A presença de mulheres nos conflitos das guerras luso-holandesas (1624/1630-1654) sempre foi irregular, já que mulheres eram na maior parte das vezes proibidas de lutarem. Assim, situações de mulheres guerreiras foram casos raros e pontuais. Um deles que ganhou fama muito tempo depois, referiu-se as moradoras da povoação de São Lourenço de Tejucupapo, atualmente um distrito do município de Goiana, em Pernambuco. No ano de 1646 uma expedição holandesa que assaltou o povoado foi rechaçada por seus moradores, incluindo algumas mulheres que chegaram a pegar em armas para se defender.
![]() |
Detalhe do mural Mulheres de Tejucupapo, pintura de Tereza Costa Rego, 2015. |
O relato da batalha
Em abril de 1646 a guarnição holandesa na ilha de Itamaracá, estava passando por problemas devido a falta de alimentos. Embora a ilha já tivesse tido vários roçados, mas devido a guerra, os holandeses não tinham tempo e homens suficiente para cultivá-los. Assim, uma tropa foi enviada ao continente para coletar comida e outros suprimentos. O povoado de São Lourenço de Tejucupapo distava cerca de 30 km em linha reta partindo do norte da ilha, essa distância poderia ser facilmente percorrida se navegando pelo rio Itapessoca.
O capitão da tropa escolheu Tejucupapo por ser localidade conhecida por seus roçados de mandioca, lavouras e pomares. Além disso, o local era fracamente defendido, logo, era uma presa fácil. Enquanto isso, o mestre-de-campo André Vidal de Negreiros organizava o transporte de gado vindo do Rio Grande do Norte, que tinha atravessado a Paraíba e havia chegado nas cercanias da Vila de Igarassu. Na ocasião, os capitães Paulo da Cunha e Francisco Lopes eram os encarregados do transporte de pelo menos 300 cabeças de gado. Se os holandeses tivessem conhecimento sobre aquilo, os teriam atacado. Mas para a sorte daquela operação de transporte de alimentos, os holandeses de Itamaracá estavam interessados em atacar Tejucupapo, ignorando Igarassu naquela ocasião. (SANTIAGO, 1879, p. 91-92).
A tropa holandesa seguiu em barcos até o porto de Tejucupapo, situado num afluente do rio Itapessoca. Os relatos divergem sobre a quantidade de homens envolvidos.
O frei Manuel Calado (1648, p. 336) assinalou que a tropa holandesa navegou durante a noite para realizar um ataque surpresa no amanhecer. Porém, devido a ataques anteriores, a população da região já estava suspeitando de algo do tipo e ficaram em sentinela. A força de defesa era formada em torno de 100 homens, os quais uma parte foi enviada para montar emboscadas, enquanto outra permaneceu entrincheirada nas casas e na paliçada. Algumas mulheres foram apoiar os homens, fazendo orações e ajudando-os com mantimentos. Uma delas carregava uma imagem de Cristo e clamava ajuda de Deus e dos santos. Algumas mulheres armadas com dardos e lanças atacaram os holandeses com tamanha bravura que os repeliu.
Calado (1648, p. 336) não mencionou que elas tenha usado armas de fogo, mas algumas usaram armas brancas durante a batalha. De qualquer forma, após três tentativas de tomar o povoado, a tropa holandesa desistiu e partiu, deixando seus mortos, armas e equipamentos para trás.
Por sua vez, o frei Rafael de Jesus (1844, p. 419) citou que houve três tentativas de atacar Tejucupapo. A primeira ocorreu no começo de abriu, quando os holandeses enviaram 80 soldados, os quais foram rechaçados pelos homens do cabo Zenóbio Achioli, que dispunha de 30 soldados. Posteriormente, outra expedição foi enviada a ilha de Itapessoca, vizinha a Tejucupapo, levando mais gente, mas ali o saldo de mortos teria chegado a 80 baixas para os holandeses.
Finalmente, num terceiro intento que ocorreu em fins de abril ou começo de maio, o capitão holandês enviou mais de cem homens para atacar São Lourenço de Tejucupapo, confiante de que daria certo. O povoado era cercado por uma paliçada simples, contendo poucos soldados, mas muitas mulheres, crianças e alguns idosos. O capitão Agostinho Nunes despachou 30 soldados para se esconderem no mato e emboscar os holandeses, antecipando a aproximação deles até a povoação. A tropa holandesa venceu a emboscada e atacou o povoado em três cargas, ali devido a falta de homens para lutar, algumas mulheres pegaram em armas e confrontaram os holandeses. (JESUS, 1844, p. 429-431).
Frei Rafael de Jesus não citou nomes das mulheres que participaram, mas relatou que elas agiram com tamanha bravura que colocou os holandeses para fugir, incrédulos que estivessem confrontando mulheres.
Por sua vez, o cronista Diogo Lopes de Santiago nos forneceu outra versão desse conflito, baseada nos escritos de Manuel Calado. Primeiro, Santiago não mencionou as investidas anteriores ocorridas no começo de abril, centrando-se no grande ataque apenas, o qual ele disse que contou com 600 homens enviados para aquela missão. A tropa holandesa seguiu em dez barcos até próximo de Tejucupapo, na ocasião o povoado era guarnecido por 100 soldados, além de haver mulheres, crianças, idosos e alguns escravos. O local era cercado por uma paliçada. Os holandeses acreditavam que por estarem em maior número a vitória seria fácil. Agostinho Nunes reuniu os homens e alguns adolescentes, e os espalhou pelos arredores para que emboscassem os inimigos. Os demais permaneceram aquartelados em suas casas aguardando os invasores. (SANTIAGO, 1879, p. 93).
Os holandeses chegaram no povoado trazendo 400 soldados e 200 indígenas flecheiros. Um mensageiro foi despachado para Igarassu a fim de pedir reforços para o capitão-mor Zenóbio Achiole. Enquanto isso, a tropa invasora marchava rumo ao povoado, os homens que ficaram de tocaia começaram a atirar iniciando o conflito, mas eles foram mortos ou fugiram, assim, a tropa invasora avançou até as paliçadas e começou a abrir passagem por elas. (SANTIAGO, 1879, p. 95).
Santiago (1879, p. 96-97) comentou que algumas mulheres começaram a motivar os homens, gritando e orando. Algumas também lhe levavam água, munição e armas, enquanto eles se mantinham entrincheirados nas casas e atacavam os invasores. Os moradores clamaram a ajuda dos santos mártires Cosme e Damião, os quais teriam intercedido por eles, levando os holandeses a desistirem de manter o ataque e irem embora. Horas depois o capitão-mor Zenóbio Achiole chegou com 300 soldados até Tejucupapo.
Pelo relato de Santiago nota-se que ele não enfatizou a participação feminina no combate, relegando as mulheres mais como ajudantes do que tendo pego em armas de fato para enfrentar os invasores. Embora ele tenha consultado o trabalho de Calado, no qual é citado que houve mulheres que lutaram com lanças naquela batalha.
As heroínas de Tejucupapo
Os relatos históricos não citam o nome as mulheres que lideraram a defesa de Tejucupapo ao lado de seus maridos, pais, irmãos e filhos, todavia, a tradição oral local perpetua o nome as quatro Marias: Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Maria Joaquina, consideradas as responsáveis por montar a resistência feminina do povoado. Elas seriam mulheres provavelmente de origem parda ou indígena. Além disso, a tradição local aponta que as terras da Fazenda Megaó, no Monte das Trincheiras tenha sido o local do conflito.
![]() |
Cena do Teatro Heroínas de Tejucupapo, enquanto as atrizes estão entrincheiradas diante do obelisco erguido para simbolizar o possível local histórico da batalha de 1646. |
Apesar dessa dúvida se tais nomes são reais ou surgiram tempos depois, é fato que houve a resistência feminina em Tejucupapo em que um grupo de mulheres se uniu aos homens para lutar ali, fossem usando lanças, armas de fogo ou outros objetos para se defender. No entanto, vale ressalvar que não dispomos também de detalhes do conflito, apenas breve menções de cronistas portugueses, já que os cronistas holandeses ignoraram esse acontecimento. Provavelmente por ter sido uma derrota vergonhosa. Afinal, uma tropa de 100 a 600 homens, ter sido rechaçada por moradores de um povoado, incluindo mulheres que os enfrentaram, era realmente vergonhoso.
O teatro das heroínas
Em 1993 foi criado o Teatro das Heroínas de Tejucupapo por iniciativa de moradoras locais organizados e liderados por dona Luzia Maria da Silva, a qual ficou gravemente doente, mas enquanto estava em leito, ouviu as histórias das heroínas, então prometeu que se Deus a curasse, ela prestaria uma homenagem as suas antepassadas, assim surgiu o teatro. Já que estamos falando de mulheres cujas famílias habitam aquele distrito a muitas gerações. (MELO, 2024, p. 42).
Assim, inicialmente de forma improvisada, contando com atrizes inexperientes e figurantes, o teatro começou de forma modesta, mas o projeto não foi abandonado, tornando-se anual. Dessa forma, desde 1993, no mês de abril ocorre as apresentações do teatro encenando a Batalha de Tejucupapo, onde mulheres lideradas pelas Quatro Marias lutaram ao lado dos homens para expulsar os holandeses. (MELO, 2024, p. 43).
![]() |
Fotografia da peça das Heroínas de Tejucupapo, em 2024. |
No ano de 2018 o teatro passou a fazer parte da Associação Grupo Cultural Heroínas de Tejucupapo, e em 2022, a associação e seu trabalho teatral, educativo e cultural foi reconhecida como patrimônio vivo de Pernambuco. Assim, nesses últimos anos, o teatro que acabou se profissionalizando, atrai muitos espectadores, conta com centenas de atores e figurantes, além de figurinos mais elaborados. Ao longo da sua história como atestam pesquisas a respeito, o pequeno teatro de mulheres foi notícia nos jornais pernambucanos, destacando sua iniciativa e valor.
O trabalho teatral e da associação além de matérias jornalísticas, rendeu livros, documentários, artigos, monografias, dissertações e teses, os quais analisam vários aspectos sobre patrimônio, tradição, oralidade, dramaturgia, memória, história viva (living history) etc.
NOTA: O livro Tejucupapo: história - teatro - cinema (2004) organizado por Cláudio Bezerra, analisa a primeira década de atuação do teatro.
NOTA 2: O livro Biografia de Luzia Maria da Silva e o Relato da História de Tejucupapo (2006) de Elizabeth Francisca de Souza, conta a história de vida de dona Luzia e sua ideia de fundar o teatro.
NOTA 3: Tejucupapo - um filme sobre mulheres guerreiras (2002) é o primeiro documentário sobre as atividades e história do grupo teatral.
Fontes
CALADO, Manuel. O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade. Lisboa: impresso por Paulo Craesbeeck, 1648.
JESUS, Rafael de. Castrioto Lusitano ou Historia da Guerra entre Brazil e a Hollanda, durante os annos e 1624 a 1654, terminada pela gloriosa restauração de Pernambuco e das capitanias confinantes. Paris: publicado por J. P. Aillaud, 1844.
SANTIAGO, Diogo Lopes. História da Guerra de Pernambuco. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLII, parte I, p. 91-105, 1879.
Referência
MELO, Rizangela Pereira de. O teatro das heroínas de Tejucupapo: Patrimônio vivo do estado de Pernambuco. Relatório Técnico (Mestrado Profissional em História), Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2024.
LINKS