A
história política e o conceito de cultura política*
Rodrigo Patto Sá Motta
UFMG
Falar do retorno da História Política
já virou lugar comum. Vários autores têm se dedicado a analisar o fenômeno,
mostrando como tem havido uma recuperação da influência desta área de pesquisa
histórica nos últimos trinta anos, após décadas de declínio em detrimento da
história social e econômica. A recuperação do prestígio dos estudos políticos
entre a historiografia recente tem sido possível, em grande medida, devido à
renovação das abordagens. Não tem havido, obviamente, uma volta pura e simples
do velho enfoque “positivista”, marcado por uma perspectiva elitista e
factualista.
Tal como se deu em outros setores da
disciplina histórica a renovação foi viabilizada, em grande medida, pela
incorporação de elaborações teóricas e metodológicas das ciências sociais.
Aliás, a trajetória da historiografia no século XX é incompreensível sem a
menção ao frutuoso ─ embora
nem sempre pacífico ─ contato
estabelecido com as ciências sociais.
No
que se refere ao “redespertar” da História Política existem, basicamente, duas
vertentes de pesquisa. Primeiramente, há uma linha marcada pela renovação dos
enfoques sobre objetos tradicionais da política, como organizações estatais,
instituições e movimentos políticos. Nesta dimensão, os historiadores têm se
valido principalmente da contribuição da ciência política e da sociologia
política para enriquecerem suas análises. Sua atenção tem se voltado para o
estudo do comportamento eleitoral, do funcionamento dos grupos de pressão, da
opinião pública, relações internacionais, entre outros.1 Tais
pesquisas demonstram a preocupação de superar a velha abordagem política.
Voltam-se para a explicação de práticas coletivas e comportamentos sociais,
fugindo à perspectiva tradicional centrada nas elites e no Estado.
A
outra vertente baseia-se não apenas na utilização de enfoques novos, mas também
na exploração de novos objetos, desconhecidos pelas análises políticas
clássicas. O enfoque tradicional da política ─ e não devemos considerar tradicional
como sinônimo de ruim ou ultrapassado ─ é
voltado para o estudo dos mecanismos de funcionamento do poder, as intenções e
interesses dos agentes políticos e as ações empreendidas para a conquista e a
conservação do poder. Os novos objetos de pesquisa em questão se concentram em
torno dos conceitos de imaginário, simbologia e cultura.
A
ênfase proposta é trabalhar a política não no nível da consciência e da ação
informada por projetos e interesses claros e racionais, mas no nível do
inconsciente, das representações, do comportamento e dos valores. Na verdade,
os novos enfoques e as novas conceitualizações são mais citados que discutidos
e problematizados. Nesta área, tem havido muita empiria e pouca teoria. Na
medida em que o fenômeno se encaminha, virtualmente, para se constituir em moda
acadêmica, já se pode perceber a utilização dos “novos” conceitos com muita
sofreguidão, freqüentemente de maneira imprópria ou imprecisa.
Porém,
como sabemos, a interlocução de base científica depende, para ser viável, de
uma clareza mínima quanto aos conceitos em uso. Ë nesse sentido que se insere
este trabalho. A proposta é contribuir para o esclarecimento de alguns dos
conceitos em uso na “nova” História Política, tentar estabelecer com mais
precisão o seu raio de abrangência e, também, mostrar a sua validade enquanto
instrumentos para facilitar nossa compreensão da realidade histórica, para além
de qualquer modismo. Mais precisamente, discutirei o conceito de cultura
política, que me parece ser um dos mais férteis nesta área.
A
definição conceitual de cultura é extremamente polêmica. Mesmo entre os
antropólogos, cuja contribuição nesta área é extremamente valorosa, não há
consenso quanto ao estabelecimento do significado do conceito.2
Contudo, para nossos
fins, optamos por lançar mão de uma definição que, mesmo não sendo consensual,
é pelo menos a mais corrente entre os estudos etnológicos. Cultura, então,
seria o conjunto complexo constituído pela linguagem, comportamento, valores,
crenças, representações e tradições partilhados por determinado grupo humano e que
lhe conferem uma identidade.
Como
se vê, a abordagem de aspectos culturais coloca a História em contato direto
com as elaborações da Antropologia. Na verdade, esta tem sido, nos últimos
anos, uma das parceiras mais instigantes dos historiadores, colocando-nos
desafios e contribuindo para o alargamento de nossos horizontes de pesquisa.
Acredito
que a principal contribuição dos estudos antropológicos, neste sentido, diz
respeito à percepção acerca da mudança social. A historiografia,
tradicionalmente, sempre foi obsedada pela idéia de mudança, de transformação
social. Pode-se mesmo dizer que a noção de dinâmica é uma de suas
características basilares. A ciência da história se constituiu baseada na crença
de que as sociedades humanas mudam e o tempo é o referencial que permite
observar e avaliar as mudanças. Se não há transformação passado e presente são
o mesmo e perde sentido toda abordagem diacrônica: no limite, a História não
teria mais razão de ser.
Pois
bem, o enfoque antropológico estimulou os historiadores a terem sensibilidade
também para a não-mudança, para a permanência, para a estrutura. Daí advém o
interesse pelo estudo da cultura, ou das culturas: a busca de relações perenes,
estruturadas, enfim, a realização de abordagens sincrônicas.
Nos
últimos anos, tem havido uma tendência, entre segmentos da historiografia, a
utilizar e a trabalhar com o conceito de cultura em detrimento de
“mentalidades”. Este, mais antigo entre os historiadores, foi trazido à tona no
bojo dos esforços renovadores da tradição dos Annales. Sua
funcionalidade se prendia ao esforço de pesquisar as representações mentais de
determinados grupos e determinados momentos históricos, num enfoque diverso em
relação à tradicional História das Idéias, pois voltado para elaborações não
sistematizadas e inconscientes. Certamente a História das Mentalidades teve uma
de suas inspirações básicas na psicologia, ciência constituída nas primeiras
décadas do século e que exerceu enorme fascínio sobre os estudiosos das
ciências humanas.
O
deslocamento de “mentalidades” em favor de “cultura” deve-se, em certa medida,
ao crescente prestígio da antropologia a partir da segunda metade do século.
Mas o principal problema é a imprecisão conceitual de “mentalidades”. Até seus
defensores e os pesquisadores que trabalham nesta perspectiva encontram
dificuldades para definir o conceito.3
Outro
dado polêmico é que os trabalhos na linha das mentalidades tendem a estabelecer
uma homogeneização exagerada entre os grupos sociais abordados. Raramente
conseguem perceber as nuanças existentes na maioria das sociedades, analisando
uma mentalidade coletiva que, muitas vezes, passa por cima das diferenças e
especificidades.
Nesse
sentido, o conceito cultura possui algumas vantagens. Ele é mais consistente e
permite abordar com mais precisão o mesmo tipo de fenômeno, qual seja, as
representações mentais. Por outro lado, adequa-se melhor à necessidade de
respeitar as particularidades existentes entre os grupos ou dentro deles,
evitando assim as generalizações abusivas. Norbert Elias analisou esta
característica do conceito de cultura, sua propensão a enfatizar as diferenças
e as identidades particulares de grupos. Exatamente por isto teria havido
praticamente o abandono da expressão “civilização” em favor de “cultura”.4
Pois
bem, a partir desta caracterização geral destaca-se o conceito de cultura
política, nosso objeto de discussão. Este pode ser caracterizado como o
conjunto de normas, valores, atitudes, crenças, linguagens e imaginário,
partilhados por determinado grupo, e tendo como objeto fenômenos políticos.
Assim
como a conceituação geral de cultura, só faz sentido falar-se em cultura
política quando se trata de normas, valores, etc razoavelmente arraigados,
estruturados; quando se estabelecem tradições que são reproduzidas por várias
gerações. O conceito não se aplica a fenômenos superficiais e passageiros.
Poderíamos
dar um exemplo, entre muitos possíveis, para tornar mais clara a análise. No
mundo contemporâneo constituiu-se uma cultura política socialista que, tendo se
estabelecido entre o início e o meio do século XIX, foi reproduzindo-se ao
longo das décadas, atravessou o século seguinte e está presente até hoje,
embora no momento viva uma séria crise.
A
cultura socialista possui todos os elementos necessários para caracterizá-la
enquanto tal: valores, atitudes, crenças, normas e um imaginário que têm
garantido ao grupo uma forte identidade própria nos últimos cento e cinquenta
anos.
Não
seria possível dar por terminada a discussão conceitual sem enfrentar outro
conceito polêmico e de difícil definição, mas profundamente ligado às novas
perspectivas de pesquisa na área da História Política. Trata-se do conceito de
imaginário. Imaginário ou imaginação social, como preferem alguns autores,
passou a ser considerado um objeto de estudo fundamental para a compreensão não
somente das representações mentais estabelecidas pelos grupos sociais, mas
também para o equacionamento da lógica das práticas e dos comportamentos
coletivos.
Polissêmica,
como costumam ser as expressões utilizadas pelas ciências sociais, a palavra
imaginário tem causado alguma confusão. O sentido ao qual nos referimos,
obviamente, não é o de uso corrente, que tem imaginário como sinônimo de
ilusório, irreal, algo construído arbitrariamente pela imaginação. A definição
da palavra que nos interessa é mais recente, e entende o imaginário como sendo
o conjunto de representações mentais de um determinado grupo, representações
viabilizadas através de imagens. Nas palavras de Gilbert Durand,
“A
consciência dispõe de duas maneiras para representar o mundo. Uma direta, na
qual a coisa mesma parece apresentar-se ante o espírito, como na percepção e na
simples sensação. Outra, indireta, quando, por uma ou outra razão, a coisa não
pode representar-se em „carne e osso‟ à sensibilidade, como por exemplo, ao
recordar nossa infância (...), ao compreender como giram os elétrons ao redor
do núcleo atômico ou ao representar o além morte. Em todos estes casos de
consciência indireta, o objeto ausente se re-presenta ante ela através de uma
imagem, no sentido mais amplo do termo”.5
O
imaginário social seria, portanto, a representação ou o conjunto de
representações imagéticas de determinados aspectos ou fenômenos da vida social
como, anseios, temores, utopias, valores, crenças, etc. Tais representações
encerram uma importância fundamental, na medida em que tornam aceitáveis e
assimiláveis determinados aspectos da realidade, contribuindo para conferir
coesão e identidade aos diversos grupos sociais. Na verdade, a vivência social
seria inconcebível sem a mediação das representações imaginárias. O imaginário,
aqui, diz respeito à construção de representações da realidade que dificilmente
coincidem totalmente com o real. Mas, também não é pura e simplesmente uma
mistificação.
Dentro
do amplo espectro constituído pelo imaginário podemos destacar algumas
categorias de representação importantes, como símbolos, mitos e ritos. As
definições conceituais precisas destas expressões são extremamente polêmicas,
tendo sido largamente debatidas nos últimos anos por antropólogos e psicólogos,
principalmente. Os elementos rituais e míticos freqüentemente carregam uma
forte carga simbólica, o que permite a alguns autores considerá-los formas de
representação simbólica. Não desejando entrar nessa polêmica, me limitarei a
expor as definições mais usuais dos três conceitos, de modo a poder avançar a
nossa discussão.
Símbolo
seria uma forma de representação, um tipo de signo, cujo significado não pode
ser apresentado diretamente. O símbolo se refere a um sentido, não a uma coisa
tangível. Ele trabalha com uma ordem de fenômenos invisíveis e virtualmente
inefáveis.6 Vamos exemplificar para tornar mais
fácil a compreensão, utilizando-nos da simbologia política. As bandeiras e os
hinos nacionais são, por excelência, representações simbólicas: elas
representam a nação e resumem sentidos e valores atribuídos ao grupo, como a
história comum, as glórias passadas, os sacrifícios heróicos dos mártires. Elas
encarnam uma carga simbólica que o signo comum absolutamente não possui.
Analisemos
agora os ritos, outra área de pesquisa fundamental para a “nova” História
Política. Eles se configuram como uma “série de atos solenes, repetitivos e codificados,
de ordem verbal, gestual e postural, de forte conteúdo simbólico”.7 As
práticas rituais fazem parte do repertório cultural de todos os grupos humanos.
Elas constituem um elemento fundamental no sentido da reprodução e mesmo da
elaboração dos valores e normas constituidoras dos diversos grupos sociais.
Por
um lado, o ritual tem uma importante dimensão simbólica, na medida em que
representa e sintetiza determinados elementos da cultura da coletividade em
questão. Assim, ele pode simbolizar a união e a coesão do grupo, como num
desfile militar; ou a força do líder, como num comício nazista; ou a comunhão
com Deus, como numa missa. Por outro lado, os rituais cumprem uma função
integradora, pois disseminam as normas e valores sustentadores da vivência
coletiva. Além disso, reforçam o sentimento de identidade do grupo, através da
repetição ritualizada de cerimônias coletivas. Virtualmente invariável, o
ritual, exatamente por sua feição repetitiva, afiança a força e a perenidade da
mensagem e do próprio grupo, incutindo segurança e fé no porvir.
Quanto
aos mitos, trata-se de outra conceituação polêmica. Originalmente, os mitos
eram considerados exclusivamente como narrativas fabulosas, ilusórias.
Recentemente, porém, os especialistas tem tido uma maior sensibilidade para a
importância social do mito como elemento central nas diversas formações
culturais. Eles representam histórias de caráter sagrado, revelações
primordiais e atuam na constituição de modelos exemplares.8
Os mitos são elementos
importantes do imaginário social, na medida em que transmitem mensagens, ajudam
a forjar valores identitários e contribuem para dar coesão aos diversos grupos.9
No
que se refere às mitologias políticas, uma da formas mais recorrentes é o mito
do líder. Ele é apresentado como um indivíduo portador de qualidades acima da
média, exemplo e protótipo perfeito a ser seguido e imitado pelos seres
normais. Sua figura mitificada atua como pólo unificador do grupo, reunindo em
torno de si os membros da coletividade que se identificam com a imagem
projetada pelo líder. Além disso, o mito infunde esperança: sua mensagem
invariavelmente aponta para uma redenção próxima e para um futuro melhor.10
Pois
bem, o argumento então é que o imaginário político pode ser considerado como um
dos elementos constituidores da cultura política. O largo espaço utilizado para
trabalhar com a conceituação ligada ao imaginário se deve à complexidade e à
polêmica de que se reveste e não a uma desconsideração aos outros elementos
integrantes do universo cultural.
Aliás,
é interessante frisar a importância de se encarar as diversas dimensões da
cultura como um todo orgânico. O imaginário, fenômeno situado no nível das
representações, não faz sentido sem o estudo das práticas culturais. O
imaginário não é uma espécie de fantasmagoria alheia à realidade, como muitas
vezes é entendido. As representações existem em função da necessidade humana de
conferir ao mundo uma ordem e de compreender a realidade, ou, pelo menos, de
conferir-lhe um sentido. São também instrumentos para a intervenção humana no
real, na medida em que as representações podem informar a ação, propondo
caminhos e possibilitando estratégias. Além disso, podem desempenhar o papel de
legitimar determinadas práticas e configurações sociais, como relações sociais
hierarquizadas e privilégios.
Dessa
maneira, em se tratando da abordagem cultural, não há sentido em opor imaginário
e realidade, representações e práticas. Trata-se de estudar os fenômenos
culturais levando em conta as duas dimensões. Uma mitologia política, por
exemplo, é constituída através de ações concretas, como discursos, propaganda,
intervenção política, enfim. E ela só se estabelecerá efetivamente se expressar
demandas ou temores sociais reais preexistentes, ou se conseguir criá-los.
Qual
a contribuição efetiva que a abordagem cultural pode trazer à História
Política? Ela contribui para desvendar os mecanismos de funcionamento do poder,
enriquecendo e tornando mais complexa nossa compreensão acerca dos fenômenos de
natureza política. Não se trata de opor a abordagem cultural à ciência política
clássica, como se fossem perspectivas excludentes. Trata-se de explorar uma
vertente de pesquisa não desenvolvida pelos enfoques tradicionais da política,
notadamente no que diz respeito ao estudo dos comportamentos políticos e do
imaginário.
Os
processos de legitimação política passam pelo estabelecimento de um imaginário
que resume e simboliza, a nível da mentalidade popular, as mensagens e valores
do poder. O poder necessita, além das estruturas burocráticas, além das
instituições representativas e/ou coercitivas, da criação de imagens que
atinjam de maneira imediata os corações e mentes da população; freqüentemente
mais os corações que as mentes. O estabelecimento dos elementos de uma cultura
política, notadamente a nível do imaginário simbólico, exerce um papel
coesionador fundamental sobre as organizações sociais.
Podemos
exemplificar com o fenômeno do culto à nação. No mundo moderno ela se
transformou num dos principais ─ senão o principal ─ fator
de legitimação da ordem política. Os indivíduos acreditam ser justo e correto
viverem na coletividade porque fariam parte de um conjunto social pleno de
sentido, marcado por características identitárias comuns. A nação traria a
marca de uma história comum e de valores culturais partilhados. Tal ideário
nacional é estabelecido e reproduzido através de práticas culturais e
representações simbólicas, que resumem o sentido da mensagem para os
integrantes do grupo. Contudo, não se deve encarar o fenômeno nacional como
mera manipulação, como invenção arbitrária: trata-se de realidades que são
revestidas com a aura do mito e com o manto do sagrado, constituindo-se em
estruturas culturais.
Resumindo,
a análise dos fatores culturais ajuda a esclarecer e a compreender a ocorrência
de determinados comportamentos políticos, que não se explicam somente pela
vontade, pelo interesse ou por ações concertadas no plano racional, mas também
pela crença, pela fé, pela força da tradição ou do costume e por determinações
originadas no plano do inconsciente.
Porém,
se a abordagem cultural da História Política carrega inovações e perspectivas
positivas, encerra também alguns perigos. Um problema sério é o risco de
estabelecerem-se uniformizações exageradas. Sob a guarida do conceito de
cultura pode-se fazer generalizações abusivas, perdendo a dimensão da
complexidade dos grupos sociais. Atribuir a um determinado grupo valores,
comportamentos e imaginário comuns muitas vezes pode não corresponder à
realidade. As sociedades, principalmente as complexas, normalmente são marcadas
por nuanças, particularidades e divisões internas. As estruturas culturais em
questão podem não ser partilhadas por toda a coletividade.
Exatamente
por isso forjou-se o conceito de subcultura, para dar conta da complexidade do
social. Nesta perspectiva, as grandes formações sociais poderiam ser compostas
de subculturas, que partilhariam de alguns elementos da cultura mater,
por assim dizer, mas ao mesmo tempo possuiriam características próprias. Assim,
no que diz respeito às sociedades políticas contemporâneas, pode-se falar na
existência de subculturas como a nacionalista ou a comunista, por exemplo.
Ressalte-se, no entanto, que o conceito de cultura é o mais adequado para tratar
do particular, do específico, em contraposição a outros como “civilização” e
mesmo “mentalidades”, que têm maior propensão para a uniformização.
Outro
aspecto problemático da utilização do recorte cultural é o risco da perda da
dimensão histórica. Uma parte considerável das análises de inspiração
antropológica, normalmente associadas à antropologia estruturalista, tendem a
abordar a dimensão cultural de maneira estática, acrônica. Constituiu-se em moda
no período de maior influência do estruturalismo desdenhar da importância da
história, opondo-a à estrutura. Ao par antitético estrutura-história
associava-se a antítese sincronia-diacronia.
Criticou-se
corretamente a historiografia por sua obsessão pela transformação e
incapacidade de perceber a permanência, as relações estruturais. Contudo, a
crítica ao historicismo levou à absolutização do fenômeno estrutural, à
observação exclusivamente de fatores e relações sociais tidas como imutáveis.
As estruturas, incluindo obviamente as culturais, passaram a ser encaradas como
uma realidade suprahistórica: não tinham gênese nem tampouco passavam por
processos de transformação. O sujeito da história, o homem, deixou de ser
encarado como um agente transformador. Tornou-se joguete indefeso de
determinações estruturais transcendentes.
A
História aprendeu com seus críticos a ter sensibilidade para os fenômenos
estruturais, daí o interesse atual pelos estudos de cultura política. Mas nosso
enfoque deve ser diverso em relação ao da antropologia estruturalista, sob pena
de implodirmos o objeto histórico. O recorte historiográfico só faz sentido
tendo como referência o estudo da gênese e do desenvolvimento dos fenômenos
sociais. Nesta perspectiva, devemos efetivamente estar atentos e investir na
análise estrutural. Contudo, cabe-nos não perder de vista a dimensão da
historicidade. As estruturas não são entes abstratos surgidos do nada e
infensos à ação humana: também possuem gênese e passam por transformações,
mesmo que estas sejam lentas.11 Concluindo, a
História Política tem muito a ganhar com a utilização do instrumental teórico e
conceitual dos estudos culturais. Amplas perspectivas de renovação se abrem à
nossa frente. Contudo, devemos lançar mão da colaboração das ciências sociais
de maneira crítica e cuidadosa, sem renunciar às características básicas que
norteiam o trabalho do historiador.
NOTAS:
*Esse trabalho fez parte da mesa redonda “A discussão sobre
cultura política na historiografia”, apresentada no dia 23 de julho de 1996.
1 FERREIRA, Marieta de Moraes. A história política hoje: tendências e
desafios. Anais do IX Encontro da ANPUH/MG. Juiz de Fora, 1994,
p. 165.
2
A esse respeito, conferir LEACH, Edmund. Cultura/Culturas. Enciclopédia Einaudi. Vol. 5
(Anthropos-Homem). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. Pp. 102-133.
3
Cf VOVELLE,
Michel. Ideologias e mentalidades.
São Paulo: Brasiliense, 1987. P.15. Para este autor, a melhor definição da
História das Mentalidades seria “uma história das visões de mundo”.
4
ELIAS, Norbert. O
processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1990. p. 25.
5
DURAND, Gilbert. La
imaginación simbólica. Buenos Aires: Amorrortu, 1971. pp. 9,10.
Tradução nossa.
6
Idem, pp. 12-21.
7
RIVIÈRE, Claude. As
liturgias políticas. Rio de Janeiro: Imago, 1989. p.13.
8
ELIADE, Mircea. Mito e
realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. pp. 7 a 13.
9
Cf. GIRARDET, Raoul. Mitos e
mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
10
Na história brasileira temos um exemplo
interessante com Luiz Carlos Prestes, figura mitificada pelos comunistas: “A
figura de Prestes se destacou como a de maior líder popular da nossa história.
Ele é o mais alto intérprete dos mais profundos anseios das massas, encarna os
interesses dos explorados e oprimidos, a consciência, a honra e o futuro da
nação”. “Quando
nosso povo comemora mais um aniversário de Prestes (...) as saudações e votos
de longa vida que lhe dirige estão impregnados de carinho, reconhecimento, de
confiança.(...) Não apenas evocamos os fatos marcantes de sua vida gloriosa, os
feitos heróicos do general invencível, do patriota incomparável, do organizador
sábio e incansável. Mais do que nunca sentimos a presença de Prestes, nos
orgulhamos de tê-lo conosco, comandante ao leme, para as grandes lutas que já
se iniciam”. (Voz
Operária, 02/01/54, p.12. Cartas de leitores).
11
Devemos ressalvar que alguns setores da
antropologia têm recuperado em suas pesquisas a dimensão histórica. Um dos
trabalhos mais interessantes nesta linha é um livro de Marshall Sahlins, que tem o sugestivo nome de Ilhas de História. (Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1990).
Fonte: Revista de História: Anais do X Encontro de História, ANPUH-MG, 1996. p. 87-100.
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