Oriente Médio e no leste europeu o uso de canhões, inclusive a conquista de Constantinopla em 1453, deveu-se em parte graças ao uso de enormes canhões que bombardearam a capital bizantina por quase dois meses. Mesmo seu sistema triplo de muralhas não barrou o avanço da nova arma de cerco (RUNCIMAN, 1977, p. 232).

Quando os canhões começaram a se difundir pela Itália, os arquitetos militares tiveram que repensar a forma de como projetar as fortalezas e muralhas, e dessa forma surgiram as fortificações com novas estruturas as quais tinham que aguentar o dano explosivo e de impacto dos projeteis das armas de fogo, entre outras características. Com isso originou-se uma nova forma de fortificações com baluartes ou bastiões. Os quais foram uma estrutura da arquitetura militar surgida na Itália, no século XV, sendo aprimorada nos dois séculos seguintes. Os baluartes consistiam em estruturas geralmente com três pontas, as quais se projetavam dos ângulos de uma fortificação. Os baluartes permitiam ampliar os ângulos de ataque, como também gerava reforço para defender os muros em caso de cerco. (TALLET, 1992, p. 34).


Forte de Jaca, Espanha. Um exemplo de fortificação com cinco baluartes. 

“A fortaleza com bastião era uma construção “científica”, o que significava que seu projeto era feito com base em cálculos matemáticos para minimizar da melhor maneira a área da muralha que o tiro podia atingir. Portanto, o ataque tinha de ser “científico” também”. (KEEGAN, 1995, p. 337). 

“Assim, uma bala disparada (em função de determinado ângulo) na direcção do horizonte seguiria inicialmente em linha recta; o projéctil iniciaria depois uma trajectória curva em função do decréscimo do ímpeto aplicado pela carga explosiva, para na terceira e última fase terminar o seu percurso segundo uma trajectória rectilínea na direcção do solo”. (SOUSA, 2013, p. 59).

“O novo sistema de fortificação teria de incorporar características que resistissem ao bombardeio e, ao mesmo tempo, mantivessem a infantaria do inimigo à distância. A solução para esse problema de diminuir a altura e aumentar a espessura foi o bastião angular, que se projetava dos muros, dominava o fosso e era suficientemente forte para não ser destruído por uma concentração de fogo inimigo”. (KEEGAN, 1995, p. 334).

Além do bastião, a arquitetura moderna também empregou novas e velhas estruturas que passaram a complementar a defesa, como hornaveques, coroas, revellins, fossos, escarpas, trincheiras, etc. cujas estruturas garantiam que os disparos viessem a ricochetear, como também serviriam de reforço para muralha, além de minimizar os “ângulos mortos”, locais que apresentavam fraqueza na estrutura (SOUSA, 2013, p. 80). No caso dos fossos, escarpas e das trincheiras, consistiam em formas antigas de manter o exército invasor à distância, inviabilizando a tentativa de se escalar os muros.

Projeto das defesas do Forte da Vila de Santos, no Brasil. 

O modelo italiano ou “traço italiano” como ficou conhecido, tornou-se referência para a construção de fortificações na Europa Ocidental. Ao invés de se fazer um forte ou fortaleza quadrangular como antes, agora fazia-se em disposição geométrica mais variada: pentágono, hexágono, heptágono, etc. Os chamados “fortes estrelas”, nome devido às suas várias pontas. Por sua vez, o bastião não apenas apresentava-se como uma estrutura de defesa nas pontas da muralha, mas também era uma estrutura na qual se armavam baterias para o ataque. Assim, ele tornava-se uma estrutura defensiva e ofensiva ao mesmo tempo (PARKER, 1994, p. 8-9). 

“O pentágono, uma vez mais, permitiria chegar a um equilíbrio entre aquilo que era preconizado pela teoria e as possibilidades militares pragmáticas, alcançando-se assim uma economia de esforços. Os cinco lados permitiam construir plataformas de tiro mais espaçosas em número superior à forma quadrada, evitando-se o excesso decorrente de um circuito com seis ou oito lados que obrigaria a um maior espaçamento entre os bastiões para optimizar as linhas de fogo, aumentando a escala da cidadela para as proporções de uma cidade”. (SOUSA, 2013, p. 84).


Esse fator “científico” foi um ponto que levou, nos séculos XV e XVI, a uma “revolução militar”, no sentido de como se passou a travar as guerras dali em diante. A geometria, a matemática, a perspectiva, a física e a cartografia tornaram-se ciências que passaram a acompanhar não apenas os arquitetos e engenheiros militares que projetavam as fortificações, mas tornaram-se saberes necessários para os artilheiros poderem posicionar os canhões e assim efetuarem os ataques. Dessa forma surgia à balística, ciência que estuda o movimento dos projéteis. 

Fortaleza de Santa Catarina, Cabedelo, no Brasil. Foto de Daniell Mendes. Essa fortificação erguida no final do século XVI, apresenta atualmente quatro baluartes e dois meio-baluartes. 

A Guerra de Flandres

Flandres é uma região atualmente situada no norte da Bélgica, fazendo fronteira com o sul da Holanda (ou Países Baixos). Todavia, a quinhentos anos, esse território foi alvo de disputas entre a República Unida dos Países Baixos contra o Império Espanhol, pois anteriormente o território das Províncias Batavas, pertencia a Espanha, e com a rebelião de sete províncias, as quais formaram uma república, popularmente chamada de Holanda, isso resultou na Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), fator esse, que o governo espanhol de Carlos I e seus sucessores, por vários anos tentaram retomar o controle daquelas províncias, originando a guerra de flandres, que ficou conhecida por ter influenciado na arquitetura militar e nas táticas de batalha. 

“O que se entendia por guerra de Flandres, isto é, a guerra dos Países Baixos entre a Espanha e as Província Unidas, não esgotava obviamente as formas de conflito bélico na Europa da primeira metade do Seiscentos. A guerra de sítio das posições estratégicas constituía o privilégio das áreas mais desenvolvidas, como os citados Países Baixos ou a Lombardia, que eram também os pontos quentes do equilíbrio continental. Representando seu mais sofisticado modelo, a guerra de Flandres foi uma guerra pelo controle das praças-fortes ao longo dos eixos fluviais que sulcam a região; e sua arma fundamental: a artilharia e a minagem”. (MELLO, 2007, p. 247). 

O aumento na quantidade de fortalezas e cidades fortificadas levou os exércitos europeus, principalmente em Flandres, França e na Lombardia, a mudarem suas táticas de batalha, variando de acordo com o contexto bélico. Nesse sentido, Parker (1994, p. 12-13) diz que em fins do século XVI começou a surgir duas formas de combate: as escaramuças promovidas por pequenos grupos (esquadrões) para se efetuar assaltos, emboscadas, encontros ocasionais, ataques rápidos, etc; e os cercos, os quais requeriam maior número de envolvidos e uma estratégia mais elaborada, pois os cercos poderiam durar dias, semanas e até meses.

No entanto, não foi apenas isso que mudou, a própria organização das companhias militares também sofreram mudanças, e na vanguarda dessa “revolução militar”, estiveram os próprios holandeses sob o comando de Maurício de Nassau, o qual reformulou a organização da infantaria.

“Maurício alterou a disposição das tropas em combate. Em vez de falanges de 40 ou 50 filas frontais de lanceiros usadas nas guerras do século XVI, colocou os seus homens em 10 filas. A força de choque das suas formações, mais pequenas, provinha mais do poder de fogo do que das cargas dos lanceiros. [...]. O exército holandês aperfeiçoou sobretudo a técnica do fogo de fileira: a primeira linha descarregava simultaneamente os mosquetes sobre o inimigo, depois parava para recarregar as armas enquanto as outras nove linhas iam ocupando o seu lugar, criando assim uma cortina de fogo constante”. (PARKER, 1994, p. 52).

Formação de mosqueteiros espanhóis no século XVII. Acima a formação adotada para a Batalha de Nordlingen (1634). Abaixo, um esquema tático da fila de mosqueteiros e piqueiros. Ilustração de Gerry e Sam Embleton, 2012. Publicado no livro López e López, The Spanish Tercios: 1536-1704, 2012, p. 29.  

Tal “revolução militar” começou ainda no século XVI, mas foi apenas na segunda metade do século XVII que ela se consolidou no sentido de que, a infantaria passou predominantemente a usar armas de fogo, até lá, a presença de piqueiros era recorrente. Por exemplo, as capitanías, formação usada pelos espanhóis na Itália no século XVI, cujo modelo ainda permaneceu em uso até o final do século, era composta por 500 homens, sendo 200 piqueiros, 200 espadachins e 100 arcabuzeiros. Por sua vez, dez capitanías somadas a duas companhias de piqueiros, formavam uma coronélia, totalizando um regimento com cerca de 6 mil homens, dos quais, 10% seriam arcabuzeiros (LÓPEZ; LÓPEZ, 2012, p. 5).

Por mais que no século XVII o uso de armas de fogo tenha crescido em comparação ao seu emprego no século XV, ainda assim, não foi incomum soldados usarem espadas, lanças e punhais.

“No início do século XVII, à metade, grosso modo, dos soldados de infantaria deviam ser fornecidos piques de treze pés (cerca de quatro metros) e couraças; a outros deviam ser fornecidos mosquetes de mecha (com cinco pés – metro e meio – de comprimento) com as respectivas forquetas de apoio (ou arcabuzes, mais curtos e leves), e também recipientes para a pólvora, balas e mechas de combustão lenta; às tropas de cavalaria, uma meia armadura, pistolas e lanças; e a todos os soldados, elmos e espadas”. (PARKER, 1994, p. 48).

A tomada de Breda, Diego de Velázquez, c. 1634-1635. Nota-se a presença de piques e alabardas. 

Tallet (1992, p. 24) aponta que foi a partir do século XVII que começou a se inverter a proporção de soldados munidos com armas de fogo. Até o final do XVI as infantarias europeias ainda eram formadas na sua maioria por falanges de piqueiros, sendo apoiadas por soldados munidos de armas de fogo. No século seguinte os valores se invertem devido ao crescimento das fábricas de armas, e as mudanças nas táticas de batalha, as quais passaram a se usar mais formações de mosqueteiros em detrimento dos piqueiros.

Essa mudança em parte se deu pelo fato de que a cavalaria bastante poderosa no medievo foi na modernidade perdendo sua ação tática devido ao uso de armas de fogo, canhões, paliçadas e trincheiras. Por outro lado, as batalhas campais começaram a diminuir em detrimento de batalhas entre trincheiras e no cerco de praças-fortes. Se antes presava-se pela força bruta do homem sobre o cavalo, agora passou a se prezar pela força bruta do poder explosivo da pólvora, mas com o diferencial de que ao invés de ser um conflito corpo-a-corpo, os soldados se combatiam a distância.

“A maneira quase universal de alcançar a vitória numa batalha medieval consistia em obter a superioridade no corpo-a-corpo. Os vencedores desta confusa troca de golpes a curta distância deveriam perseguir o inimigo batido, mantendo a pressão de forma a provocar a debandada geral do exército adversário. Em termos de opções tácticas, era uma situação algo limitada; com as principais linhas de batalha empenhadas, qualquer movimento de envolvimento era difícil, para não dizer impossível. No final, a vantagem militar cabia ao general que utilizava em último lugar as suas reservas”. (SOUSA, 2013, p. 119).

Logo, se antes falanges eram eficazes contra a cavalaria a qual era a principal força de combate em batalhas campais, com a diminuição de seu uso, em substituição pelas infantarias artilheiras, e a adoção de um conflito a longa distância e estratégico, já não era mais viável manter uma grande quantidade de piqueiros, pois se tornaram alvos fáceis aos artilheiros, embora que seu emprego se manteve como forma de proteger a artilharia do ataque de soldados com espadas.

Por tal motivo, na segunda metade do XVII o número de piqueiros nos exércitos foi diminuindo cada vez mais. Entretanto, mesmo tendo ocorrido essa mudança na configuração das forças armadas europeias, não significa que a cavalaria caiu em desuso; essa ainda continuou a ser usada ao longo do século XVII e até nos séculos seguintes, embora que numa fração bem menor.

“É certo que, nos primeiros decénios do século, a cavalaria representava menos de 10% da maior parte dos exércitos da Europa Ocidental; em 1635, quando a França declarou guerra à Espanha, foram recrutados 132 000 infantes e apenas 12 400 cavaleiros. [...]. Com o aumento das dimensões dos exércitos europeus e com o aumento proporcional da cavalaria, que na segunda metade do século atingiu 20% do total de um exército, os criadores de cavalos passaram a dispor de um mercado florescente”. (PARKER, 1994, p. 48).

Parker (1994, p. 42), assinala que na primeira metade do século XVII, os exércitos europeus, na maioria das vezes sempre levavam um exército com homens em excesso, pois na maioria dos casos, a deserção era o principal motivo que levava a diminuição dos efetivos militares.

“Um dos motivos por que se tentava recrutar mais homens do que os que teoricamente eram necessários era o facto de os novos recrutas depressa se arrependerem de se terem alistado. Sobretudo na primeira metade do século, as deserções, embora comportassem a pena de morte, eram um grave problema para todos os exércitos, em especial durante os prolongados cercos que constituíam o ponto fulcral das operações militares da época barroca. Em 1622, o exército espanhol da Flandres que cercava Bergen-op-Zoom perdeu cerca de 40% dos seus 20 600 soldados, muitos dos quais por deserção. Das muralhas de Bergen, as sentinelas viam os inimigos abandonar furtivamente os seus postos, fingindo que iam buscar lenha ou legumes, afastar-se a pouco e pouco das trincheiras, e fugir”. (PARKER, 1994, p. 42).

“No exército francês, durante a primeira metade do século, sabia-se que, se se queria levar 1200 homens para a frente de batalha, tinha que se recrutar 2000, porque era normal perder-se 40% dos soldados nos primeiros meses, por deserção e doença. Assim, em 1635, primeiro ano de guerra aberta contra a Espanha, decidiu-se recrutar 145 000 homens para se manter na frente uma força efectiva de apenas 69 000”. (PARKER, 1994, p. 43).

“A fortaleza não é um lugar simplesmente de proteção contra um ataque, mas também de defesa ativa, um centro onde os defensores estão protegidos da surpresa ou da superioridade numérica e uma base da qual podem fazer surtidas para manter os predadores à distância e impor controle militar sobre a área por que se interessam”. (KEEGAN, 1995, p. 155).

 “O assalto de infantaria a um bastião, por mais que este tivesse sido danificado, era sempre um negócio desesperado. Uma prática defensiva universal mandava ter à mão materiais – cestas cilíndricas para encher de terra, chamadas de gabiões, postes, trilhos e barricadas de madeira – com os quais fosse possível improvisar uma defesa interna atrás de uma brecha, ao mesmo tempo em que mosqueteiros e canhoneiros de um bastião vizinho podiam sempre atirar sobre grupos de assalto que atravessassem o fosso ou mesmo chegassem à esplanada inclinada do lado de fora”. (KEEGAN, 1995, p. 337).

Cerco de Goenlo, em 9 de novembro de 1606. Nota-se que a cidade além de ser fortificada, contava com três fortes de suporte. A pintura também mostra batalhões de mosqueteiros, grupos de piqueiros e até cavalaria. 

“A guerra de assédio era demorada e trabalhosa porque os meios de trazer fogo suficiente para acossar uma fortaleza com bastião exigiam um enorme esforço de escavação. A fortaleza com bastião era uma construção “científica”, o que significava que seu projeto era feito com base em cálculos matemáticos para minimizar da melhor maneira a área da muralha que o tiro podia atingir. Portanto, o ataque tinha de ser “científico” também. Os engenheiros de assédio logo estabeleceram os princípios. Era preciso cavar uma trincheira paralela a um dos lados do traçado do bastião, onde se pudessem colocar canhões para iniciar o bombardeio. Sob a proteção desse fogo, trincheiras “de aproximação” eram então cavadas adiante, até que uma nova “paralela” mais próxima pudesse ser cavada, para onde eram levados os canhões, a fim de continuar o bombardeio a distância mais curta”. (KEEGAN, 1995, p. 337).

NOTA: Para Geoffrey Parker (1996, p. 21) os principais marcos da “revolução militar” da Idade Moderna foram: a criação e desenvolvimento das fortificações com baluarte; o emprego recorrente das armas de fogo; o desenvolvimento de uma indústria da guerra; diminuição do uso da cavalaria em detrimento de uma infantaria armada com lanças e mosquetes; reformulação na organização das tropas; mudança nas táticas de batalha; surgimento de escolas militares; aumento na quantidade de soldados nos exércitos.

NOTA 2: Não confundir com João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), o qual se tornou governador da Nova Holanda. Maurício de Nassau (1567-1625) foi um proeminente stadholder (líder político e militar) durante a Guerra dos Oitenta Anos.

Referências bibliográficas: 

KEEGAN, John. Uma história da guerra. Tradução de Pedro Soares Maia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no nordeste, 1630-1654. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2007.

PARKER, Geoffrey. The Military Revolution: military innovation and the rise of the West, 1500-1800. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

PARKER, Geoffrey. O Soldado. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editoria Presença, 1994.

RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Tradução de Waltensir Dutra. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. 

SOUSA, Luís Filipe Guerreiro Costa e. Escrita e Prática de Guerra em Portugal: 1573-1612. 2013. 844 f. Tese (Doutorado em História dos Descobrimentos e Expansão) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2013.

TALLETT, Frank. War and Society in early modern Europe, 1495-1715. New York/London: Routledge, 1992. (Collection War in context).




quarta-feira, 10 de junho de 2020

Odisseu e o mito de fundação de Lisboa

Desde a Idade Média existe uma história que diz que a cidade de Lisboa teria sido fundada pelo herói grego Odisseu, ou Ulisses como era conhecido pelos romanos. Alguns poetas e escritores nos séculos XVI e XVII citaram tal mito e até escreveram poemas em homenagem a essa lendária fundação. Neste texto procurei contar um pouco de onde teria vindo essa relação com o mítico Odisseu e a fundação de Lisboa, adiantando que essa ideia de associar um herói como fundador de uma cidade era uma tradição vista entre os antigos gregos e romanos.

Odisseu: o sagaz e desafortunado 

Antes de adentrar ao mito da visita de Odisseu as terras que hoje perfazem território português, é preciso apresentar um pouco de sua história para saber como ela se encaixaria nesse mito de fundação. No caso, Odisseu era filho do rei Laerte e da rainha Anticleia, os quais governavam a pequena ilha de Ítaca na costa ocidental do Peloponeso. Sendo ele filho único, herdou o trono do pai. Já moço, Odisseu foi um dos pretendentes de Helena, mas como tantos outros, acabou perdendo para Menelau, o qual se casou com ela, considerada a mais bela das mulheres. Por sua vez, Odisseu casou-se com Penélope, com quem teve um filho chamado Telêmaco

Helena após decidir fugir com o príncipe Páris, para Troia, isso levou Menelau a pedir ajuda ao seu irmão mais velho Agamemnón, e assim iniciaram a Guerra de Troia. Como Odisseu havia juramentado em proteger Helena e possuía aliança com Menelau, decidiu ajudá-lo a reaver sua esposa infiel. 

No caso, a história de Odisseu é narrada principalmente em dois poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia, ambos atribuídos ao poeta Homero. No primeiro poema, ele aparece como personagem coadjuvante, sendo um dos generais gregos que participou dos longos dez anos de conflito para se conquistar Troia. Odisseu é lembrado por ter sido o autor do plano do cavalo de madeira gigante que foi usado como ardil para se enganar os troianos. Com êxito do plano do cavalo, o qual originou até mesmo a expressão "presente de grego", os gregos conseguiram invadir Troia, saqueando-a, destruindo-a e escravizando seu povo. Helena foi recuperada por Menelau, mas outros importantes heróis gregos e troianos pereceram durante a guerra ou na invasão. Todavia, Odisseu e seus homens sobreviveram e na jornada de volta para casa, Odisseu esnobou-se perante os deuses, gabando-se de sua sagacidade principalmente para Poseidon, o deus dos mares, o que o enfureceu e amaldiçoou ele, dizendo que este jamais retornaria para Ítaca. 

Odisseu e seus marinheiros em um mosaico romano. 

A Odisseia narra a história do retorno de Odisseu, mas de forma não linear, já que em dados momentos ela se passa em Ítaca, acompanhando a rainha Penélope e seu jovem filho Telêmaco, os quais tem que lhe dar com os pretendentes que cobiçam casar com Penélope, tida como viúva, em outro momento a narrativa se passa no Reino dos Feácios, última parada de Odisseu, onde ele narra suas aventuras ao rei Alcínoo. A partir da conversa do herói com o rei feácio, vai se desenrolando a narrativa da jornada de dez anos que Odisseu levou para retornar para casa. Todavia, ele não passou estes dez anos perdido como as vezes se pensa, na verdade nos três primeiros anos ele navegou por vários lugares do Mediterrâneo, encontrando o ciclope Polifemo, os monstros Caríbdis e Cila, as sereias, a feiticeira Circe e outros personagens, porém, no quarto ano de sua jornada ele foi acolhido pela ninfa Calipso na ilha de Ogigia, onde viveu ali por sete anos. Após isso ele chegou ao reino dos Feácios, de onde conseguiu ajuda para retornar à Ítaca, lutar contra os senhores que cobiçavam seu reino e finalmente reencontrar sua esposa e filho. 

O interessante de citar esse breve relato da Odisseia é que em meio a estes dez anos que Odisseu e parte de sua tripulação estiveram perdidos (essa esteve presente em cerca de quatro anos, pois Odisseu chegou sozinho a Ogigia), outros poetas inventaram novas narrativas apontando outros territórios pelos quais Odisseu teria visitado durante esse período. Tal prática não era incomum, até porque o Ciclo Troiano que consiste nos poemas que narram os acontecimentos da Guerra de Troia, não se limita apenas a Ilíada, mas existem outras narrativas que falam sobre seus antecedentes, conflitos paralelos e até o que aconteceu com outros personagens após essa guerra. Logo, dentre as narrativas de outras viagens que Odisseu teria realizado, encontra-se uma que ele teria fundado a cidade de Lisboa. 

Lusitânia e Olisipo

Não se sabe exatamente quando a cidade de Olisipo foi fundada, porém, foram os romanos que deram este nome a ela, devido a condição de que aquela pequena urbes teria sido fundada pelo herói Odisseu. Além do nome Olisipo, a cidade também foi referida como Ulisipo ou Ulisseia. O ano de fundação da cidade como dito, é desconhecido, e quem teria sido seus fundadores também é algo não concreto; teorias sugerem que a cidade teria sido fundada pelos fenícios, cartagineses, turdúlos, célticos, lusitanos ou pelos próprios romanos

A cidade situada a beira do rio Tejo, era conhecida pelos romanos desde o século II a.C, o que sugere que sua fundação tenha que ter sido anterior a isso. Os romanos começaram a invadir a Península Ibérica em retaliação aos cartagineses que controlavam parte daquelas terras e estavam a vários anos em guerra contra Roma. A medida que as tropas romanas iam progredindo pelo interior da península, chegaram até o território dos lusitanos, o qual corresponderia a região central da atual Portugal. Os lusitanos não aceitaram a dominação romana iniciando vários anos de guerra indo de 194 a.C a 138 a.C, nesse período houve algumas batalhas e tréguas, mas os intentos da República Romana de conquistar a península nunca foram abandonados. (GRIMAL, 1988). 

Em 138 a.C o cônsul Décimo Júnio Bruto comandou legiões para conquistar os lusitanos e os galaicos que viviam mais ao norte, no que hoje é a Galiza na Espanha. Nessa época os habitantes de Olisipo aliaram-se aos romanos, principalmente pelo fato de que o grande líder lusitano, Viriato (181-139 a.C), havia falecido meses antes. Viriato dedicou a vida a assegurar a independência de seu povo, mas tendo sido assassinado, parte dos lusitanos optaram em se aliar aos vencedores. Após essa aliança em 138 a.C, o povo de Olisipo seguiu colaborando com os romanos nas décadas seguintes, inclusive recebendo benefícios políticos e legais por parte de Roma. (GUERRA; FABIÃO, 1992, p. 14-15). 

A conquista da Lusitânia foi efetivada em 30 a.C, e no ano seguinte a região tornou-se a Província da Lusitânia, em referência aos lusos ou lusitanos, o povo mais expressivo daquela região. E dessa forma aquelas terras passaram a fazer parte do seu império, cuja capital daquela província ficava situada em Emerita Augusta (atual Mérida na Espanha). (GRIMAL, 1988). 

Mapa do Império Romano com suas províncias em 117. Em amarelo a localização da província da Lusitânia. 

Dessa forma Olisipo tornou-se parte dos domínios romanos recebendo elementos que caracterizavam urbanisticamente as cidades romanas naquele tempo, como um teatro, termas, aquedutos, cloacas, prédios públicos, fortificações etc. Mas se até aqui vimos um pouco da história de como Olisipo passou das mãos dos lusitanos para as dos romanos, os quais a renomearam com este nome, como citado anteriormente, de onde eles haviam tirado a ideia de que tal cidade havia sido fundada por Odisseu? 

O mito de fundação de Olisipo

Como assinalado anteriormente, outros poetas escreveram sobre viagens que Odisseu teria realizado durante os dez anos que levou para retornar à Ítaca. Embora não se saiba exatamente quando surgiu a história sobre a fundação de Olisipo. 

O famoso geógrafo grego Estrabão (64-24 a.C), autor da monumental obra intitulada Geografia, cita no volume I, cap. 2, est. II, que Odisseu teria viajado pela Ibéria. (FONSECA, 2014, p. 187). Posteriormente no volume III, cap. 3, ele descreve a Lusitânia e até mesmo a foz do rio Tejo, todavia, ele não cita a cidade de Olisipo. Embora essa já fosse conhecida dos romanos naquele tempo. Porém, existe um trecho incompleto no volume III, no capítulo 3, onde o autor diz que o cônsul Décimo Júnio Bruto havia recebido reforços de uma cidade situada no Tejo. Os geógrafos e historiadores interpretam isso como podendo ser uma referência a Olisipo. Porém, é interessante que nesse ponto, Estrabão não cite o nome da cidade e nem associe ela com Odisseu. 

No século IV d.C. o escritor romano Caio Júlio Solino (?-400), autor de uma coletânea de vários assuntos, intitulada Do mundo maravilhoso (De mirabilus mundi), também chamada de Coletânea de Fatos Memoráveis (Collectanea rerum memorabilium) e de Polistória, cita no capítulo XXIV sobre a Hispânia, o mito de que Odisseu teria fundado Olisipo. (SOLINO, 1847, p. 186). 

Outro escritor romano, dessa vez Marciano Capela (IV-V), escreveu um livro emblemático por misturar prosa, poesia, sátira, mitologia e intuitos didáticos. Seu livro foi chamado Núpcias de Mercúrio e de Filologia, mas também é conhecido como As Sete Artes Liberais, por ele propor algumas disciplinas que deveriam ser ensinadas para se ter uma boa formação, e também foi chamado de Satiricon, evidentemente por seu teor satírico. De qualquer forma, neste longo livro, Capela cita que Lisboa teria sido fundada também por Odisseu. (CAPELA, 1836, 308). 

No século VII o doutor da Igreja e bispo, São Isidoro de Sevilha (c. 560-636), escreveu sua coletânea enciclopédica intitulada Etimologias. No volume XV, item 70, onde ele se propôs a falar do nome de algumas cidades e lugares e sua ligação com os romanos e gregos, ele cita que Lisboa teria sido fundada por Odisseu. (ISIDORO, 2006, p. 306). 

Observa-se nos relatos de Solino, Capela e Isidoro a condição que ambos citam o mito de fundação de Lisboa, tendo a cidade de Olisipo recebido esse nome em homenagem ao seu fundador, o herói grego Odisseu. Porém, nenhum destes autores comentam tal mito. Nem o próprio Estrabão que séculos antes deles, citou que Odisseu teria passado pela Ibéria, também comenta tal história. Logo, não se sabe como teria sido essa narrativa da visita de Odisseu a Lusitânia, se é que haveria alguma narrativa, ou apenas seria um dado sem uma narrativa que a embasa-se. 

De qualquer forma, essa história da mítica fundação de Olisipo que veio a ser Lisboa, manteve-se. No século XII um suposto cruzado inglês de nome Raul, escreveu para Osberto de Baldresia, informando que Lisboa teria sido fundada pelo herói Odisseu há muitos séculos. Outros cruzados de nome Vinando, Duodequino e Arnulfo, que foram auxiliar na conquista de Lisboa pelos portugueses, pois a cidade estava em mãos dos mouros, relataram também ter ouvido que a cidade teria sido fundada por Odisseu. Puga (2011, p. 152) sugere que a menção a essa lenda por tais cruzados de origem inglesa, normanda e franca, possivelmente tenha se difundindo não por coincidência, mas como parte de uma "propaganda política" promovida para exaltar a conquista de Lisboa ocorrida em 1147. A cidade estava nas mãos dos mouros já a séculos, e os portugueses não apenas tomaram aquela cidade que alegavam pertencer aos seus antepassados lusitanos, mas também contribuíram com a expulsão dos muçulmanos da região (embora que ainda hoje existam mesquitas em Lisboa e uma comunidade islâmica). 

Ainda no medievo outros autores citararam o mito de Odisseu e Olisipo. Como na Crônica Geral de Espanha de 1344, onde Puga (2011, p. 153) comenta que nessa obra temos mais informações sobre como Odisseu chegou as antigas terras que um dia seriam Portugal, inclusive menciona-se que ele teria tido uma filha chamada Boa (uma associação com Lisboa) e um neto chamado Odisseu também. Além disso, nessa crônica diz que o herói chegou a costa lusa, após ser arrastado ali por uma tempestade. Inclusive essa ideia de tempestade é vista em outras versões do mito. 

Porém, a partir do século XVI essa narrativa começou a se destacar principalmente devido ao momento dos Descobrimentos Portugueses, e vários autores se reportaram a esse mito e inclusive até mesmo acrescentando novas histórias e criando suas próprias versões. Puga (2011, p. 152-154) enumerou alguns dos autores entre os séculos XVI e XIX, que escreveram sobre o mito de Odisseu e a fundação de Lisboa. 
  • Partida de Évora (1572) de Diogo Mendes de Vasconcelos
  • Os Lusíadas (1572) de Luís Vaz de Camões
  • De Rebus Hispaniea (1592) de Juan de Mariana
  • Monarquia Lusitana (1597) de Frei Bernardo de Brito
  • Ulisseia ou Lisboa Unificada (1636) de  Gabriel Pereira de Castro
  • Ulyssipo: poema heroico (1640) de Antônio de Sousa Macedo
  • Primeira Parte da Fundação, Antiguidades e Grandeza da insigne cidade de Lisboa e seus Varões Ilustres (1652) de Luís Marinho de Azevedo
  • Notícias de Portugal (1655) de Manuel Severim de Fari
  • História de Santarém Unificada (1740) de Inácio de Piedade e Vasconcelos
  • Emília e Leonildo, ou, os Amantes Suevos: o poema (1836) de José Maria da Costa e Silva
  • Os Portugueses Perante o Mundo (1856) de Alexandre de Morais
  • História Insulana das Ilhas sujeitas a Portugal no Oceano Ocidental (1866) de Antônio Cordeiro
Das obras citadas acima, algumas se destacam como o poema Ulisseia ou Lisboa Unificada, que segundo Fonseca (2015, p. 188) tal obra inspirou-se bastante na estrutura da Odisseia, e nesse ponto, seu autor, Gabriel Pereira de Castro teve pretensões de criar uma versão de uma "Odisseia à la portuguesa".  De fato, a obra que conta com mais de 400 páginas no original, consiste num longo poema que reimagina toda a trajetória e aventuras de Odisseu em uma Portugal mítica. 

O livro Os Portugueses Perante o Mundo (1856), obra que consiste numa tentativa de escrever a história não apenas de Portugal, mas de outras localidades europeias, associando-as ao período mitológico da Grécia Antiga e da Roma Antiga. Nesse sentido o livro procurou conceder cronologicamente datas para acontecimentos que são míticos, nesse caso, o autor Alexandre de Morais, sugeriu que Odisseu teria chegado a costa lusitana antes de 1081 a.C. Ali ele adentrou pelas águas do Tejo e fundou a cidade de Olisipo, erguendo um templo para Atena e depois casou-se com uma princesa chamada Calipso (aqui nota-se que a ninfa Calipso agora era filha de um rei local). (MORAIS, 2013, p. 22).

Morais (2013, p. 23-24) também salienta que outros marujos da tripulação de Odisseu vieram com ele, e estes fundaram outras cidades e regiões, indo povoar o Minho e o Entre-Douro, inclusive descendentes desses gregos fundaram a cidade de Porto. Por sua vez, Odisseu regressou para Ítaca e deixou seu filho Abidis no comando, o qual fundou a cidade de Santarém e outras localidades. Morais assinala que foi o rei Abidis que civilizou aqueles bárbaros, dando origem aos lusitanos e hispânicos. Nota-se aqui a ideia do herói civilizador, sendo esse herói fruto direto da cultura grega, considerada a primeira grande civilização europeia. De qualquer forma, a obra de Morais é interessante, pois embora conte pouco sobre a presença de Odisseu em Portugal, ele salienta que não foi apenas Lisboa a ser fundada, mas outras cidades também como Porto e Santarém. Percebe-se aqui uma ampliação desse antigo mito. 

Breve consideração final

Não se sabe quando o mito de que Odisseu teria fundado Olisipo (atual Lisboa) surgiu. Talvez possa ter sido uma invenção dos romanos e não necessariamente dos gregos. Em um dos relatos mais antigos que se conhece sobre a Lusitânia, como a Geografia de Estrabão, não menciona a fundação dessa cidade pelo herói, embora que diga que ele teria estado na península Ibérica. Por outro lado, nos séculos IV e V, nas obras de Solino e Capela já encontramos menções a tal mito, embora não haja descrições de sua narrativa. 

Somente na Baixa Idade Média (XI-XV) é que aparecem algumas crônicas comentando passagens da presença de Odisseu na antiga Lusitânia, embora que tecnicamente a Lusitânia nem existiria na época que o herói teria passado por ali, mas isso consistia numa construção mítica da Lusitânia, como forma de endossar eles como sendo os ancestrais do povo português, algo que o próprio Camões reafirma em seu poema-mor. 

Todavia, é somente no século XVII em diante que surgem os grandes poemas que recontam a história de como Odisseu chegou a antiga Portugal, fundou Olisipo e até outras localidades. Cada um desses poemas incluem ou removem personagens, alteram personagens citados na Odisseia, dando novas versões para essa história. E por fim, resta ainda a falta de informações de quando realmente Lisboa teria sido fundada. 

Reconstituição de como teria sido Olisipo na época romana.

Referências bibliográficas: 
CAPELLA, Martiano. De nuptiis, philologiae, et Mercurii, et de septem artibus liberalibus libri novem. Frankfurt, Moenum Varremtrep, 1836. 
FONSECA, Rui Carlos. Da queda de Troia à fundação de Lisboa ou de como Gabriel Pereira de Castro espera "cantar de Ulisses, imitando a Homero". In: MORÃO, Paulo; PIMENTEL, Cristina (coords.). Matrizes Clássicas da Literatura Portuguesa: uma (re)visão da literatura portuguesa das origens à contemporaneidade. Lisboa, Campo de Comunicação, 2015. 
GRIMAL, Pierre. A civilização romana. Lisboa, Ed. 70, 1988. 
GUERRA, Amílcar; FABIÃO, Carlos. Viriato: genealogia de um mito. Penélope, n. 2, 1992, p. 9-23. 
ISIDORE of Seville. The Etymologies. Translated, introduction and notes by Stephen A. Barney [et. al]. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 
MORAIS, Alexandre J. de Melo. Os Portugueses Perante o Mundo. 2013. Versão online: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/portuguesesmundo.pdf.
PUGA, Rogério Miguel. A odisseia de um mito: diálogos em torno da fundação de Lisboa por Ulisses nas literaturas anglófonas. Ágora, n. 13, 2011, p. 145-175. 
SOLINO, Caius Julius. Polyhistor. Edição bilíngue em latim e francês. Paris, C. L. F. Panckoucke, 1847. 

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