A INVENÇÃO DO NATAL
Dra. Maria Luísa Leal de Faria
Universidade Católica
Sociedade Científica
O
título deste artigo indicia, desde logo, duas limitações: em primeiro lugar,
falar do Natal sob o ângulo das representações simbólicas, daí a palavra
"invenção"; e depois situar essas representações num contexto
específico, o século XIX inglês. No entanto, todos os símbolos comportam
conteúdos, e os símbolos do Natal estarão, como espero demonstrar, associados a
valores morais transmitidos ao longo de dois mil anos; e depois os símbolos que
se popularizaram ao longo do século XIX em Inglaterra disseminaram-se pelo
mundo e continuam a representar o Natal, e o espírito do Natal, nas sociedades
contemporâneas.
Primeiro cartão de boas festas, o qual inaugurou a tradição dos cartões natalinos e de ano novo. Foi desenhado por John Callcott Horsley, para presentear seu amigo Henry Cole em 1843. Inglaterra. |
Não
irei, pois, falar do Natal português, nem do presépio, a mais directa
representação do Natal na cultura cristã. Por estranho que pareça, o presépio
está ausente da cultura inglesa, certamente em consequência dos ímpetos
iconoclastas da Reforma. Mas a ausência de representação física da Natividade
não exclui a celebração do Natal como um dia, e um período do ano,
especialíssimo, um tempo de festa, de solidariedade e de memória. Serão estas
as três linhas dominantes desta apresentação: a festa, com os rituais que lhe
estão associados na época de Natal; a solidariedade, como hoje dizemos, mas que
no século XIX poderia ser designada, à moda antiga, como a boa caridade cristã;
e a memória, a convocação dos entes queridos já desaparecidos para a nossa
mesa, para a partilha simbólica da celebração do nascimento de Cristo, tornando
presente a ausência.
Tornou-se
hábito dizer que o Natal inglês foi inventado por Charles Dickens. É certo que
Dickens contribuiu decisivamente para instalar as celebrações do Natal no
imaginário colectivo inglês com os contornos que, ainda hoje, existem. Mas
importa não esquecer que o Natal já era, havia séculos, tempo de celebração, e
que já nas primeiras décadas do século XIX as festas de Natal tinham começado a
ser objecto de representação na pintura, e de reflexão na componente da
tradição. Várias publicações reúnem os usos, os costumes, as tradições de
celebração, e começam a fixar rituais que importa não esquecer numa época de
instabilidade e mudança, como era sentido o século XIX, sobretudo nas primeiras
décadas.
Os
autores contemporâneos dividem-se entre aqueles que atribuem a Dickens e ao
período vitoriano a construção de todo um conjunto de rituais e celebrações que
se prolongam até hoje, aqueles que perspectivam a história das celebrações do
Natal a partir das tradições cristãs medievais, e outros, ainda, que insistem
nas adaptações dos cultos pagãos aos cristãos, ao longo dos séculos.3 Não
pretendo fazer uma revisão de literatura sobre a história do Natal, e confesso
que irei adoptar, nesta apresentação, um ponto de vista mais próximo da
"invenção da tradição", embora procurando, também, recordar traços
das anteriores tradições nos novos costumes.
Ilustração retratando a árvore de natal no Castelo de Windsor, Inglaterra. Na imagem pode-se ver a rainha Victoria e sua família. 1841. |
O
papel de Dickens não pode ser minimizado. O seu mais recente e maior biógrafo,
Peter Ackroyd, refere a este propósito:
"He did not
invent Christmas … as the more sentimental of his chroniclers have suggested. …
But Dickens could be said to have emphasized its cosy conviviality at a time
when both Georgian licence and Evangelical dourness were being questioned. …
What Dickens did was to transform the holiday by suffusing it with his own
particular mixture of aspirations, memories and fears. He invested it with
fantasy and a curious blend of religious mysticism and popular superstition so
that, in certain respects, the Christmas of Dickens resembles the more ancient
festival which had been celebrated in rural areas and in the north of
England".4
Mas
um episódio narrado no periódico The Nineteenth Century em 1907 evoca a
associação de Dickens ao Natal na imaginação popular. Conta o autor, Theodore
Watts-Dunton, que ouviu na rua, no dia 9 de Junho de 1870, uma rapariguinha
exclamar, "O quê? Dickens morreu? Então o Pai Natal também vai
morrer?"5
Esta
associação estreita entre Dickens e o Natal decorre de um conjunto de
publicações que se tornaram extraordinariamente populares ao longo de várias
décadas, ainda em vida de Dickens, e continuam a manter, hoje ainda, muito da
sua magia como expressões do Natal. A mais conhecida é, sem dúvida, A
Christmas Carol. Mas muitas outras, que se lhe seguiram, contribuíram para
reforçar a expectativa de que todos os anos, por altura do Natal, Dickens iria
presentear o público com uma nova Christmas Story, criando assim uma
tradição, reforçada pelo apelo das suas narrativas, pela dramatização de
algumas, pelas leituras públicas de várias. Sem querer pormenorizar demais,
bastará dizer que, depois da publicação de A Christmas Carol em 1843,
Dickens publicou novos contos em 1844, 45, 46 e 48.
Não
publicou em 1847, com grande pena, e reconhecendo já que iria "deixar um
vazio junto às lareiras de Natal que deveria preencher".6 A partir de 1850
passou a utilizar as publicações periódicas que criara e lançara para nelas
dedicar números especiais ao Natal. No famoso semanário Household Words publicou,
na semana de Natal de 1850, uma fabulosa narrativa sobre a árvore de Natal, a
que voltaremos. Continuou a publicar números especiais de Natal na sucessora de
Household Words, All the Year Round, a partir de 1859. Em 1870 fez,
ainda, uma leitura pública de A Christmas Carol.
Os
contos de Natal de Dickens não surgem de repente. Já em 1838 o pintor escocês
Daniel Maclise pintara um grande quadro chamado Merry Christmas in the
Baron’s Hall, onde representara o barão, a sua família e todos os seus
dependentes unidos nas festividades de Natal. Maclise pertencia ao círculo de
amigos de Dickens, foi autor de várias ilustrações das suas obras, de um dos
seus retratos mais conhecidos, bem como também de um desenho em que representa
Dickens a ler um dos seus contos de Natal, The Chimes.
Nos
Estados Unidos, Washington Irving, que Dickens Muito apreciava, tinha
publicado, nos anos vinte, The Sketch Book of Geoffrey Crayon, Gent., que
também terá contribuído para inspirar Dickens nas suas evocações das festas de
Natal domésticas, cheias de bom humor, brinquedos e brincadeiras, música e
guloseimas, adultos e crianças rejubilando no espírito de Natal.
Impossível
de esquecer era o livro The Book of Christmas: Descriptive of the customs,
ceremonies, traditions, superstitions, fun, feelings and festivities of the
Christmas Season, publicado em 1837 por T. K. Hervey, com ilustrações de
outro amigo de Dickens e ilustrador de várias obras suas também, Robert
Seymour. Outras publicações, ainda da década de trinta, são especificamente
dedicadas ao Natal, enquanto festa de família e festa tradicional: The
Humourist, a Companion for the Christmas Fireside, de W. H. Harrison,
publicado em 1831 e 1832, e Selection of Christmas Carols, Ancient and
Modern, de William Sandys em 1833.
Mas
ninguém melhor que Dickens captou o espírito de Natal nas suas diversas
facetas, começando pelos aspectos festivos. Por isso falemos na festa e nos
símbolos que a acompanham. O presépio, fundamental nos lares católicos, não
tinha expressão nas casas protestantes, como já referi. O lugar de destaque,
nas decorações de Natal, passou a ser a árvore de Natal.
Na
peça intitulada "A Christmas Tree", publicada a 21 de Dezembro de
1850 em Household Words, Dickens chama-lhe "that pretty German
toy"7, "aquele bonito brinquedo alemão". Hoje é costume dizer
que a árvore de Natal foi trazida da Alemanha para Inglaterra pelo Príncipe
Alberto, em 1841, e que depois se vulgarizou. Parece, no entanto, que terá sido
a avó da Rainha Vitória, a Rainha Charlotte, quem primeiro terá adaptado a
árvore alemã às festas de Natal inglesas. A Governanta do Castelo de Windsor, a
Hon. Georgina Townshend, recordava, desse tempo:
"The Queen
[Charlotte] entertained the children here, Christmas evening, with a German
fashion. … A fir tree, about as high again as any of us, lighted all over with
small tapers, several little wax dolls among the branches in different places,
and strings of almonds and raisins alternately tied from one to the other, with
skipping ropes for the boys, and each bigger girl had muslin for a frock, a
muslin handkerchief, a fan, and a sash, all prettily done up in the
handkerchief, and a pretty necklace and earrings besides. As soon as all the
things were delivered out by the Queen and the Princesses, the candles on the
tree were put out, and the children set to work to help themselves."8
Mas
o Príncipe Alberto contribuiu decisivamente para instalar na imaginação da
sociedade uma ideia de domesticidade que se colou ao ideal do Natal em família.
"At Christmas time he
could be seen building snowmen twice as tall as himself, playing ice hockey,
driving a sledge across the snow and setting up a Christmas tree. Each
Christmas, the chandeliers were taken down in the Queen’s sitting room at
Windsor where trees, hung with candles and toffees, took their place; the
dining room tables were piled up with food and on the sideboard stood an
immense baron of beef. In the Oak Room there was another Christmas tree
surrounded by presents for the members of the household, and on each present
was a card written by the Queen. ‘Everything’, so the Prince told his brother,
‘was totally German’."9
Toda
a literatura inglesa sobre o Natal refere o papel da família real como decisivo
no teor das festividades. Gravuras publicadas em periódicos de grande
circulação mostravam cenas íntimas da família real, reunida em torno da árvore
de Natal, que funcionaram como exemplo para as famílias de todas as classes
sociais. As decorações de Natal, com o tradicional mistletoe e azevinho
tornaram-se cada vez mais elaboradas, e as donas de casa tornaram-se cada vez
mais exigentes nestas matérias.10 Mas a mais fabulosa árvore de Natal é a que
Dickens descreve, em "A Christmas Tree":
"The tree was
planted in the middle of a great round table, and towered high above their
heads. It was brilliantly lighted by a multitude of little tapers; and
everywhere sparkled and glittered with bright objects. There were rosy-cheeked
dolls, hiding behind green leaves; there were real watches (with movable hands,
at least, and an endless capacity of being wound up) dangling from innumerable
twigs; …"11
A
descrição de Dickens estende-se ao longo de duas dezenas de páginas, repletas
de evocações de outros Natais, de objectos que desencadeiam memórias, de
histórias da sua infância, onde não podiam faltar os inevitáveis
"ghosts", de episódios que falam ao sentimento e à imaginação. E
também aqui regressaremos, dentro em pouco.
Se
a árvore de Natal teve origem alemã, já os cartões de Boas Festas foram uma
invenção completamente inglesa. O primeiro cartão desejando "Merry
Christmas" foi concebido por Sir Henry Cole em 1843, e representava, como
referiu Asa Briggs: "a family Christmas dinner with three generations
present, although there was no tree, another Victorian innovation, in this case
imported from Germany".12 Pode ver-se, também, dos dois lados, desenhos
que representam a caridade, com cenas de doação de alimentos e vestuário aos
pobres. Diz-se que Sir Henry Cole teve esta ideia por ser preguiçoso no envio
de cartas de Boas Festas.
Mas
é certo que inventara, três anos antes, o penny post e, graças ao novo
sistema de correios, o cartão que inventou foi um êxito, e vendeu logo mais de
2000 exemplares a um xelim cada, o que era, apesar de tudo, relativamente caro.
Com novas reduções no preço dos correios (half-penny post), e com novas
tecnologias de impressão a cores, rapidamente o cartão de Boas Festas se tornou
acessível a todos. Em 1880 a indústria de cartões de Boas Festas era altamente
lucrativa, tendo sido impressos, nesse ano, mais de 11 milhões de cartões.
A
comemoração do Natal não dispensava um jantar festivo. O peru, que hoje
associamos ao jantar de Natal, foi também uma invenção vitoriana. Antes, era
sobretudo o ganso assado que constituía o prato de resistência. É, ainda, um
modesto ganso que Bob Cratchit consegue comprar para o jantar de Natal da
família e que, não obstante, faz as delícias de todos.
"There was never
such a goose. Bob said he didn’t believe there ever was such a goose cooked.
Its tenderness and flavor, size and cheapness, were the themes of universal
admiration. Eked out by apple-sauce and mashed potatoes, it was a sufficient
dinner for the whole family; indeed, as Mrs. Cratchit said with great delight
(surveying one small atom of a bone upon the dish), they hadn’t ate it all at
last!"13
Mas
a redenção de Mr. Scrooge leva-o a mandar comprar para os Cratchit um peru, tão
grande que era do dobro do tamanho de Tiny Tim: "It was a Turkey! He never could have stood upon his legs, that bird. He
would have snapped’em short off in a minute, like sticks of sealing-wax"14,
exclama o narrador. E
Mrs. Beeton, a inesquecível autora do extraordinário livro Mrs. Beeton’s
Book of Household Management, publicado em 1861, diz, a propósito da
maneira de trinchar um peru:
"A Christmas
dinner, with the middle classes of this empire, would scarcely be a Christmas
dinner without its turkey; and we can hardly imagine an object of greater envy
than is presented by a respected portly paterfamilias carving, at the season
devoted to good cheer and genial charity, his own fat turkey, and carving it
well."15
Ainda
de acordo com Mrs. Beeton, em Dezembro a principal tarefa da dona de casa é
preparar "the creature conforts" para todos os que nos estão próximos
e nos são queridos, a fim de enfrentar o Natal com semblante feliz, espírito
satisfeito, e dispensa cheia. Mas também caberá à
dona de casa a importante tarefa de preparar o pudim: "in stoning the
plums, washing the currants, cutting the citron, beating the eggs, and MIXING
THE PUDDING, a housewife is not unworthily greeting the genial season of all
good things".16
O
Christmas Pudding era, pois, outra iguaria indispensável. Já na
ilustração de Seymour para o Christmas Book de Hervey está representado
com destaque. Mrs. Beeton dá receitas pormenorizadas, mas Dickens, como sempre,
capta a emoção e excitação do pudim flamejante, mesmo numa casa modesta como a
dos Cratchit:
"Mrs Cratchit
left the room alone -- too nervous to bear witnesses -- to take the pudding up
and bring it in... Hallo! A great deal of steam! The pudding was out of the
copper which smells like a washing-day. That was the cloth. A smell like an
eating-house and a pastrycook's next door to each other, with a laundress's
next door to that. That was the pudding. In half a minute Mrs. Cratchit entered
-- flushed, but smiling proudly -- with the pudding, like a speckled
cannon-ball, so hard and firm, blazing in half of half-a-quarter of ignited
brandy, and bedight with Christmas holly stuck into the top."17
O
efeito produzido por A Christmas Carol teve impacto nos mais inesperados
sectores da sociedade inglesa. É impossível resistir a relatar o episódio do
Natal de 1843 em casa dos Carlyles, contado por Jane Carlyle em carta à sua
sobrinha, onde refere que Carlyle, cuja constituição nervosa tinha sido
excitada por "visions of Scrooge", foi tomado por: "a perfect convulsion
of hospitality, and has actually insisted on improvising two dinner
parties with only one day between"18.
Numa
casa gerida com a maior parcimónia como a dos Carlyles, com Thomas Carlyle a
sucumbir constantemente a ataques de dispepsia e a consumir alimentos mais que
sensaborões, a preparação do peru para o segundo jantar foi uma aventura, que
Jane narra com irresistível sentido de humor.19 Mas foi um êxito, numa refeição
composta adicionalmente por sopa de lebre, carneiro estufado, pudim de pão e
empadas.
Ainda
no Natal de 1843, Jane e Thomas Carlyle vão a uma festa, dada por Mrs.
Macready, organizada por Dickens e John Forster, que evoca quase literalmente a
festa de Natal dos Fezziwigs em A Christmas Carol.20 Jane conta que
Dickens fez truques de magia21, e conta como Thackeray e outros dançavam como Maenades,
como Dickens lhe pediu, de joelhos, uma valsa, que ela recusou, mas em
compensação como conversou "the maddest nonsense" com Dickens,
Forster, Thackeray e Maclisle. E conta ainda como,
depois da ceia, quando: "we were all madder than ever with the pulling of
crackers, the drinking of champagne, and the making of speeches, a universal
country dance was proposed – and Forster, seizing me round the waist, whirled
me into the thick of it, and made me dance!!"22
Na
festa de Natal dos Macreadys Jane Carlyle bebeu champagne. Mas as bebidas mais
comuns, em dias de festa, entre as classes menos abastadas eram o Negus23 ou o
Bishop24, mencionados em A Christmas Carol, ou ainda o punch quente que,
de acordo com Mrs. Beeton era universalmente bebido entre as classes médias no
princípio do século, mas que fora sendo gradualmente substituído por vinho.25
As
festas com música e dança, os cânticos de Natal, muitos deles compilados por
William Sandys, cantados por pequenos grupos na rua, chamados
"Waits", começaram também a tornar-se tradição de Natal. As festas de
família envolviam, além dos comes e bebes e dos presentes, jogos de cabra-cega,
charadas, pequenas representações, juntando adultos e crianças, familiares
próximos e distantes, à volta da mesa e da lareira.
Mas
o ambiente festivo que envolvia as classes médias estava também associado a um
sentimento de caridade que se acentuava no Natal. É bom não esquecer que a
década de quarenta foi chamada de "hungry forties", por ter visto
chegar a extremos antes impensáveis a miséria das chamadas classes
trabalhadoras nas cidades industriais e em Londres. Bastará ler a obra de Henry
Mayhew London Labour and the London Poor, publicada pela primeira vez em
1851-2, para ter um quadro completo da miséria vivida nas ruas de Londres.
Mas
a pobreza envergonhada ou simplesmente pobreza de empregados de escritório, com
famílias numerosas, é objecto da compaixão de Dickens. A Christmas Carol é,
talvez, o melhor exemplo do espírito de Natal. Só para recordar aos que não se
lembram, conta a história do Sr. Scrooge, avarento, misantropo, egoísta,
incapaz de um gesto de simpatia pelos outros que, na véspera de Natal, é
visitado por vários "ghosts" que o levam a um abrir de olhos para os
outros, tipificados em Bob Cratchit, seu empregado de escritório, e na família
Cratchit, de que faz parte uma criança com problemas de desenvolvimento motor,
Tiny Tim.
A
mensagem de Dickens, neste e em muitos outros textos, é a de que fazer bem aos
outros também nos faz feliz. E o Natal é a época do ano em que mais se notam as
diferenças entre os que podem celebrar em família e aqueles que são pobres, sós
e abandonados. O espírito de Natal de Dickens não passa só pela ajuda material.
Passa, sobretudo, pela intensificação dos sentimentos que definem a nossa
humanidade: olhar para os outros e vê-los, realmente; cultivar gestos de
aproximação aos outros em que se transmite alegria; proporcionar pequenos
prazeres que têm mais o valor simbólico do gesto do que o valor material do
donativo. A alegria de quem dá é tão grande como a de quem recebe.
E
a mensagem de Natal de Dickens pode ser vista como a mensagem para toda a
chamada (por Carlyle) "the Condition of England Question": numa
Inglaterra dividida entre ricos e pobres, o que fazer para diminuir o fosso que
os separava, o que fazer para extinguir o sentimento de revolta e de injustiça
sofrido pelos mais pobres? Dickens, fervoroso admirador de Carlyle, entende,
como este, que será necessário um "change of heart", uma mudança de
atitude, de ambas as partes, que permita virem ao de cima os valores do amor,
da bondade, da solidariedade, da generosidade, do perdão e da verdade, anulando
o egoísmo, a avareza, a crueldade, o rancor e a mentira. É um espírito cristão,
de amor ao próximo, que constantemente percorre as suas narrativas.
No final de "A
Christmas Tree" Dickens escreve que ouve um murmúrio passar entre os ramos
da árvore que diz: "This, in commemoration of the law of love and
kindness, mercy and compassion. This, in rememberance of Me".26
O
espírito cristão do Natal está sempre presente nos textos de Dickens. À medida
que os anos passam, estes textos começam, também, a acentuar um outro traço:
associar às celebrações de Natal os ausentes, ou os que já partiram desta vida.
É a memória da sua cunhada, que morrera em 1837, com 17 anos, que inspira as
últimas reflexões de "A Christmas Tree". Mas a memória, como faculdade
formativa do caracter aparece também, numa história de Natal intitulada
"The Haunted Man and the Ghost’s Bargain. A Fancy for Christmas
Time", publicada em 1848.
Aqui,
num pacto com o seu próprio fantasma, um cientista, de nome Redlaw, renuncia às
suas memórias, que eram fonte de sofrimento. Deixa de sofrer com elas, mas
perde ao mesmo tempo toda a capacidade de simpatia para com os outros, de
generosidade e de amor. Pior, ainda, contamina todos aqueles em quem toca com a
mesma perda de memória. E os efeitos são devastadores: pessoas excelentes ficam
invejosas, descontentes com a sua sorte, revoltadas por não terem mais. Dickens
está a dizer-nos que o sofrimento é parte integrante da formação do bom
carácter, e que é preciso aprender a perdoar.
Perdida
a memória do sofrimento, perde-se também a generosidade e a alegria, que se
constroem na adversidade. Mas vai mais longe ainda, na extrapolação que faz da
catástrofe individual que será a perda da memória, para alertar para uma
catástrofe nacional bem possível e bem presente. Introduz na narrativa uma
criança em estado animalesco, selvagem, hostil a tudo e a todos. O espírito
que, na hora da redenção, aparece ao cientista, diz-lhe que essa criança é a
última e mais completa ilustração de uma criatura humana desprovida de
quaisquer memórias, como aquelas a que o cientista renunciou. E acrescenta:
"No softening
memory of sorrow, wrong or trouble enters here, because this wretched mortal
from his birth has been abandoned to a worse condition than the beasts, and
has, within his knowledge, no one contrast, no humanising touch, to make a
grain of such a memory spring up in his hardened breast. All within this
desolate creature is barren wilderness. All within the man bereft of what you
have resigned, is the same barren wilderness. Woe to such a man! Woe, tenfold,
to the nation that shall count its monsters such as this, lying here, by
hundreds and by thousands."27
E
prossegue, acentuando o horror que espera uma nação em que se multipliquem as
crianças que chegam a adultos vazias de sentimentos e de memórias, resultado da
indiferença social. Por isso o cientista, depois de compreender o alcance do
que fizera, e de recuperar a memória graças ao exemplo da mais extraordinária
generosidade – "the teaching of pure love" – por Milly, uma simples
dona de casa, cai de joelhos e agradece a Deus. E assume a missão de tomar
conta da criança selvagem e hostil:
"Then, as
Christmas is a time in which, of all times in the year, the memory of every
remediable sorrow, wrong, and trouble in the world around us, should be active
with us, not less than our own experiences, for all good, he laid his hand upon
the boy, and, silently calling Him to witness who laid His hand on children in
old time, rebuking, in the majesty of His prophetic knowledge, those who kept
them from Him, vowed to protect him, teach him, and reclaim him."28
O
espírito cristão de Dickens percorre todos os seus contos de Natal. A presença
de Jesus é muitas vezes evocada, como Aquele que ensina e que cura. Como Tiny
Tim dizia, Jesus fez os mendigos aleijados andarem, e os cegos verem. E a
preocupação de Dickens como pai, em ensinar a vida de Jesus aos seus filhos
levou-o a escrever, em 1849, um livro que intitulou The Life of Our Lord,
que nunca quis que fosse publicado.29 O parágrafo inicial demonstra, se dúvidas
houvesse, quanto o nascimento e a vida de Cristo eram fundamentais no conceito
de vida, de educação e de formação de Charles Dickens:
"My dear
children, I am very anxious that you should know something about the History of
Jesus Christ. For everybody ought to know about Him. No one ever lived, who was
so good, so kind, so gentle, and so sorry for all people who did wrong, or were
in anyway ill or miserable, as he was. And as he is now in Heaven, where we
hope to go, and all to meet each other after we are dead, and there be happy
always together, you never can think what a good place Heaven is, without
knowing who he was and what he did."
Ao
deliciarmo-nos com as descrições dos convívios de Natal de Dickens, com a
exuberância das iguarias descritas, a alegria das festas, a generosidade dos
presentes trocados, a animação da música, a decoração da árvore de Natal, não
podemos deixar perceber o poder que estas narrativas, ao longo de décadas,
exerceram na imaginação colectiva. Enraizaram nela uma versão festiva do Natal,
e transformaram em práticas generalizadas hábitos e comportamentos que passaram
a ser vistos como tradicionais. Mas o Natal de Dickens tem também o lado do
amor ao próximo, da caridade cristã, tornada sempre presente e viva pela
memória do nascimento de Jesus, de Deus feito homem.
E,
como muitas vezes acontece nas histórias que acabam bem, as personagens das
suas histórias reúnem-se, no final, à volta da mesa do jantar de Natal, para
celebrar a harmonia, o amor e a paz.
The Christmas Dinner in the Great Hall. Plate 16, Charles Dicken's, The Haunted Man. Ilustração para o livro de Charles Dickens, onde se retrata a Ceia de natal no Grande Salão. |
NOTAS:
1
Maria Luísa Leal de Faria Geraldes Barba é professora catedrática da Faculdade
de Ciências Humanas e foi Vice-reitora (2004-2012) da Universidade Católica
Portuguesa. É Doutorada e Agregada em Cultura Inglesa pela Faculdade de Letras
(Univ. de Lisboa) onde leccionou desde 1972 assim como na Universidade Católica
Portuguesa, onde coordenou a área de Ciências da Comunicação (2000- 2002) e
continua a leccionar em cursos de doutoramento e mestrado da FCH. Desempenhou
diversas funções académicas na Fac. de Letras da Universidade de Lisboa,
(Vice-presidente do Conselho Científico; Coordenadora do curso de Estudos
Europeus; Presidente do Depto. de Estudos Anglísticos e Directora do Instituto
de Cultura Inglesa). Pertence à direcção do Centro de Estudos Anglísticos, onde
dirige uma linha de investigação. Foi membro da Comissão Científica do Senado
da Univ. de Lisboa; da Assembleia de Representantes da Fac. de Letras;
presidente da Comissão Pedagógica do Depto. de Estudos Anglísticos e membro do
Conselho Directivo da Fac. de Letras. Foi Sub-directora Geral do Ensino
Superior, Coordenadora Nacional do Programa Língua e do Programa Socrates,
membro do Conselho Consultivo da CEPES-UNESCO, membro do Júri Nacional do
Prémio D. Diniz, e membro de uma Comissão de Especialistas no âmbito do
Ministério da Ciência e do Ensino Superior (1995-2005). Tem diversas
publicações sobre temáticas de Estudos Vitorianos, Estudos de Cultura e A Ideia
de Universidade. É membro de diversas sociedades científicas nacionais e
estrangeiras, (Sociedade Científica da UCP, Associação Portuguesa de Estudos
Anglo-Americanos, European Society for the Study of English, Carlyle Society,
English Speaking Union). É titular da Ordre des Palmes Académiques. É membro da
direcção da Associação D. Pedro V, uma associação de solidariedade social.
2
Uma versão deste texto foi apresentada à Faculdade de Ciências Humanas em 18 de
Dezembro de 2013.
3
A obra de Mark Connelly Christmas: A Social History (London: I. B.
Tauris & Co Ltd, 2012) problematize esta questão, inclinando-se claramente
para uma leitura de continuidade das tradições, e criticando a posição da
“invenção da tradição”, de Hobsbawm e Ranger.
4 Peter Ackroyd, Dickens,
London, Minerva, 1993, p.436.
5 Citado por Michael Slater, em
Charles Dickens: A Chrismas Carol and Other Christmas Writings, with
Introduction and Notes by Michael Slater, London: Penguin Books, 2003, p. [xi]
A fonte de Slater é o artigo “Dickens and “Father Christmas”. A Yule-tide
Appeal for the Babes of Famine Street”, The Nineteenth Century, vol. 62,
July-December 1907, pp. 1014-29. Em nota, p. xxviii, Slater refere:
“Watts-Dunton describes the girl as representative of ‘thousands of the London
populace who never read a line of Dickens … but who were nevertheless familiar
with his name’ and who looked upon him ‘as the spirit of Christmas incarnate;
as being, in a word, Father Christmas himself”.
6
Em Michael Slater, p. xxi e Ackroyd, p. 566.
7 Charles Dickens, A
Christmas Carol and Other Christmas Writings, with Introduction and Notes
by Michael Slater, London, Penguin Books, 2003, p. 231. Todas as citações
dos contos de Natal de Dickens serão referidas a esta edição, que passará a ser
designada, em nota, por A Christmas Carol.
8 Memoirs and Correspondence
of Field-Marshal Viscount Combermere, 2 vols., London, 1866, ii, 419, in
Christopher Hibbert, Queen Victoria: A Personal History. London: Harper
Collins, 2000, p. 158 nota.
9 Idem.
10 Quando Scrooge visita o
sobrinho no dia de Natal depara-se com a seguinte cena: “They were looking at
the table (which was spread out in great array); for these young housekeepers
are always nervous on such points, and like to see that everything is right”. A Christmas Carol, p. 115.
11 “A Christmas
Tree”, in A Christmas Carol, p. 231.
12 Asa Briggs, Victorian
Things. Chicago, The University of Chicago Press, 1989, p. 364.
13
A Christmas Carol, p. 81.
14
Id., p. 113.
15 Mrs. Beeton, Mrs.
Beeton’s Book of Household Management. Abridged edition. Edited with an
Introduction and Notes by Nicola Humble. Oxford,
Oxford University Press, 2000, pp. 225-6. Como é referido na Introdução, esta
obra é o livro de cozinha inglês mais popular de sempre. Em 1861, quando teve a
primeira edição, vendeu mais de 60.000 exemplares. Em 1868 já tinha vendido
mais de dois milhões.
16
Mrs. Beeton, p. 38.
17
A Christmas Carol, p. 81.
18 In Tea Holme, The
Carlyles at Home, illustrated by Lyntton Lamb. Oxford, Oxford University
Press, 1979, p. 33-34.
19 “I do not remember that I
have ever sustained a moment of greater embarrassment in life … than yesterday
when Helen suggested to me that I had better stuff the turkey –
as she had forgotten all about it! I had never known “about it”!
But as I make it a rule never to exhibit ignorance on any subject
devant les domestiques for fear of losing their respect – I proceeded to
stuff the turkey with the same air of calm self dependence with which I
told her some time ago, when she applied to me, the whole history of the Scotch
free-church dissentions – which up to this day I have never been able to take
in!”, id., p. 34.
20 A Christmas Carol,
pp. 62-63.
21 “Jane Welsh Carlyle was also
there and told a friend, “Only think of that excellent Dickens playing the conjuror
for one whole hour – the best conjuror I ever saw…”. In Ackroyd, p.
437.
22 In Virgina Surtees Jane
Welsh Carlyle, Wilton, Salsbury: Michael Russell, 1986, p. 176.
23
Negus era uma mistura de vinho e água quente adoçada e aromatizada com
limão e especiarias, com o nome do seu criador, Coronel Negus (falecido em
1732). In A Christmas Carol, p 63 e 278.
24
Bishop era uma bebida feita com vinho tinto quente, deitado por cima de
laranjas amargas, e que se adicionavam açúcar e especiarias, que ficava com cor
roxa. In A Christmas Carol, p. 65 e 281.
25
Ver Mrs. Beeton, pp. 354-355.
26 In A Christmas Carol,
p. 247
27 In A
Christmas Carol, p. 204.
28
A Christmas Carol, p. 227.
29
O livro seria publicado em 1934, por decisão de um dos filhos de Dickens e com
o consentimento da restante família. Está on-line, graças a um bisneto
(trineto de Charles Dickens), e pode ser lido em http://www.chucknorris.com/Christian/Christian/ebooks/dickens_life.pdf
A citação é extraída da versão on-line.
Fonte: FARIA, Maria Luísa Leal de. A invenção do Natal. Gaudium Sciendi, n. 5, dez. 2013, p. 91-103.
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