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Leandro Vilar

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Lembrança e legado de Eric Hobsbawn



Um historiador com poder de síntese incomparável. Um marxista crítico e inquieto, sem deixar jamais de acreditar na transformação social

Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012). Historiador e professor.
Por Martin Kettle e Dorothy Wedderburn, no The Guardian | Tradução: Daniela Frabasile e Hugo Albuquerque

Se Eric Hobsbawm tivesse morrido há 25 anos atrás, os obituários o descreveriam como o historiador marxista britânico mais notável e acabariam mais ou menos aí. Mas ao morrer agora, aos 95 anos, ele atingiu uma posição única na vida intelectual de seu país. Nos últimos anos, tornou-se o historiador britânico mais respeitado de qualquer tipo, reconhecido (se não aprovado) tanto pela esquerda quanto pela direita, e um dos poucos historiadores de qualquer era a desfrutar reconhecimento nacional e internacional genuíno.

Diferente de outros, Hobsbawm atingiu tal status sem voltar-se contra o marxismo ou Marx. Em seu 94º ano, ele publicou How to change the world [leia resenha em Outras Palavras], uma forte defesa da relevância contínua de Marx na sequência do colapso dos bancos de 2008-2010. Além disso, atingiu o auge de sua reputação em um momento em que as ideias e projetos socialistas, que tanto estimularam sua escrita por mais de meio século, estavam em desarranjo histórico – algo de que ele esteve muito consciente.

Em uma profissão conhecida por preocupações microscópicas, poucos historiadores envolveram-se num campo tão vasto, com tantos detalhes ou com tanta autoridade. Até o fim, Hobsbawm considerava-se essencialmente um historiador do século 19, mas seu entendimento desse e de outros séculos era amplo e cosmopolita.

O alcance de seu interesse pelo passado, e seu excepcional domínio dos temas pelos quais se embrenhava sempre espantaram a muitos, principalmente na série de quatro volumes A era das… na qual se destila a história do mundo capitalista de 1789 a 1991. “A capacidade de Hobsbawm de armazenar e recuperar detalhes atingiu agora a escala normalmente alcançada apenas por grandes arquivos com grandes equipes”, escreveu Neal Ascherson. Tanto por seu conhecimento de detalhes históricos quanto por seu extraordinário poder de síntese, tão bem colocados no projeto dos quatro volumes, ele foi incomparável.
Hobsbawm nasceu em Alexandria, um bom lugar para um historiador do império, em 1917, um bom ano para um comunista. Ele faz parte da segunda geração britânica de sua família, neto de um judeu polonês e marceneiro que foi para Londres nos anos 1870. Oito filhos, incluindo Leopold, pai de Eric, nasceram na Inglaterra e todos ganharam cidadania britânica quando nasceram (o tio de Hobsbawm, Harry, tornou-se o primeiro prefeito eleito pelo Partido Trabalhista em Paddington).

Mas Eric era um britânico com um background pouco comum. Outro tio, Sidney, foi para o Egito antes da Primeira Guerra Mundial e encontrou um emprego para Leopold numa agência de despachos marítimos. Lá, em 1914, Leopold Hobsbawm conheceu Nelly Gruen, uma jovem vienense de uma família de classe média, que tinha ganho uma viagem ao Egito como prêmio por ter terminado seus estudos. Os dois ficaram noivos, mas a eclosão da I Guerra Mundial os separou. O casal acabaria se casando na Suíça em 1916, voltando ao Egito para o nascimento de seu primeiro filho, Eric.

“Todo historiador tem sua história de vida, um ponto de vista privado para examinar o mundo”, ele disse em 1993, em uma palestra em Creighton, numa das várias ocasiões nos seus últimos anos em que tentou relacionar sua história de vida com sua escrita. “Meu ponto de vista foi construído a partir de uma infância em Viena nos anos de 1920, os anos em que Hitler ganhou força em Berlim, que determinaram minha visão política e meu interesse pela história; e na Inglaterra, especialmente em Cambridge nos anos 1930, quando confirmei as duas escolhas”.

Em 1919, a jovem família assentou-se em Viena, onde Eric frequentou a escola primária, período que ele mais tarde relembrou em 1995, em um documentário na televisão que mostrava fotos de um jovem Hobsbawm magro, usando shorts e meias até os joelhos. A política teve seu impacto mais ou menos nessa época. A primeira memória política de Eric é de Viena, em 1927, quando trabalhadores queimaram o Palácio da Justiça. A primeira conversa política de que ele se lembrava aconteceu em um sanatório, por volta desse ano. Duas mulheres judias estavam discutindo Leon Trotsky. “Diga o que você quiser”, uma disse a outra, “mas ele é um jovem judeu chamado Bronstein”.

Em 1929, seu pai morreu de um ataque cardíaco. Dois anos depois, sua mãe morreu de tuberculose. Eric tinha 14 anos, e seu tio Sidney assumiu a responsabilidade, e levou Eric e sua irmã Nancy para Berlim. Como um adolescente em Berlim na República Weimar, Eric inevitavelmente se politizou. Ele leu Marx pela primeira vez, e se tornou um comunista.

Ele sempre se lembrou do dia, em janeiro de 1933, quando, ao sair da estação Halensee S-Bahn voltando da escola para casa, viu uma manchete em um jornal anunciando que Hitler havia sido eleito chanceler. Por volta dessa época, juntou-se ao Socialist Schoolboys, que descreveu como “de fato parte do movimento comunista” e vendeu a publicação Schulkampf (“Luta Estudantil”). Ele manteve o mimeógrafo da organização sob sua cama e, dada sua facilidade posterior em escrever, provavelmente também redigiu também a maioria dos artigos. A família permaneceu em Berlim até 1933, quando Sidney Hobsbawm foi enviado para a Inglaterra por seus empregadores.

O garoto adolescente que foi morar com sua irmã em Edgware, em 1934, descreveu a si mesmo posteriormente como “completamente europeu e germanófono”. A escola, porém, “não era um problema” pois o sistema educacional inglês estava “muito atrás” do alemão. Um primo em Balham apresentou-o ao jazz pela primeira vez – o “som irrespondível”, ele chamava. O grande momento da conversa, ele escreveria uns 60 anos depois, foi quando ouviu pela primeira vez a banda Duque Ellington “em sua forma mais imperialista”. Atuou durante uma parte dos anos 1950 como crítico de jazz do New Statesman, e publicou uma edição especial, The Jazz Scene, sobre o assunto, em 1959, sob o pseudônimo de Francis Newton (muitos anos mais tarde, a obra foi relançada com Hobsbawm identificado como o autor).

Ao aprender a falar inglês corretamente, Eric tornou-se aluno na escola de gramática Marybone e ganhou, em 1936, uma bolsa de estudos para a King’s College, em Cambridge. Foi nessa época que uma frase ficou comum, entre seus amigos comunistas de Cambridge: “tem alguma coisa que o Hobsbawm não sabe?”. Ele tornou-se membro da legendária Cambridge Apostles. “Todos nós pensamos que a crise de 1930 era a crise final do capitalismo”, ele escreveu 40 anos depois. Mas, acrescentou, “não era”.

Quando a II Guerra Mundial teve início, Hobsbawm voluntariou-se, como muitos comunistas, para trabalho de inteligência. Mas suas ideias políticas, que nunca foram segredo, levaram à rejeição. Então ele tornou-se um escavador improvável na 560ª Companhia de Campo, que posteriormente descreveu como “uma unidade muito operária, tentando construir defesas notoriamente inadequadas contra invasões no litoral de East Anglia”. Essa também foi uma experiência formativa para o jovem prodígio intelectual, muitas vezes ausente. “Havia algo sublime sobre eles e a Inglaterra naquele tempo”, escreveu. “Aquela experiência na guerra converteu-me em um operário inglês. Eles não eram muito inteligentes, exceto os escoceses e galeses, mas eles eram pessoas muito, muito boas”.

Hobsbawm casou-se com sua primeira esposa, Muriel Seaman, em 1943. Depois da guerra, de volta a Cambridge, tomou outra decisão: abandonou um doutorado planejado sobre a reforma agrária no norte da África para fazer uma pesquisa sobre os socialistas fabianos. Foi uma escolha que abriu a porta tanto para uma vida de estudos sobre o século 19 quanto para uma preocupação igualmente duradora sobre os problemas da esquerda. Em 1947, ele conseguiu seu primeiro trabalho permanente, como professor conferencista de história no Birkbeck College, em Londres, onde permaneceu grande parte da sua vida como professor.

Com o início da Guerra Fria, um macartismo acadêmico muito britânico fez com que a cátedra de Cambridge, que Hobsbawm sempre cobiçou, nunca se materializasse. Ele viajava de Cambridge para Londres, como um dos principais organizadores e animadores do Grupo de Historiadores do Partido Comunista, uma academia brilhante e radical que reuniu alguns dos mais proeminentes historiadores do pós-guerra. Entre seus membros, estavam Christopher Hill, Rodney Hilton, A. L. Morton, E. P. Thompson, John Saville e, mais tarde, Raphael Samuel. O que quer que o grupo tenha alcançado (e Hobsbawm escreveu uma dissertação sobre ele em 1978), a experiência certamente estabeleceu um núcleo para seus primeiros passos como grande escritor de História.

O primeiro livro de Hobsbawm, “Labour’s Turning Point” (1948) – uma coleção editada de documentos da era do socialismo Fabiano – pertence claramente à época de militância no Partido Comunista, assim como o seu engajamento no debate famoso sobre as consequências econômicas do início da Revolução Industrial, um tema sobre o qual ele e R. M. Hartwell teceram argumentos em sucessivos números da Economic History Review. A fundação do jornal Past and Present também pertence ao mesmo período. É até hoje o mais duradouro periódico do grupo de historiadores do PC britânico.

Hobsbawm nunca deixou o Partido Comunista e sempre pensou em si mesmo como parte de um movimento internacional comunista. Para muitos, este continua a ser o obstáculo insuperável para abraçar sua obra. Contudo, ele sempre manteve-se muito mais como um livre-pensador autorizado a permanecer dentro das fileiras do partido. Sobre a invasão da Hungria pela União Soviética, em 1956, um evento que dividiu o PC e provocou a saída de muitos intelectuais do partido, ele foi uma voz de protesto que, no entanto, permaneceu.

 Todavia, a exemplo de seu contemporâneo Christopher Hill, que deixou o PC naquele momento, a combinação, de alguma forma, do trauma político de 1956 e o início de um longo e feliz segundo casamento, provocou um período sustentado e frutífero de produção no campo da História, o que veio a estabelecer sua fama e reputação. Em 1959, ele publicou sua primeira grande obra, “Primitive Rebels”, um relato notavelmente original, especialmente para aqueles tempos, das sociedades secretas e das culturas milenares do Sul da Europa (ele ainda estava escrevendo sobre o assunto recentemente, em 2011). Voltou a esses temas uma década depois, em Captain Swing, um estudo detalhado do protesto rural do início do século 19 na Inglaterra, em co-autoria com George Rudé, e Bandidos, um esforço mais abrangente de síntese. Essas obras servem de lembretes de como Hobsbawm foi tanto uma ponte entre a historiografia europeia e a britânica e, também, um precursor do aumento notável do estudo da história social no pós-1968 britânico.

À essa altura, porém, Hobsbawm já havia publicado o primeiro dos trabalhos sobre os quais suas reputações popular e acadêmica iriam se assentar. Uma coleção de alguns dos seus ensaios mais importantes, Labouring Men, apareceu em 1964 (uma segunda coleção, Worlds of Labour, iria surgir 20 anos mais tarde). Mas foi Industry and Empire (1968), uma compilação convincente de muito do seu trabalho sobre a revolução industrial da Grã-Bretanha, que alcançou o mais alto reconhecimento – e, não à toa, raramente a obra encontra-se fora de catálogo.

Foi ainda mais influente, no longo prazo, a série a Era de…, que começou em 1962 com a A Era das Revoluções: 1789-1848. Ela foi sucedida por A Era do Capital: 1848-1875 (1975) e, depois, por A Era do Império: 1875-1914 (1987). Um quarto volume, A Era dos Extremos: 1914-1991, mais peculiar e especulativo, ainda que, sob alguns aspectos, mais notável e admirável do que as obras anteriores, ampliou a sequência em 1994.

Os quatro volumes incorporam todas as melhores qualidades de Hobsbawm – a varredura do tema e a compreensão estatística combinadas pelo ar de anedota, a atenção pelas nuances e o significado das palavras além de, sobretudo, um incomparável poder de síntese (não há lugar onde o capitalismo dos meados do século 19 esteja mais bem disposto do que o clássico sumário presente na primeira página do segundo volume). Os livros não foram concebidos como tetralogia, mas adquiriram, assim que surgiram, status individual e, ao mesmo tempo, cumulativo, de claśsico. Eles foram um exemplo, como diria o próprio Hobsbawm, “daquilo que os franceses chamam de ‘haute vulgarisation‘ [alta vulgarização]” (e ele não disse isso no sentido autodepreciativo). Os livros ornaram-se, nas palavras de um revisor, “parte da mobília dos ingleses bem-formados”.

O primeiro casamento de Hobsbawm tinha terminado em 1951. Durante os anos 1950, ele teve outro relacionamento, que resultou no nascimento de seu primeiro filho, Joss Bennathan; mas a mãe do garonto não quis casar-se. Em 1962, ele casou-se de novo, agora com Marlene Schwartz, de ascendência austríaca. Mudaram-se para Hampstead e compraram uma segunda casa pequena em Gales. Tiveram dois filhos, Andrew e Julia.

Nos anos 1970, a fama crescente de Hobsbawm como historiador viu-se acompanhada pelo crescimento da sua fama como narrador de seu próprio tempo. Embora ele respeitasse, como historiador, a disciplina centralista do Partido Comunista, sua eminência intelectual deu-lhe uma independência que lhe permitiu conquistar o respeito de pensadores críticos ao comunismo, a exemplo de Isaiah Berlin. Isso também garantiu-lhe o considerável elogio de não ter nenhum de seus livros publicados na União Soviética. Armado e protegido, ele navegou sem medo por todo o campo da esquerda, das páginas mensais do Partido Comunista ao Marxism Today, uma publicação consideravelmente heterodoxa na qual tornou-se sumidade da casa.

Suas conversas com o comunista – e, agora, presidente – italiano Giorgio Napolitano datam daqueles anos e foram publicadas em A Estrada Italiana para o Socialismo. Mas sua mais influente contribuição política foi a crescente certeza de que o movimento proletário europeu perdera a capacidade de realizar a função transformadora que os marxistas primordiais lhe creditavam. Esses artigos revisionistas descompromissados foram organizados sob o título “The Forward March of Labour Halted” [A Marcha do Trabalho Interrompida].

Em 1983, quando Neil Kinnock tornou-se líder do Partido Trabalhista britânico, por conta de sua sorte eleitoral, a influência de Hobsbawm começou a se estender para além do Partido Comunista e para dentro do Trabalhista. Kinnock reconheceu publicamente sua dívida para com Hobsbawm e permitiu-se ser entrevistado pelo homem que descreveu como “meu marxista favorito”. Embora Hobsbawm tenha desaprovado firmemente muito daquilo que seria conhecido depois como “Novo Trabalhismo” – algo que via, entre coisas, como covardia histórica – ele foi, sem dúvida, o precursor intelectual mais influente do revisionismo iconoclasta do trabalhismo dos anos 1990.

Seu status foi sublinhado em 1998, quando o então primeiro-ministro Tony Blair concedeu-lhe a distinção de Companion of Honour, poucos meses depois de ter completado 80 anos. Na sua justificativa, o premiê disse que Hobsbawm continuava a publicar trabalhos que “localizam na História e na política problemas que reemergem, para perturbar a complacência da Europa”.

Nos últimos anos, Hobsbawm viu sua reputação crescer. Suas comemorações de aniversário de 80 e 90 anos foram premiadas com a presença da intelectualidade liberal e de esquerda da Grã-Bretanha. Ao longo dos últimos anos, ele continuou a publicar volumes de ensaios, incluindo On the History (1997) e Uncommon People (1998), trabalhos nos quais Dizzy Gillespie e Salvatore Giuliano colocaram-se lado a lado no índice de testemunhas das crescente curiosidade de Hobsbwm. Também são dessa época uma autobiografia muito bem-sucedida, Tempos Interessantes, publicada em 2002, e Globalização, Democracia e Terrorismo, de 2007.

Mais famoso no fim de sua vida do que provavelmente em qualquer outro período, ele manteve com regularidade suas palestras, comunicações e o papel como performer no Festival de Literatura de Hay, do qual tornou-se presidente aos 93 anos, após a morte de Lord Bingham de Cornhill. Um tombo, em 2010 reduziu severamente sua mobilidade, mas seu intelecto permaneceu intocado, assim como sua vida social e cultura, graças aos esforços, ao amor e à culinária de Marlene.

Que seus escritos tenham continuado a sensibilizar tantos públicos, no momento em que sua política foi, de certa forma, eclipsada, era o tipo de disjunção que exasperava os direitistas. Mas foi também o paradoxo em que seu intelecto sutiu e jamais complacente refestelou-se. Em seus últimos anos, ele gostava de citar E. M. Forster, segundo o qual o próprio Hobsbawm sabia “permanecer sempre num ângulo suave do universo”. Se o comentário diz mais sobre Hobsbawm ou sobre o universo era algo que ele gostava de debater, confiante na noção de que se tratava, em muitos sentidos de um aprendizado para ambos. Ele deixa Marlene e seus três filhos, sete netos e um bisneto.

domingo, 16 de dezembro de 2012

A política da saúde no século XVIII



Esse texto consiste no capítulo XIII do livro Microfísica do Poder, escrito pelo filósofo e historiador francês Michel Foucault.

A POLÍTICA DA SAÚDE NO SÉCULO XVIII

Duas observações para começar:

1) Uma medicina privada, "liberal", submetida aos mecanismos da iniciativa individual e às leis do mercado; uma política médica que se apoia em uma estrutura de poder e que visa à saúde de uma coletividade; não resulta em quase nada, sem dúvida, procurar uma relação de anterioridade ou de derivação entre elas. E um tanto mítico supor, na origem da medicina ocidental, uma prática coletiva a que as instituições mágico−religiosas teriam proporcionado seu caráter social e que a organização das clientelas privadas teria, em seguida, desmantelado pouco a pouco.

Mas é também inadequado supor, no início da medicina moderna, uma relação singular, privada, individual, "clínica" em seu funcionamento econômico e na sua forma epistemológica que uma série de correções, de ajustamentos ou coações teria socializado lentamente, tornando−a responsável pela coletividade.

O que o século XVIII mostra, em todo o caso, são duas faces de um mesmo processo: o desenvolvimento de um mercado médico sob a forma de clientelas privadas, a extensão de uma rede de pessoal que oferece intervenções medicamente qualificadas, o aumento de uma demanda de cuidados por parte dos indivíduos e das famílias, a emergência de uma medicina clínica fortemente centrada no exame, no diagnóstico, na terapêutica individuais, a exaltação explicitamente moral e científica (secretamente econômica) do "colóquio singular", em suma, o surgimento progressivo da grande medicina do século XIX não pode ser dissociado da organização, na mesma época, de uma política da saúde e de uma consideração das doenças como problema político e econômico, que se coloca às coletividades e que elas devem tentar resolver ao nível de suas decisões de conjunto.

Medicina "privada" e medicina "socializada" relevam, em seu apoio recíproco e em sua oposição, de uma estratégia global. Não há sem dúvida, sociedade que não realize uma certa "noso−politica". O século XVIII não a inventou. Mas lhe prescreveu novas regras e, sobretudo. A fez passar a um nível de análise explícita e sistematizada que ela ainda não tinha conhecido. Entra−se, portanto, menos na era da medicina social que na da noso−politica refletida.

2) Não se deve situar somente nos aparelhos do Estado o polo de iniciativa, de organização e de controle desta noso−política. Existiram, de fato, múltiplas políticas de saúde e diversos meios de se encarregar dos problemas médicos: grupos religiosos (importância considerável, por exemplo, dos Quakers e dos diversos movimentos Dissent, na Inglaterra); associações de socorro e beneficência (desde as repartições de paróquia até as sociedades filantrópicas que também funcionam como órgãos da vigilância que uma classe social privilegiada exerce sobre as outras, mais desprotegidas e, por isso mesmo, portadoras de perigo coletivo); sociedades científicas, as Academias do século XVIII ou as sociedades de estatística do início do século XIX, tentam organizar um saber global e quantificável dos fenômenos de morbidade. A saúde, a doença como fato de grupo e de população, é problematizada no século XVIII a partir de instâncias múltiplas em relação às quais o Estado desempenha papéis diversos.

Intervém diretamente: as distribuições gratuitas de medicamentos são efetuadas na França, com uma amplitude variável, de Luís XIV a Luís XVI. Cria órgãos de consulta e de informação (o Collegium sanitário da Prússia data de 1685; a Sociedade Real de Medicina fundou−se na França em 1776). Fracassa em seus projetos de organização médica autoritária (o Código de Saúde elaborado por Mai e aceito pelo Eleitor Palatino em 1800 nunca foi aplicado). O Estado é também objeto de solicitações às quais ele resiste.


A problematização da noso−politica, no século XVIII, não traduz, portanto uma intervenção uniforme do Estado na prática da medicina, mas, sobretudo a emergência, em pontos múltiplos do corpo social, da saúde e da doença como problemas que exigem, de uma maneira ou de outra, um encargo coletivo. A noso−politica, mais do que o resultado de uma iniciativa vertical, aparece, no século XVIII, como um problema de origens e direções múltiplas: a saúde de todos como urgência para todos; o estado de saúde de uma população como objetivo geral.

O traço mais marcante desta "noso−política" que inquieta a sociedade francesa − e europeia – no século XVIII, é sem dúvida, o deslocamento dos problemas de saúde em relação às técnicas de assistência. Esquematicamente, pode−se dizer que até o fim do século XVII os encargos coletivos da doença eram realizados pela assistência aos pobres. Há exceções, certamente: as regras a aplicar em época de epidemias, as medidas que eram tomadas nas cidades pestilentas, as quarentenas que eram impostas em alguns grandes portos constituíam formas de medicalização autoritária que não estavam organicamente ligadas às técnicas de assistência. Mas fora destes casos−limite, a medicina entendida e exercida como "serviço" foi apenas uma das componentes dos "socorros".

Ela se dirigia à categoria importante, não obstante a imprecisão de suas fronteiras, dos "pobres doentes". Economicamente, esta medicina−serviço estava essencialmente assegurada por fundações de caridade. Institucionalmente, ela era exercida dentro dos limites de organizações (leigas ou religiosas) que se propunham fins múltiplos: distribuição de viveres, vestuário, recolhimento de crianças abandonadas, educação elementar e proselitismo moral, abertura de ateliês e de oficinas, eventualmente vigilância e sanções de elementos "instáveis" ou "perturbadores" (as repartições hospitalares tinham, nas cidades, jurisdição sobre os vagabundos e os mendigos; as repartições paroquiais e as sociedades de caridade se outorgavam também, e muito explicitamente, o direito de denunciar os "maus elementos"). Do ponto de vista técnico, a parte desempenhada pela terapêutica no funcionamento dos hospitais na época clássica era limitada, relativamente à ajuda material e ao enquadramento administrativo.

Na figura do "pobre necessitado" que merece hospitalização, a doença era apenas um dos elementos em um conjunto que compreendia também a enfermidade, a idade, a impossibilidade de encontrar trabalho, a ausência de cuidados. A série doença−serviços médicos−terapêutica ocupa um lugar limitado e raramente autônomo na política e na economia complexa dos "socorros".

Primeiro fenômeno a destacar durante o século XVIII: o deslocamento progressivo dos procedimentos mistos e polivalentes de assistência. Este desmantelamento se opera, ou melhor, ele se faz necessário, (pois só se tornará efetivo no final do século) a partir do reexame do modo de investimento e capitalização: a prática das "fundações" que imobilizam somas importantes e cuja renda serve para entreter ociosos que podem, assim, permanecer fora dos circuitos de produção, é criticada pelos economistas e pelos administradores. Opera−se, igualmente, a partir de um esquadrinhamento mais rigoroso da população e das distinções que se tenta estabelecer entre as diferentes categorias de infelizes aos quais, confusamente, a caridade se destinava: na atenuação lenta dos estatutos tradicionais, o "pobre" é um dos primeiros a desaparecer e ceder lugar a toda uma série de distinções funcionais (os bons e os maus pobres, os ociosos voluntários e os desempregados involuntários; aqueles que podem fazer determinado trabalho e aqueles que não podem).

Uma análise da ociosidade − de suas condições e seus efeitos − tende a substituir a sacralização um tanto global do "pobre". Análise que na prática tem por objetivo, na melhor das hipóteses, tornar a pobreza útil, fixando−a ao aparelho de produção; e, na pior, aliviar o mais possível seu peso para o resto da sociedade: como fazer trabalhar os pobres "válidos", como transformá−los em mão−de−obra útil; mas, também, como assegurar o autofinanciamento pelos menos ricos de sua própria doença e de sua incapacidade transitória ou definitiva de trabalhar; ou ainda, como tornar lucrativas a curto ou a longo prazo as despesas com a instrução das crianças abandonadas e dos órfãos. Delineia−se, assim, toda uma decomposição utilitária da pobreza, onde começa a aparecer o problema especifico da doença dos pobres em sua relação com os Imperativos do trabalho e a necessidade da produção.

Mas é preciso, também, chamar atenção para um outro processo, mais geral que o primeiro e que não é o seu simples desdobramento: o surgimento da saúde e do bem−estar físico da população em geral como um dos objetivos essenciais do poder político. Não se trata mais do apoio a uma franja particularmente frágil − perturbada e perturbadora − da população, mas da maneira como se pode elevar o nível de saúde do corpo social em seu conjunto. Os diversos aparelhos de poder devem se encarregar dos "corpos" não simplesmente para exigir deles o serviço do sangue ou para protege−los contra os inimigos, não simplesmente para assegurar os castigos ou extorquir as rendas, mas para ajudá−los a garantir sua saúde. O imperativo da saúde: dever de cada um e objetivo geral.

Recuando um pouco, se poderia dizer que, desde o inicio da Idade Média, o poder exercia tradicionalmente duas grandes funções: a da guerra e a da paz, que ele assegurava pelo monopólio dificilmente adquirido das armas; a da arbitragem dos litígios e da punição dos delitos, que assegurava pelo controle das funções judiciárias. Pax et Justitia. A estas funções foram acrescentadas, desde o fim da Idade Média, a da manutenção da ordem e da organização do enriquecimento. Eis que surge, no século XVIII, uma nova função: a disposição da sociedade como meio de bem−estar físico, saúde perfeita e longevidade. 

O exercício destas três últimas funções (ordem, enriquecimento, saúde) foi assegurado menos por um aparelho único que por um conjunto de regulamentos e de instituições múltiplas que recebem, no século XVIII, o nome genérico de "policia". O que se chamará até o fim do Antigo Regime de polícia não é somente a instituição policial; é o conjunto dos mecanismos pelos quais são assegurados a ordem, o crescimento canalizado das riquezas e as condições de manutenção da saúde "em geral": O Traité de Delamare − grande carta das funções da policia na época clássica − é, neste sentido, significativo.


As 11 rubricas segundo as quais ele classificava as atividades da polícia se repartem, facilmente, segundo estas 3 grandes direções: respeito da regulamentação econômica (circulação das mercadorias, procedimentos de fabricação, obrigações dos profissionais entre eles e com relação à sua clientela); respeito das medidas de ordem (vigilância dos indivíduos perigosos, caça aos vagabundos e eventualmente aos mendigos, perseguição dos criminosos); respeito às regras gerais de higiene (cuidar da qualidade dos gêneros postos à venda, do abastecimento de água, da limpeza das ruas).

No momento em que os procedimentos mistos de assistência são decompostos e decantados, e em que se delimita, em sua especificidade econômica, o problema da doença dos pobres, a saúde e o bem−estar físico das populações aparecem como um objetivo político que a "policia" do corpo social deve assegurar ao lado das regulações econômicas e obrigações da ordem. A súbita importância que ganha à medicina no século XVIII tem seu ponto de origem no cruzamento de uma nova economia "analítica" da assistência com a emergência de uma "policia" geral da saúde. A nova noso−politica inscreve a questão especifica da doença dos pobres no problema geral da saúde das populações; e se desloca do contexto estreito dos socorros de caridade para a forma mais geral de uma "polícia médica" com suas obrigações e seus serviços. Os textos de Th. Rau: Medizinische Polizei Ordnung (1764) e, sobretudo a grande obra de J. P. Frank − "System einer Medizinischen Polizei" são a expressão mais coerente desta transformação.

Qual o suporte desta transformação? A grosso modo, pode−se dizer que se trata da preservação, manutenção e conservação da "força de trabalho". Mas, sem dúvida, o problema é mais amplo: ele também diz respeito aos efeitos econômico−político da acumulação dos homens. O grande crescimento demográfico do Ocidente europeu durante o século XVIII, a necessidade de coordená−lo e de integrá−lo ao desenvolvimento do aparelho de produção, a urgência de controlá−lo por mecanismos de poder mais adequados e mais rigorosos fazem aparecer a "população" − com suas variáveis de números, de repartição espacial ou cronológica, de longevidade e de saúde − não somente como problema teórico, mas como objeto de vigilância análise, intervenções, operações transformadoras, etc.

Esboça−se o projeto de uma tecnologia da população: estimativas demográficas, cálculo da pirâmide das idades, das diferentes esperanças de vida, das taxas de morbidade, estudo do papel que desempenham um em relação ao outro o crescimento das riquezas e da população, diversas incitações ao casamento e à natalidade, desenvolvimento da educação e da formação profissional. Neste conjunto de problemas, o "corpo" − corpo dos indivíduos e corpo das populações − surge como portador de novas variáveis: não mais simplesmente raros ou numerosos, submissos ou renitentes, ricos ou pobres, válidos ou inválidos, vigorosos ou fracos e sim mais ou menos utilizáveis, mais ou menos suscetíveis de investimentos rentáveis, tendo maior ou menor chance de sobrevivência, de morte ou de doença, sendo mais ou menos capazes de aprendizagem eficaz. Os traços biológicos de uma população se tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica e é necessário organizar em volta deles um dispositivo que assegure não apenas sua sujeição, mas o aumento constante de sua utilidade.


A partir daí se podem compreender várias características da noso−política do século XVIII.

1) O privilégio da infância e a medicalização da família. Ao problema "das crianças" (quer dizer de seu número no nascimento e da relação natalidade − mortalidade) se acrescenta o da "infância" (isto é, da sobrevivência até a idade adulta, das condições físicas e econômicas desta sobrevivência, dos investimentos necessários e suficientes para que o período de desenvolvimento se torne útil, em suma, da organização desta "fase" que é entendida como especifica e finalizada). Não se trata, apenas, de produzir um melhor número de crianças, mas de gerir convenientemente esta época da vida.

São codificadas, então, segundo novas regras − e bem precisas − as relações entre pais e filhos. São certamente mantidas, e com poucas alterações, as relações de submissão e o sistema de signos que elas exigem, mas elas devem estar regidas, doravante, por todo um conjunto de obrigações que se impõe tanto aos pais quanto aos filhos: obrigações de ordem física (cuidados, contatos, higiene, limpeza, proximidade atenta); amamentação das crianças pelas mães; preocupação com um vestuário sadio; exercícios físicos para assegurar o bom desenvolvimento do organismo: corpo a corpo permanente e coercitivo entre os adultos e as crianças. A família não deve ser mais apenas uma teia de relações que se inscreve em um estatuto social, em um sistema de parentesco, em um mecanismo de transmissão de bens.

Deve−se tornar um meio físico denso, saturado, permanente, contínuo que envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança. Adquire, então, uma figura material, organiza−se como o meio mais próximo da criança; tende a se tornar, para ela, um espaço imediato de sobrevivência e de evolução. O que acarreta um efeito de limitação ou, pelo menos, uma intensificação dos elementos e das relações que constituem a família no sentido estrito (o grupo pais−filhos). O que acarreta, também, certa inversão de eixos: o laço conjugal não serve mais apenas (riem mesmo, talvez, em primeiro lugar) para estabelecer a junção entre duas ascendências, mas para organizar o que servirá de matriz para o indivíduo adulto. Sem dúvida, ela serve ainda para dar continuidade a duas linhagens e, portanto para produzir descendência, mas também para fabricar, nas melhores condições possíveis, um ser humano elevado ao estado de maturidade.

A nova "conjugalidade" é, sobretudo, aquela que congrega pais e filhos. A família aparelho estrito e localizado de formação − se solidifica no interior da grande e tradicional família−aliança. E, ao mesmo tempo, a saúde − em primeiro plano a saúde das crianças − se torna um dos objetivos mais obrigatórios da família. O retângulo pais−filhos deve se tornar uma espécie de homeostase da saúde. Em todo o caso, desde o fim do século XVIII, o corpo sadio, limpo, válido, o espaço purificado, límpido, arejado, a distribuição medicamente perfeita dos indivíduos, dos lugares, dos leitos, dos utensílios, o jogo do "cuidadoso" e do "cuidado", constituem algumas das leis morais essenciais da família. E, desde esta época, a família se tornou o agente mais constante da medicalização.

A partir da segunda metade do século XVIII ela foi alvo de um grande empreendimento de aculturação médica. A primeira leva disse respeito aos cuidados ministrados às crianças e, sobretudo, aos bebês. Audry: L'orihopédie (1749),Vandemonde: Essai sur la maniére de perfectionner l'espèce humaine (1756), Cadogan: Manière de nourrir ei d'élever les enfants (a tradução francesa é de 1752), Des Essariz: Traité de l'éducation corporelle en bas âge (1760), Ballexsert: Dissertaiion sur l'Éducation physique des enfanis (1762);

Raulin: Dela conservation des enfanis (1768), Nicolas: Le cri de la nature en faveur des enfanis nouveau−nés (1775), Daignan: Tableau des sociéiés de la vie humaine (1786), Sauceroite: De la conserva tion des enfan is (ano IV), W. Buchanam: Le conserva ieur de san 'é des mêres ei des enfanis (tradução francesa de 1804), J. A. Milbi: Le Nestor francais (1807);

Laplace Chanvre: Disseriation sur quelques poinis de l'éducaiion physique ei morale des enfanis (1813), Lereiz: Hygiêne des enfanis (1814), Prévosi Leygonie: Essai sur l'éducaiion physique des enfanis (1813).


Esta literatura aumentará logo com a publicação, no século XIX, de uma série de periódicos e de jornais mais diretamente dirigidos às classes populares.

A longa campanha a respeito da inoculação e da vacinação se insere no movimento que procurou cercar as crianças de cuidados médicos, tendo a família a responsabilidade moral e, pelo menos, uma parte do encargo econômico. A política em favor dos órfãos segue, por caminhos diferentes, uma estratégia análoga. São abertas instituições especialmente destinadas a recolhe−los e a ministrar−lhes cuidados particulares (o Foundling Hospital de Londres, o Enfanis Trouvés de Paris).; é organizado, também, um sistema de acolhimento por amas de leite ou em famílias onde eles serão úteis, participando, ainda que pouco, da vida doméstica, e onde, além disso, encontrarão um meio de desenvolvimento mais favorável e economicamente menos custoso que um asilo, onde ficariam confinados até á adolescência.

Gravura do século XVIII retratando o complexo do Fouding Hospitalar em Londres.
A política médica, que se delineia no século XVIII em todos os países da Europa, tem como reflexo a organização da família, ou melhor, do complexo família−filhos, como instância primeira e imediata da medicalização dos indivíduos; fizeram−na desempenhar o papel de articulação dos objetivos gerais relativos à boa saúde do corpo social com o desejo ou a necessidade de cuidados dos indivíduos; ela permitiu articular uma ética "privada" da boa saúde (dever recíproco de pais e filhos) com um controle coletivo da higiene e uma técnica científica da cura, assegurada pela demanda dos indivíduos e das famílias, por um corpo profissional de médicos qualificados e como que recomendados pelo Estado.

Os direitos e os deveres dos indivíduos concernindo à sua saúde e à dos outros, o mercado onde coincidem as demandas e as ofertas de cuidados médicos, as intervenções autoritárias do poder na ordem da higiene e das doenças, a institucionalização e a defesa da relação privada com o médico, tudo isto, em sua multiplicidade e coerência, marca o funcionamento global da política de saúde do século XIX, que, entretanto não se pode compreender abstraindo−se este elemento central, formado no século XIII: a família medicalizada−medicalizante.

2) O privilégio da higiene e o funcionamento da medicina como instância de controle social. A velha noção de regime entendida como regra de vida e como forma de medicina preventiva tende a se alargar e a se tornar o "regime" coletivo de uma população considerada em geral, tendo como tríplice objetivo: o desaparecimento dos grandes surtos epidêmicos, a baixa taxa de morbidade, o aumento da duração média de vida e de supressão de vi da para cada idade. Esta higiene, como regime de saúde das populações implica, por parte da medicina, um determinado número de intervenções autoritárias e de medidas de controle.

E, antes de tudo, sobre o espaço urbano em geral: porque ele é, talvez, o meio mais perigoso para a população. A localização dos diferentes bairros, sua umidade, sua exposição, o arejamento total da cidade, seu sistema de esgotos e de evacuação de águas utilizadas, a localização dos cemitérios e dos matadouros, a densidade da população constituem fatores que desempenham um papel decisivo na mortalidade e morbidade dos habitantes. 


A cidade com suas principais variáveis espaciais aparecem como um objeto a medicalizar. Enquanto que as topografias médicas das regiões analisam dados climáticos ou fatos geológicos que não controlam e só podem sugerir medidas de proteção ou de compensação, as topografias das cidades delineiam, pelo menos negativamente, os princípios gerais de um urbanismo sistemático. A cidade patogênica deu lugar, no século XVIII, a toda uma mitologia e a pânicos bem reais (o Cemitério dos Inocentes, em Paris, foi um destes lugares saturados de medo); ela exigiu, em todo caso, um discurso médico sobre a morbidade urbana e uma vigilância médica de todo um conjunto de disposições, de construções e de instituições (Cf. por exemplo, J.P.L. Morei disserta tion sur les causes que contribueni le plus â rendre cachectique ei rachitique la constitution d'un grand nombre d'enfanis de la ville de Lille, 1812).

De um modo mais preciso e mais localizado, as necessidades da higiene exigem uma intervenção médica autoritária sobre o que aparece como foco privilegiado das doenças: as prisões, os navios, as instalações portuárias, os Hospitais gerais onde se encontravam os vagabundos, os mendigos, os inválidos; os próprios hospitais, cujo enquadramento médico é na maior parte do tempo insuficiente, e que avivam ou complicam as doenças dos pacientes, quando não difundem no exterior os germes patológicos. Isolam−se, portanto, no sistema urbano, regiões de medicalização de urgência, que devem se tornar pontos de aplicação para o exercício de um poder médico intensificado.

Gravura de 1821 retratando um casal doando uma criança em uma das entradas do orfanato Enfanis Trouvés em Paris.
Além disso, os médicos deverão ensinar aos indivíduos as regras fundamentais de higiene que estes devem respeitar em beneficio de sua própria saúde e da saúde dos outros: higiene da alimentação e do habitat, incitação a se fazer tratar em caso de doença.

A medicina como técnica geral de saúde, mais do que como serviço das doenças e arte das curas, assume um lugar cada vez mais importante nas estruturas administrativas e nesta maquinaria de poder que, durante o século XVIII, não cessa de se estender e de se afirmar. O médico penetra em diferentes instâncias de poder. A administração serve de ponto de apoio e, por vezes, de ponto de partida aos grandes inquéritos médicos sobre a saúde das populações; por outro lado, os médicos consagram uma parte cada vez maior de suas atividades a tarefas tanto gerais quanto administrativas que lhes foram fixadas pelo poder. Acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua condição de vida, de sua habitação e de seus hábitos, começa a se formar um saber médico−administrativo que serviu de núcleo originário à "economia social" e â sociologia do século XIX.

E constitui−se, igualmente, uma ascendência político−médica sobre uma população que se enquadra com uma série de prescrições que dizem respeito não só â doença, mas às formas gerais da existência e do comportamento (a alimentação e a bebida, a sexualidade e a fecundidade, a maneira de se vestir, a disposição ideal do habitat).


O excesso de poder de que se beneficia o médico comprova, desde o século XVIII, esta interpretação do que é político e médico na higiene: presença cada vez mais numerosa nas academias e nas sociedades científicas; participação ampla nas Enciclopédias; presença a titulo de conselheiro, junto aos representantes do poder; organização de sociedades médicas oficialmente encarregadas de certo número de responsabilidades administrativas e qualificadas para tomar ou sugerir medidas autoritárias; papel desempenhado por muitos médicos como programadores de uma sociedade bem administrada (o médico reformador da economia ou da política é um personagem frequente na segunda metade do século XVIII); sobre−representação dos médicos nas assembleias revolucionárias.

O médico se torna o grande conselheiro e o grande perito, se não na arte de governar, pelo menos na de observar, corrigir, melhorar o "corpo" social e mantê−lo em um permanente estado de saúde. E é sua função de higienista, mais que seus prestígios de terapeuta, que lhe assegura esta posição politicamente privilegiada no século XVIII, antes de sê−la econômica e socialmente no século XIX.

O questionamento do hospital, durante o século XVIII, pode ser compreendido a partir destes três fenômenos principais: a emergência da "população" com suas variáveis biomédicas de longevidade e de saúde; a organização da família estritamente parental como centro de transmissão de uma medicalização onde ela desempenha um papel de permanente demanda e de instrumento último; o emaranhado médico−administrativo em torno dos controles de higiene coletiva.

É que, em relação a estes novos problemas, o hospital aparecia como uma estrutura em muitos pontos ultrapassada. Fragmento de espaço fechado sobre si, lugar de internamento de homens e de doenças, arquitetura solene, mas desajeitada que multiplica o mal no interior sem impedir que ele se difunda no exterior, ele é mais um foco de morte para as cidades onde se acha situado do que um agente terapêutico para a população inteira. 

A dificuldade de encontrar vagas, as exigências impostas àqueles que desejam entrar, mas também a desordem incessante das idas e vindas, a precária vigilância médica ali exercida, a dificuldade em tratar efetivamente os doentes fazem do hospital um instrumento inadequado, uma vez que o objeto da medicalização deve ser a população em geral e seu objetivo uma melhoria de conjunto do nível de saúde. 

No espaço urbano que a medicina deve purificar ele é uma mancha sombria. E para a economia um peso inerte, já que dá uma assistência que nunca permite a diminuição da pobreza, mas, no máximo, a sobrevivência de certos pobres e, assim, o crescimento de seu número, o prolongamento de suas doenças, a consolidação de sua má saúde, com todos os efeitos de contágio que dele podem resultar.

Daí a ideia que se espalha no século XVIII de uma substituição do hospital por três mecanismos principais. Pela organização de uma hospitalização a domicílio: ela é, sem dúvida, perigosa quando se trata de moléstias epidêmicas, mas apresenta vantagens econômicas na medida em que o custo da manutenção de um doente é bem menor para a sociedade se ele é sustentado e alimentado em sua própria casa como antes da doença (o custo para o corpo social resume−se apenas na falta de ganho que representa sua ociosidade forçada e isto somente no caso onde ele tivesse efetivamente um trabalho); ela representa, também, vantagens médicas na medida em que a família − desde que seja aconselhada − pode assegurar cuidados mais constantes e apropriados do que se pode pedir de uma administração hospitalar: toda a família deve poder funcionar como um pequeno hospital provisório, individual e não custoso.

Mas um tal procedimento implica que a substituição do hospital seja, além disso, assegurada por um corpo médico espalhado pela sociedade e suscetível de oferecer cuidados totalmente gratuitos ou os menos custosos possíveis. Um enquadramento médico da população se for permanente, flexível e facilmente utilizável, pode tornar inútil uma boa parte dos hospitais tradicionais. Enfim, pode−se conceber que se generalizem os cuidados, consultas e distribuições de medicamentos que alguns hospitais já oferecem a doentes de passagem, sem retê−los ou interná−los: método dos dispensários, que procuram conservar as vantagens técnicas da hospitalização sem ter os inconvenientes médicos ou econômicos.

Estes três métodos deram lugar, sobretudo na segunda metade do século XVIII, a uma série de projetos e programas. Eles provocaram várias experiências. Em 1769 foi fundado, em Londres, o dispensário para crianças pobres do Red Lion Square; 30 anos mais tarde, quase todos os bairros da cidade tinham seu dispensário e era estimado em cerca de 50.000 o número daqueles que lá recebiam cada ano cuidados gratuitos. 

Gravura retratando o complexo do Red Lion Square em Londres.
Na França, parece que se procurou, sobretudo, a melhoria, a extensão e uma distribuição homogênea do corpo médico nas cidades e no campo: a reforma dos estudos médicos e cirúrgicos (1772 e 1784), a obrigatoriedade dos médicos de exercerem a profissão nos burgos e nas pequenas cidades, antes de serem recebidos em algumas grandes cidades, os trabalhos de inquérito e coordenação feitos pela Sociedade Real de Medicina, o lugar cada vez maior que o controle da saúde e da higiene ocupa na responsabilidade dos Intendentes, o desenvolvimento das distribuições gratuitas de medicamentos sob a responsabilidade de médicos designados pela administração, tudo isto remete a uma política de saúde que se apoia na presença extensiva do pessoal médico no corpo social. 

No bojo destas críticas ao hospital e deste projeto de substituição encontra−se, durante a Revolução, uma acentuada tendência para a "deshospitalização"; ela já é sensível nos relatórios do Comitê de Mendicidade (projeto de estabelecer, em cada distrito do campo, um médico ou um cirurgião que trataria os indigentes, velaria pelas crianças assistidas e praticaria a inoculação). Mas ela se formula claramente na época da Convenção (projeto de três médicos por distrito, assegurando o essencial dos cuidados de saúde para o conjunto da população).

Mas o desaparecimento do hospital foi apenas uma utopia. De fato, o verdadeiro trabalho se fez quando se quis elaborar um funcionamento complexo em que o hospital tende a desempenhar um papel especifico em relação à família, constituída como primeira instância da saúde, à rede extensa e contínua do pessoal médico e ao controle administrativo da população. E em relação a este conjunto que se tenta reformar o hospital.

Trata−se, em primeiro lugar, de ajustá−lo ao espaço e, mais precisamente, ao espaço urbano onde ele se acha situado. Dai uma série de discussões e conflitos entre diferentes fórmulas de implantação: grandes hospitais suscetíveis de acolher uma população numerosa, onde os cuidados assim agrupados seriam mais coerentes, mais fáceis de controlar e menos custosos; ou, ao contrário, hospitais de pequenas dimensões, onde os doentes seriam mais bem vigiados e onde os riscos de contágio interno seriam menos graves.


Outro problema, ligado ao precedente: devem−se colocar os hospitais fora da cidade, onde a ventilação é melhor e onde eles não correm o risco de difundir miasmas pela população, solução que combina bem com a disposição dos grandes conjuntos arquitetônicos? Ou se deve construir uma multiplicidade de pequenos hospitais nos pontos em que eles possam ser os mais facilmente acessíveis à população que deve utilizá−los, solução que implica, frequentemente, o ajustamento hospital−dispensário? O hospital, em todo o caso, deve se tornar um elemento funcional em um espaço urbano onde seus efeitos devem poder ser medidos e controlados.

É preciso, em segundo lugar, dispor o espaço interno do hospital de modo à torná−lo medicamente eficaz: não mais lugar de assistência, mas lugar de operação terapêutica. O hospital deve funcionar como uma "máquina de curar". De um modo negativo: é preciso suprimir todos os fatores que o tornam perigoso para aqueles que o habitam (problema de circulação do ar, que deve ser sempre renovado sem que seus miasmas ou suas qualidades mefíticas passem de um doente para outro; problema da renovação, lavagem e transporte da roupa de cama). 

De modo positivo, é preciso organizá−lo em função de uma estratégia terapêutica sistematizada: presença ininterrupta e privilégio hierárquico dos médicos; sistema de observações, anotações e registros que permita fixar o conhecimento dos diferentes casos, seguir sua evolução particular e globalizar dados referentes a toda uma população e a longos períodos; substituição dos regimes pouco diferenciados em que consistia, tradicionalmente, o essencial dos cuidados por curas médicas e farmacêuticas mais adequadas. O hospital tende a se tornar um elemento essencial na tecnologia médica: não apenas um lugar onde se pode curar, mas um instrumento que, em certo número de casos graves, permite curar.

É preciso, por conseguinte, que nele se articulem o saber médico e a eficácia terapêutica. Surgem, no século XVIII, os hospitais especializados. Se existiram, anteriormente, certos estabelecimentos reservados aos loucos e aos "venéreos", foi mais por uma medida de exclusão ou receio dos perigos do que em razão de uma especialização dos cuidados. O hospital "unifuncional" só se organiza a partir do momento em que a hospitalização se torna o suporte e, por vezes, a condição de uma ação terapêutica mais ou menos complexa. 

O Middlesex Hospital de Londres foi inaugurado em 1745; ele se destinava a tratar a varíola e a praticar a vacinação. O London Fever Hospital data de 1802 e o Royal Ophtalmic Hospital de 1804. A primeira Maternidade de Londres foi aberta em 1749. O Enfants Malades, em Paris, foi fundado em 1802. Constitui−se, lentamente, uma rede hospitalar em que a função terapêutica é bastante acentuada. Ela deve, por um lado, cobrir com bastante continuidade o espaço urbano ou rural de cuja população ela se encarrega e, por outro lado, se articular com o saber médico, suas classificações e suas técnicas.

Gravura do século XIX do Middlesex Hospital em Londres.
Por último, o hospital deve servir de estrutura de apoio ao enquadramento permanente da população pelo pessoal médico. Deve−se poder passar dos cuidados a domicilio ao regime hospitalar por razões que são tanto econômicas quanto médicas. Os médicos, da cidade ou do campo, deverão, com suas visitas, aliviar os hospitais e evitar nestes o acúmulo; por outro lado, o hospital só deve receber doentes através de parecer e requerimento dos médicos. Além disso, o hospital, como lugar de acumulação e desenvolvimento do saber, deve permitir a formação dos médicos que exercerão a medicina para a clientela privada. 

O ensino clínico em meio hospitalar, cujos primeiros rudimentos aparecem na Holanda com Sylvius, depois com Boerhaave, em Viena, com Van Swieten, em Edimburgo (pela união da Escola de Medicina e da Edinburgh Enfirmary), se torna, no fim do século, o principio geral em torno do qual se tenta reorganizar os estudos de medicina. O hospital, instrumento terapêutico para aqueles que o habitam, contribui, pelo ensino clínico e pela boa qualidade dos conhecimentos médicos, para a elevação do nível de saúde da população.


A reforma dos hospitais, mais particularmente os projetos de sua reorganização arquitetônica, institucional, técnica, adquiriu importância, no século XVI II, graças a este conjunto de problemas que articulam o espaço urbano, a massa da população com suas características biológicas, a célula familiar densa e o corpo dos indivíduos. E na história destas materialidades − tanto políticas quanto econômicas − que se inscreve a transformação física dos hospitais.
 

Referência Bibliográfica:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 2010. (Capítulo XIII). 

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