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Leandro Vilar

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Pedras rúnicas: preservando os feitos dos vikings


No norte da Europa existem milhares de monumentos chamados de pedras rúnicas (runestones) os quais foram erigidos pelos vikings principalmente ao longo de um período de cem anos. Esses monumentos que continham escrita e imagens são símbolos de um passado milenar no qual os vikings gravaram na pedra alguns feitos pessoais, praticados por eles mesmos ou por familiares, e estas façanhas seriam dignas de serem eternizadas na pedra para as gerações futuras. Passados mil ano anos, muitas dessas pedras podem ser encontradas em campos, bosques, igrejas e museus, preservando essas memórias. Neste breve texto, escrevi um pouco a respeito destes monumentos e seu uso social e importância histórica. 

As pedras rúnicas consistem em pedras trabalhadas ou em gravações em rochas naturais, nas quais foram inseridas runas, alfabeto de origem germânica, surgido por volta do século II d.C, em local incerto, tendo sido baseado no alfabeto latino ou grego, sendo difundido entre povos germânicos e eslavos. Esse alfabeto apresentou variações quanto a grafia e quantidade de letras. No caso escandinavo algumas dessas variações foram utilizadas durante a Era Viking (VIII-XI), ficando conhecidas como novo futhark (PAGE, 1999, p. 2-3).


Pedra rúnica Öl 1, situada em Oland na Suécia. Datada por volta do século IX ou X. 

A pedras rúnicas consistiram em monumentos para fins memorialistas, sendo erguidos para se relembrar ou celebrar os feitos ou a memória dos vivos e dos mortos. Durante o século XI muitos desses monumentos eram erigidos para fins póstumos, os quais traziam breves epitáfios dedicados a entes falecidos.

As primeiras pedras rúnicas possuíam apenas runas, algumas poucas apresentavam imagens. A partir do século X a combinação de imagem e escrita começou a se tornar mais habitual. Por outro lado, existem também as chamadas pedras gravadas (picture stonesimage stones ou gotland’s stones), tendo surgido entre os séculos IV ou V d.C, na ilha de Gotland, atualmente na Suécia. A principal diferença desse segundo tipo é a ausência de inscrições rúnicas, sendo que tais monumentos contêm apenas imagens e símbolos (JANSSON, 1987, p. 10).


A esquerda a pedra rúnica U 241 datada do século XI. Na direita a pedra gravada de Stora Hammars 1, datada por volta do século X. Uma das principais diferenças entre os dois tipos de monumentos é que no segundo hão há a presença de escrita.
 
No tocante as imagens contidas nas pedras rúnicas, elas apresentam animais como canídeos (não se sabe se haveria uma distinção entre cães e lobos), serpentes, aves (corvos, águias e galos), cavalos e leões. Além da decoração zoomórfica, há algumas pedras que trazem também pessoas e algumas criaturas que parecem monstros, possivelmente gigantes ou trolls. Também se encontra em alguns casos a presença de motivos fitomórficos e símbolos como a suástica, a triquetra (símbolo formado por três triângulos interligados) e a cruz cristã. Já nas pedras gravadas a presença de animais é um pouco mais variável, incluindo cervídeos e animais de fazenda, além de mostrar cenas do cotidiano, de batalha e mitológicas, sacrifícios, embarcações, armas, símbolos etc. (OEHRL, 2017, p. 88-89).

Estes monumentos são encontrados sobretudo na Escandinávia, especificamente na DinamarcaNoruega e principalmente na Suécia, embora que alguns desses monumentos foram erguidos na Inglaterra, Escócia, Ilha de Man, Irlanda, Rússia e outros territórios, mas consistindo numa pequena fração da produção geral. Todavia, a condição dessas pedras terem sido erguidas do século V ao XII, revela um uso cultural e social bem longevo para esse tipo de monumento (SAWYER, 2006, p. 10-14).

Atualmente contabiliza-se que existam pelo menos 3 mil pedras rúnicas catalogadas, havendo a possibilidade de algumas estarem soterradas e outras terem sido destruídas no passar do tempo. Desse total de pedras rúnicas identificadas, 89% se concentra na Suécia, especialmente na província de Uppland. Somente na Suécia estima-se que haja 2.500 pedras rúnicas, na Dinamarca identificou-se 250 monumentos e cerca de 50 na Noruega. As demais pedras estão espalhadas por outros territórios visitados ou ocupados pelos nórdicos (PRICE, 2015, p. 367).

Mapa da Escandinávia com a concentração das principais pedras rúnicas. Os pontos e as áreas em preto são as regiões com mais destes monumentos. A maioria situado em Uppland na Suécia. 

As pedras rúnicas mais antigas foram encontradas na Dinamarca, datando por volta do século V d.C.  No mesmo período já se encontrava pedras gravadas em Gotland. As pedras rúnicas da Dinamarca faziam uso do Antigo Futhark até o século IX, quando se passou a adotar o Novo Futhark (SAWYER, 2006, p. 7-10). Sendo que muitos desses monumentos foram erguidos durante a Era Viking (VIII-XI), o que seria resultado da expansão do poder político e econômico de monarcas, nobres, ricos fazendeiros e comerciantes que aproveitaram as expedições, invasões, saques, guerras e colonização daquela época (PRICE, 2015, p. 368).

A origem das pedras rúnicas e das pedras gravadas ainda é debatida, não se sabe exatamente se seriam originárias de conceitos internos ou teriam sofrido influências externas de povos vizinhos como os germânicos. Todavia, o arqueólogo Sune Lindqvist (1887-1976), defendia a tese de que tais monumentos poderiam ter sido influenciados pela arte tumular dos romanos, que foi absorvida pelos germânicos e gauleses, e levada ao norte da Europa. A hipótese de Lindqvist embora criticada em alguns aspectos, foi nos anos seguintes sendo sustentada com novas evidências (VARENIUS, 2012, p. 48).

Nylén e Lamm (2007, p. 27), baseando-se na tese proposta por Lindqvist e defendida por outros arqueólogos, eles sugeriram que através desse contato com a cultura romana entre os séculos III e V, isso teria proporcionado que os gotlandeses tivessem sido os primeiros escandinavos a darem origem a tradição de erguer pedras para fins de homenagem, tradição essa que se espalhou pela Suécia, chegando a Dinamarca e  Noruega com menor influência. As pedras erguidas em Gotland e no sul da Dinamarca apresentam algumas semelhanças com tumbas romanas.

Em geral as pedras rúnicas apresentam um uso memorialista, seja para enaltecer os feitos de alguém vivo ou uma homenagem póstuma. A maior parte das homenagens eram concedidas a homens (maridos, pais e filhos), por seus familiares (esposas e filhos), mas há casos de mulheres que foram homenageadas, especialmente esposas, mães e filhas. Estes monumentos não consistiam em túmulos como foi sugerido no passado, mas seriam monumentos memorialistas, e em alguns casos, poderia se considerar que possam ser cenotáfios pela condição de terem sido erguidos para prestar homenagem aos mortos, incluindo o direito de a família dedicar um epitáfio ao falecido.

Essa dedicação de epitáfios entre os nórdicos é bem perceptível pela condição de que muitas pedras rúnicas possuem o nome dos homenageados, dos familiares e em alguns casos informam algum feito do morto, como tendo viajado para terras distantes, morrido em batalha, conquistado fama, assumido cargo importante na política local etc. Em outros exemplos tais informações não existem, apenas se diz que os parentes erguiam aquele monumento em memória de um ente querido que faleceu, e nesse ponto há casos de até mesmo citar-se o nome do escultor ou mestre de runas que fez aquele monumento.

Muitas das pedras rúnicas com epitáfios cristãos, datam do século XI, estando situadas na Suécia, apesar que como visto anteriormente, tratava-se de um território ainda não unificado e em processo de conversão. No caso das pedras rúnicas que contém epitáfios cristãos o uso desses textos também adotava um valor religioso, pois evocava-se o nome de Deus, e as vezes de Maria, Jesus e mais raramente de algum santo ou dos anjos, pedindo que estes guardassem a alma do falecido.

Entretanto não bastava apenas destacar os feitos e a memória de alguém nesses monumentos, através de epitáfios ou imagens, era preciso que tais monumentos pudessem ser vistos pela comunidade. Estes monumentos eram erguidos em distintas localidades como à beira de estradas, campos, pontes, cemitérios e terrenos de igreja, pois tratava-se de lugares nos quais havia a circulação de pessoas, permitindo que a população local tivesse contato com tais monumentos. Embora grande parte da população nórdica fosse iletrada, ainda assim, apenas o ato de visualizar tais monumentos já se fazia importante para a memória do homenageado. Além da condição de que estamos nos referindo a comunidades com algumas centenas de pessoas, o que favorecia que a população conhecesse uns aos outros, e pudesse identificar determinadas pedras como pertencentes a membros de certa família (MARJOLEIN, 2013, p. 3-4).

A pedra U 629 em Grynsta backe, município de Sigtuna, na Suécia. Datada de meados do século XI, esse monumento foi feito a pedido de dois filhos para se homenagear seu pai que era cristão. A pedra fica situada diante de uma antiga estrada que conduz ao fiorde de Sigtuna. 

Embora a função desses monumentos fosse prestar homenagem aos vivos e mortos, Alain Marez (2007, p. 279-281) escreveu que as informações contidas em algumas dessas pedras nos permite conhecer um pouco mais sobre a história nórdica da Era Viking. Alguns desses monumentos informam que o falecido morreu em viagem a terras distantes. Logo, temos relatos de viajantes que faleceram na Inglaterra, Lombardia, Império Bizantino e até no Oriente Médio, como no caso da jornada de Ingvar, o Viajante, que liderou uma expedição ao Mar Cáspio.

Outra importância que Marez destaca é a condição de algumas pedras apresentarem informações políticas. A mais famosa é a DR 42 Jelling 2, na Dinamarca, erguida pelo rei Haroldo Dente Azul (c. 935-986). Nesse monumento está escrito uma homenagem aos pais de Haroldo, Gorm e Thyra, além de informar que Haroldo era rei da Dinamarca e da Noruega. Nota-se que o monumento apresenta a função de ser memorialista, mas também de ser propagandístico por exaltar os feitos do monarca. 

A face com runas da pedra rúnica DR 42 Jelling 2, situada na Dinamarca, e erigida por ordem do rei Haroldo Dente Azul. A pedra possui outras imagens na parte de traz, mostrando uma serpente e um leão, e Jesus Cristo crucificado. A Jelling 2 consiste em uma das pedras rúnicas mais famosas, tendo servido de modelo para os estilos posteriores.

Embora sejam monumentos antigos, cujos primeiros começaram a serem erguidos no século V, somente no século XI ocorreu o auge desse tipo de monumento, tendo se feito mais de 70% dessas pedras, principalmente em determinadas regiões suecas como Uppland, Södermandland e Gotland. Localidades prósperas devido a agricultura, pecuária e o comércio regional e até internacional, especialmente em Gotland onde chegavam produtos vindos do sul da Europa e até do Oriente Médio através do Império Bizantino. Logo, para muitos historiadores essa prosperidade econômica foi essencial para que houvesse uma grande difusão desses monumentos, embora não se saiba qual seria o custo do mesmos.

Não obstante, o uso de pedras rúnicas coexistiu mesmo com a condição de haver nórdicos cristãos, fato esse que há muitas pedras contendo cruzes e até epitáfios citando o nome de Deus, Jesus e Maria. Porém, com o fim da Era Viking (VIII-XI) e o início da Idade Média Nórdica (XII-XV), a qual foi marcada pela consolidação dos reinos cristãos da Suécia, Dinamarca e Noruega, o uso de pedras rúnicas foi sendo abandonado no século XII. A população começou a adotar outras formas memorialistas como inscrições latinas ou rúnicas em lápides ou túmulos, os quais exibiam em geral cruzes ou alguma ornamentação geométrica ou de entrelaçamento. O fim da Era Viking marcou o fim das pedras rúnicas e das pedras gravadas. 

Referências bibliográficas: 
JANSSON, Sven B. F. Runes in Sweden. Translation by Peter Foote. 2. ed. Värnamo: Gidlunds/Royal Academy of Letters, History and Antiquities, 1987. 
MAREZ, Alain. Anthologie Runique. Paris: Les Belles Lettres, 2007. (Classiques du Nord).
MARJOLEIN, Stern. Runestone image and visual communication in Viking Age Scandinavia. 2013. 405f. PhD Thesis (Doctor of Philosophy) – University of Nottingham, 2013.
NYLÉN, Erik; LAMM, Jan Peder. Les pierres gravées de Gotland: aux sources de la sacralité Viking. Trad. Denise Bernard-Folliot. Paris: Éditions Michel de Maulf, 2007.
OEHRL, Sigmund. Documenting and interpreting the picture stones of Gotland: Old Problems and New Approaches. Current Swedish Archeology, vol. 25, 2017, p. 87-122.
PAGE, Raymond I. An Introduction English Runes. London: Boydell e Brewer Ltd, 1999.
PRICE, T. Douglas. Ancient Scandinavia. Oxford: Oxford University Press, 2015.
SAWYER, Birgit. The Viking-age rune-stones: custom and commemoration in early medieval Scandinavia. Oxford: Oxford University Press, 2000.
VARENIUS, Björn. Pictures Stones as an Opening to Iron Age Society. In: KERNELL, Maria Herlin (ed.). Gotland’s Pictures Stones: Bearers of an Enigmatic Legacy. Gotland: Gotländskt Arkiv, 2012.

LINK:
Runas e Pedras Rúnicas: guia visual

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Olhos de Vidro: a origem do óculos

Atualmente o uso de óculos é muito comum em vários países do mundo e seu uso aumentou no último século devido principalmente a três fatores: as melhorias nos exames oftalmológicos para detectar problemas como miopia, astigmatismo e hipermetropia e a presbiopia; melhoria na tecnologia de fabricação de lentes corretivas; e, por fim, o estilo de vida atual, focado desde a década de 1980 a passar bastante tempo diante de televisores, computadores, celulares e outras telas que prejudicam a visão. No entanto, antes do século XIX o uso de óculos não era rotineiro e a Oftalmologia ainda estava se desenvolvendo. Porém, a invenção do óculos é bem mais antiga, datando de séculos atrás. 

O uso de lentes: 

O uso de lentes para alterar a forma como enxergamos a realidade é bem antigo. Gregos, egípcios, persas, chineses, povos mesopotâmicos etc. em dado momento desenvolveram de forma simples lentes grosseiramente fabricadas geralmente a partir de cristais ou de vidro, as quais permitiam alterar-se a forma como se enxergava o mundo através delas. Algumas lentes devido a espessura, a forma como foi cortada, lixada ou a sua pureza, poderia fazer as coisas ficarem mais próximas ou mais longes, distorcer suas formas, alterar sua coloração etc. (CHASSOT, 2002; ROSA, 2012).

Por sua vez, os gregos e chineses saíram na frente na confecção de lentes convexas e côncavas, sendo utilizadas como espelhos, ou para refletir a luz do sol, ou para aproximar ou distanciar os objetos. Todavia, o uso dessas lentes não foi algo regular, sendo utilizado as vezes apenas por curiosidade ou diversão. Em alguns casos aplicou-se o uso de lentes de aumento para trabalhos artesanais ou de joalheria que requer o manuseio de objetos pequenos. (RONAN, 1983, p. 171, 254).  

No final da Antiguidade (I-IV d.C) e na Alta Idade Média (V-X d.C) há relatos gregos, romanos, persas, egípcios, chineses, árabes do uso do que seriam "lentes de aumento" ou "lentes de leitura", que consistiam em tipos de lupa. Havendo até tentativas de criar suportes para prendê-las a cabeça, deixando assim as mãos livres para o trabalho. (RONAN, 1983, p. 256). Entretanto, essas engenhocas não eram tão práticas, e ainda não eram os óculos que conhecemos. A invenção do óculos somente ocorreu muitos séculos depois. 

Surgimento dos óculos: 

Provavelmente o motivo que levou a criação dos óculos tenha sido por questão de leitura. Sua invenção ocorreu na Itália em data não precisa, por um artesão cujo nome foi esquecido na História. 


“No vale do Arno, na Itália, entre 1280 e 1285, seriam criadas as primeiras lentes de correção da visão; eram lentes esféricas, com técnica de fabricação e de polimento do vidro ainda bastante precária, mas já um progresso significativo que tenderia a se aperfeiçoar com o tempo, tornando-se da maior importância para o desenvolvimento futuro da Ciência e para o bem-estar e o conforto do Homem”. (ROSA, 2012, p. 342).

Sobre a invenção do óculos, alguns eruditos italianos Giordano de Pisa (1260-1311) e Francesco Petrarca (1304-1374) escreveram a respeito do uso dos óculos. Giordano escreveu cerca de vinte ano depois da invenção do óculos, dizendo que era um invento extraordinário de grande ajuda para os homens, pois até então para se ler melhor os textos, fazia-se uso de pedras de leitura, que basicamente eram lentes translúcidas feitas de cristal de quartzo ou vidro, que ampliavam as letras. Em muitos casos essas pedras não possuíam nem hastes como lupas, o que atrasava a leitura e era um empecilho na hora da escrita. Por isso que Giordano considerava uma maravilha o fato de dispor do óculos. Por sua vez, Petrarca também mencionou o uso dos óculos, mas com menor entusiasmo. Ele já na velhice relata que começou a usá-los ao que parece, a contragosto, pois sua visão era ruim na época. Mas usando-os ele conseguia enxergar bem melhor. (FRUGONI, 2007, p. 9-10).

Um dos motivos pelo qual Petrarca relutou a usar óculos devia-se a condição que naquele tempo eles não possuíam hastes, ficando equilibrados sobre o nariz, e alguns casos era algo desconfortável quando se passava horas usando-os. Alguns homens optavam em segurar o óculos ao invés de equilibrá-los no nariz. Além de que esteticamente era coisas feias como alguns achavam naquele tempo.

Uma reconstituição de um óculos medieval do século XIV. 
Um dos amigos de Giordano de Pisa, o frei Alessandro della Spina (?-1313) diz ter aprendido a arte de fabricar óculos. Não se sabe como e com quem ele aprendeu isso, porém, por algum tempo lhe foi creditado erroneamente a autoria desse invento. Essa defesa foi sustentada por longos anos pelo físico e naturalista Francesco Radi (1626-1697), que mais tarde descobriu-se que havia adulterado informações sobre della Spina. Por sua vez, sendo desmascarado, ele escreveu que o inventor do óculos poderia ter sido um artesão florentino chamado Salvino D'Armati (?-1317). Inclusive alguns estudiosos compraram essa ideia na época. Todavia, sabe-se que nem Spina e nem D'Armati inventaram o óculos, embora soubessem fabricá-lo. (FRUGONI, 2007, p. 10). 

De qualquer forma, a produção de óculos começou a despontar ainda no século XIV, havendo relatos que em Veneza foram criadas leis para se combater a falsificação de lentes. Na época, a ilha de Murano no arquipélago veneziano era a principal produtora de vidro, espelhos e lentes. Documentos relatam que "lentes para visão" como as vezes eram referidos os óculos, já eram feitos ali. Mas era requisitada autorização para isso, pela condição que tais lentes não eram feitas de vidro, mas de cristal. (FRUGONI, 2007, p. 15).

Entretanto, os primeiros óculos faziam uso de lentes para aqueles que possuíam problemas com hipermetropia, ou seja, dificuldade de enxergar de perto. Lembrando que em geral os óculos eram artigos caros e geralmente usados para leitura e escrita, e em alguns casos para determinadas práticas artesanais. Com isso, as pessoas que faziam uso de óculos o recorriam para enxergar melhor coisas pequenas como letras. Apenas um século depois é que foram criadas lentes côncavas para auxiliar na miopia (dificuldade de enxergar o que está longe). Graças ao clérigo e erudito Nicolau de Cusa (1401-1464) entre seus estudos sobre óptica, ele confeccionou lentes para óculos que permitissem enxergar de forma mais nítida o que estava a distância. Não se tratavam de lentes telescópicas como alguns sugeriram, mas lentes corretivas que auxiliavam na miopia, embora que naquele tempo não se sabia o que era esse problema. (ROSA, 2012, p. 397-398).

Óculos como símbolo de intelectualidade

No século XV os óculos ganharam um status de simbolizar a intelectualidade. Fato esse que data desse período pinturas retratando em geral clérigos ou santos os quais aparecem utilizando óculos, o que lhes concedia uma imagem de erudição. Sobre isso, Frugoni (2007, p. 19) relata que nessa época encontramos escritos de São Bernardino de Siena, elogiando a funcionalidade de seus óculos. Em algumas pinturas ele aparece usando-os ou carregando-os. O pintor Giovanni di Paolo retratou Santo Agostinho usando óculos, mesmo que ele tivesse vivido vários séculos antes do invento ser criado. Até mesmo São Lucas Evangelista ganhou um par de óculos naquela época, em uma pintura francesa. 


O Apóstolo de Óculos. Conrad von Soest, 1403. 
A ideia de intelectualidade dos óculos se mantém até os dias de hoje, apesar de ter perdido grande parte de sua referência devido a popularização desse acessório, ao ponto que algumas pessoas chegam a usar óculos porque acham bonito. Embora existam aquelas pessoas que não gostem de usar óculos, por acharem que sejam algo feio, incomodante. Em alguns casos os óculos também estão associados aos estereótipo do nerd, do professor abestalhado, do cientista maluco etc. 

Óculos como artigo de luxo

No entanto, não data de hoje o uso de óculos para fins estéticos. Ainda no século XV, alguns ourives de Pisa começaram a confeccionar óculos com lentes coloridas. Na prática não tinha muita utilidade isso, mas foi vendido por algum tempo como artigo de luxo, sendo retomado eventualmente nos séculos seguintes. (FRUGONI, 2007, p. 17).

Até o final do século XVII o uso de óculos sem hastes manteve-se. Em alguns casos, usavam-se cordas, barbantes, correntinhas para prendê-los nas orelhas ou atrás da cabeça. Alguns modelos também traziam uma haste para serem segurados temporariamente para se ler ou ver algo brevemente. Esses modelos com uma haste apenas, começaram a surgir no século XIX, popularizando-se entre os ricos. Fato esse que os próprios monóculos vão surgir no século XIX como um artigo de luxo, algo visível em alguns filmes que retratam a época, onde vemos homens ricos trajando ternos e cartolas, e usando monóculos. 

Um modelo de óculos Lorgnette do século XIX. 
Data de entre os séculos XVI e XVIII a criação de óculos cuja armação não era mais feita de madeira, mas passava a ser feita de metal, incluindo exemplares luxuosos, folheados em prata ou ouro. Também encontram-se óculos com acabamento artesanal, o que revela que o objeto havia tornado-se um artigo de luxo em alguns casos. Por outro lado, o uso de óculos com hastes começou a se normalizar, além de se criar no século XIX as lentes bifocais, as quais alguns sugerem que Benjamin Franklin (1705-1790) as teria inventado no século anterior, pois ele tinha problemas para enxergar de longe e perto. 

Benjamin Franklin usando óculos. David Martin, 1767. 
O uso de óculos para fins estéticos se mantém até hoje, algo alavancado durante o século XX. Porém, data também deste século a consolidação da Oftalmologia e a preocupação de se usar óculos para corrigir problemas oculares. 

Referências bibliográficas: 
CHASSOT, Attico. A ciência através dos tempos. São Paulo, Moderna, 2002. 
FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, Zahar, 2007. 
RONAN, Colin A. The Cambridge Illustrated History of the Science. Cambridge, Cambridge University Press, 1983. 
ROSA, Carlos Augusto de Proença. História da Ciência, vol. 1. Da Antiguidade ao Renascimento Científico. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2012. 4v 




quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Penny Bloods: definição, história e trajetória

O seguinte texto consiste no capítulo 1 da dissertação de mestrado intitulada Penny Bloods: o horror urbano na ficção de massa vitoriana (2015), escrita por Karina dos Santos Salles. Os interessados pelo restante do trabalho dela, podem buscá-lo na internet. Não obstante, sublinho que neste capítulo a autora somente fez uso de duas gravuras, mas para fins de ilustração, tomei a liberdade de colocar outras imagens para tornar as menções no texto mais claras. 

***

Em uma palestra realizada no dia 14 de outubro de 2013 em Londres pela The Reading Agency, uma organização de incentivo à leitura, Neil Gaiman, escritor britânico, discorreu sobre a importância da leitura. Dentre os diversos tópicos relacionados ao tema, ele destacou a função das bibliotecas como cultivadoras do hábito de ler, a responsabilidade dos cidadãos de exercerem tal atividade como parte da formação do indivíduo e da valorização do conhecimento, e a necessidade de ler ficção. De acordo com ele,

“A ficção tem dois usos. Primeiro, ela é uma porta de entrada à leitura. O desejo de saber o que vem depois, virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja difícil, porque alguém está com problemas e você precisa saber como tudo vai terminar... esse é um desejo muito real. E isso te impele a aprender palavras novas, ter pensamentos novos, prosseguir. Descobrir que ler por si só é prazeroso. Uma vez que aprenda isso, você está a um passo para ler tudo. E ler é fundamental. […] E a segunda coisa que a ficção faz é criar empatia. Quando você assiste à TV ou a um filme, está vendo coisas acontecendo com outras pessoas. A ficção em prosa é algo que se constrói com 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você, sozinho, usando sua imaginação, cria um mundo, povoa-o, olha para ele com outros olhos. Você consegue sentir coisas, visitar lugares e mundos que nunca conheceria de outra forma. Você aprende que todo mundo ali é um eu também. Você está sendo outra pessoa e, quando voltar para o seu próprio mundo, estará ligeiramente mudado”.4

Sendo um autor de ficção que escreve tanto para o público adulto quanto para o infantil, Gaiman ressalta que os adultos têm participação significativa no despertar de interesse das crianças pela leitura, mas que devem deixá-las lerem livros de que elas gostem, sem censuras ou imposição de gostos pessoais. Para ele, não há livros, autores ou gêneros ruins para crianças, e persistir nessa ideia pode ter um efeito contrário ao desejado:

“Adultos bem intencionados podem destruir o amor de uma criança pela leitura: proíba-a de ler o que ela gosta ou dê-lhe um livro digno porém sem graça do qual você gosta, os equivalentes do século XXI à literatura “edificante” da era vitoriana. Você terá uma geração convencida de que ler é chato e, pior, desagradável”.5

O discurso de Gaiman como um todo, inserido como está no escopo do trabalho realizado por instituições como a The Reading Agency, é bastante representativo das questões que ainda hoje se fazem pertinentes acerca da leitura. A sociedade contemporânea atribui um grande valor educativo e cultural à atividade: ler significa não só adquirir conhecimento e desenvolver senso crítico, mas também deixar a imaginação fluir e se permitir um prazer; e para leitores assíduos, ler assume uma função ainda mais importante, que é a prática do cultivo de si. Entretanto, existem certas preocupações com o futuro e o “uso” que se faz da leitura. Muitas pessoas acreditam que o hábito esteja se perdendo por conta da variedade de “distrações tecnológicas” que nos cerca. Outras, por sua vez, lamentam a qualidade de conteúdo de certos livros, sobretudo de ficção, criticando o escapismo proporcionado por eles ou simplesmente rotulando-os como literatura de mau gosto.

A suposição de que o prestígio atual da literatura estaria ameaçado pela circulação de livros “ruins” revela um grande anacronismo, uma vez que se reproduz numa época em que a ficção ocupa um espaço enorme na cultura (não só através de livros, mas também de filmes, peças de teatro e jogos eletrônicos), e representa uma visão vitoriana de que a literatura “boa” é necessariamente “edificante”, conforme sugerido por Gaiman.

Polêmicas à parte, a leitura de ficção hoje é vista como uma atividade corriqueira e até mesmo benéfica para a imaginação, mas ela já foi considerada um hábito prejudicial ao bom senso dos leitores em um passado não muito distante na Inglaterra. Essa ideia ganhou muita força da metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX, período em que o romance se consolidou como forma literária, e surgiu como uma reação hostil à própria configuração do gênero: não sendo clássico, nem poesia e nem história, o romance não podia ser considerado uma forma legítima de discurso;6 não sendo visto como uma fonte de instrução, ele foi reduzido a um entretenimento frívolo e deteriorante, pois, acreditava-se, distorcia a realidade e feria valores morais com seu retrato exageradamente sentimental da vida, formando, assim, leitores iludidos e distraídos.7

À medida que se popularizava, o romance assimilou temas e estilos diversos, ramificando-se em subgêneros que disseminavam histórias sobre crimes, horror e escândalos, o que só fez aumentar o pânico moral na sociedade em relação à leitura de ficção. Um desses subgêneros ficou conhecido como penny blood, tendo surgido sob a forma de narrativas serializadas em periódicos semanais ou mensais publicados nas décadas de 1830 e 1840. Essas narrativas eram produzidas em larga escala por editores cujos escritórios se localizavam na Rua Fleet, o centro da imprensa inglesa, os mais proeminentes sendo Edward Lloyd, responsável pela publicação de títulos como Varney the Vampire, or the Feast of Blood (1845-1847) e The String of Pearls: A Romance (1846-1847), e G. W. M. Reynolds, autor de The Mysteries of London (1844-1846), Wagner the Wehr-Wolf (1846-1847) e The Mysteries of the Court of London (1848-1855).8 Por serem muito consumidas e apreciadas pela classe trabalhadora, essas narrativas eram tidas pela classe média vitoriana como um tipo de literatura barato e de mau gosto, que apelava para o prazer mórbido das massas em ver sangue9 e representava um entretenimento facilmente comercializável10 – daí o seu nome depreciativo, que deriva de “penny”, em referência ao valor que custavam, e “blood”, em alusão às cenas sangrentas contidas nelas.

Capa de Varney o Vampiro: ou o banquete de sangue. Edição de 1845. Um dos mais famosos penny blood do período. 
A penny blood constituiu um subgênero bastante vasto e rico do romance. As críticas direcionadas a ela na era vitoriana, no entanto, foram um dos fatores que mais contribuíram para que permanecesse no esquecimento por tanto tempo. Muito dessa hostilidade se devia a um conflito de classes: a classe média, que, com a classe alta, compunha a maior parte do público leitor inglês até então, via a cultura impressa consumida pela classe trabalhadora como uma ameaça à sua posição ideológica dominante, visto que ela se expandia de maneira proporcional ao número de leitores recém-alfabetizados dessa classe. Além disso, levando-se em conta que a leitura de ficção seria uma atividade suspeita, “[e]xaminar o conteúdo e o teor de materiais de leitura se tornou [...] uma forma aparentemente simples de fazer uma investigação social”,11 conforme apontado por Kate Flint.

Ao passar pelo crivo da classe média, a penny blood foi tachada de literatura marginal por seu estilo “indevidamente melodramático e sensacionalista” para os padrões aceitos como “bons” e “respeitáveis” e pelas histórias “psicologicamente nocivas” aos leitores mais suscetíveis. A proposta deste capítulo, portanto, é resgatar um pouco de sua história, traçar suas principais características formais e temáticas e tratar de sua relevância como uma categoria da literatura vitoriana que deu origem ao que hoje se entende por ficção de massa.

1.1 Urbanização, alfabetização e o mercado editorial: três condições básicas

O surgimento da penny blood está significativamente ligado às transformações socioculturais pelas quais a sociedade vitoriana passou, desencadeadas por fatores maiores, principalmente políticos e econômicos, relativos à Revolução Industrial e ao imperialismo: este permitiu que a Inglaterra expandisse seu mercado consumidor para outros territórios, e aquela fez com que as grandes cidades se transformassem em centros urbanos industrializados.

O crescimento das cidades se deveu não só ao ritmo acelerado de industrialização e urbanização, mas também à grande migração de trabalhadores das áreas rurais para os centros urbanos em busca de emprego. A população aumentou consideravelmente: o número de habitantes subiu de 8,9 para 32,5 milhões em todo o país durante o século XIX;12 em 1851, 3,5 milhões deles moravam em Londres.13 Desse modo, a então maior capital do mundo se transformou em um labirinto de ruas, avenidas e estradas, bem como de praças, pequenos estabelecimentos comerciais e grandes fábricas. Alguns espaços eram mais nobres; outros, mais “modestos”, e neles transitavam pessoas de todas as classes sociais.
Gravura retratando como seria o aspecto de Londres por volta de 1850. Nessa época a cidade começou a crescer rapidamente.
Com a grande concentração de pessoas, não tardou para que a busca por entretenimento e informação também acontecesse. No período vitoriano, vários passatempos e formas de diversão surgiram para uma grande parcela da sociedade, tais como viagens (feitas nas ferrovias recém-construídas, onde um grande número de mercadorias e de pessoas circulava), turismo, teatros, salões de música, concertos, pubs e jardins.14 O acesso à informação, por sua vez, foi de extrema importância para que a sociedade pudesse discutir e procurar entender a série de mudanças que sofreu tão rapidamente:

“Entre a vasta coleção de bens e materiais produzidos durante o começo agressivo do industrialismo na Grã-Bretanha no início do período vitoriano, nenhum foi mais largamente disseminado, mais instrumental para a vida cotidiana e mais essencial para a formação da cultura industrial que a informação, pois junto com a grande mistura de coisas que parecia fluir descontroladamente das fábricas britânicas, um rio de conhecimento (e questões) sobre como o mundo funcionava percorreu cada aspecto da vida vitoriana. Os sinais externos mais notáveis de uma mudança material sem precedentes da era – máquinas a vapor, fábricas, ferrovias, urbanização – denotavam transformações ainda maiores na maneira como as pessoas pensavam e agiam. Noções sedimentadas sobre tudo, de gênero a nacionalismo, de classe a religião, de propriedade a biologia, estavam abertas a questionamentos. Até mesmo pressupostos sobre princípios básicos como espaço e tempo eram desafiados. As pessoas não só estavam vivendo de forma diferente; elas estavam pensando, falando, escrevendo e agindo de forma diferente. Elas estavam existindo de forma diferente”.15 (grifos no original)

No entanto, para que a população tivesse acesso a entretenimento e informação, era preciso um intermediador que lhe oferecesse meios para obtê-los, e quem cumpriu esse papel foi a educação. Na era vitoriana, a educação em massa passou a ser uma das prioridades do parlamento britânico, uma vez que validava a ideia expressa por reformistas liberais e industrialistas de que ela era “vital para a capacidade da nação em manter sua liderança em manufatura”16 e para tornar os trabalhadores mais produtivos e disciplinados.17

Além disso, educar a população refletia a ideia de que a educação e o conhecimento têm o poder de civilizar e igualar as pessoas, bem como capacitá-las para desafiar seus limites na vida, aproveitar seus talentos e adquirir conhecimento útil; acreditava-se que, com educação, elas circulavam e obtinham sucesso.18 O resultado disso foi o aumento dos índices de alfabetização da população, em especial os da classe trabalhadora, a partir da implementação da Lei da Educação Básica de 1870, que previa a construção de escolas nas áreas mais carentes, caso a provisão voluntária fosse insuficiente, por parte de Conselhos de Educação locais. Essas escolas em geral não ofereciam o currículo completo, mas pelo menos os alunos aprendiam a ler e a escrever razoavelmente. Estima-se que, no final do século XIX, 97,2% dos homens e 96,8% das mulheres da população britânica eram alfabetizados.19

O aumento da alfabetização fez com que o hábito da leitura se popularizasse não só como forma de acesso à informação, mas também como entretenimento. Essa “nova função” da leitura possibilitou certas mudanças na atividade editorial, que, no início do século, era um negócio mantido por um grupo seleto de editores e livreiros tradicionais. Livros costumavam ser artigos de luxo exclusivos para leitores ricos, que compravam romances novos dos poucos livreiros ou vendedores ambulantes espalhados pelo país ou faziam empréstimos de bibliotecas ambulantes locais, pagando assinaturas anuais caras.20 Torná-los produtos mais acessíveis e rentáveis dependeu de uma série de fatores, tais como a redução dos custos de produção de papel e de processos de impressão (o que permitiu uma escala de produção mais extensa), a construção de rodovias e a diminuição dos impostos sobre postagem (que facilitavam o transporte de mercadorias).21

A crescente demanda por ficção sinalizava boas oportunidades comerciais, mas também trazia riscos para empreendedores recém-estabelecidos no mercado, pois mesmo com custos de produção reduzidos, o investimento inicial que a atividade editorial demandava era alto.22 Em associação com escritores dispostos a publicarem seus textos, editores e livreiros desenvolveram um método de especulação que consistia em lançar romances de gêneros diversos e formatos de publicação específicos (o romance publicado em três volumes, como se costumava fazer na época, e as edições em brochura, comumente conhecidas como paperbacks e yellowbacks23, foram exemplos disso) e esperar para ver como o público em geral os receberia; caso os leitores se mostrassem inclinados a adquiri-los ou expressassem uma boa opinião sobre eles, esses romances e formatos eram mantidos e circulavam até que o índice de leitura e os lucros declinassem24 – o que indicava que o público havia começado a perder o interesse por eles.

Foi a partir de experiências como essas que os romances serializados começaram a ganhar cada vez mais espaço no mercado editorial. A serialização, além de ter se apresentado como uma alternativa mais acessível e barata ao romance publicado em três volumes, contribuiu para o estreitamento da interação entre autor e leitor: romancistas populares como Charles Dickens e Wilkie Collins, por exemplo, escreviam ao sabor das expectativas dos leitores em relação às suas histórias.25 A atitude desses e outros autores também indica uma tendência para a publicação de romances especializados, que atendiam às preferências de grupos distintos, sobretudo do público leitor emergente – a classe trabalhadora.

Frontispício de Oliver Twist (1838), escrito por Charles Dickens, na época usando o pseudônimo de Boz. O livro é um dos mais famosos de Dickens e inicialmente foi lançado como romance seriado, dividido em três volumes. Dickens ao longo da carreira seguiu o formato de romances seriados, populares na época. 
A penny blood, portanto, foi resultado da confluência de três fatores básicos: a alfabetização em massa, o desenvolvimento do mercado editorial e a busca por entretenimento, compondo-se como um material de leitura intencionalmente voltado para a classe trabalhadora. De certa forma, seu surgimento reflete um desejo dessa camada da população de tomar parte na atividade de leitura, visto que, já naquela época, a literatura, em seu sentido mais amplo, era vista como um valor essencial pela sociedade; nos meios populares, entretanto, ela representava um domínio dificilmente acessível (provavelmente por uma questão de dificuldade de linguagem), e embora se atribuísse muita importância a ela enquanto atividade cultural, sua prática real ainda era limitada.26 Mas como ela dava conta de se enquadrar na capacidade linguística e ao mesmo tempo satisfazer os gostos de uma clientela tão vasta? Basicamente, expressando-se por meio de uma fórmula de linguagem simples e agregando temas e estilos que despertavam o interesse desse grande público.

1.2 A forma da penny blood

Embora tenha se desenvolvido como um subgênero do romance, seguindo então os padrões básicos dessa forma literária, a penny blood passou por algumas adaptações estruturais para atenderem ao seu público alvo. Em um artigo intitulado “The Physiology of ‘Penny Awfuls”, Walter Parke, crítico e humorista inglês que escrevia sob o pseudônimo “The London Hermit”, relata de maneira um tanto irônica como ele foi apresentado a esse subgênero do romance e descreve algumas de suas principais características, começando pelo formato e pelo tema:

Uma “Penny Awful” é, ao que parece, um folheto de oito ou dezesseis páginas que contém uma história contínua de caráter bastante sensacionalista e aventuresco, decorado com ilustrações dramáticas e até mesmo horripilantes e vendido pela pequena quantia de um penny por semana. A publicação continua na medida em que se possa garantir uma circulação lucrativa, tanto mantendo o interesse da história em si quanto pelo estímulo adicional de brindes na forma de ilustrações coloridas ou suplementos. Alguns adeptos o chamam de “Penny Dreadfuls”, mas “Awfuls” me parece de longe o termo mais expressivo27

Antes de prosseguir, porém, torna-se necessário esclarecer um ponto: afinal, penny awful, penny dreadful e penny blood são sinônimos ou designam três objetos diferentes cada um? Essa é uma questão importante, pois a concomitância desses termos gera bastante confusão e desacordo entre leigos e pesquisadores desse tipo de ficção, mas fornecer uma resposta a ela é uma tarefa complicada, pois envolve generalizações equivocadas e pontos de vista opostos. De maneira geral, penny blood se refere a uma determinada categoria de histórias populares, e penny dreadful (bem como o sinônimo penny awful) a outra; da mesma forma, a primeira constitui o objeto de estudo da presente dissertação, e a segunda, não.28 A causa de toda a confusão em torno dessas duas categorias está no fato de que as diferenças entre elas são sutis, mas ainda assim existentes.

Tal como foi dito anteriormente, as penny bloods circularam durante as décadas de 1830 e 1840 e tinham como seus principais difusores Edward Lloyd e G. W. M. Reynolds. Elas continham histórias serializadas de horror e de crime com um apelo marcadamente gótico (isso será abordado com mais detalhes na próxima seção) e eram destinadas sobretudo ao público adulto da classe trabalhadora; entretanto, à medida que o interesse desse público por elas diminuía e se voltava para os jornais dominicais e as revistas ilustradas semanais (que ofereciam mais conteúdo pelo mesmo preço), as penny bloods começaram a ser apropriadas pelos adolescentes recém-alfabetizados da classe trabalhadora como forma de entretenimento.29 

Essa transição de público leitor contribuiu para que editores como Edwin J. Brett e os irmãos George, William e Henry Emmett criassem um mercado de publicações específicas para a nova clientela juvenil, e assim surgiram as penny dreadfuls, histórias de crime e de violência com um tom mais aventuresco protagonizadas por bandidos, piratas, salteadores ou simplesmente jovens indisciplinados e rebeldes que vagueavam pelo submundo londrino – muitas vezes, esses personagens eram representados de forma heroica e romantizada, como se fossem movidos pela injustiça ou por uma razão mais nobre que o puro crime, e por isso, as narrativas que protagonizavam eram rechaçadas pela classe média como uma exaltação da vida criminosa.

Apreciadas sobretudo pelos garotos, elas foram publicadas durante as décadas de 1860 e 1870 e incluíam títulos como Black Bess; or, The Knight of the Road (1863-1868), Spring-heel’d Jack: The Terror of London (1863), The Wild Boys of London; or, The Children of the Night (1864-1866), entre outros. O termo penny dreadful, no entanto, entrou em uso somente na década de 1870, após ter sido cunhado pejorativamente por jornalistas e outros ideólogos culturais da classe média30 para designar qualquer tipo de ficção barata lida pela classe trabalhadora em geral, o que deu início à imprecisão relacionada a ele e ao termo penny blood.31 A partir dessas informações, vê-se que os elementos que distinguem essas duas categorias são a época de publicação, o público leitor, o editor e o estilo (enquanto os enredos da penny blood tendem para o horror gótico, os da penny dreadful tendem para a aventura).

Capa colorida de uma edição de Black Bess ou o Cavaleiro da Estrada (c. 1860), um dos mais populares penny dreadful da época. Voltada para o público juvenil-adulto, narra de forma romântica a história de um salteador de estradas. 
Por outro lado, ambas se assemelham no que diz respeito à forma e às sensações que causam no leitor, uma vez que a penny blood, tendo antecedido a penny dreadful, influiu no modo como esta floresceu. Voltando para o relato de Walter Parke, ele informa que a penny awful (aparentemente ele emprega esse termo de modo a englobar penny bloods e penny dreadfuls) segue uma fórmula especial, revelada a ele por um escritor (que é fictício) chamado O’Riginal:

“ela deve ser algo surpreendente, que faça com que [os leitores] esperem pelo próximo número, mesmo que você tenha que interromper um capítulo no meio para que ele caiba. Não importa qual seja o enredo, ou que você realmente tenha algum, desde que os incidentes sejam sensacionalistas e um ar de mistério seja jogado aqui e ali”.32

Por isso, O’Riginal lhe diz, nem todo escritor é capaz de produzir penny awfuls, pois como se trata de uma literatura comercial, é preciso ter habilidades especiais para escrevê-las com sucesso, tais como a construção inteligente e certa genialidade original.33 A maioria dos produtores de penny bloods (e de penny dreadfuls) era composta por hack writers, escritores profissionais que produziam histórias de “baixa qualidade” em prazos curtos e que eram pagos por palavra ou por linha; por isso, as narrativas costumavam ser extensas e levar anos para serem concluídas. Devido ao grande volume de trabalho, eles se dedicavam a várias séries simultaneamente, o que devia comprometer consideravelmente a “genialidade” da qual O’Riginal fala. Quanto a isso, E. S. Turner mostra que o texto das penny bloods (e das penny dreadfuls) nem sempre era construído de maneira inteligente:

“A tarefa de editar e revisar penny dreadfuls [e penny bloods] parecia ser realizada de maneira despreocupada. Não havia nenhuma tentativa de fazer com que uma parte terminasse em uma pausa lógica na narrativa. Raramente havia qualquer tentativa de construir um clímax, de modo a estimular o leitor a comprar o próximo número. [...] [G]eralmente, as partes frequentemente terminavam no meio de uma frase de explicação entediante e não havia “resumo do capítulo anterior” na parte seguinte. Não era raro que as ilustrações remetessem à parte anterior ou à seguinte; às vezes elas nem se relacionavam à história. Erros de ortografia eram quase tão abundantes quantos os de gramática, que eram muitos. [...] A simplicidade extrema de estilo passou a ser cultivada gradualmente – aquele estilo de frases curtas em pizzicato [...] Os escritores da velha guarda desprezam essa adulteração literária, apontando que algumas colunas da narrativa continham mais espaços em branco do que escritos. Cada parágrafo consistia em uma frase única, e cinco de seis frases eram bruscamente interrompidas. Um bom número de frases, de fato, continha um substantivo, um verbo e mais nada. Às vezes não tinham nem verbo. Todas as afetações, tais como dois pontos e ponto e vírgula, eram cruelmente removidas, mas os pontos de exclamação eram utilizados em grande quantidade. A simplificação – presumivelmente em benefício do público recém-alfabetizado e não (como alguns afirmavam) para a conveniência dos autores recém-alfabetizados – era levada a um nível sem precedentes. Duas possibilidades se apresentam: que o estilo de frases curtas era uma economia de esforço deliberada dos escritores que ganhavam consideravelmente menos de um penny por linha; e que às vezes a brevidade extrema dos parágrafos pode ser sido um recurso editorial desesperado de alongar uma cópia que ficou muito curta para o espaço alocado”.34

Conforme indicado no início desta seção, o artigo de Parke é pontuado de ironia, funcionando dessa forma como uma crítica às penny awfuls, como prefere chamá-las. Ele aponta, por exemplo, para os “efeitos indesejados” da leitura desse tipo de ficção, cuja tendência moral gerava objeções porque as histórias continham cenas, incidentes e insinuações licenciosas ocasionalmente; de acordo com ele, isso as tornava um tipo de literatura “simplesmente absurda e pueril para leitores adultos de inteligência mediana” (nesse caso, as penny bloods, que atendiam ao público adulto) e “potencialmente perigosa nas mãos da juventude pouco instruída” (as penny dreadfuls e seu público juvenil), uma vez que incentivava o desrespeito à lei, à ordem e aos deveres do dia a dia, fomentava expectativas vãs e noções falsas da vida e mostrava imagens inverossímeis e sem o refinamento do romance poético.35

Por fim, ele conclui seu relato com uma solução para o “problema” apresentado pelas penny awfuls (e penny bloods): "se não há como bani-las por lei, e se não se pode pôr toda a culpa em seus autores, que trabalham para viver e que escrevem desse modo para se adaptarem ao seu mercado-alvo, nem em seus editores, pois a literatura em geral vinha sendo tratada como um comércio e não seria razoável esperar que as classes mais baixas de comerciantes literários tivessem escrúpulos, e muito menos em seus leitores por seu mau gosto, já que tinham sido apresentados somente a esse tipo de literatura, a solução que resta é a disseminação da educação, não só em termos de utilidade e intelecto, mas também de imaginação – como um escritor com habilidade e genialidade verdadeiras para escrever para as massas sem recorrer ao horror, ao crime e às sensações, mas, em vez disso, combinar o fascínio das penny awfuls com o estímulo à imaginação de maneira saudável e apresentando um propósito moral".36

A penny blood, portanto, é um tipo de ficção que possui uma forma específica, com uma linguagem mais simples, de modo a tornar a leitura mais fácil para seu público alvo; essa adequação, porém, contribuiu para que ela fosse tachada de um tipo de literatura “inferior”, sem mencionar os temas e os enredos comuns a ela, que envolviam crimes sangrentos e cenas permeadas de horror.

1.3 Crime, escândalo, horror e a formação do gótico urbano

Apesar de constituir um subgênero específico, a penny blood se configurou como um emaranhado de subgêneros do romance, visto que apresentava características de formas diversas. A maioria dessas influências vinha de outros subgêneros que se tornaram populares mais ou menos na mesma época em que as penny bloods surgiram, tais como o romance de Newgate e o romance sensacionalista, enquanto outras pertenciam a fontes anteriores, como o broadside e o romance gótico.

O broadside era uma espécie de panfleto muito difundido do século XVI ao XIX que continha relatos de crimes, julgamentos, execuções e as supostas confissões de criminosos condenados, geralmente acompanhados por uma ilustração do texto, e custava apenas um penny.37 Era vendido durante execuções públicas, eventos que, por mais chocantes e repulsivos que fossem, atraíam um grande número de espectadores. De fato, os vitorianos mantinham um fascínio mórbido por sangue e violência que sobreviveu até mesmo à proibição das execuções em 1868: o prazer de assistir à morte dos condenados foi revertido para a leitura de histórias com uma boa dose de crime e de tortura.

Além do próprio broadside, havia o Newgate Calendar, inicialmente um boletim mensal de execuções publicado em 1773 pelo diretor da prisão de Newgate em Londres, que acabou se transformando em crônicas ilustradas descrevendo crimes terríveis e as punições violentas infligidas aos seus perpetradores. Essas narrativas eram usadas à guisa de exemplo moral para seus leitores, mostrando que havia uma punição severa para todo tipo de crime, mas o estilo sensacionalista delas, que conferia um tom de aventura e de espetáculo aos relatos, acabava sugerindo uma certa exaltação do crime e do criminoso.38

Edição de 1863 do Newgate Calendar. Esse boletim da prisão de Newgate, lançado no final do século XVIII acabou ganhando uma popularidade inesperada, sendo publicado por décadas é inspirando a origem de um subgênero literário, centrado em histórias de criminosos. 
O Newgate Calendar, por sua vez, deu origem ao romance de Newgate, um subgênero produzido nas mesmas décadas da penny blood. Seus enredos geralmente se ambientavam no mundo do crime e se concentravam na vida de ladrões, salteadores e até assassinos. O primeiro romance de Newgate foi Paul Clifford (1830), de Edward Bulwer-Lytton, e, de acordo com F. S. Schwarzbach, se estabeleceu como um modelo para as obras inseridas nesse subgênero:

“Ambiente a história no século anterior; abra-a descrevendo um tempo incrivelmente ruim; apresente uma criança pobre que seja órfã ou algo equivalente; faça com que ela seja corrompida por uma vida de crimes; retrate vários covis e se possível um esconderijo dentro de uma caverna; salpique o diálogo com gírias chulas; acrescente uma reviravolta no enredo que envolva atos escusos cometidos pelos ricos (geralmente, sem que se saiba, um parente próximo do protagonista); e conclua com o personagem principal conseguindo, contra todas as probabilidades, demonstrar verdadeira nobreza, casar com uma herdeira e se redimir até a última página”.39

Alguns criminosos reais se tornavam protagonistas desses romances, como foi o caso de Dick Turpin, um salteador que se tornou uma lenda no século XVIII e foi morto em 1739, e de Jack Sheppard, um assaltante que foi preso várias vezes, fugiu na maioria delas e acabou sendo enforcado em 1724.40 Muitos críticos viam essa transferência de figuras históricas para a ficção como uma romantização do criminoso, principalmente quando havia um motivo psicológico para seus atos ou quando retratavam-no como uma vítima da sociedade,41 e acusavam seus autores de exaltarem outros comportamentos considerados tão imorais quanto o crime, como a prostituição.

O crime também estava presente no romance sensacionalista, inaugurado na década de 1860 pela obra The Woman in White (1860),42 de Wilkie Collins, embora não tenha sido seu tema central. Lyn Pykett descreve o romance sensacionalista da seguinte forma:

“[...] o gênero sensacionalista era um conceito jornalístico, um rótulo atribuído por críticos a romances cujas histórias se concentravam em atos criminosos ou transgressões sociais e paixões ilícitas e que “apelavam para os nervos” [...] Os romances sensacionalistas eram contos da vida moderna que tratavam de confrontos nervosos, psicológicos, sexuais e sociais e que tinham enredos complicados envolvendo bigamia, adultério, sedução, fraude, falsificação, chantagem, sequestro e, às vezes, assassinato”.43

Capa do romance Woman in White (1860), escrito por Wilkie Collins, tornou-se o precursor dos chamados "romances sensacionalistas", os quais abordavam temas sociais polêmicos ou tabus da época. 
O sensacionalismo atribuído a esse tipo de romance seguia uma fórmula básica: apresentar a corrupção e o escândalo como segredos da vida cotidiana de modo que, ao serem revelados por debaixo das aparências moldadas pela moral vitoriana, provocassem sensações diversas e intensas no público. Na vida real, esses tabus não eram discutidos abertamente, pois geravam grande ansiedade, mas quando transpostos para ficção, eram extrapolados de tal forma que, dizia-se, corrompiam o senso de realidade do leitor, sugerindo que a ficção era mais empolgante que a vida comum e levando-o a crer que o mau comportamento era excitante e atrativo. Uma das principais críticas feitas ao romance sensacionalista, porém, vinha do fato de que os enredos se voltavam para as vidas domésticas das classes média e alta, que foram tomadas de pânico moral ao se verem retratadas como classes essencialmente degradadas.44

O romance sensacionalista vitoriano devia muito ao romance gótico do final do século XVIII, principalmente por conta de suas narrativas chocantes e tensas. Havia, no entanto, uma diferença básica entre eles: se naquele a reação emocional do leitor aos escândalos era o choque moral, neste ela se traduzia em horror, que é uma reação de medo ao que é ameaçador e desconhecido, conforme sucintamente apontado por Jerrold E. Hogle:

“[...] uma história gótica geralmente se passa [...] em um espaço antiquado ou aparentemente antiquado – seja ele um castelo, um palácio exótico, uma abadia, uma prisão vasta, uma cripta subterrânea, um cemitério, uma fronteira ou uma ilha primitiva, uma casa velha e grande [...] Dentro desse espaço, ou uma combinação deles, escondem-se alguns segredos do passado (às vezes do passado recente) que assombram os personagens de maneira psicológica, física ou de alguma outra forma no tempo em que a história se passa. Essas assombrações podem tomar várias formas, mas frequentemente assumem as características de fantasmas, espectros ou monstros (que misturam peculiaridades de diferentes reinos, especialmente da vida e da morte) que surgem de dentro do espaço antiquado, ou às vezes o invadem partindo de um reino estranho, para manifestarem crimes não resolvidos ou conflitos que não podem mais fugir à vista efetivamente. É nesse nível que a ficção gótica geralmente oscila entre as leis terrenas da realidade convencional e as possibilidades do sobrenatural [...] levantando a possibilidade de que as fronteiras entre elas podem ter sido cruzadas, pelo menos psicologicamente, mas também fisicamente, ou ambos”.45

O horror se compunha ainda de outros elementos típicos, como o vilão e a donzela em perigo, mas suas características iam além desses símbolos: o gótico estava intimamente associado com um passado primitivo e bárbaro em contraposição a um presente civilizado, procurando definir-se como detentor dos valores deste e distanciar-se daquele. Estranhamente, contudo, o gótico identifica esse passado não civilizado como as fundações legítimas de uma cultura há muito perdidas, o qual, por isso, seria mais poderoso que o presente civilizado.

No século XVIII, o termo “gótico” estava relacionado aos godos, povos germânicos considerados bárbaros, mas que posteriormente serviu para se referir à herança nacional e cultural deixada por eles quando invadiram a Inglaterra no século V. Em consonância com essa visão de um passado não civilizado, porém vigoroso, o gótico passou a ser idealizado como uma das origens da nação britânica.46

O romance gótico teve influências claras na ficção produzida entre as décadas de 1830 e 1860, especialmente na penny blood, que já compartilhava elementos dominantes de outros subgêneros contemporâneos a ela, tais como a representação do submundo do crime herdada do romance de Newgate, o excesso e as transgressões da vida doméstica que se manifestam no romance sensacionalista e as cenas ocasionais de violência do broadside. Ao ser resgatado pela penny blood, porém, o estilo gótico tradicional sofreu um processo de domesticação, mesclando-se com o momento da Revolução Industrial e do desenvolvimento das cidades, e por isso ficou conhecido como o gótico vitoriano – ou gótico urbano, conforme será chamado ao longo desta dissertação. David Punter e Glennis Byron, em seu compêndio sobre o gótico, definem o estilo da seguinte forma:

“O gótico vitoriano é marcado principalmente pela domesticação de figuras, espaços e temas góticos: os horrores se localizam explicitamente dentro do mundo do leitor contemporâneo. O vilão romântico do gótico se transforma à medida que monges, ladrões e os ameaçadores aristocratas estrangeiros cedem lugar para criminosos, loucos e cientistas. As ambientações exóticas e históricas que servem para distanciar os horrores do mundo do leitor no gótico tradicional são substituídas por algo mais perturbadoramente familiar: o mundo doméstico burguês ou a nova paisagem urbana”.47

Outros elementos presentes no gótico tradicional que foram transfigurados para a nova realidade do século XIX incluem a donzela indefesa, que é constantemente perseguida e perturbada pelo vilão, mas que, no gótico urbano, se torna qualquer pessoa (ou todo um grupo) que simbolize a moral e a virtude; os castelos, que foram substituídos por prisões, manicômios e pelos labirintos claustrofóbicos da cidade; o horror que assola os personagens não é a aparição de um fantasma, mas sim o crime e a corrupção que se abrigam tanto no espaço público quanto no doméstico.

A partir dessa convergência de subgêneros, a penny blood acabou formando um estilo próprio: o gótico urbano, surgido em meio às transformações sociais e culturais pelas quais passou a sociedade vitoriana, procurou articular a nova ordem social capitalista48 com o discurso desse novo tipo de ficção popular, criando, assim, a evocação do horror característica do subgênero.

1.4 A penny blood e a inauguração da ficção de massa

A penny blood hoje é reconhecida por alguns críticos como uma das formas inauguradoras da ficção de massa, principalmente por conta de seu formato acessível e barato e de seu foco em um público leitor específico. Ao situarem as origens dessa categoria de ficção no século XIX, David Glover e Scott McCracken, por exemplo, argumentam que

“[...] é a aplicação das novas tecnologias da produção industrial à publicação, um mercado em expansão impulsionado pelo aumento da alfabetização e da urbanização, e a emergência de uma nova mídia comercial que, juntas, mudam definitivamente as condições nas quais a ficção popular é criada”.49

Nesse sentido, a penny blood foi fruto de uma intensa atividade comercial desenvolvida nesse período, que favoreceu especialmente o mercado de ficção em expansão, caracterizado sobretudo pela difusão em larga escala de jornais, revistas e periódicos cujo foco eram histórias e romances publicados em série; entretanto, esse era um campo que ainda gerava desconfiança entre os ideólogos culturais da época por representar um depauperamento e uma comercialização indesejada da literatura, que, nesse contexto, perderia seu valor artístico e se reduziria a um fabrico.

Em sua análise sobre o papel da literatura nos estudos culturais, Antony Easthope aponta para o fato de que o desenvolvimento da sociedade capitalista fez com que a cultura na Inglaterra se baseasse em distinções de classes sociais, tornando imperativo que a nova classe dominante se sobrepusesse por meio das ideias e também da necessidade econômica; por volta da década de 1830, a cultura se dividia entre a alta cultura da burguesia e a cultura popular da classe trabalhadora, e dessa forma, os valores “respeitáveis” da burguesia buscavam dominar a “vulgaridade” do povo.50 Segundo ele, os modos de produção do capitalismo foram fatores determinantes para essa divisão, pois “assim como o trabalhador se torna cada vez mais alienado da produção e impelido ao mero consumo no momento de lazer, a cultura popular se torna cada vez mais adaptada à produção de mercadorias”.51

Mas de que forma as penny bloods representariam essa comercialização da leitura?

Para começar, elas eram escritas por hack writers contratados que escreviam anonimamente ou sob pseudônimos. Muitos deles não aspiravam a uma carreira literária sólida, por isso viam sua ocupação apenas como uma forma de subsistência. O formato limitado das penny bloods era bastante “econômico”: cada número tinha poucas páginas, com o texto dividido em duas ou mais colunas e acompanhado de desenhos em xilogravura que ilustravam alguma cena dramática ou perigosa da história (que serviam principalmente para chamar a atenção dos leitores quando expostas). Além disso, elas eram encontradas não só em bancas de jornais, mas virtualmente em qualquer estabelecimento comercial, desde tabacarias e docerias até mercados de frutas e peixes.52

Todos esses aspectos reforçavam a ideia que se tinha desse subgênero como um produto vendido para uma clientela vasta e indefinida, criando, assim, um contraste direto com a noção de literatura como uma leitura edificante estabelecida pela cultura da classe média.

Quanto a seus leitores, são eles os elementos que mais fazem da penny blood uma publicação exclusivamente popular. Wilkie Collins se referiu a eles em um ensaio intitulado “The Unknown Public”, publicado em 1858 na revista semanal Household Words, editada por Charles Dickens. Ele afirmou que “os assinantes da revista, os clientes das distintas editoras, os membros de clubes de leitura e de bibliotecas ambulantes e os consumidores e leitores de jornais e resenhas” não compunham mais a maioria do público leitor na Inglaterra, mas sim “o público misterioso, incomensurável e universal de penny-novel Journals”,53 o qual ele dizia – e temia – não conhecer:

“Em primeiro lugar, quem são esses três milhões – o Público Desconhecido – como ousei chamá-los? O público leitor conhecido – a minoria à qual já me referi – pode ser facilmente descoberto e classificado. Há o público religioso, que tem livreiros e literatura próprios [...]. Há o público que lê pela informação, e se dedica a Histórias, Biografias, Ensaios, Tratados, Jornadas e Viagens. Há o público que lê pelo entretenimento, e frequenta Bibliotecas Ambulantes e as bancas de ferrovias. Há, finalmente, o público que lê apenas jornais. [...] Mas o que sabemos dessa maioria enorme e proscrita – das tribos literárias perdidas –, desses três milhões prodigiosos e esmagadores? Absolutamente nada”.54

De fato, a alfabetização em massa e o desenvolvimento do mercado editorial foram cruciais para o nascimento desse público leitor enorme e indefinido, promovendo uma espécie de “democratização” da leitura que representava um progresso na cultura e na educação. Entretanto, ela foi bastante criticada por uma parcela mais conservadora da sociedade vitoriana. Antes de tudo, havia o preconceito arraigado dos leitores das classes média e alta – o “público conhecido” – contra a literatura “barata”, cujo conteúdo “pernicioso” subvertia os padrões culturais vigentes, ao contrário da literatura encontrada nas coleções de luxo e na biblioteca ambulante de Mudie,55 por exemplo. Eles acreditavam que a alfabetização em massa havia capacitado as classes mais baixas para ler, mas não para distinguir a leitura “boa” da “ruim”, o que acabaria diluindo a qualidade da leitura, pois os leitores da classe trabalhadora – o “público desconhecido” – se limitariam a ler materiais de pouca profundidade.56

Por isso Collins concluiu, de maneira um tanto indulgente, que esse público mal tinha começado a aprender a ler, por conta de uma ignorância inerente à classe social à qual pertencia.57 Na verdade, ao distinguir o público leitor entre “conhecido/culto” e “desconhecido/inculto”, o que ele fez foi reproduzir uma segregação já existente relacionada à distinção entre textos validados como cânone literário e textos pertencentes à cultura popular: originalmente, a palavra “literatura” significava a forma da comunicação escrita em oposição à comunicação oral, dando origem à oposição entre alfabetização e analfabetismo;58 assim, para esse escritor, aparentemente, o “público conhecido”, que tinha acesso à literatura “legítima” do cânone, era bem-alfabetizado, e o “público desconhecido”, que não tinha acesso a ela, era praticamente analfabeto.

Além disso, presumia-se que a leitura, em vez de aumentar a produtividade e a disciplina dos trabalhadores, como se deduziu na época em que a alfabetização em massa foi instituída, geraria distração e preguiça (envolvidos pelas sensações e peripécias das histórias, eles usariam as horas de trabalho, deliberadamente ou não, para continuarem suas leituras em vez de se dedicarem a elas em seu tempo livre), bem como certo desrespeito à autoridade, no pior dos casos (pois muitas histórias narravam situações em que personagens “rebeldes” confrontavam a polícia e o magistrado diretamente).

Dados coletados na época mostram que, de fato, a alfabetização não representou uma melhoria significativa das condições de trabalho da classe trabalhadora (já que grande parte das funções exercidas pelos empregados não exigiam habilidade de leitura avançada), mas sim uma via de acesso ao entretenimento, visto que a maior parte dos usuários das poucas bibliotecas públicas existentes no país era composta de trabalhadores, que liam principalmente história e literatura em geral.59 Sobre esse aspecto, Jonathan Rose complementa:

“Na segunda metade do século, a renda [da classe trabalhadora] aumentou em 80-100 por cento, a carga horária diminuiu e [os trabalhadores] podiam comprar uma coleção cada vez maior de jornais e revistas baratos. Todos esses fatores – mais dinheiro, mais tempo, mais material impresso – tornaram ainda mais vantajoso aprender a ler. O aumento da alfabetização, assim, se deu mais pela demanda popular do que pela educação obrigatória [...]”.60

A preocupação demonstrada por Collins e por boa parte da sociedade com essa massa de leitores diz respeito principalmente ao gosto compartilhado por eles. Os “árbitros” dos padrões morais e culturais estavam sempre atentos às novas formas de cultura que emergiam da vida cotidiana da cidade, aprovando entusiasticamente algumas, especialmente aquelas que aspiravam a um status “respeitável”, e reprovando outras com dureza, ainda mais quando estas interessavam às classes mais baixas. Desse modo, a qualidade da penny blood era medida com base na classe social do leitor – que, para os padrões vitorianos, era o mesmo que medir seu nível moral – e em menor grau pelo seu valor literário. Quanto a essa crítica ao gosto popular, John Klancher observa:

“A produção da alta cultura invoca a linguagem da “recepção”, a troca simbólica de textos entre grandes escritores e leitores sensíveis e singulares. A produção da cultura de massa gera o vocabulário mais rude do “consumo”, a relação de oferta e demanda entre inúmeros escritores e públicos vastos e anônimos”.61

A diferença entre recepção e consumo proposta por Klancher está estreitamente relacionada à velha distinção entre o que é literatura e o que não é: conforme Easthope observa, a apreciação da arte e da literatura depende de uma minoria pequena (a elite), e é ela que mantém a tradição e a melhor “experiência humana” (isto é, as obras da literatura, que geram uma resposta pessoal genuína no leitor e que são produzidas por autores individuais e identificáveis) e que define os padrões do que é valioso e do que não é. Em suma, essa minoria é a detentora de uma cultura privilegiada, que se encontra em oposição direta à cultura da maioria (a civilização de massa) e seus textos (produzidos de maneira coletiva e comercial, eles são estereotipados, formulaicos e anônimos).62

Como se pode ver, a cultura – tomada aqui no sentido genérico do termo – sempre tende a ser definida por meio de oposições desproporcionais entre grupos sociais e suas ideologias, em que um, composto por um número limitado de pessoas que se proclamam “letradas” e “cultas”, se sobrepõe ao outro, formado por multidões tidas como “ignorantes” e “incultas”. Para as classes mais favorecidas da sociedade, essas oposições desempenham um papel de barreira e de nível, separando sua cultura “superior” de uma outra cultura, que é considerada marginal e “inferior”; para as classes mais populares, contudo, elas podem funcionar como expressão de uma vontade individual ou coletiva de que sua cultura se oponha deliberadamente à cultura dominante.63

Desse modo, tendo em vista que as penny bloods não se integram ao cânone, e consequentemente não se enquadram à “verdadeira literatura” – pelo menos de acordo com essa visão elitista e limitada sobre o que a literatura é –, elas podem ser consideradas como formas de uma contraliteratura.

Em seu estudo sobre esse importante fenômeno cultural, Bernard Mouralis afirma que a contraliteratura pode ser definida sob dois prismas: no plano da criação, ela surge “cada vez que aparece num autor – que este exista nominativamente ou anonimamente, individualmente ou colectivamente – ou, numa obra, uma recusa, mais ou menos caracterizada, de se inserir em modelos literários institucionalizados”; no plano estatístico – isto é, o da leitura – ela “permite ver que aquilo que é transmitido enquanto ‘literatura’ é apenas um sector muito limitado ao qual é sempre possível opor todo o resto da produção textual que não constitui o objeto de nenhuma transmissão oficial, mas cujo impacto no público é muitas vezes enorme”.64

Aplicando o conceito da contraliteratura à penny blood, pode-se ver que, de fato, ela se caracteriza como um modelo literário não institucionalizado, uma vez que é produzida por escritores não consagrados ou muitas vezes desconhecidos e difundida sob um formato de publicação não convencional – embora a serialização tenha se firmado como uma opção válida, o formato tradicional do romance continuava sendo a partição em três volumes; além disso, ela se propõe como um material de leitura bastante acessível e popular, ao contrário da literatura de prestígio, tendo um alcance de público muito maior. Mouralis argumenta, ainda, que os textos inseridos na contraliteratura, só pelo fato de existirem e poderem ser agrupados, revelam a arbitrariedade com que são excluídos da “literatura” e também questionam as premissas pelas quais esta se constrói.

Em primeiro lugar, eles recusam a noção de “obra literária”, isto é, uma peça da literatura celebrada como expressão artística elevada; em segundo lugar, eles se apresentam como textos sem autores, não porque estes sejam muitas vezes anônimos, mas porque a relação estabelecida entre texto e leitor não precisa ser mediada pela referência a um autor específico, o que transforma o texto em uma espécie de presença, e não um objeto de criação de um autor; finalmente, a linguagem empregada nesses textos também é diferente, mais trivial e menos ornamentada, reproduzindo ou não os estereótipos estilísticos da “literatura”.65

Em vista disso, a ideia que se tinha na era vitoriana de que a ficção de massa – na qual a penny blood se inclui – reduzia a literatura a um produto barato e de má qualidade parece um tanto exagerada: ainda que tenha se promovido no mercado editorial por uma relação de procura e oferta, ela não representou exatamente um depauperamento da literatura, mas sim o florescimento de uma produção textual diferente da que era propagada e favorecida pela cultura dominante.

Depois, o que os “árbitros” culturais não viam – pois não se davam ao trabalho de fazer uma leitura mais atenciosa e menos preconceituosa – é que, em vez de mostrar uma visão distorcida da realidade e de valores morais, tal como eles pensavam, os enredos comuns da penny blood indicavam certo conservadorismo. Assim como o romance popular, que se originou na França durante o século XIX e se difundiu especialmente sob a forma do folhetim, ela tende para um conformismo burguês, contribuindo para a defesa de ideias conservadoras, tais como a valorização da moral e a condenação dos desvios de comportamento (visíveis sobretudo na relação entre os heróis e os vilões das histórias, em que aqueles triunfam sobre esses, o que sugere que a virtude sempre se encontra do lado da ordem social), e, assim, traduzindo “os esforços desenvolvidos pela burguesia triunfante para consolidar as suas posições face a uma classe operária que se torna cada vez mais objecto de inquietação”, conforme Mouralis ressalta;66 além disso, novamente se assemelhando ao romance popular, ela desempenha uma função lírica, apresentando o leitor a um universo imaginário que se baseia em uma causalidade diferente da que rege o mundo “real” e expressando-se através da narração linear e de um elenco de personagens e um tipo de linguagem específicos, e também uma função de desvendamento do real, revelando a parte escondida da sociedade (o subterrâneo, o esgoto e a sociedade secreta são elementos recorrentes) e estabelecendo ligações ocultas entre os mundos “direito” e “avesso”.67

Esse conservadorismo da penny blood remete ao que Umberto Eco propõe como a estrutura da consolação observada na ficção de massa. De acordo com ele,

“[o] autor de um romance popular jamais encara problemas de criação em termos puramente estruturais (“Como fazer uma obra narrativa?”) mas em termos de psicologia social (“Que problemas é preciso resolver para construir uma obra narrativa destinada a um vasto público e visando a despertar o interesse das massas populares e a curiosidade das classes abastadas?”). Esta seria uma resposta possível: tomar uma realidade cotidiana existente, onde se voltam a encontrar os elementos de uma tensão não resolvida [...]; acrescentar um elemento resolutório em luta com a realidade inicial, e que se opõe a esta como solução imediata e consolatória das contradições iniciais. Se a realidade inicial for efetiva e não contiver, em si mesma, as condições que permitam resolver as oposições, o elemento resolutório deverá ser fantástico”.68

Esse elemento resolutório é geralmente personificado pelo herói, um indivíduo (ou um grupo de pessoas) que, movido pela bondade genuína e por um senso de justiça bastante forte, usa de todos os meios que estão ao seu alcance – alguns até um pouco fabulosos e forçados – para solucionar ou pelo menos remediar a tensão que se faz presente nessa realidade (esses detalhes ficarão mais claros nos capítulos seguintes através da análise das penny bloods selecionadas).

Eco ressalta que tanto a realidade quanto a resolução devem afetar o leitor, chamar sua atenção e tocar sua sensibilidade; para isso, o enredo tem que distribuir as informações de maneira inesperada, e para que o leitor se identifique com as personagens e as situações antes e depois da solução, seus elementos característicos têm que ser repetidos até que a identificação se torne possível em um processo contínuo de tensão e distensão.69

Através dessa repetição de informações e de soluções, que se encontram quase sempre submetidas às expectativas e aos desejos do leitor, além da prenunciação exaustiva do que está prestes a acontecer e do condicionamento das sensações,70 a ficção de massa acaba se conformando com a ordem vigente e se tornando consoladora: seu intuito é propor uma reforma na sociedade sem mudá-la completamente, pois se ela mudasse, “o leitor não se reconheceria nela, e a solução, em si fantástica, parecer-lhe-ia inverossímil ou, em todo caso, o impediria de experimentar um sentimento de participação”.71

Nesse sentido, a penny blood não constituía efetivamente uma arma subversora que fazia as massas se voltarem contra as classes dominantes. Aliás, parte considerável da ficção de massa era produzida pela própria classe média. Tal como Eco aponta, a cultura de massa é, antes de mais nada, produzida por uma elite de produtores que veem as massas como público alvo, e não necessariamente uma cultura produzida pelas massas; a relação que se estabelece nesse caso é dialética, entre um grupo culto de produtores e uma massa de fruidores, em que “uns interpretam as exigências e as instâncias dos outros”.72 Atacando a penny blood, a classe média pretendia depreciar o gosto popular por crimes e horror para manter sua posição privilegiada de dominação ideológica e provocar pânico moral em relação à cultura das massas.73

A penny blood representou de forma expressiva a cultura impressa consumida pela classe trabalhadora e, consequentemente, a ficção de massa vitoriana, consolidando-se como um gênero particular e rico ao seu modo. Inegavelmente sensacionalista, formulaica e comercial, ela nunca se propôs como literatura inserida em altos padrões estilísticos e morais, mas sim como ficção de entretenimento descomprometido e inofensivo. Críticas parecidas com as que foram feitas a ela ressoam atualmente, direcionadas a livros considerados populares (no sentido de “ruim”, “vulgar”). Se Neil Gaiman, escritor inglês de quadrinhos e fantasia, tivesse vivido na era vitoriana, provavelmente não teria conseguido enunciar seu discurso, que defende veementemente a leitura de ficção de entretenimento.

NOTAS:
4. GAIMAN, Neil. Neil Gaiman lecture in full: Reading and obligation. Palestra originalmente realizada em 14 de outubro de 2013 pela The Reading Agency. Disponível em: <http://readingagency.org.uk/news/blog/neil-gaiman-lecture-in-full.html>. Acesso em: 05 de março de 2014. Essa e todas as traduções contidas nesta dissertação são de minha responsabilidade.
5. Ibidem.
6. BRANTLINGER, Patrick. The Reading Lesson: The Threat of Mass Literacy in Nineteenth-Century British Fiction. Edição Kindle. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1998, pos. 59.
7. Ibidem, p. 54.
8. KIRKPATRICK, Robert J. From the Penny Dreadful to the Ha’penny Dreadfuller: A Bibliographic History of the Boys’ Periodical in Britain 1762-1950. London: The British Library and Oak Knoll Press, 2013, pp. 69-73.
9. KILLEEN, Jarlath. “Victorian Gothic Pulp Fiction”. In: SMITH, Andrew; HUGHES, William (Eds.). The Victorian Gothic: An Edinburgh Companion. Edição Kindle. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2012, pos. 1043-1048.
10. BRANTLINGER, op. cit., pos. 80.
11. FLINT, Kate. “The Victorian Novel and Its Readers”. In: DAVID, Deirdre (org.). The Cambridge Companion to the Victorian Novel, Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 18.
12. DAVID, Deirdre. “Introduction”. In: DAVID, Deirdre (org.). The Cambridge Companion to the Victorian Novel, p. 5.
13. PICARD, Liza. Victorian London: The Life of a City 1840 – 1870. London: Phoenix, 2005, p. 73.
14ELIOT, Simon. “The Business of Victorian Publishing”. In: DAVID, Deirdre (org.). The Cambridge Companion to the Victorian Novel, p. 38.
15. CHILDERS, Joseph W. “Industrial Culture and the Victorian Novel”. In: DAVID, Deirdre (org.). The Cambridge Companion to the Victorian Novel, p. 77.
16. PARLIAMENT. The 1870 Education Act. Página do Parlamento Britânico. Disponível em: <http://www.parliament.uk/about/livingheritage/
transformingsociety/livinglearning/school/overview/1870educationact/>. Acesso em: 07 de setembro de 2012.
17. BRANTLINGER, Patrick; THESING, William B. (Eds.). A Companion to the Victorian Novel. Oxford: Blackwell Publishing, 2002, pp. 33-35.
18. CHILDERS, op. cit., pp. 85-6.
19. FLINT, op. cit., p. 19.
20. MAYS, Kelly J. “The Publishing World”. In: BRANTLINGER, Patrick; THESING, William B. (Eds.). A Companion to the Victorian Novel, p. 12.
21. Ibidem, p. 16.
22. Quanto a isso, Kelly Mays cita o exemplo de Sir Walter Scott, cujos romances – como Waverley (1814) e Ivanhoe (1820) – tiveram tiragem e vendagem iniciais de dezenas de milhares de cópias: “When Scott’s publisher, Archibald Constable, failed in 1826 for around £250,000, leaving Scott himself £120,000 in the red, the very size of their debts revealed just how large the potential profits and the potential risks were in the highstakes of fiction publishing […]” Ibidem, pp. 12-13.
23. Enquanto o termo paperback se refere a edições de baixo custo, que eram encadernadas com capas flexíveis de papelão coladas ao miolo do livro pela lombada, yellowback corresponde a romances baratos e versões abreviadas de obras clássicas publicados durante o século XIX.
24. “[…] Victorian publishing came to be characterized by an odd blend of daring speculation and cautious conservatism. That odd blend became most apparent in the way that successful innovations tended to become orthodoxies: if a particular type of novel or a particular publishing format proved successful, then authors and publishers tended to ride the wave until readership and profits ebbed.” Idem, p. 13.
25. Sobre esse costume, Patrick Brantlinger afirma: “The instances in which Dickens altered his novels in the middle of their serial publication because of sales figures or, even more dramatically, because of fan mail or direct reader response are evidence that, at least for himself and several other successful novelists, the relations between reader and writer could be dialogical, almost conversationally familiar.” BRANTLINGER, op. cit., pos. 237.
26. MOURALIS, Bernard. As contraliteraturas. Tradução de António Filipe Rodrigues Marques e João David Pinto Correia. Coimbra: Livraria Almedina, 1982.
27. Some adepts call them ‘Penny Dreadfuls,’ but ‘Awfuls’ seems to me by far the more expressive term” The London Hermit (Walter Parke), “The Physiology of ‘Penny Awfuls,’” The Dublin University Magazine, setembro de 1875, pp. 364-376 apud COLAVITO, Jason. “A Hideous Bit of Morbidity”: An Anthology of Horror Criticism from the Enlightenment to World War I. Jefferson: McFarland, 2008, p. 168.
28. Alguns dos autores que escrevem sobre penny bloods e/ou penny dreadfuls citados nesta dissertação fazem distinção entre esses dois termos e os utilizam de acordo com o que cada um deles significa, enquanto outros empregam somente o termo penny dreadful para se referir às duas categorias de histórias. Visto que concordo com essa distinção e considero as obras ficcionais selecionadas para esta pesquisa como penny bloods, utilizarei esse termo; porém, nas citações, utilizarei o termo originalmente escolhido pelos autores, especificando ou acrescentando a categoria a qual me refiro entre parênteses (no corpo do texto) ou colchetes (nas citações).
29. “The adult audience for gothic and romantic instalment fiction, or the Edward Lloyd style ‘penny blood’, had begun to drift away from mid century, with the advent of cheap Sunday newspapers and weekly illustrated magazines now carrying serialized novels. ‘Naturally people who read such romances have ceased to take an interest in them since they found that the penny weeklies gave them three or four times as much matter of the same character for the same price’ […]. A form of entertainment recently abandoned by adults was to be appropriated, and in the process transmuted, by a younger age cohort.” SPRINGHALL, John. “‘Disseminating Impure Literature’: The ‘Penny Dreadful’ Publishing Business Since 1860”. In: The Economic History Review, New Series, v. 47, n. 3 (agosto de 1994), p. 568.
30. Ibidem.
31. Quanto a isso, John Springhall, um dos principais pesquisadores do subgênero penny dreadful, lista alguns significados atribuídos a ele: “First, it is used as a general term of abuse for cheap papers or fiction of any description written throughout the nineteenth and early twentieth centuries. Second, it is used to describe highly coloured, criminal or Gothic penny-issue novels of the 1830s and ’40s, such as those issued by publisher Edward Lloyd (1815-90) from Salisbury Square in weekly or monthly parts [penny bloods]. Third, a more appropriate application of the term is to the successors of these novels – directed, from the 1850 onwards, toward a more specifically juvenile market – culminating in the publications of the NPC of the 1860s. Fourth, ‘penny dreadful’ is just as often used as a label for penny magazines or the cheaper weekly boys’ papers appearing from the mid-1860s onwards, mostly associated with Edwin Brett or the Emmett brothers. And a fifth usage applies the term not only to the boys’ journals themselves, but also to the long-running weekly serials they contained. These serials, if successful, were then published in separate weekly parts and later in collected shilling volumes, the latter of which provides us with a sixth definition.” SPRINGHALL, John. “‘A life story for the people’? Edwin J. Brett and the London ‘Low-Life’ Penny Dreadfuls of the 1860s”. In: Victorian Studies, v. 33, n. 2 (inverno de 1990), pp. 226-227.
32. The London Hermit apud COLAVITO, p. 169.
33. “My dear sir, Milton couldn’t write ‘Penny Awfuls,’ nor did he live in an age when literature was a branch of commerce,” returned the O’Riginal. “There is a knack in ‘Awful’ writing as in everything else. It requires special capacities to do it with success. The faculty of skilful construction is essential; but original genius is rather in the way than otherwise.” Ibidem, p. 172.
34. TURNER, E. S. Boys Will Be Boys: The Story of Sweeney Todd, Deadwood Dick, Sexton Blake, Billy Bunter, Dick Barton, et al [1948]. Edição Kindle. London: Faber and Faber, 2012, pos. 402-415.
35. “Simply absurd and puerile to adult readers of ordinary intelligence, they may be powerful for harm in the hands of the uninstructed juvenility [...] [L]icentious scenes, incidents, and suggestions are sometimes to be found. But, in other respects, and mainly by instilling in the youthful mind an antagonism to law and order, and the duties of everyday life; by exciting vain expectations, and false notions of life, and giving highly-coloured pictures with neither the value of truth nor the refining power of poetic romance, their effect cannot but be baneful.” The London Hermit apud COLAVITO, op. cit., p. 180.
36. Ibidem, p. 181.
37. HARVARD LAW SCHOOL LIBRARY. Página da biblioteca da Escola de Direito de Harvard sobre os broadsides. Disponível em: <http://broadsides.law.harvard.edu/>. Acesso em: 27 de fevereiro de 2015.
38. Sobre esse estranho paradoxo, Lyn Pykett afirma: “[…] much of the appeal of the various versions of the Newgate Calendar to their first readers derived from the way in which they made a spectacle of ‘deviant’ or socially transgressive behavior, and also of the violent and public manner of the punishment of such behavior.” PYKETT, Lyn. “The Newgate Novel and Sensation Fiction, 1830-1868”. In: PRIESTMAN, Martin (org.). The Cambridge Companion to Crime Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 20.
39. SCHWARZBACH, F. S. “Newgate Novel to Detective Fiction”. In: BRANTLINGER, Patrick; THESING, William B. (Eds.). A Companion to the Victorian Novel, p. 230.
40. As façanhas desses dois criminosos foram narradas nos romances Rookwood (1834) e Jack Sheppard: A Romance of the Robber-Hero (1839-1840), ambos de William Harrison Ainsworth.
41. PYKETT, op. cit., p. 20.
42. Apesar de o romance sensacionalista ter se consolidado cerca de duas décadas depois, o sensacionalismo já podia ser percebido na penny blood e em alguns romances de Newgate, conforme afirma Anne-Marie Beller: “[…] sensationalism permeated popular print culture throughout the earlier decades of the Victorian period, in penny fiction and in the proliferation of new periodicals catering to the working classes.” BELLER, Anne-Marie. “Sensation Fiction in the 1850s”. In: MANGHAM, Andrew (org.). The Cambridge Companion to Sensation Fiction. Edição Kindle. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, pos. 406.
43. PYKETT, op. cit., p. 33.
44. Ibidem, p. 34.
45. HOGLE, Jerrold E. “Introduction: the Gothic in western culture”. In: HOGLE, Jerrold E. (org.). The Cambridge Companion to Gothic Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 2-3.
46. PUNTER, David; BYRON, Glennis. The Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2004, pp. 4-5.
47. PUNTER; BYRON, op. cit., p. 26.
48. WARWICK, Alexandra. “Victorian Gothic”. In: SPOONER, Catherine; McEVOY, Emma (Eds.). The Routledge Companion to Gothic. Oxon: Routledge, 2007, p. 33.
49. GLOVER, David; MCCRACKEN, Scott. “Introduction”. IN: GLOVER, David; MCCRACKEN, Scott (Eds.). The Cambridge Companion to Popular Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 4.
50. EASTHOPE, Antony. Literary into cultural studies. London: Routledge, 1991, p. 75.
51. “[…] as the worker becomes ever more alienated from production and propelled towards mere consumption in leisure time, so popular culture becomes ever more adapted to commodity production.” Ibidem, p. 78.
52. TURNER, op. cit., pos. 385-389.
53. COLLINS, Wilkie. “The Unknown Public”. Disponível em: <http://www.web40571.clarahost.co.uk/wilkie/etext/TheUnknownPublic.htm>. Acesso em: 15 de março de 2014.
54. COLLINS, op. cit.
55. A biblioteca ambulante de Mudie era considerada uma das mais respeitáveis, visto que seu proprietário, Charles Edward Mudie, costumava selecionar pessoalmente livros que teriam um alto teor moral. Para mais detalhes, ver FLINT, op. cit., p. 21.
56. Essa era uma visão compartilhada tanto por comentaristas contra a alfabetização em massa quanto por alguns romancistas, que, mesmo sendo a favor dela, admitiam temer esse efeito, conforme resumido por Patrick Brantlinger: “While the growth of the reading public is a sure sign of ‘the progress to perfection’, that growth nevertheless causes a decline in the general profundity and literary greatness of the culture of any nation in which it occurs.” BRANTLINGER, op. cit., pos. 325.
57. COLLINS, op. cit.
58. EASTHOPE, op. cit., p. 7.
59. ROSE, op. cit., p. 37.
60. Ibidem, p. 33.
61. KLANCHER, John. The Making of English Reading Audiences, 1790-1832. Madison: U of Wisconsin P, 1987, p. 13 apud BRANTLINGER, op. cit., pos. 211.
62. EASTHOPE, op. cit., pp. 3-4.
63. MOURALIS, op. cit., p. 62.
64. Ibidem, p. 39.
65. Ibidem, pp. 59-61.
66. Ibidem, p. 52.
67. Ibidem, pp. 53-54.
68. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 190-191.
69. Ibidem, p. 193.
70. Ibidem, pp. 196-198.
71. Ibidem, p. 202.
72. Ibidem, p. 54.
73. SPRINGHALL, John. “‘Pernicious Reading’? ‘The Penny Dreadful’ as Scapegoat for Late-Victorian Juvenile Crime”. In: Victorian Periodicals Review, v. 27, n. 4, inverno de 1994, p. 329.