Pesquisar neste blog

Comunicado

Comunico a todos que tiverem interesse de compartilhar meus artigos, textos, ensaios, monografias, etc., por favor, coloquem as devidas referências e a fonte de origem do material usado. Caso contrário, você estará cometendo plágio ou uso não autorizado de produção científica, o que consiste em crime de acordo com a Lei 9.610/98.

Desde já deixo esse alerta, pois embora o meu blog seja de acesso livre e gratuito, o material aqui postado pode ser compartilhado, copiado, impresso, etc., mas desde que seja devidamente dentro da lei.

Atenciosamente
Leandro Vilar

domingo, 2 de junho de 2019

Santo António de Sant’Ana Galvão, OFM (1739-1822): primeiro Santo natural do Brasil

Santo António de Sant’Ana Galvão, OFM (1739-1822): 
primeiro Santo natural do Brasil 


António de Sousa Araújo


OBS: As imagens aqui contidas foram escolhidas por mim, para ilustrar o trabalho do autor. 

Por ocasião da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe e durante a sua Viagem Apostólica ao Brasil, sua Santidade o Papa Bento XVI presidiu, na presença de centenas de Bispos e mais de um milhão de fiéis, no dia 11 de Maio de 2007, sexta-feira, no aeroporto “Campo de Marte”, na cidade de São Paulo, à Santa Missa e à Canonização do primeiro Santo brasileiro. Trata-se do padre franciscano Frei António de Sant’Ana Galvão (1739-1822), cuja biografia tentaremos condensar para os nossos interessados da hagiografia, da piedade e da cultura franciscanas.

Semelhante tarefa ser-nos-ia absolutamente impossível sem o acesso à Biografia documentada ou Biografa Crítica de Fr. Desidério José Kalverkamp1, publicada pelo Mosteiro das Concepcionistas da Luz, nas Edições Loyola – S. Paulo, 1993, em vol. de 384 pp. Foi na qualidade de vice-postulador da causa que Frei Desidério, a partir de 1983, pôde pesquisar documentação e redigir o texto deste volume, para apresentar em Roma, em 1993, como a “Posição sobre a Vida, virtudes e fama de santidade” entregue na Congregatio de Causis Sanctorum Prot. n.º 1765, cuja edição foi autorizada em São Paulo, no Brasil.

Nos sítios da Internet ligados ao Brasil existe abundante informação a seu respeito sob o nome de Frei Galvão, Frei António de Sant’Ana Galvão ou mesmo Frei António Santana Galvão. Com o nome de Frei Galvão designam-se monumentos, edifícios, retratos, objectos, localidades, e até uma Serra. Tudo isso, como veremos, a demonstrar a qualidade e peso da devoção, popularidade e carinho, que, graças ao seu patrocínio e exemplo de vida, conquistou entre o povo paulistano e brasileiro.

As Biografias

A primeira biografia sobre ele escrita logo após a sua morte, pelo seu confrade e sucessor, Frei Lucas José da Purificação, constava de um só caderno manuscrito, que, tendo corrido de mão em mão, acabou desaparecido, tudo levando a crer que terá sido queimado.

1 – A bibliografia escrita e impressa ganhou impacto em 1922, na comemoração do primeiro centenário da sua morte, sobretudo a partir do Recolhimento ou Mosteiro da Luz – São Paulo – onde ele exerceu a sua acção pastoral e passou quase toda a sua vida. Num álbum de 86 pp. in 8º grande, com 14 trabalhos históricos, o terceiro franciscano Manuel E. Altenfelder assina o estudo mais sólido de todos sobre Frei António de Sant’Ana Galvão.

2 – Seis anos após, publicou o Convento da Luz a Vida de Frei António de Sant’Ana Galvão, Religioso Franciscano natural de Guaratinguetá (1739-1822), S. Paulo, 1928, 48 pp. ilustradas, um trabalho altamente devedor a Altenfelder.

3 – Manuel E. Altenfelder Silva, O.T.F., em Brasileiros Heroes da Fé, S. Paulo, 1928, 424 pp., traça os perfis de 35 brasileiros: sacerdotes, religiosos e leigos, ocupando Frei Galvão as pp. 241-290, cujo texto sólido tem em vista a edificação do povo.

4 – Sor Myrian, Vida do venerável Servo de Deus Frei António de Sant’Ana Galvão, Religioso Franciscano natural de Guaratinguetá (1739-1822), S. Paulo, 1936, 254 pp. Nesta 2ª edição aumentada, e sob pseudónimo, assina-se a Abadessa do Mosteiro da Luz, Madre Oliva Maria de Jesus. Não é rigorosamente uma biografia histórica. Tem interesse pela reprodução de alguns documentos franciscanos do Arquivo do Mosteiro.

5 – Lúcio Cristiano, Frei António de Sant’Ana Galvão. O Apóstolo de São Paulo entre os séculos XVIII e XIX, S. Paulo, 1954, 14 pp. Sem preocupações históricas, propõe um bom perfil biográfico com quatro citações bibliográficas.

6 – Maristela, Frei Galvão, Bandeirante de Cristo, S. Paulo, edição do Mosteiro da Luz, 1978, 227 pp. Parece constituir a primeira biografia com atenção histórica, dominando todos os contributos históricos anteriores. Não se destinando a historiadores, não tem preocupações críticas, mas tenta uma relação dos passos necessários à beatificação e canonização.

7 – Pe. António de Oliveira Godinho, Frei António de Sant’Ana Galvão. Escritos Espirituais (1766-1803), S. Paulo, 1980, 93 pp. É a primeira edição de uma parte dos escritos, iniciativa do Museu de Arte Sacra de S. Paulo.

8 – Carmelo Surian, Vida de Frei Galvão, S. Paulo, 1997, 209 pp. É a biografia mais recente, sem nada de novo, a não ser a reconstrução mais minuciosa da vida do servo de Deus.

Frei António Galvão – a sua família e naturalidade

Frei António de Sant’Ana Galvão nasceu e foi baptizado na freguesia e vila de Guaratinguetá, do Bispado do Rio de Janeiro, em 1739. Mas com a criação da diocese de S. Paulo logo em 1745, poder-se-á dizer que Frei Galvão é um verdadeiro paulistano: viveu e morreu nesta diocese. Ignora-se o mês e dia do seu nascimento, por falta ou desaparecimento da certidão do registo paroquial.

Retrato de Frei Galvão, autoria desconhecida, c. 1850. Não se sabe se ele tinha essa aparência exatamente. 
No nome Sant’Ana, de professo franciscano na Província capucha da Imaculada Conceição com que se tornaria conhecido, sepultou parte do nome de família. Na verdade, ele denominava-se António Galvão de França, e era descendente de um português. O seu pai era de Portugal, chamava-se igualmente António Galvão de França, nascera em 1706 em Faro, no Algarve, e havia emigrado para o Brasil, para a região de Guaratinguetá, onde se casou, em 1733, com Isabel Leite de Barros, em capela de familiares dela, chamada “capela dos Correias”2. Em vez do nome de França paterno, passou a usar o nome de Sant’Ana, (hoje até se diria espontaneamente Santana), em homenagem à santa padroeira da família3.

O pai foi sargento-mor em Taubaté e dedicava-se também ao comércio em vários ramos de negócio, sendo homem de influência social na sua terra, conhecido pela sua caridade e generosidade, o que condizia perfeitamente com a sua qualidade de membro das Ordens Terceiras de S. Francisco e de Nossa Senhora do Carmo4. Enviuvou em 1755, com 49 anos, nessa condição ou estado vindo a falecer em 1770, abintestado, e tendo ainda em sua casa um filho, três filhas e uma fortuna das mais sólidas do tempo5.

A mãe, Isabel Leite de Barros, filha do capitão Gaspar Correia Leite e Maria Leite Pedroso, estava ligada aos troncos vicentinos/paulistas provindos de povoadores quinhentistas. Teve onze filhos e faleceu com apenas 38 anos, em 1755, tendo deixado vivos 3 rapazes e 5 meninas. Tal como o marido, gozava também do dom de atender os pobres e de juntamente com ele levar à pia baptismal grande número de crianças pobres e abandonadas6. Constituíam uma clássica família cristã do Brasil do século XVIII, devota de Santa Ana, como se vê até pelo nome das filhas. Mas continuemos a identificá-la.
  • José, o primogénito (1734-1782), casado com sua prima Maria Xavier de Barros, teve oito flhos. Foi sargento-mor e faleceu em Guaratinguetá. Dele provém a grande família Galvão de França que de Paraíba irradiou para cidades paulistas como Itu, Piracicaba, Campinas…
  • Maria (1735-1796), casada com o seu primo, capitão Francisco Ferraz de Araújo. Teve seis filhos e ficou sepultada em Guaratinguetá.
  • Isabel Leite de Barros ou Leite Galvão (1736-1771), casada com Manuel Nogueira da Silva, teve três filhos. Jaz também em Guaratinguetá.
  • António (1739-1822). Trata-se do nosso S. Frei Galvão, sepultado e venerado em S. Paulo.
  • Ana (1741), que faleceu criança.
  •  Ana Joaquina (1744-1841), casada com o alferes Félix Gomes de Siqueira, teve oito filhos e faleceu com 97 anos em Embaú.
  • João (1745), que teve Santa Ana por madrinha7, faleceu menino8.
  •  Ana Jacinta (1746-1823/1825), casada com o capitão-mor José Gomes de Siqueira e Mota, com filhos todos falecidos na infância9.
  •  Manuel (1747), casado em 1792 com Ana Joaquina de Andrade e falecido sem filhos, no Rio de Janeiro.
  • Francisca (1748), que faleceu criança.
  •  Francisca Xavier (1753-1805), casada com o alferes Francisco Nabo Freire. Teve dezessete filhos, vários deles falecidos na infância10.

Algumas notas da sua vida e formação em família

Guaratinguetá remonta enquanto povoação a 1630 e ter-se-á desenvolvido em redor de uma capela “erguida em palha e parede de mão”, dedicada a Santo António11. Eclesiasticamente dependia do Bispado do Rio de Janeiro até que em 1745 ficou integrada em São Paulo. O seu apogeu económico, político e social foi atingido com o ciclo do café e graças ao seu forte desenvolvimento urbano, foi elevada a comarca em 1852. Com a decadência do café em finais do século XIX, virou-se para a economia agropecuária, tornando-se a capital leiteira do Vale do Paraíba12.

Localização de Guaratinguetá, local de nascimento do santo. 
Em Outubro de 1748, António Galvão de França surge juntamente com a sua irmã Maria de 13 anos como padrinho de baptismo de uma menina, Maria Raposo, na sua paróquia de S.to António de Guaratinguetá. Quando contava 13 anos, ou seja, em 1752, teve de sair para muito longe de casa. Para efeito de estudos foi enviado para o Colégio/Seminário de Belém, mantido pelos Padres da Companhia de Jesus na vila de Cachoeira, a 130 quilómetros da cidade do Salvador da Baía.Tratava-se dum estabelecimento fundado pelo Padre Alexandre de Gusmão (1629-1724), um lisboeta emigrado em 1644, que ingressou na Companhia em 1646, nela se tendo ordenado e sido Provincial. Em 1670 residia na Baía. Aí fundou o seminário, (de que fora Reitor e vice-reitor entre 1690-1715) em regime de internato13. Regia-se por uma disciplina simples e austera, para formação de jovens. Teve a particularidade de suprir praticamente a carência dos seminários menores, porquanto dele saíram muitos eclesiásticos diocesanos e regulares.

Quando António Galvão de França ali chegou, já ali se encontrava, havia cerca de cinco anos, o seu irmão mais velho, o José, com quem permaneceu apenas uns dez meses, uma vez que ele viajou para as cidades da Baía e do Rio de Janeiro, onde permaneceu seis meses, antes de regressar a Guaratinguetá e de prosseguir cinco anos de estudo em São Paulo. O José chegou a pensar receber ordens menores. Mas desistindo delas, aparecerá em 1758 na Cúria metropolitana de São Paulo a solicitar dispensa para se casar com a sua prima Maria Xavier de Barros. Neste colégio jesuíta recebeu António Galvão uma sólida educação intelectual e religiosa, tendo-se mesmo revelado bom latinista e havendo começado a sentir o desejo de se consagrar na vida religiosa no seio da Companhia de Jesus. Deve ter sido grande a sua dor, quando em 1755, aos dezesseis anos, perde a sua mãe de apenas 38 anos de idade, bem assim como quando o seu pai, atento às borrascas pombalinas que ameaçavam a Companhia, obstou a que o filho demandasse o ingresso nessa Instituição votada à extinção14.

Nos Franciscanos: formação e apostolado

Na impossibilidade de conseguir do pai o acordo para ingressar na Companhia de Jesus, António Galvão voltou-se para os Frades Menores ou Franciscanos ditos Descalços ou Capuchos da Província da Imaculada Conceição, cujo apostolado era bem conhecido na sua região. Em Taubaté, não longe de Guaratinguetá, possuíam o Convento de Santa Clara, para eles construído pelo povo e autoridades locais entre 1674 e 1677(15). Terá sido a partir desta Casa que o candidato a franciscano se iniciou no conhecimento do ideal de vida franciscana e no contacto com o Provincial Frei Francisco da Purificação, para que o aceitasse na Província, com sede na cidade do Rio de Janeiro. Foi este quem o enviou para o Convento de S. Boaventura de Macacu, inaugurado em 1670, na Capitania do Rio de Janeiro, e destinado a Casa de Noviciado já desde 1672(16), por onde passariam 229 noviços, notáveis muitos deles17.

Ruínas do Convento de São Boaventura de Macacu, Rio de Janeiro. Frei Galvão estudou alguns anos como noviço aqui. 
Foi com 21 anos que António Galvão de França se despediu do pai e dos irmãos, para tomar o hábito franciscano a 15 de Abril de 1760, sendo guardião dessa casa o P. Frei José das Neves18. Foi nesse dia que, de acordo com praxes franciscanas, renunciou ao seu nome de França para incluir o de Sant’Ana (= Santana) em lembrança da devoção que sua mãe lhe consagrava como protectora da sua família, cujo nome deu a três das suas filhas.

Terminou o ano de noviciado, professando a 16 de Abril de 1761(19) e fez juramento de defender o privilégio da Imaculada Conceição20. Logo de seguida terá vivido no Convento de Santo António do Rio de Janeiro, estudando em vista das ordenações, ou trabalhando, até que em 1762, e como consta do Livro das Matrículas dos Ordenandos, foi escalando, entre Março e Julho, etapas da ordenação sacerdotal, recebendo esta a 11 de Julho de 1762, das mãos de D. Frei António do Desterro, OSB, bispo do Rio de Janeiro21 . Depois de ordenado sacerdote foi para o convento de S. Francisco de São Paulo, onde a 24 de Julho de 1762 “foi admitido ao estudo de Filosofia. Significa isto que, em atenção ao seu excelente currículo de estudos obtido entre os jesuítas no Seminário de Belém, na Baía, houveram por bem ordená-lo antes de terminado aquele curso.

Terá, pois, feito a Filosofia e a Teologia nas aulas dos religiosos da cidade de São Paulo, acompanhando também os padres que já ali se exercitavam no apostolado entre o povo22. A duração normal do Curso era de três anos de Filosofia e de outros tantos de Teologia escolástica e Moral para se habilitarem para pregadores e para confessores de seculares23. Além destes estudos e do trabalho apostólico, Frei António Galvão procedeu ao aprofundamento da sua espiritualidade franciscano-mariana, declarando-se filho e perpétuo escravo” de Maria Santíssima, em Novembro de 1766, isto é, quando contava 27 anos de idade24.

Em Capítulo Provincial de 1768, Frei António de Sant’Ana Galvão, depois de concluídos em São Paulo todos os estudos regulamentares, foi nomeado, a 23 de Julho, pregador e confessor de seculares, além de porteiro do mesmo convento paulistano. Ser porteiro era então um cargo-chave da vida dum convento, confiado exclusivamente a sacerdotes prudentes e de sólida formação e conduta religiosa25, pelo apreço que se pretendia manter entre o convento e o povo. Foi confirmado neste ofício em 1770 e em 1773. No exercício destes ministérios sacerdotais acompanhou os seus confrades por diversas localidades, caminhando sempre a pé. Sorocaba, Porto Feliz, Itu, Parnaíba, Indaiatuba, Moji das Cruzes, Paraintinga, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e outras localidades o ouviram por ocasião de prédicas solicitadas ou aquando das suas excursões de angariação de fundos para a construção do Convento da Luz, em São Paulo26. Aos 31 anos era já considerado erudito da sociedade paulistana como o comprovam as suas 16 composições poéticas em latim, em louvor de Sant’Ana, na Sessão literária solene de Agosto de 1770, na primeira Academia de Letras, também dita “Academia dos Felizes”27, instalada no antigo Colégio da Companhia de Jesus28.

Orientador de Recolhidas e Assistente de Terceiros Franciscanos

Por 1769/1770 terá sido nomeado confessor do Recolhimento de Santa Teresa, existente em São Paulo desde 1685(29), aparecendo em 1775 como visitador do convento de Itu30, e em 1776 também como Comissário da Ordem Terceira de S. Francisco na cidade de São Paulo, confirmado nesse cargo até 1792, época em que também orientava o Recolhimento da Luz, que aspirava ascender a convento ou mosteiro31.

A fundação do primitivo Recolhimento da Luz está ligada ao Morgado de Mateus, D. Luís António de Sousa Botelho e Mourão, e remonta a 1774(32); surge junto a uma capela de Nossa Senhora transferida em 1603 das margens do Ipiranga para o campo da Luz, a qual em 1765 se encontrava ao abandono33. A Irmã Helena Maria do Espírito Santo, ligada ao Recolhimento de Santa Teresa, estava também por detrás do novo Recolhimento da Luz. Queria ela que esta casa fosse carmelita. Mas o então bispo de São Paulo desde 1774, o franciscano D. Frei Manuel da Ressurreição, quis sujeitá-lo à Regra dos doze capítulos da Puríssima Virgem Maria da Conceição, aprovada pelo Papa Júlio II, em 1511, para a fundadora portuguesa Santa Beatriz da Silva34.

Em 8 de Setembro de 1774 nasceu a nova comunidade concepcionista vindo juntar-se a outras três iguais existentes na Baía, Rio de Janeiro e Minas Gerais, malgrado a oposição do todo-poderoso Marquês de Pombal35. Graças à sua orientação do Recolhimento de Santa Teresa, Frei Galvão acabaria por se ver intimamente ligado ao nascimento e crescimento da nova comunidade da cidade de São Paulo. Mas ao mesmo tempo que comungou das suas alegrias, também partilhou das suas tristezas, tais como a morte da Madre fundadora em 23 de Fevereiro de 1775, a substituição, em 14 de Junho, do Governador Morgado de Mateus por Martim Lopes Lobo de Saldanha, cujos oito anos de governo representam uma “época sinistra na história de São Paulo”, cheia de arbitrariedades, entre elas a de obrigar o Bispo a encerrar o Recolhimento, apesar da autorização do Senado da cidade36.

Perante o inesperado da ordem de encerramento, o Padre António Galvão executou com serenidade a última celebração com notável atraso, para espanto das recolhidas e dos mais circunstantes, os quais, só no final, ficariam ligeiramente a par do alcance do acontecido. Ocorreu isso no dia de S. Pedro, a 29 de Junho de 1775. Tendo-se revestido, ordenou que se encaminhassem para o comungatório: “deu a comunhão e consumiu o Sacramento do Sacrário, mandou apagar a lâmpada e no fim disse ao povo que não adorassem mais o Sacramento que já não existia no Sacrário”37.

Na portaria souberam as recolhidas que o Senhor Bispo as mandava avisar os pais para que as viessem buscar para suas casas, porque dentro de um mês se fechariam as portas. Ninguém, nem Frei Galvão, lhes explicara as razões de tudo isto. Resolveram manter-se confiantes e encerradas em casa, pois quase todas eram naturais da cidade ou da área de São Paulo, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Depois de um mês e dias trouxe o correio pedestre do Rio de Janeiro a resposta do Vice-Rei – Marquês do Lavradio – ao Relatório do Capitão general Martim Lopes, o qual seria advertido e forçado a revogar a ordem e reabrir o Recolhimento, o que fez, persistindo contudo sempre na sua hostilidade em todo o tempo do seu governo (1775-1782)38.

Em face deste contratempo, Frei Galvão repensou ampliar as habitações das recolhidas, substituindo a estrutura de tipo conventual pela de um mero recolhimento e casa de retiro de senhoras piedosas ou devotas, sem votos. Embora pudessem praticar vida religiosa na máxima perfeição, não eram, nem podiam ser tidas como religiosas ou freiras, portanto, fora do alcance das leis anti-monásticas de Portugal. E foi assim que algumas das antigas recolhidas voltaram das suas famílias, muitas das quais contribuiriam para a ampliação do novo Recolhimento. As obras da nova casa efectuaram-se entre 1775 e 1788, tendo-se prolongado ainda numa segunda fase até 1802, com a construção da sua bela igreja39. A hostilidade manifestada pelo Governador tornou mais despertas as recolhidas e solidárias com elas as suas famílias, a ponto de fazer surgir um grande número de pretendentes ou candidatas a devotas e proporcionar a oportunidade de se construir um edifício sólido com paredes de mais de metro de espessura, oito de altura e algumas de trinta de comprimento.

Frei Galvão foi o arquitecto de todo o Recolhimento da Luz, uma obra que precisou de 14 anos de trabalho pesado e moroso, todo ele conseguido à custa de donativos e de braços. Outros tantos seriam necessários para o levantamento da igreja40, inaugurada em Agosto de 1802, embora sem as torres41. Este conjunto conhecido como Convento de Nossa Senhora da Luz constitui ainda hoje um importante espécime da arquitectura religiosa de São Paulo. É uma obra de arte, admirada pela sua resistência e pelo seu belo estilo barroco42; pôde mesmo ser declarada, em 1998, pela UNESCO, “Património cultural da Humanidade”43, tornando-se assim mais do que digna de figurar num Atlas da Arte Portuguesa no Mundo44.

Pintura do Convento da Luz, Henrique Manzo, 1860. O convento e mosteiro foram ampliados sobre direção e projeção de Frei Galvão. 
Além de arquitecto, Frei António Galvão teve de exercer todos os ofícios para a formação das suas “religiosas” ou reformadas: Regente, Mestre, Director. Tinha de lhes ministrar os rudimentos da vida cristã, ensinar a rezar, a ler o latim, a entoar e cantar o gregoriano e a praticar as cerimónias segundo os rituais da vida franciscana. Deixou-lhes nos Estatutos, que lhes redigiu, orientações muito precisas sobre o modo de se comportar no coro, na cela, na casa, na portaria, nas relações entre si, com os doentes, os seculares, superiores e confessores45.

Frei Galvão foi sempre, desde o seio da sua família, desde o Colégio/Seminário jesuíta da Baía, e as casas da sua Ordem Franciscana por onde passou, um zelador de tudo o que é recto, verdadeiro, bom e justo. Patenteou-o, por exemplo, no exercício de cargos de Comissário da Ordem Terceira de S. Francisco (1776-1780)46, fazendo inovações em nome da justiça, como a de investir os capitais em imóveis que renderiam em benefício dos sufrágios atempados aos irmãos falecidos, ou da satisfação de serviços prestados com novos imóveis47.

A sua voz de protesto ou tomada de posição, em 1780, perante a atitude cruel do Governador da Capitania de São Paulo, ao infligir a pena capital, em vez da prisão perpétua, ao pobre soldado Caetaninho, valeu-lhe a ordem fulminante de desterro para o Rio de Janeiro. Ele deu imediato cumprimento à ordem, cuja notícia logo correu toda a sua cidade de São Paulo.

Em pouco tempo, homens com escravos armados formaram bando ameaçador e cercaram a casa do Governador, Capitão-General Martim Lopes Lobo Saldanha, o qual não teve outro remédio senão revogar a sentença de desterro, permitindo a recondução de Frei Galvão ao convento de S. Francisco48. Por causa disso a revolta dos paulistas foi de tal ordem que determinou a demissão do General do seu posto49, numa demissão triste a manchar a história da cidade50.

Os Superiores Franciscanos reconhecem as suas qualidades

Graças à sua virtude, competência e prestígio, os seus superiores franciscanos tinham nele o seu olhar, desejando promovê-lo no seio da própria Ordem. Para tanto começaram por nomeá-lo Presidente e Mestre de Noviços, em Outubro de 1781, no Convento de S. Boaventura de Macacu, da Capitania do Rio de Janeiro.

O Bispo Franciscano de São Paulo, D. Frei Manuel da Ressurreição, não o deixou ir tomar posse. “Os habitantes de S. Paulo – escreveu ele – experimentariam amargura na ausência desse padre”, que “tem tido um procedimento exemplaríssimo pela qual razão o aclamavam santo”51. Frei Galvão era mais útil em São Paulo do que em Macacu, onde em 1884, por decréscimo de noviços, encerrou o Noviciado, tendo assim podido seguir pregando, angariando esmolas e levando a termo a construção do Recolhimento52.

Como se depreende da decisão do Capítulo de Setembro de 1796, o que os seus Superiores franciscanos pretendiam era poder conceder-lhe privilégio de uma Presidência e de uma Guardiania para atingir ou desempenhar cargos mais altos na sua Ordem53. Foi uma espécie de título honorífico a prepará-lo para, na Congregação intermédia de Março de 1798, o nomearem Guardião do Convento de S. Francisco da cidade de São Paulo. Não obstante esta nomeação, Frei Galvão permaneceu Capelão das Recolhidas da Luz, cujos serviços eram considerados insubstituíveis, tanto no Recolhimento como na cidade e em toda a diocese, conforme consta de cartas da Câmara e do próprio Bispo D. Mateus de Abreu Pereira.

Segundo este, o Recolhimento da Luz era considerado “como âncora que sustenta São Paulo e todo o Bispado”54. O problema da acumulação de cargos ou ofícios não estaria então em uso, mas Frei Galvão aceitou-os e exerceu-os dignamente e a contento de todos. Tanto o de guardião de S. Francisco como o de capelão e construtor da igreja do Recolhimento de Nossa Senhora da Luz. Em 1799 terminou a guardiania. Mas em 1801, foi reeleito nas mesmas circunstâncias do mandato anterior55.

O Recolhimento da Luz, atualmente Mosteiro e Convento da Imaculada Conceição da Luz, localizado na cidade de São Paulo. Abriga os restos mortais do santo e o Museu de Arte Sacra. 
Em Outubro de 1804, além da direcção do Recolhimento, foi incumbido da visita canónica do convento de S. Luís de Itu e de ser o Visitador Geral e Presidente do Capítulo, cargo a que renunciou, por doença, ou naturais motivos de cansaço. Recorde-se que a fundação do novo Recolhimento ocupou-o desde 1774 até 1788, isto é, 14 anos. Mas faltava ainda a igreja… E tal como aconteceu com a habitação, Frei Galvão, adoptou com a igreja o critério da solidez da obra. Arrecadar fundos e supervisionar o andamento duma construção em que muitas vezes ajudou com as próprias mãos, implicou todo um conjunto de canseiras com trabalhos e viagens que se prolongaram por outros tantos 14 anos, ou seja, entre 1788 e 1802.

E diga-se que se Frei Galvão teve a imensa alegria de ter sido ele o primeiro a cantar missa e a pregar o primeiro sermão proferido dentro da nova igreja em 15 de Agosto de 1802(56), já não conseguiu concluir o seu sonho. A igreja estava inaugurada. Mas faltavam as torres. O plano da fachada concebido pelo “arquitecto” Frei Galvão traçou-o ele na parede da cela ou cubículo onde morreu, no Recolhimento da Luz. Comportava duas torres. Aquilo que ele já não pôde fazer, muito menos o conseguiriam os seus sucessores. Estes tiveram de se contentar com o levantamento de apenas uma torre57.

A sua ligação a um novo Recolhimento

Também noutras circunstâncias ressaltou patente o reconhecimento e o aproveitamento da virtude, criatividade, empatia e capacidades de organização e liderança de Frei Galvão. As netas do Capitão-mor de Sorocaba, Salvador de Oliveira Leme, Manuela e Rita, filhas de Francisco Xavier de Oliveira, requereram a construção de um recolhimento, principiando pelo projecto de um educandário para seis meninas que manteriam com os seus próprios recursos. Foi esta modalidade um habilidoso subterfúgio utilizado até 1828, data em que pediram ao Imperador D. Pedro I autorização para suspensão do educandário, permanecendo às recolhidas a liberdade de iniciarem “uma vida contemplativa sem nenhuma perturbação”. D. Manuela, faleceria em 1833 e a sua irmã Rita, em 1842(58).

Para a fundação do Recolhimento da cidade de Sorocaba, pediu o Bispo de São Paulo, D. Mateus de Abreu Pereira, a preciosa colaboração não só de Frei Galvão, mas também de duas ou três recolhidas de Nossa Senhora da Conceição da Luz. Os termos do despacho do Vigário Geral de São Paulo, datado de 12 de Agosto de 1811, portanto quando ele contava já cerca de 72 anos, revelavam o respeito e veneração que a Autoridade Diocesana lhe devia: “podendo e querendo as acompanhe [as duas ou três recolhidas de Nossa Senhora da Luz], dê os fundamentos e direcções ao novo recolhimento”. Escusado seria dizer que aceitou e que o êxito da sua missão de direcção deste novo “Recolhimento” foi tão bem-sucedido que onze meses foram o bastante para que ele e as suas colaboradoras do Recolhimento da Luz, Irmãs Domiciana e Rita, pudessem ter regressado em 1812, ao referido Recolhimento de São Paulo59.

Os últimos dez anos da vida de Frei Galvão

Depois desta sua ligação a Sorocaba, Frei Galvão viveu mais dez anos. Caminhava diariamente a pé, entre o convento de S. Francisco e o Recolhimento da Luz, enquanto pôde. De seguida, obteve licença do Guardião e do Bispo para permanecer em dependências da obra, ainda alguns anos60. Habitava “num quartinho contíguo ao convento da Luz, muito ruim e todo esburacado, de chão de terra, situado no local onde hoje está o locutório novo”61, até ao momento em que se mudou para um quartinho (cubículo) atrás do sacrário, “no fundo da igreja”62.

Foi este local ou quarto improvisado que lhe serviu de enfermaria e onde em momentos de insónia e tréguas de sofrimento conseguiu “desenhar na parede” a “cúpula da torre da igreja” que deixaria inconclusa. Neste pequeno espaço de apenas dois metros e cinco centímetros de largura tinha a sua modesta cama. Aceitava todas as privações, dizendo: “seja tudo, por amor de Deus”63. Pelas dez horas da manhã do dia 23 de Dezembro de 1822 aqui faleceu, socorrido de todos os sacramentos, assistido pelo seu Guardião, Frei João do Espírito Santo, P. Mestre Frei Inácio de Santa Justina, Frei António da Assunção e pelos clérigos confessores da Casa, padres Joaquim Francisco de Abreu e Francisco de Assis Ribeiro, seguindo-se, à tarde, o ofício de corpo presente e missa cantada solene64.

Túmulo de São Antônio de Sant'ana Galvão, no Mosteiro da Imaculada Conceição da Luz, São Paulo capital. 
Por concessão do Bispo D. Mateus e a requerimento das Irmãs e moradores da Luz, o seu corpo foi deposto no presbitério da igreja, em sepultura aberta sob a lâmpada do Santíssimo, em frente do altar, cuja lápide registaria o epitáfio: Hic jacet Fr. Antonius a Sant’Ana Galvão huius almae domus inclytus fundator et director qui animam suam in manibus suis semper tenens placide obdormivit in Domino die 23 decembris anno 1822, a significar: Aqui jaz Frei António de SantAna Galvão, ínclito fundador e reitor desta casa, que tendo sua alma sempre em mãos, placidamente adormeceu no Senhor, no dia 23 de Dezembro do ano de 1822”. A primitiva lápide foi substituída por outra de mármore, com os mesmos dizeres, em 1906(65).

Em Fevereiro de 1991, no âmbito do processo de beatificação, perante as Autoridades, membros do Tribunal Eclesiástico e Médicos do Instituto Médico-Legal de São Paulo e alguns especiais convidados, procedeu-se à exumação dos restos mortais de Frei Galvão. Deles, a parte mais conservada foi recolhida numa urna colocada no mosteiro; os fragmentos menores continuariam a permanecer na sepultura66.

Frei Galvão: o seu nome e a sua memória

Como já se referiu, a primeira biografia de Frei Galvão foi escrita por Frei Lucas José da Purificação, seu confrade e sucessor na Capelania do Recolhimento da Luz, com a colaboração das religiosas testemunhas da vida dele durante 48 anos. Como não foi publicada e dela não terão sido feitas cópias, correu de mão em mão, até que alguém (quem sabe se por já delido e surrento com tanto uso!) não mais devolveu o caderno manuscrito. Segundo depoimento recolhido, alguém terá dito, quando perguntado: “Ah… foi para o fogo, como o foram todos os objectos religiosos”…67.

Não obstante esse pequeno incidente, jamais se apagou da memória dos admiradores e devotos, nem o seu nome, nem as suas virtudes, nem alguns factos quase milagrosos68, como o dom de penetrar segredos69, o dom de vencer distâncias (bilocação), ou o de ser advogado para o bom sucesso das parturientes70, o seu prestígio ou força moral sobre o Governo e o povo de São Paulo71, ou nos Paços episcopais e nas Cúrias72, o seu poder apaziguador73, a sua assistência aos aflitos e perseguidos que buscam consolação e justiça74. O respeito pelo seu nome, pelas suas receitas e conselhos, pelas suas lembranças e objectos resultavam desse poder sobrenatural que ressumara da sua virtuosa vida e se prolongava para além da sua preciosa morte.

Os “Galvão de promessa”

Em veneração do Frei Galvão “numerosos indivíduos trocavam os apelidos paternos pelo de Galvão”, “em virtude de promessa feita por seus pais ou avós”. São os “Galvão de promessa”, conhecidos em todo o Estado de São Paulo e existem também noutros Estados particularmente no de Minas Gerais75.

O seu Nome

O nome “Frei Galvão” foi dado a monumentos, edifícios, ruas em várias localidades, a uma Serra; a edifícios, como maternidade, museu, Seminário, Escola Estadual, rancho, residência episcopal; a coisas, como placas, áreas, poço, cela, quadros ou pinturas a óleo, escultura, busto, medalhão etc.76

Pílulas de Frei Galvão

São nada mais nada menos que pequenos papelinhos enrolados com uma oração em latim, dizendo: “Depois do parto, ó Virgem, permaneceste intacta: Mãe de Deus intercede por nós”, que ele escreveu e com sucesso deu a um jovem como remédio para os seus cálculos renais, para que os engolisse com água. O mesmo faria a uma parturiente com dificuldades de parto. Este uso divulgou-se muito, sendo procurado por homens, mulheres e jovens em dificuldades de toda a espécie. As Irmãs do convento de Nossa Senhora da Luz podem dá-las às pessoas que as procuram, na portaria77.

A tradição das pílulas do frei se mantém até hoje, quase duzentos anos depois de sua morte. 
Frei Galvão faz a propaganda de si mesmo. Sua intercessão junto de Deus obtém graças e com elas o amor e a veneração dos devotos. Não é só a capital ou o Estado de São Paulo que o venera. O convento da Luz recebe diariamente cartas de todos os cantos do Brasil, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, a comunicar graças ou a pedir estampas e orações. Até na Argentina, México e Portugal o seu nome é conhecido e invocado78.

Causas de beatificação: a santidade notável, base de todas elas

Exactamente porque raramente se fala das dimensões ou vertentes banais ou das circunstâncias das causas dos santos, comecemos por dizer que cada caso é um caso, mas a organização dum processo comporta sempre um trabalho ou serviço moroso, exigente e não isento de dificuldades. Tudo tem de ser provado, coerente e transparente. Apoiado em Fontes e testemunhas fidedignas, que permitam a construção dum retrato e a reconstituição duma biografia.

No caso de Frei Galvão, saliente-se, antes de mais, que a biografia crítica ou biografia documentada resultou dum conjunto infindável de pesquisas. Tudo em ordem à elaboração do processo para a sua Causa de beatificação. Na realidade, o itinerário da beatificação de Frei Galvão, desde que se iniciou até ao termo da canonização, requereu sete longas décadas e quase quatro processos, todos eles condicionados por contingências inevitáveis, tais como carências de disponibilidade, saúde, meios materiais, competência dos postuladores, acrescentadas a outros tantos imprevistos e vicissitudes.

As notas que colhemos a propósito das sinuosidades ou vicissitudes ocorridas com Santo António Santana, Santo António Galvão ou São Frei Galvão são deveras ilustradoras. Registremo-las. A inexperiência em instruir processos deste tipo, bem assim como a falta de recursos humanos e económicos terão estado na origem do insucesso dos dois primeiros. Além disso, saliente-se que a causa não contou oficialmente com o respaldo nem da Ordem Franciscana nem da Arquidiocese de São Paulo, mas tão somente com as ofertas dos devotos do Servo de Deus e as economias do seu Convento ou Mosteiro da Imaculada Conceição da Luz79. Os requerimentos feitos à Autoridade Eclesiástica, em ordem à introdução da Causa foram sempre, em todos os processos, custeados pela Abadessa do Mosteiro.

O primeiro data de 1938-1939 e teve como postulador Frei Adalberto Ortmann, OFM, que se empenhou na busca de documentos e pesquisas então exigidas pelo Direito, para o que contou com a ajuda do confrade historiador Frei Basílio Röver80. Mas o entusiasmo inicial terá esmorecido com o somar dos anos… Em Maio de 1947, à pergunta que lhe foi dirigida acerca do material recolhido, o P. Ortmann, entretanto desligado da Ordem Franciscana, respondeu que tudo havia entregado à Abadessa do Mosteiro da Luz, por ter sido ela quem custeara toda a despesa havida81. Em Julho de 1948, o postulador entretanto nomeado pelo Cardeal Carlos Mota obteve indicação das insuficiências do processo anterior. Em face disso, em 28 de Abril de 1949, constituiu o Cardeal um tribunal eclesiástico expressamente para a Causa de Frei Galvão, nomeando como Vice-Postulador Frei Dagoberto Romag, OFM, cujo Processiculus Diligentiarum, entregue em Roma em 1949(82) também não sortiu efeito, permanecendo-se assim, em 1954, noutra fase de recesso.

Perante a ineficácia dos processos anteriores, foi reaberto o terceiro processo pelo Cardeal D. Agnelo Rossi, o qual começou com a constituição dum novo tribunal, em 23 de Dezembro de 1969(83). Infelizmente, a nomeação de D. Agnelo Rossi para Prefeito da Congregação da Evangelização dos Povos, em 1970, conduziu à paralização total do tribunal e da postulação, desde então nada mais se produzindo84.

O quarto processo (1980-1991) deve-se à vontade do Cardeal franciscano D. Paulo Evaristo Arns, o qual sendo Arcebispo de São Paulo retomou a Causa muito empenhadamente. Perto de 30 anos volvidos verificar-se-ia, com espanto e consternação, que o Processiculus que devia, havia muito, transitar na Causa dos Santos não aparecia lá; andava extraviado e esquecido. Permaneceria lacrado e intocável, até ao momento em que o Cónego Pascoal Amato, da Diocese de São Paulo, depois de muita canseira e expectativa, o localizaria na Cúria Generalícia dos Frades Menores, donde o retirou e trouxe para o Brasil, para ser incluído em fotocópia na Relação dos diferentes Processos85.

Para tanto, em Novembro de 1980, o Arcebispo de São Paulo constituiu postulador geral Frei António Cairoli, que aceitou em Janeiro do ano seguinte86. O vice-postulador, Frei Alberto Beckhauser, OFM, foi homologado em 5 de Fevereiro de 1981 pelo Cardeal Arns, mas por impossibilidade teve de ser substituído, em 1983, por Frei Desidério J. Kalverkamp, OFM(87), o qual fez novas pesquisas de documentos. Por motivos de saúde, também este teve de desistir, em Abril de 1990, e ser substituído, em Novembro seguinte, pelo P. Arnaldo Vicente Belli, ex-OFM Cap., encardinado na Diocese de São Paulo88. Felizmente, porém, a pesquisa de documentos tinha sido efectuada e a elaboração da Biografia Crítica de Frei Desidério tinha finalmente conduzido a causa a bom termo. De posse de 17 cartas postulatórias da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Bispos do Regional Sul e de todos os Cardeais do Brasil, o Cardeal de São Paulo pôde em Outubro de 1990(89), dirigir ao Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, Cardeal Ângelo Felici o pedido de “nihil obstat”, cuja resposta, ocorreu a 21 de Dezembro desse ano. Tudo isso permitiu proceder-se à preparação do decreto de validade, a partir de 1991(90).

Por outro lado, foi instaurado em 1991, em São Paulo, o Tribunal Eclesiástico para o Processo sobre a continuidade da fama de santidade, o qual nomearia uma Comissão histórica para compulsar Arquivos Eclesiásticos e Civis para verificação de documentos. Em Fevereiro de 1991 procedeu-se à exumação dos restos mortais do Servo de Deus com a presença do Cardeal de São Paulo, do Tribunal Eclesiástico, de pessoas “ad hoc” convidadas e com o trabalho científico do Instituto Médico-legal de São Paulo91.

Em Novembro de 1993 ocorreu a sessão dos consultores históricos, em Junho de 1996 efectuou-se o congresso dos consultores teólogos e em Dezembro o dos Cardeais e Bispos. Após tudo isso, a 25 de Março de 1997, o Sumo Pontífice, João Paulo II, aprovou e dispôs que se elaborasse o Decreto de cuja declaração solene “consta que o servo de Deus António de Sant’Ana (no século António Galvão de França), sacerdote professo na Ordem dos Frades Menores Alcantarinos (ou Descalços) Fundador do Mosteiro de Nossa Senhora da Luz, praticou as virtudes teologais da Fé, Esperança e Caridade para com Deus e para com o próximo, como também as virtudes cardeais da Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza e as outras anexas, em grau heróico para efeito da canonização”. Data a publicação e transcrição deste Decreto nas Actas, do dia 8 de Abril de 1997(92).

No dia 20 de Junho seguinte, voltou a reunir-se o mesmo congresso dos teólogos consultores e a 17 de Fevereiro de 1998 efectuou-se a reunião ordinária dos Cardeais e Bispos. Em ambas as sessões foi afirmativa a resposta à questão do milagre verificado na menina Daniela Cristina da Silva, de 4 anos, de São Paulo, que em Maio de 1990 foi hospitalizada; perante a ineficácia da medicina, os pais, vizinhos e irmãs do Mosteiro da Luz invocaram o Venerável António de Sant’Ana. Tendo logo recuperado a saúde voltou para casa, a 21 de Junho, totalmente curada duma “hepatite fulminante de vírus A com encefalopatia, insuficiência renal aguda. A promulgação do Decreto sobre o milagre, por João Paulo II, ocorreu a 6 de Abril de 1998(93).

Na Carta Apostólica Dominus mihi astitit et confortavit me, de 25 de Outubro de 1998, o Papa designou para o rito de Beatificação o dia 25 de Outubro de 1999(94), fixando para o mesmo dia 25 de Outubro a data anual da sua comemoração litúrgica95. O segundo milagre é posterior. Ocorreu nas pessoas de D. Sandra Grossi de Almeida, de São Paulo e seu filho, Enzio de Almeida Gallafassi. Depois de abortos espontâneos em 1993 e 1994 por malformação uterina, não obstante as correcções cirúrgicas, D. Sandra nunca conseguira qualquer gravidez. Em Maio de 1999, engravidou.

A ecografia de Junho, mostrando deformações, levou o obstreta a tomar precauções para enfrentar a gravidez tida como perigosíssima por diversos motivos. Contudo a gravidez prosseguiu até à 30ª semana, quando os médicos fizeram uma cesariana; a 11 de Dezembro a parturiente poderia falecer… O bebé nasceu são e normal, saindo do hospital a 19 de Dezembro. Tudo isso obteve esta mãe, por intercessão do Beato António Galvão, a quem recorreu e se confiou em Junho de 1999.

Aceite, em 26 de Novembro de 2004, o facto, a Junta médica, em 18 de Janeiro de 2006 declarou não ser de momento possível explicar cientificamente o sucedido, pelo que os teólogos nos dias 4 e 13 de Abril de 2006 e os Cardeais e Bispos, no dia 12 de Dezembro de 2006, responderam afirmativamente acerca do milagre. Bento XVI, inteirado do assunto, fez constar o ocorrido, face à “malformação uterina congénita de classe 3-4 (…) não corrigida cirurgicamente em paciente com história clínica de poliabortividade espontânea, com sucesso de gestação materno-fetal favorável”. O decreto de reconhecimento do segundo milagre foi publicado a 16 de Dezembro de 2006(96).

Na manhã do dia 23 de Fevereiro de 2007, o Papa anunciou a canonização de Frei Galvão na sua visita a São Paulo, no dia 11 de Maio de 2007. No dia 11 de Maio, sexta-feira, procedeu à canonização, tendo na homilia dado louvores a Deus pela graça da canonização de Frei António e agradecido ao actual Arcebispo de S. Paulo, D. Odilo Scherer as palavras de carinho em nome do seu povo e ao seu antecessor Cardeal Cláudio Hummes o empenhamento pela Causa deste Santo. No ponto 5. da sua Homilia, o Papa parece condensar toda a riqueza da profundidade de vida e espiritualidade de Frei Galvão: “Vinde a mim, todos vós que andais fadigados e oprimidos, que eu vos aliviarei” (Mt 11,28). … Como não ver aqui este sentimento paterno e, ao mesmo materno, de Deus por todos os seus filhos? Maria, a Mãe de Deus e Mãe nossa, se encontra particularmente ligada a nós neste momento. Frei Galvão assumiu com voz profética a verdade da Imaculada Conceição. Ela, a Tota Pulchra, a Virgem Puríssima, que concebeu em seu seio o redentor dos homens e foi preservada de toda a mancha do pecado original, quer ser o selo definitivo do nosso encontro com Deus, nosso Salvador. Não há fruto da graça na história de salvação que não tenha como instrumento necessário a mediação de Nossa Senhora”.

Fotografia de 11 de maio de 2007, do Campo de Marte, em São Paulo, aonde o papa Bento XVI celebrou a missa de canonização de Santo Antônio de Sant'ana Galvão. 
Conclusão

A canonização do primeiro santo brasileiro, o franciscano Santo António Galvão ou Santo António Santana Galvão, em 11 de Maio de 2007 coroou não só uma vida de virtudes e um período de mais de um século de graças por sua intercessão obtidas, mas também uma imensidade de trabalhos conjugados ao longo de quase 70 anos, em cuja Causa ou sucessivos processos se viram envolvidas centenas de pessoas e várias instituições.

No caso do nosso Santo, recapitulemos, sumariamente etapas dos processos: O primeiro contou com o trabalho de Frei Adalberto Ortmann, que além de pesquisa documental, registou testemunhos “ex auditu” e testemunhos “ex auditu auditus” entre 1938-1947. Foi ele quem elaborou a Inquisitio S. D. Fr. Antonii de S. Anna Galvão, OFM. No segundo, trabalhou Fr. Dagoberto Romag, em 1949, organizando o Processiculus Deligentiarum dos Escritos do servo de Deus, com três Sessões do Tribunal Eclesiástico de S. Paulo; foi um documento inexplicavelmente bloqueado/desaparecido ou esquecido. Do terceiro processo nada mais consta, a não ser a nomeação dos membros do Tribunal em 1969. O quarto processo beneficiou do empenhamento pessoal dos últimos Arcebispos de São Paulo, desde D. Odilo Scherer, passando pelos seus antecessores o Cardeal Cláudio Hummes e muito particularmente o Cardeal-Arcebispo de S. Paulo, o franciscano D. Evaristo Arns.

De realçar ainda a dedicação e capacidades de pesquisador e redactor de Frei Desidério Kalverkamp, nomeado vice-postulador em 1983, autor da Biografia Crítica. Em 1991 o Tribunal Eclesiástico nomeou uma Comissão histórica para compulsar arquivos eclesiásticos (diocesanos, paroquiais, de mosteiros) e civis (cartórios civis, municipais, institucionais) para verificação de possíveis documentos e concluir o processo. Decisivas foram as conclusões do estudo de dois dos últimos milagres: o primeiro, que possibilitou a beatificação de Frei Galvão em 25 de Outubro de 1998, pelo Papa João Paulo II, em S. Pedro de Roma; o segundo, que deu lugar à sua canonização, em 11 de Maio de 2007, pelo Papa Bento XVI, no Campo de Marte, no Aeroporto da cidade de São Paulo, no Brasil.

Justo seria que a cidade e a Diocese de Faro soubessem recordar as raízes deste primeiro santo brasileiro, cujo pai, o português António Galvão de França, nela nascido, conseguiu constituir e alimentar no Brasil uma família viveiro de virtude e santidade, permitindo e apoiando a resposta à santidade de um dos seus filhos, a saber o Franciscano que certamente nos atenderá sob qualquer destes apelativos: Santo António Santana, Santo António Galvão, Santo António de Sant’Ana Galvão, ou tão somente S. Frei Galvão.

NOTAS: 
1 Alemão de Ahlen, onde nascera em Março de 1910.
2 Congregatio de Causis Sanctorum, Biografia Crítica, II, Roma, 1993, p. 43. Citaremos sempre Biografia Crítica.
3 Biografia Crítica, p. 52.
4 Biografia Crítica, p. 44.
5 Biografia Crítica, p. 45.
6 Biografia Crítica, pp. 45-47.
7 Biografia Crítica, p. 65.
8 Biografia Crítica, p. 46.
9 Biografia Crítica, p. 47.
10 Cf. Biografia Crítica, p. 47.
11 Biografia Crítica, p. 47.
12 Biografia Crítica, p. 48.
13 Biografia Crítica, p. 49.
14 Biografia Crítica, p. 50.
15 Biografia Crítica, p. 51; cf. A Província Franciscana da Imaculada Conceição 1822-1922, Petrópolis, 1922, pp. 96-97.
16 Biografia Crítica, p. 52.
17 Biografia Crítica, p. 69.
18 Biografia Crítica, p. 52.
19 Biografia Crítica, p. 73.
20 Biografia Crítica, p. 74.
21 Biografia Crítica, p. 74.
22 Biografia Crítica, p. 75.
23 Biografia Crítica, p. 75.
24 Biografia Crítica, p. 75.
25 Biografia Crítica, p. 85.
26 Biografia Crítica, p. 86.
27 Biografia Crítica, pp. 86-87.
28 Biografia Crítica, p. 32.
29 Biografia Crítica, p. 88.
30 Biografia Crítica, p. 89.
31 Biografia Crítica, pp. 91 e 103.
32 Biografia Crítica, p. 107.
33 Biografia Crítica, p. 109.
34 Biografia Crítica, p. 110.
35 Biografia Crítica, p. 107 e 110.
36 Biografia Crítica, pp. 138-139.
37 Biografia Crítica, p. 139.
38 Biografia Crítica, p. 140.
39 Biografia Crítica, pp. 141-142.
40 Biografia Crítica, p. 152.
41 Biografia Crítica, p. 113.
42 Biografia Crítica, p. 155.
43 Biografia Crítica, p. 152.
44 Pedro Dias, Atlas da Arte Portuguesa no Mundo, Santander Totta, 150 anos, Lisboa, 2007, p. 43. Apenas faltará a menção do seu
arquitecto franciscano, Frei António de Santana Galvão, canonizado primeiro santo do Brasil, em Maio de 2007.
45 Biografia Crítica, p. 154.
46 Biografia Crítica, p. 187.
47 Biografia Crítica, pp. 188-189.
48 Biografia Crítica, p. 190.
49 Biografia Crítica, p. 189.
50 Biografia Crítica, p. 191.
51 Biografia Crítica, p. 197.
52 Biografia Crítica, p. 198.
53 Biografia Crítica, p. 199.
54 Biografia Crítica, p. 198.
55 Biografia Crítica, p. 200.
56 Biografia Crítica, p. 212.
57 Biografia Crítica, p. 113.
58 Biografia Crítica, p. 214.
59 Biografia Crítica, p. 214.
60 Biografia Crítica, p. 221.
61 Biografia Crítica, p. 222.
62 Biografia Crítica, p. 223.
63 Biografia Crítica, p. 223.
64 Biografia Crítica, p. 123.
65 Biografia Crítica, p. 224.
66 Biografia Crítica, p. 225.
67 Biografia Crítica, pp. 311-312.
68 Biografia Crítica, p. 313.
69 Biografia Crítica, p. 314.
70 Biografia Crítica, p. 315.
71 Biografia Crítica, pp. 318 e 321
72 Biografia Crítica, p. 319
73 Biografia Crítica, p. 325
74 Biografia Crítica, p. 331
75 Biografia Crítica, p. 312
76 Biografia Crítica, pp. 341-343.
77 Biografia Crítica, p. 340.
78 Biografia Crítica, p. 333.
79 Biografia Crítica, p. 270.
80 Biografia Crítica, p. 262.
81 Biografia Crítica, p. 263.
82 Biografia Crítica, p. 264.
83 Biografia Crítica, p. 265.
84 Biografia Crítica, p. 266.
85 Biografia Crítica, p. 265.
86 Biografia Crítica, pp. 266-267.
87 Biografia Crítica, p. 268.
88 Biografia Crítica, pp. 269 e 302.
89 Biografia Crítica, p. 269.
90 Biografia Crítica, p. 270.
91 Biografia Crítica, p. 16.
92 Acta Apostolicae Sedis, XC (1998), pp. 51-53; cf. Acta Ordinis Fratrum Minorum, CXVII (1998), pp. 33-34.
93 Acta Apostolicae Sedis, XCI (1999), p.119-121; cf. Acta Ordinis Fratrum Minorum, CXVIII (1999), p. 50.
94 Acta Apostolicae Sedis, XCI (1999), p. 856.

95 Acta Apostolicae Sedis, XCI (1999), p. 857.

Fonte: ARAÚJO, António de Sousa. Santo António de Sant’Ana Galvão, OFM (1739-1822): primeiro Santo natural do Brasil. Revista Lusitania Sacra, v. 23, jun/jul 2011, p. 243-262. 

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Yasuke: o samurai negro?

Poucos estrangeiros tiveram a oportunidade e honra de serem nomeados samurais, título e direito praticamente restritos aos japoneses. Em geral a História relata alguns europeus que tiveram acesso a essa honraria, porém, houve um estrangeiro de origem africana que supostamente se tornou um samurai. No Japão ele era conhecido como Yasuke (se ler Iasquê), um guerreiro alto e forte que virou guarda-costas do daimiô Oda Nobunaga. No presente texto contei um pouco a respeito da história desse homem, a qual ainda hoje é pouco conhecida devido a escassez de relatos da época que narrem sua trajetória na corte de Nobunaga, em um dos períodos mais conturbados da história japonesa no século XVI, as últimas décadas do Período Sengoku, conhecido popularmente como a época do "país em guerra" ou das "guerras civis". 


Um escravo que foi ao Japão: 

As origens de Yasuke ainda são inexatas e motivo de debates a respeito. Não se sabe onde ele exatamente nasceu, a que povo pertencia, com quantos anos foi escravizado e levado ao Japão. O livro Histoire Ecclesiastique Des Isles et Royaumes du Japon (1627) do padre jesuíta François Solier, traz a seguinte informação sobre a procedência de Yasuke. 

"Agora o padre Alessandro trouxe das Índias um escravo mouro, tão negro como os etíopes da Guiné. Porém, era nativo de Moçambique, daquele tipo que são propriamente chamados de Cafres, habitantes do Cabo da Boa Esperança". (SOLLER, 1627, p. 444, tradução minha). 

O relato de Solier apresenta termos da época que merecem ser debatidos brevemente. O termo muçulmano não era comumente usado pelos europeus, normalmente eles eram chamados de maometanos, mouros, sarracenos, árabes etc. No caso de Soller, ele usou a palavra mouro, embora seja um emprego complicado, já que os mouros eram as populações que viviam no atual Marrocos e no sul de Portugal e Espanha. Não obstante, o padre também fez uso da palavra etíope, que atualmente é usado para se referir ao habitante da Etiópia, porém, na época dele, a palavra etíope era um termo genérico para se referir a africanos negros. Por isso que ele diz que Yasuke era negro como um "etíope da Guiné", sendo a Guiné um importante território para o tráfico negreiro português. Já a palavra Cafre era usada naquele período para se referir genericamente aos africanos negros de origem banta, que viviam no sul do continente. O problema é que o termo é de origem árabe, sendo usado para se referir aos africanos não-muçulmanos. Porém, Soller emprega a palavra fora de seu contexto original. Por fim, o Cabo da Boa Esperança não fica situado em Moçambique, mas na África do Sul

Os historiadores moçambicanos costumam considerar o relato de Solier como exato, porém, historiadores de outros países contestam isso, pois fontes mais antigas não apontam a origem de Yasuke, além de que Solier misturou vários termos para se referir aos africanos. Possívelmente a associação com Moçambique se deva ao fato de ser o principal porto português na costa leste africana. Neste aspecto, Solier poderia estar se referindo ao porto de onde Yasuke partiu para a África, não a sua terra natal. 

O relato do padre François Solier também informa que Yasuke teria chegado ao Japão no ano de 1579, passando a estar a serviço do padre Alessandro Valignano (1539-1606), clérigo de origem napolitana que passou vários anos atuando no Japão, Macau e Índia. A presença de Valignano no Japão devia-se ao contato entre portugueses e japoneses que vinha sendo realizado desde o ano de 1543, quando os primeiros portugueses chegaram ao império nipônico. A partir da década de 1550 através de São Francisco Xavier, as missões evangelísticas tiveram início no Japão. (D’ASSUMPÇÃO, 1901, p. 30). Logo, quando Yasuke chegou àquele país, os clérigos já estavam a quase quarenta anos trabalhando por lá. 

O padre e missionário Alessandro Valignano segundo pintura do XVII. 

Ao chegar ao Japão, Yasuke foi visto como ser exótico, já que era incomum os japoneses terem contato com africanos ou pessoas negras de outros lugares. Apesar que Lockley e Girard (2019) digam que Yasuke não teria sido o único africano presente no Japão, como apontam inclusive pinturas japonesas, mostrando homens negros; apesar disso, a presença deles tenha sido diminuta. De qualquer forma, embora tenha sido dirigido a trabalhar para os jesuítas, Yasuke realizava atividades domésticas como qualquer outro escravo, arrumando os pertences, camas, servindo refeições, faxinando, lavando etc. No entanto, alguns pesquisadores contestam se Yasuke teria chegado ao Japão na condição de escravo, mas é uma contestação que falha em encontrar argumentos convincentes, já que é sabido que os clérigos no Japão, como em outras partes do mundo, faziam uso de escravos. 

Um guerreiro revelado: 

Girard e Lockley (2019, p. 23) comentam que talvez Yasuke antes de ter sido escravizado possa ter sido um guerreiro, já que as fontes japonesas o descrevem como um homem alto e forte, tendo uma condição física apropriada para um guerreiro. Os autores apontam que Yasuke antes de ir ao Japão teria vivido algum tempo na Índia, atuando como carregador ou guarda. Funções essas que teriam interessado aos jesuítas que o compraram para levá-lo ao Japão, pois além de empregado responsável por serviços domésticos como sublinhado anteriormente, Yasuke pelo seu tamanho e porte físico, poderia atuar como guarda-costas dos missionários. Tal hipótese é pertinente, pois havia japoneses que não aceitavam a presença de estrangeiros no país e eventualmente os missionários eram hostilizados, feridos e até assassinados. Como Valignano tinha que viajar pelas províncias, ter um guarda-costas era algo necessário. 

Fato esse que Yasuke acompanhou Valignano e outros jesuítas de sua missão, pelos anos seguintes. Em 1581, Valignano viajou a Quioto para se encontrar com seu mecenas, o daimiô Oda Nobunaga (1534-1582), que na ocasião estava em visita a cidade e hospedado em um templo budista. Nobunaga já era um importante daimiô naquele período, tido por alguns como um herói nacional por ter iniciado a campanha de reunificação do país; mas para outros ele era um cruel senhor feudal, ambicioso pelo poder, tendo ordenado massacres. Apesar dessa disparidade quanto a fama positiva ou negativa de Nobunaga, ele já há alguns anos demonstrou interesse por fazer negócios com os estrangeiros. A contragosto de outros daimiôs, Nobunaga apoiou os portugueses e espanhóis em seus negócios comerciais e religiosos. Embora ele nunca demonstrou interesse em se converter ao Cristianismo. 


Retrato de Oda Nobunaga, autor desconhecido, séc. XVI. 

“A partir da década de 1560, liderados pelo padre Luís Fróis, os jesuítas, no intento de pregar em Honshu, foram pessoalmente recebidos em Owari por Oda Nubunaga. Ele teria sido grande admirador dos produtos e artefatos trazidos pelos bárbaros do Sul. Contudo, Oda Nobunaga tinha consciência de que para ter acesso a tais benefícios, deveria se relacionar de forma amistosa com os padres jesuítas, uma vez que, em Honshu, eles serviam como intermediários destes mercadores”. (LEÃO, 2010, p. 217).

"Sob sua proteção os missionários tiveram autorização para construir um seminário em Arima e outro Omi, assim como, a construção de uma igreja de Nossa Senhora de Assunção, em 1576, na capital Miyako. A chegada do jesuíta napolitano Alexandre Valignano, na função de visitador do Japão no ano de 1579, teria estimulado ainda mais as boas relações entre os portugueses e Oda Nobunaga. Junto com Luís Fróis, Organtino Soldo e Lourenço Mexia foram recebidos pessoalmente no Castelo de Azuchi". (LEÃO, 2010, p. 217-218).

Sendo assim, Valignano já tinha contato com Nobunaga há alguns anos, mas naquela nova visita ao seu protetor e apoiador, o padre levou consigo o escravo Yasuke. A presença dele causou curiosidade na população, pois conta-se que teria sido o primeiro homem negro a visitar a cidade. Nobunaga que estava hospedado lá naquela ocasião, conheceu Yasuke e teria ficado fascinado com sua cor e porte físico. O fascínio gerado teria levado Nobunaga convidar Alessandro Valignano e sua comitiva para outra reunião no mês de maio, dessa vez no Castelo de Azuchi. Lá, o dáimio fez a oferta de comprar Yasuke, tornando-o seu guerreiro. (
GIRARD; LOCKLEY, 2019, p. 124).  

Pintura representando o Castelo de Azuchi, que foi incendiado em 1582. Atualmente existe um museu no local com a reconstituição de sua torre central. 

"Este castelo-fortaleza tem um significado todo especial, porque pela primeira vez na história do Japão, um chefe militar feudal visa, com a construção de um baluarte defensivo, o estabelecimento de um novo centro político no país. Só mesmo um chefe militar da visão de Nobunaga poderia ter concebido tal idéia". (YAMASHIRO, 1978, p. 102).

A serviço de Oda Nobunaga: 

A ideia de que Yasuke passou anos a serviço de Nobunaga, lutando em suas guerras e servindo-o como leal samurai é incorreta, a começar pela condição que o daimiô faleceu em junho de 1582, e Yasuke teria entrado ao seu serviço em maio de 1581. Assim, a relação entre os dois durou um pouco mais de um ano. Inicialmente Yasuke tornou-se um guerreiro, não se sabendo ao certo suas funções, por não haver relatos a respeito, no entanto, fontes da época que listam os guerreiros juramentados a Nobunaga, listam o nome de Yasuke, algo curioso que deve ser mencionado. 

O nome Yasuke é somente relatado a partir de quando o mesmo tornou-se membro do exército de Oda Nobunaga. Fato esse que os próprios cronistas clericais quando mencionam ele antes disso, não o chamam pelo nome, mas referem-se a ele por termos da época usados para se referir a africanos ou homens negros. Com isso surgiu a hipótese de que Yasuke pudesse ter sido um novo nome adotado por ele ou lhe concedido por Nobunaga. A exatidão desse nome é ainda motivo de debate e é imprecisa. 

Yasuke segundo consta teria se destacado rapidamente entre outros guerreiros, mostrando ter força e agilidade excepcionais. Inclusive é sabido que Nobunaga gostava de assistir competições de jogos e de lutas, como o próprio sumô. Yasuke teria se destacado nesses esportes e combates, além de mostrar zelo, honra e lealdade. Entretanto, não há evidências que confirmem que de fato ele tenha sido nomeado samurai. (GIRARD; LOCKLEY, 2019, p. 141-143).  


Competição de sumô. Kano Eitoku, c. 1605. Alguns pesquisadores debatem se o homem negro nessa pintura teria sido Yasuke. 

Originalmente nos séculos X e XI, os samurais eram soldados comuns, recrutados para formar milícias ou tropas informais para servir senhores feudais. A palavra samurai significa "aquele que serve", por sua vez, eles também eram chamados de bushi (guerreiro). Somente no final do século XI para a transição do XII, os samurais deixaram de ser meros guerreiros comuns e começaram a despontar como uma hierarquia de guerreiros profissionais e também uma classe social, algo que lembra em alguns aspectos os cavaleiros europeus na Idade Média, os quais deixaram de serem meros combatentes que lutavam a cavalo, para se tornarem nobres guerreiros. (YAMASHIRO, 1964, p. 59).

Stephen Turnbull (2005, p. 9) destaca que os samurais nos séculos XII e XIII já eram guerreiros profissionais, com seu código de honra que seria desenvolvido nos séculos seguintes. Ele também salienta que os samurais de destaque poderiam receber presentes, recompensas, terras e servos. Por outro lado, ele sublinha que os nobres e aristocratas que passaram a guerrear, também eram considerados samurais, além da condição de que havia samurais que eram vassalos de outros samurais. Essa relação entre guerreiro profissional, senhor de terras, aristocrata e nobre, desenvolveu-se principalmente entre os séculos XV e XVI com o acirramento das guerras civis. 

Como dito, não tem como confirmar que Yasuke foi feito samurai, já que se tratava de um título pertencente a uma classe social prestigiada (apesar que nem todos os samurais dispusessem da mesma autoridade, regalias e direitos). Por motivo de comparação, o marinheiro William Adams (1564-1620), o qual se tornou samurai, somente conseguiu esse direito após anos de serviços prestados ao xogum Tokugawa Ieyasu. Todavia, Yasuke apenas serviu Nobunaga por cerca de 12 meses. Porém, a ideia de samurai negro se popularizou, com isso, ela passou a ser difundida até hoje. 

Em junho de 1582, Oda Nobunaga foi traído por um de seus generais, Akechi Mitshuhide (1528?-1582), o qual emboscou Oda Nobunaga no templo de Honno-ji em Quioto, forçando Nobunaga render-se ou optar pela morte. Seguindo a conduta moral e honrosa dos samurais, ele optou pelo seppuku, prática reservada aos samurais para morrer com honra. Entretanto, independente de quais fossem os planos de Akechi, esses não deram certo, pois ele foi morto no mesmo ano. Então Toyotomi Hideyoshi assumiu como seu sucessor. 

"Após o assassinato de seu suserano, Toyotomi Hideyoshi consegue sua vingança e se torna o grande sucessor de Oda Nobunaga, no processo de unificação do país. Dois anos depois, no intuito de expandir seus domínios, Toyotomi Hideyoshi se envolve em uma guerra contra o, até então aliado, Tokugawa Ieyasu. Em 1585, pela ausência de uma concorrência político-militar à altura, Toyotomi Hideyoshi recebe o título de Kampaku, tornando-se o regente do imperador. Em 1586 juntou forças para uma importante armada para fora do arquipélago em direção à Coréia e à China". (LEÃO, 2010, p. 220-221). 

Após tal acontecimento não se sabe o destino de Yasuke. Pelo que parece ele teria servido a um dos filhos de Nobunaga, mas não se tem certeza se ele continuou a servir outro mestre. Yasuke poderia ter participado da Batalha de Okitanawate (1584), pois os jesuítas relataram homens negros naquele conflito. O problema é que isso não é uma certeza. Inclusive haja a possibilidade de ele não ter estado naquele conflito. Por outro lado, uma carta de 1593 escrita pelo daimiô Kato a um de seus servos, chamado de Kurobo (homem negro), foi cogitado como possível referência a Yasuke. Porém, naquele período já havia outros africanos no Japão, mesmo em pequena quantidade. (GIRARD; LOCKLEY, 2019, p. 250-254).  

Quanto a sua morte e os motivos dessa, são desconhecidos. Inclusive os próprios cronistas europeus que se referem a ele, pouco informaram a respeito ou lhe deram atenção. Os registros japoneses também são escassos, fazendo apenas menções breves ao seu nome. A fama de Yasuke como suposto samurai negro é algo mais recente, tendo surgido no século XX, já que até então pouca atenção lhe era dada. 

NOTA: O nome Yasuke poderia ser uma versão japonesa para Isaac. Todavia, considera-se que possa ter sido uma japonização do nome africano dele, como Yasufe ou Issufo
NOTA 2: Apesar que eu tenha usado o livro African Samurai, ele deve ser consultado com cautela, pois embora possua bibliografia, a obra tem um caráter literário, apresentando romanceamento de determinados acontecimentos históricos. 
NOTA 3: No jogo Nioh (2017), Yasuke aparece como um dos chefes, sendo chamado de Dark Samurai. Já em Nioh 2 (2020) ele é chamado por seu nome mesmo. 
NOTA 4: Yasuke serviu de inspiração para o mangaká Takashi Okazaki para criar o personagem Afro Samurai (1999-2000). 
NOTA 5: Yasuke é referenciado em livros, jogos, mangás, propagandas e músicas.  
NOTA 6: O anime Yasuke (2021), consiste numa história fictícia sobre o personagem, transcorrendo em 1602. Além disso, a produção conta com elementos de fantasia e ficção científica. 
NOTA 7: Yasuke aparece no jogo Samurai Warriors 5 (2021), sendo personagem jogável. 
NOTA 8: O livro infantil Kurosoke (1968) de Yoshio Kurusu foi popular durante as décadas de 70 e 80. A obra traz uma versão romanceada de Yasuke e Nobunaga. 
NOTA 9: A Escola de Samba Mocidade Alegre venceu o Carnaval de São Paulo em 2023 tendo como tema de enredo a história de Yasuke. 
NOTA 10: Yasuke será um dos protagonistas de Assassin's Creed: Shadows (2025). 

Referências bibliográficas: 
D’ASSUMPÇÃO, T. Lino de (coord.) História geral dos jesuítas: desde sua fundação até os nossos dias. Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1901. 
LEÃO, Jorge Henrique Cardoso. Jesuítas e Daimyôs: Evangelização e poder político no Japão do século XVI. Mnemósine Revista, vol. 1, n. 1, jan/jun 2010, p. 208-226.
LOCKLEY, Thomas; GIRARD, Geoffrey. African Samurai. Hanover, Hanover Square Press, 2019. 
SOLIER, François. Histoire Ecclesiastique Des Isles et Royaumes du Japon. Cramoinsy, Bibliothèque de Bavière, 1627. 
TURNBULL, Stephen. Samurai Armies: 1467-1649. Oxford: Osprey Publishing, 2008. (Série Battle Orders: 36). 
YAMASHIRO, José. Japão: passado e presente. São Paulo, HUCITEC, 1978.
YAMASHIRO, José. Pequena história do Japão. 2a ed. São Paulo: Editora Herder, 1964.

Links relacionados: 
Oda Nobunaga
Ninjas vs Samurais: crônicas de uma guerra feudal (XV-XVII)