Em memória aos 50 anos do assassinato do ativista político-social e pastor Martin Luther King Jr, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, além de ser lembrado por seu engajamento no movimento negro estadunidense, promovendo passeatas e comícios, como seu famoso comício em 1963, em Washington D.C, onde ele usou uma das frases mais célebres pela qual ficou conhecido: "Eu tenho um sonho". Sendo assim, trago o seguinte texto do prof. Dr. e bispo Paulo Ayres Matos, apresentado em homenagem a King Jr, em 2006.
Martin Luther King Jr fotografado diante da multidão da famosa Marcha de Washington D.C, ocorrida em 23 de agosto de 1963. |
“Quem
se importa hoje com Martin Luther King? Quem se interessa hoje por Martin
Luther King?”, essa foi a questão colocada há quase duas décadas atrás pelo Don
L. Davis, Diretor do Instituto de Pastoral Urbana ligado à Universidade da
Virgínia, nos Estados Unidos, num excelente ensaio sobre a relevância do
pensamento e obra de Martin Luther King, vinte anos após a sua morte, por
ocasião do estabelecimento da terceira segunda-feira do mês de Janeiro como
feriado nacional norte-americano, em celebração do seu aniversário no dia 15 do
mesmo mês”.1
O
argumento central do ensaio de Davis tem a ver com a dura constatação de que a
melhor maneira de nos livrarmos do legado da vida do grande ativista social
norte-americano em favor dos direitos civis da população negra tem sido a
crescente veneração dele por parte da elite norte-americana e, me atreveria a dizer,
de todo o mundo, na mesma medida em que os princípios, valores e estratégias que
nortearam sua prática revolucionária são negados no cotidiano das relações
sociais. Dizia, então, o Dr. Davis, citando um dos biógrafos de King:
“O
mesmo congresso e presidente que aprovou o dia do aniversário de Martin King,
como feriado nacional, se recusaram a assinar uma nova lei de direitos civis
nos anos 80. ... Não seria o caso do Presidente Reagan ter se apercebido de que
a melhor maneira de não se confrontar com King é venerá-lo? Honrá-lo com um
feriado que, se ele estivesse vivo, nunca teria aceitado? ... É muito mais
fácil honrar um herói morto do que reconhecer e seguir um profeta vivo! A
melhor maneira de se furtar a qualquer desafio é exaltar e adorar a fonte
concreta da qual se originou tal desafio”.
Reunimo-nos
hoje aqui neste espaço do Memorial da América Latina, construí- do para
celebrar e nos comprometer com o nosso comum destino latino-americano, para
mais uma vez honrar a memória e a luta de um dos maiores seres humanos que o
século XX teve oportunidade de oferecer a todas as gerações – Martin Luther
King Jr. Mas o que será que nos trouxe aqui? Será que nos importamos realmente
com sua vida e obra? Haverá realmente algum interesse de nossa parte de nos
comprometermos, pelo menos de uma vaga maneira, com os mesmos valores e
princípios que fizeram dele um ardoroso lutador pela erradicação das injustiças
não só em seu país mas em outros cantos do mundo? O que será que nos motiva na
realização dessa III Semana Martin Luther King?
O
que me proponho apresentar nesta sessão de abertura dessa importante realização
do PALAS ATHENA é uma reflexão sobre a trajetória de um homem que sempre teve
diante de si a certeza de que sua obra era anterior a ele mesmo e que não
estaria terminada quando de sua morte. No dia anterior à sua morte, na
conclusão do discurso proferido aos grevistas dos serviços de água e esgoto da
cidade de Memphis, no Estado de Tennessee, King, alegorizando a passagem
bíblica que diz ter Moisés visto de longe, do alto da montanha, a terra
prometida onde por sua morte não pôde entrar, afirmou:
“O
que fariam a mim alguns de nossos doentes irmãos brancos? Bem, eu não sei o que
me acontecerá agora. Temos diante de nós duros dias. Mas, isto não me importa
agora. Porque eu tenho estado no alto da montanha. E eu não me importo. Como
qualquer um, eu gostaria de viver uma vida longa. Longevidade é coisa boa. Mas,
eu não estou preocupado com ela agora. A única coisa que quero fazer é cumprir
com a vontade de Deus. E Deus me tem permitido chegar ao alto da montanha. E eu
a tenho contemplado – a terra prometida. Talvez eu não entre nela acompanhando
vocês. Mas, nesta noite quero que vocês saibam que como um povo vamos entrar na
terra prometida. E por isto estou feliz esta noite. Eu não temo nada. Nenhum
homem me faz ter medo. Meus olhos viram a glória do Senhor”.2
Esta
profunda convicção de que a obra na qual estava engajado, era muito maior do
que ele mesmo fez de Martin Luther King um símbolo para todas as pessoas que em
qualquer lugar lutam pela superação de todas as formas de exclusão e
descriminação. A obra de sua curta vida – morreu antes de completar quarenta
anos de idade – é e sempre será uma referência maior onde quer que mulheres e
homens estejam comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e
fraterna.
Mas,
quem foi este Martin Luther King? Permitam-me apresentar alguns traços que
considero importantes em sua trajetória desde Atlanta, onde nasceu, até seu
martírio em Memphis.3 King nasceu no dia 15 de janeiro de 1929. Como seu pai,
King tornou-se pastor batista, sendo ordenado quanto tinha somente 19 anos de
idade, quando também se graduou em sociologia na conceituada faculdade negra
Morehouse College. Foi nesta mesma época que King pela primeira vez tomou
contato com a vida e obra de Mahatma Ghandi, passando a partir daí a estudar
com seriedade os seus ensinos sobre a não-violência como estratégia para
radicais mudanças sociais.
Sua
carreira acadêmica foi desenvolvida, primeiro no Seminário Teológico Crozer, na
Pennsylvania, onde se bacharelou em teologia, e posteriormente na Faculdade de
Teologia da Universidade de Boston, onde recebeu o título de doutor em
filosofia na área de teologia sistemá- tica. Foi em Boston, sob a orientação do
teólogo metodista Harold DeWolf, introduzido à filosofia do personalismo, uma
escola filosófica norte-americana que afirma o valor fundamental de cada ser
humano enquanto tal.
A
formação religiosa de King se deu dentro de um lar e de uma igreja fortemente
enraizada na vibrante tradição evangélica negra norte-americana. Ao longo dos
tempos, as igrejas negras, principalmente as batistas e metodistas, vieram a
ser espaços de resistência e luta contra o racismo e a segregação racial nos
Estados Unidos. Foram elas nutridas na aplicação do ensino bíblico à sofrida
vida cotidiana da população afroamericana, tanto antes como depois de sua
emancipação, tão bem expressa nos cânticos dos Negro Spirituals.
Essa
formação religiosa foi fundamental para o desenvolvimento não somente de sua
teologia, mas, acima de tudo para uma forte espiritualidade manifesta de modo particular
em sua prática social. King se insere numa tradição religiosa afroamericana
extremamente ampla e rica em que resistência e luta pela liberdade se conjugam
através da interconexão no imaginário religioso das lembranças da mãe-África
com a mensagem na Bíblia do Deus do Êxodo, o libertador dos pobres escravos no
Egito. Certamente, cânticos como Go down, Moses, tell the Pharoh e War no more!
inspiraram gerações e gerações de afro-americanos em sua luta, primeiro contra
a própria escravidão e depois contra a descriminação e a segregação raciais.
E
isso não foi diferente com Martin Luther King. Neste sentido, a mística e a
espiritualidade de King foram sempre caracterizadas pela firme convicção de que
o Deus da Bíblia, em meio às lutas de cada dia, sempre está do, no e ao lado
dos pobres, dos marginalizados, dos discriminados e dos excluídos da sociedade.
Outro aspecto da religiosidade afroamericana que se introjetou profundamente em
King foi o estilo oratório peculiar aos pregadores negros norteamericanos.
King, quer como pregador, quer como conferencista, quer como ativista social,
nunca abriu mão da retórica própria das igrejas negras norte-americanas.
Por
outro lado, as pesquisas mais recentes sobre o pensamento de King mostram que
sua formação teológica, tanto no Crozer como em Boston, o levaram a aprofundar
sua resistência e crescentemente oposição a qualquer forma intimista ou
individualista da fé religiosa. Neste sentido, King assumiu crescentemente a
agenda teológica do liberalismo norteamericano, especialmente do Evangelho Social
(Social Gospel)4. A forte piedade e espiritualidade místicas de King,
insertadas na cultura religiosa afro-americana, foram, cada vez mais ao longo
de sua curta existência, determinadas por seu crescente e radical compromisso
social na luta em favor da justiça e da paz. Os estudiosos, que nas últimas
duas décadas têm se dedicado ao resgate do pensamento teológico e social de
King, estão afirmando com mais veemência a importância de sua formação
teológica e filosófica em sua prática política, de maneira particular a
influência da filosofia da não-violência como ensinada e praticada por Mahatma
Ghandi.
Entretanto,
em que pese a importância tanto de sua formação religiosa na casa de seus pais
e na igreja batista negra, como de sua formação acadêmica no Seminário Crozer e
na Universidade de Boston, a verdade é que sua vida vai ter uma mudança radical
com a sua designação para o pastorado da Igreja Batista da Avenida Dexter em
Montgomery, Alabama, no coração racista do chamado Deep South, a terra da mais
abjeta descriminação e segregação raciais. Um ano depois de sua chegada a
Montgomery, King não teve como escapar ao desafio colocado pela inusitada e
radical decisão de Rosa Parks, uma mulher negra de 42 anos de idade, ao recusar
ceder seu lugar a um branco num dos ônibus da cidade5 . Rosa, recentemente
falecida, por causa de seu aparente tresloucado gesto no dia 1o de dezembro de
1955, acendeu a chama de uma fogueira que logo estaria incendiando a vida de
milhares e milhares de mulheres e homens negros em todo sul dos Estados Unidos,
inclusive de Martin Luther King.
Quatro
dias depois, simultaneamente, ocorreu o boycott contra as companhias de ônibus,
o julgamento de Rosa Parks, e a eleição de King por unanimidade para presidente
da Associação para o Progresso [de Pessoas de Cor] de Montgomery. Neste mesmo
dia aconteceu a virada na vida de King. Naquele dia, King estava virando a
página de sua vida de forma irreversível. A tranqüilidade dos tempos escolares,
acadêmicos e ministeriais, de êxito pessoal, daria lugar a uma vida tempestuosa
de grandes vitórias e terríveis derrotas. Ele e o mundo já não seriam os
mesmos. Logo o doutor em teologia teria de dar lugar ao audacioso
pastor-ativista. Em menos de dois meses King provou o gosto amargo e ao mesmo
tempo desafiador das cadeias de uma sociedade racista.
Daí
em diante até o final de sua vida King nunca se envergonhou por um minuto
passado em um recinto presidiário; antes pelo contrário, pois, em suas próprias
palavras, se envergonhava sim da sociedade que construíra cadeias para encerrar
aqueles e aquelas que lutavam em favor da justiça e da igualdade entre todas as
pessoas, quer fossem elas brancas ou negras.
Daí
em diante King e seus familiares estiveram sempre correndo risco de morte,
sendo alvo de uma série infindável de tentativas de assassinato, de atentados a
bomba contra sua casa, de acusações infames contra sua integridade moral,
intelectual, política e espiritual, inclusive de plágio de sua tese doutoral e
de adultério, sendo que muitas dessas acusações foram forjadas pelos próprios
órgãos de segurança do governo norte-americano.
É
verdade que a luta em Montgomery contra a segregação nos ônibus acabou por ser
exitosa, sendo eliminada por ato da Suprema Corte Americana qualquer
discriminação; um ano depois do ato corajoso de Rosa Parks o sistema de
transporte público no Estado de Alabama foi integrado. Mas, a luta contra o
racismo norte-americano estava somente no início. Muito mais havia por fazer,
primeiro no sul dos Estados Unidos, depois no norte do país, e tempos depois
além das fronteiras do seu país.
As
complicações no ano de 1958 não foram poucas e culminaram em setembro com o
atentado que King sofreu no Harlem, em Nova Iorque. Em plena recuperação, King
resolve, no início do ano seguinte, passar com sua esposa Coretta um mês na
Índia se aprofundando nas técnicas das marchas não-violentas de Gandhi, a
convite de Jawaharal Nehru, primeiro-ministro daquele país. No início de 1960,
outro fato importante vai catapultar as atividades de King: sua transferência
para Atlanta a fim de assumir com seu pai o co-pastorado da histórica Igreja
Batista Ebenezer.
Os
anos seguintes vêm King cada vez mais articular politicamente a luta contra o
racismo, tanto local como nacionalmente. Demonstrações sitin, marchas,
piquetes, vigílias de oração, tudo isto é motivo para prisões, julgamentos, e
atentados, não só contra King, mas contra outros ativistas dos direitos civis,
inclusive com o assassinato de Medgar Evers, líder do NAACP no Mississipi. Por
outro lado, foram se criando as condições para maior mobilização e organização
em níveis local, regional e nacional do movimento dos direitos civis de tal
sorte que no verão de 1963 foi possível organizar-se a primeira grande
demonstração em escala nacional que se realizou no dia 28 de agosto quando King
proferiu seu célebre discurso “I have a Dream”.6
Nessa
ocasião King e outros líderes do movimento se encontram uma vez mais com o
presidente norte-americano John Kennedy. Os meses seguintes foram de dramáticos
acontecimentos: em setembro, quatro meninas negras são mortas num atentado à
bomba a uma igreja negra na cidade de Birmingham, Alabama, e em novembro o
Presidente Kennedy é assassinado. O ano de 1964 vê King envolvido em diversos
protestos por todo o sul dos Estados Unidos, a morte por assassinato de dois
estudantes brancos e um negro que estavam fazendo campanha para inscrição
eleitoral de negros no Mississipi, a assinatura da primeira parte da Lei dos
Direitos Civis, e a concessão do Prêmio Nobel da Paz a King.
No
início de 1965 Malcom X, ex-líder do movimento muçulmano negro, é assassinado
por antigos companheiros muçulmanos. King, apesar de suas profundas divergências
ideológicas com Malcolm, devido a questão do uso estratégico da não-violência,
expressa seu profundo pesar pela morte do outro líder negro norte-americano
mais importante naquela década. Neste mesmo ano a cidade de Selma, no Alabama,
vai se tornar o principal foco das ações do movimento dos direitos civis.
Mas,
é no ano de 1966 que King tomar a decisão que terá graves conseqüências para os
três anos finais de sua vida: ele resolve deslocar sua ação no movimento dos
direitos civis para as cidades do norte dos Estados Unidos. Isto vai lhe custar
problemas praticamente insuperáveis tanto com os brancos liberais que o
apoiavam, enquanto sua luta estava se dando na região sul do país, como com os
setores negros do norte que crescentemente se exasperavam com o pouco progresso
de sua situação sócio-econômica num contexto de certo não-segregacionismo, mas,
ainda sim, profundamente racista. Os distúrbios urbanos, particularmente no
norte do país exemplificavam em grande parte o desencanto com a estratégia
não-violenta ardorosamente defendida por King. A manifestação mais veemente
dessa desilusão é a proclamação do “Black Power” exatamente por dois dos
principais líderes do Movimento Estudantil Não-Violento7.
Ao
alugar um apartamento no gueto negro de Chicago, King passa a viver com o
cotidiano da vida dos negros numa grande metrópole do norte do país e de um
grande centro do liberalismo norteamericano. É neste mesmo ano que King vai
começar a se envolver no movimento contra a guerra no Vietnam. No ano seguinte,
em março de 1967, no Coliseu de Chicago, durante uma grande demonstração contra
a guerra, King lança um forte ataque à política militarista norte-americana não
só no Vietnam, mas também em outras partes do mundo. Menos de um mês depois,
King pronuncia outro discurso que veio a ser famoso: Além do Vietnam – Tempo de
romper o silêncio, 8 no qual explicita de maneira clara sua percepção da íntima
conexão entre racismo, pobreza e militarismo. No restante do ano a situação
social se agrava e se torna cada vez mais tensa e conflituosa com distúrbios
urbanos explodindo em distantes partes do norte do país com enorme número de
feridos e mortos. Diante de tal quadro, King cada vez mais articula sua luta
não-violenta contra o racismo com as lutas contra a guerra e a pobreza,
explicitando cada vez mais com maior clareza a natureza estrutura-econômica de
suas causas.
Em
fevereiro de 1968 é deflagrada a greve dos trabalhadores dos serviços de água e
esgoto de Memphis, no Estado do Tennessee. King resolve apoiar o movimento e
durante uma marcha de protesto, a violência irrompe e deixa o saldo de um morto
e cerca de cinqüenta feridos. No dia 3 de abril, King profere diante da
assembléia dos grevistas o seu discurso “Eu estive no alto da montanha”. No dia
seguinte King é assassinado.
Permitam-me,
depois desta exposição da caminhada de Martin Luther King, fazer algumas
observações sobre o seu legado.
O
legado de King não admite a construção de nenhuma mitologia em torno de sua
pessoa e obra. Como já foi dito no início desta apresentação, a melhor maneira
de não se levar a sério a vida e a obra de King é transformá-lo em um mito que
deve ser reverenciado. Certamente isso seria para ele mais do que repugnante. A
verdade é, contudo, que muitos círculos isto é o que acontece hoje com a figura
de King, à semelhança do que ocorre com outras figuras tais como o próprio
Ghandi e, entre nós, Dom Helder Câmara e Ernesto Che Guevara, ideologicamente
tão distantes, humanamente tão próximos.
Uma
das dimensões mais daninhas à figura histórica de King é sua apresentação como
o líder solitário na luta pelos direitos civis. E a mídia tem sido em grande
parte responsável por essa distorção histórica. Tal mito se afasta da realidade
histórica da qual emergiu a maiúscula figura de King, colocando-se demasiada
ênfase em suas extraordinárias qualidades como líder e não considerando
devidamente os fatores conjunturais que possibilitaram e contribuíram para sua
aparição e atuação em momento tão singular da luta contra o racismo nos Estados
Unidos. Na verdade, a liderança nacional de King emergiu como fruto de uma rede
de extraordinários líderes locais e regionais que junto às suas comunidades
criavam as condições de mobilização e organização para que ações mais amplas
promovidas e apoiadas pelas lideranças nacionais pudessem ser bem sucedidas9.
Outra
dimensão dessa distorção mítica da figura de King é a ênfase em sua capacidade
oratória. Claro que King, como já foi dito, era um extraordinário pregador
batista negro, que sabia usar magistralmente a retórica peculiar dos pregadores
negros que, influenciados pela forma dialogal das narrativas africanas, fazem
com que haja durante os serviços religiosos uma espécie de dança e contradança,
entre quem prega e quem ouve o sermão, que resulta num envolvimento comunitário
de alta densidade emocional. Aliás, um parêntese, isto é o que faz a pregação
pentecostal ter tanto sucesso em contextos africanos, quer na África, quer na
diáspora africana em outros países como o Brasil, Cuba e o próprio Estados
Unidos.
Tal
ênfase em sua retórica, muitas vezes parece insinuar certa manipulação
emocional e religiosa – da parte de Luther King – de seus ouvintes, o que seria
de fato uma grave distorção de sua mensagem, já que freqüentemente King, em
seus sermões e discursos, ia contra a corrente conservadora teológica e
política prevalecente entre brancos e negros protestantes norte-americanos. Ao
lado da distorção de seus poderes oratórios, há certa ênfase em seu carisma
como líder que carregava as massas a realizar o que lhe pare cia o mais
apropriado na atual conjuntura. Os estudos mais recentes mostram que, ao
contrário de manipulações carismáticas e emocionais, os ativistas sociais viam
as ações lideradas por King como a expressão maior de muitos outros líderes,
especialmente em nível local. Estudos recentes estão mostrando que grande parte
das conquistas da luta pelos direitos civis sob a liderança de King foi
resultado de um grande movimento de massa com base nas comunidades locais.10
É
claro que King tinha clara consciência de seus carismas, homem profundamente
religioso que era. Mas, ele também reconhecia que, diante do racismo
prevalecente na sociedade americana, carisma não seria suficiente para embasar
e impulsionar a luta a que se propunha junto a muitos outros líderes. Também,
King sempre demonstrou profunda consciência com respeito a suas próprias
limitações, inclusive com dúvidas profundas sobre os caminhos a seguir em
certos momentos mais conflitivos. Uma das suas maiores angústias foi exatamente
o fracasso em sua pregação da não-violência, mensagem que nunca conseguiu
ganhar o apoio da grande massa de afroamericanos, especialmente entre os mais
jovens.
Outra
grande frustração de King foi sua incapacidade em ajudar a muitos de seus
colegas pastores, negros como ele, a superarem suas ideologias e teologias
conservadoras que, segundo ele, se constituíam em grande entrave para o avanço
da causa dos direitos civis.
Outra
grande angústia de King foi sua constatação que, ao mover sua atuação para o
norte dos Estados Unidos, os liberais brancos que estavam dispostos a apoiá-lo
enquanto ele lutava somente no sul do país, pouco a pouco foram retirando o
respaldo à luta pelos direitos civis, especialmente quando passou a expressar
com veemência suas opiniões contrárias à guerra no Vietnam e a vincular
racismo, pobreza e militarismo, pregando, mais do que reformas políticas, a
reestruturação do sistema econômico-militar que produzia tanto o racismo, como
a pobreza, no país e no mundo. O que de fato ele passou a defender tinha muito
mais a ver com revolução do que com reforma, ainda que fosse uma revolução
não-violenta!
Se
for verdade que sua formação religiosa e acadêmica foram importantes para a
formação de sua estratégia de mudanças sociais, muito mais verdade, entretanto,
é o fato que foi a própria realidade do racismo, da pobreza e do militarismo
que se encarregou de mudar sua percepção da realidade socio-políticaeconômica
de seu país e do mundo, e, acima de tudo, de suas causas. Foi a decisão
aparentemente estapafúrdia de Rosa Parks que jogou King no redemoinho dos
direitos civis.
Foi
Chicago que fez com que King percebesse que as causas da pobreza eram muito
mais intrincadas do que a segregação nos ônibus e escolas do sul dos Estados
Unidos, e perceber que elas estavam profundamente interrelacionadas com a
pobreza dos guetos negros das grandes cidades do país. Foi o envolvimento do
seu país no conflito no Vietnam que o levou a perceber o caráter internacional
da exploração econômica sustentado pelo aparato capitalista-militar
norte-americano. Quando se apercebeu finalmente de todas estas interconexões, o
acadêmico pastor de Montgomery tornou-se perigoso para o sistema.
Na
medida em que seu idealismo liberal foi dando lugar a um não-violento realismo
radical, o liberal The New York Times, após o discurso contra a ação do governo
de seu país no Vietnam, o chamou de demagogo populista. Na medida em que King
vai além de seu amor nacionalista, por seu país, e firma, em nome de sua
fidelidade, à fé que abraça o seu compromisso internacional com os pobres,
marginalizados e excluídos de todo mundo — seja no Peru, na África do Sul, ou
no mundo dominado pelo comunismo soviético — King se torna uma grande ameaça,
talvez mais perigosa que os militantes do Black Power. Na medida em que é capaz
de, em seu caleidoscópio, perceber que pobreza, racismo e militarismo estão
intrinsecamente relacionados com o poder econômico, King ultrapassa os limites
liberais do permissível. Por isso, seu assassinato é seu destino inevitável.
Para isso ele estava preparado. Por isso, como já vimos, termina o seu discurso
aos grevistas de Memphis, na noite anterior ao seu assassinato, dizendo:
“Como
qualquer um, eu gostaria de viver uma vida longa. Longevidade é coisa boa. Mas,
eu não estou preocupado com ela agora. A única coisa que quero fazer é cumprir
com a vontade de Deus. E Deus me tem permitido chegar ao alto da montanha. E eu
a tenho contemplado – a terra prometida. Talvez eu não entre nela acompanhando
vocês. Mas, nesta noite quero que vocês saibam que como um povo vamos entrar
nessa terra prometida. E por isto estou feliz esta noite. Eu não temo nada.
Nenhum homem me faz ter medo. Meus olhos viram a glória do Senhor”.
Diante
dos desafios de um mundo globalizado debaixo do pensamento único e da ditadura
do poderoso capitalismo financeiro internacional, a percepção de Martin Luther
King Jr. da interconexão entre pobreza, racismo e militarismo, e a mesma luta
que ele travou contra os poderes que produzem tal mundo, continuam reclamando
um compromisso inabalável para todas as pessoas que acreditam que um mundo
diferente é possível.
Notas:
1 Davis, Don L. (Director of the Urban Ministry Institute. Word Impact,
Inc.), Who Cares about King?, www.livedtheology.org/pdfs/Davis.pdf, acessado em
20/03/2006.
2 King Jr., Martin Luther. Discurso
“I've Been to the Mountaintop”, pronunciado em 3 de abril de 1968, em Memphis,
Tennessee, Estados Unidos, www.americanrhetoric.com/speeches/
mlkivebeentothemountaintop.html. Acessado em 20/03/2006.
3 Dados sobre a vida de Martin Luther
King Jr. são encontrados no site Martin Luther King Jr. Chronology, http://www.lib.lsu.edu/hum/mlk/srs216.html.
4 Carson, Clayborne. Martin Luther King, Jr., and the African-American
Social Gospel. In AfricanAmerican Christianity, editado por Paul E. Johnson,
159-177. Berkeley: University of California Press, 1994. Reimpresso
African-American Religion: Interpretive Essays in History and Culture, editado
por Timothy E. Fulop e Albert J. Raboteau. New York: Routledge, 1997;
http://www.stanford.edu/group/King/additional_res ources/articles/ gospel.htm,
acessado em 20/03/2006.
5 Biografia de Rosa Parks,
http://www.achievement.org/autodoc/page/par0bio -1, acessado em 20/03/2006.
6 King Jr., Martin Luther. Discurso “I
have a dream”, pronunciado em 28 de agosto de 1963, em Washington, DC, Estados
Unidos. http://www.usconstitution.net/dream.html, acessado em 20/03/2006.
7 McCartney, John T. Black Power Ideologies: An Essay in African
American Political Thought. Philadelphia: Temple University Press
(Re-edição em setembro de 1993).
8 King Jr., Martin Luther. Sermão
“Beyond Viet-Nam”, pronunciado em 4 de abril de 1967, na Riverside Church, em
Nova Iorque, Estados Unidos. http://rriverstone.com/netart/mlk.html, acessado
em 20/03/2006.
9 Veja nota número 3.
10 Idem.
Fonte:
MATTOS, Paulo Ayres. A trajetória de Martin Luther King Jr. Revista Caminhando, v. 11, n. 18, p. 2006, p. 69-80.
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