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Leandro Vilar

quarta-feira, 29 de março de 2017

Vinland: a "América Viking"

Apesar de hoje ser unanimidade de que realmente houve a presença de escandinavos medievais na América do Norte, não ser mais contestada, ainda assim, Cristóvão Colombo figura na história como seu "descobridor", e por sua vez, os Reis Católicos de Espanha, Fernando e Isabel figuram como os primeiros monarcas europeus a tomar posse de terras no Novo Mundo. A proposta desse texto não é debater se Colombo deve ficar com o mérito da descoberta, mas contar um pouco a respeito de como os nórdicos, cinco séculos antes de Cristóvão Colombo haviam chegado primeiro ao continente americano, mais especificamente a costa oriental do atual Canadá, as regiões de Terra Nova e Labrador, advindos por sua vez da fria ilha da Groenlândia. Para este estudo optei em apresentar uma contextualização histórica e arqueológica sobre a "descoberta" da América pelos nórdicos da Era Viking (VIII-XI). 

Introdução: 

A teoria de que os vikings teriam chegado a América do Norte cinco séculos antes de Colombo, começou a ganhar adeptos e críticos no século XIX, apesar de como veremos adiante, haver relatos escritos sobre as incursões nórdicas a costa canadense, e até mesmo mapas que tentavam situar tais localidades, no entanto, apenas no XIX é que alguns estudiosos começaram a se questionar onde exatamente ficavam as terras conhecidas como Helluland, Markland e Vinland, como eram referidas em algumas sagas e crônicas da época. 

Carl Christian Rafn

Tais lugares situados a oeste da Groenlândia seriam terras fictícias? Sabendo que até o XVIII ainda era comum se encontrar relatos de ilhas fantásticas. Ou realmente aquelas terras eram reais, mas seriam ilhas ou partes do continente norte-americano? A partir dessas perguntas um dos primeiros estudiosos que começou a indagar que Helluland, Markland e Vinland fossem referências a localidades na costa americana foi o historiador, antiquário e tradutor alemão Carl Christian Rafn (1795-1864), conhecido por ter traduzido várias sagas islandesas para a língua alemã, e a partir da leitura desses textos escritos em nórdico antigo e islandês medieval, Rafn tomou conhecimento de Vinland e as demais terras situadas a oeste da Groenlândia. Com isso ele começou a pesquisar mais a respeito, e passou a propor a hipótese de que Vinland pudesse ser uma localidade situada no nordeste dos Estados Unidos, talvez nos estados do Maine ou New Hampshire.

A hipótese de Rafn surgia numa época de pseudociência motivada por ideais idílicos, românticos e nacionalistas. (ROSA, 2012, p. 26). Apesar de Rafn não tender para esse lado, havia pesquisadores tanto profissionais quanto amadores, os quais tentavam reescrever a história da "descoberta" dos Estados Unidos. O encontro de estranhas inscrições em pedra no nordeste do país, levou pesquisadores de diferentes áreas a cogitar que se tratavam de inscrições celtas, fenícias, bretãs, irlandesas, nórdicas etc. Mas em geral como salienta Donald Logan (1991, p. 83-85) tais pesquisadores entre os séculos XIX e começo do XX, não levavam em consideração que tais inscrições pudessem se tratar de escrita nativo-americana, mas a concepção de que a América deveria ser descoberta por europeus ou asiáticos era algo bem mais interessante, ao ponto de ofuscar a razão científica. 

Rasmus B. Anderson
Rafn por mais que não tenha chegado a conclusões precisas aonde Vinland ficaria situada, publicou o resultado de sua pesquisa e traduções no livro Antiquitates Americanae (1837), obra que trazia sua hipótese de que os escandinavos teriam descoberto a América e talvez os Estados Unidos. O livro de Rafn acabou por influenciar vários outros estudiosos, mas um que se destacou foi o professor, escritor, tradutor e diplomata americano Rasmus Björn Anderson (1846-1936), o qual se tornou um dos mais renomados escandinavistas dos Estados Unidos, no século XIX. De descendência norueguesa, Anderson viajou para a terra de seu pai e avós, diversas vezes, além de ter servido como diplomata americano na Dinamarca entre 1895 e 1899. Todavia, seu fascínio pela cultura escandinava o levou a pesquisar a história de seus antepassados, o que levou Anderson também não apenas estudar história, mas também despertar o interesse pela religião e mitologia dos nórdicos, chegando a escrever livros a respeito. Mas, assim como Rafn, Anderson também acreditava que os nórdicos haviam chegado ao continente americano. 

Acerca da sua defesa de que os nórdicos "descobriram" a América antes de Colombo, Anderson escreveu dois livros, America Not Discovered by Colombus (1874) e The Norse Discovery of America (1907), as quais popularizaram o debate no país, assim como, também contribuíram para lançar Anderson como escandinavista, somando tais livros a outros de seus trabalhos. Com isso Rasmus B. Anderson fundou o Department of Scandinavian Studies na Universidade de Wisconsin-Madison e a se tornar membro da Norroena Society fundada pelo rei Oscar II da Noruega e Suécia em 1896, cuja proposta era investir nos estudos escandinavos. 

Escolhi em não comentar os livros de Rafn e Anderson, pois apesar de eles estarem certo quanto a real chegada de escandinavos à América, no final do século X e começo do XI, como também terem apontado a respeito das fontes históricas, suas obras careciam das pesquisas arqueológicas, as quais somente se enveredaram no assunto em meados do século XX. Não obstante, os trabalhos de Rafn e Anderson também possuem alguns equívocos de interpretação, como o caso de eles situarem Vinland nos Estados Unidos e não no Canadá. 

As fontes históricas: 

As principais referências a chegada viking à América do Norte, constam em algumas sagas islandesas (saga em nórdico antigo significava dizer, contar, narrar), termo usado para se referir a um conjunto de manuscritos datados dos séculos XII ao XIV, de autoria e conteúdo diverso, mas todos redigidos na Islândia, os quais relatam histórias ocorridas entre os séculos IX e XIII, além de trazer também narrativas míticas e lendárias. (BOULHOSA, 2005, p. 6). 

Entretanto, o nome Vinland é anterior a escrita das sagas. Na crônica alemã do clérigo Adão de Bremen, escrita em latim, no século XI, intitulada Gesta Hammburgensis Ecclesiae Pontificum (c. 1070-75), no volume 4, no comentário 38, Adão relata o que segundo ele, teria sido uma conversa ocorrida na década de 1060, com o rei Sueno II da Dinamarca, o qual lhe contou acerca de uma ilha descoberta, que era chamada de Vinland. (LOGAN, 1991, p. 86). 

Adão de Bremen comenta que o rei lhe contou acerca de uma ilha chamada Vinland, situada em algum lugar do oceano, e seu nome se devia por causa das vinhas selvagens que ali cresciam, e forneciam um vinho de excelente qualidade. Adão também comenta que aquele relato era verdadeiro, havia recebido de fontes seguras. Não obstante ele diz que essa ilha ficava muito longe, era habitada e ficava em região perigosa, para além do gelo e da escuridão. (BREMEN, 1959, p. 219). 

No século XII, nos Anais Islandeses do ano de 1121, o bispo Erik da Groenlândia fez menção a existência de uma terra a oeste da Groenlândia, chamada Vinland. No ano de 1127, o padre An Thorgilsson (1068-1148), autor do Íslendingabók (O Livro dos Islandeses), obra que conta a história da colonização e cristianização da Islândia até o seu tempo, menciona que seu tio Thorkell Gellison havia visitado Vinland e essa era habitada por nativos. (LOGAN, 1991, p. 87). Vinland também é citada na Historia Norwegie (História da Noruega), crônica de autoria anônima datada da segunda metade do século XII, a qual relata a respeito da história do país, mencionando que alguns noruegueses que viviam nos assentamentos na Groenlândia, haviam encontrado terras a oeste. 

No século XIII temos as chamadas Vinland Sagas, na verdade consistem em duas histórias distintas as quais se complementam. A primeira é a Graenlendiga Saga (Saga dos Groenlandeses) a qual narra acontecimentos entre os séculos X e XI, principalmente referentes a colonização da Groenlândia e algumas viagens à América. A segunda obra é a Eirik Saga (Saga de Erik), também datada do século XIII, refere-se mais especificamente a Erik, o Vermelho, o colonizador da Groenlândia e a ação de seu filho Leif Eriksson de continuar a cristianização da ilha e viajar até Vinland. 

Enquanto nas obras do século XI e XII as menções a Vinland são sucintas, as sagas do século XIII são as que possuem o maior número de informações. Embora que possa ter havido outros documentos que falassem sobre Vinland, mas hoje são desconhecidos ou estão perdidos para sempre. Não obstante, Vinland é mencionada em outros textos do período, mas de forma breve também. De qualquer forma passemos para conhecer a respeito do que as Sagas de Vinland têm a nos contar. 

A Groenlândia: 

Essa história tem início com Erik, o Vermelho (Eiríkr hinn raudi), nascido em data incerta no século X, em Jaederen na Noruega, sendo filho de Thorvald. Os detalhe sobre sua vida são poucos. Por motivos não conhecidos, ele acabou matando um ou mais pessoas e com isso foi banido da Noruega, sendo enviado para o exílio. A ideia de que os escandinavos medievais fossem sanguinários e resolviam seus desentendimentos e crimes com pena de morte não é bem assim. Além do caso de Erik, conhece-se outros que mostram que a pena de morte não fosse algo corriqueiro. 

Erik deixando o seu país mudou-se para a Islândia, ilha colonizada pelos noruegueses desde pelo menos a década de 870. Na ocasião ele viajou com seu pai Thorvald, mas não se sabe se outros familiares seguiram junto. Após a morte de seu pai, Erik casou-se com Thjodhild, filha de Jorund Ulfsson, dono de uma pequena fazenda. Tais informações sobre a vida de Erik constam tanto nas Sagas de Vinland como em outros livros como o Íslendingabók e o Landnámabók (Livro dos Assentamentos). 

Erik, o Vermelho viveu em diferentes assentamentos na ilha e em certa ocasião envolveu-se na disputa de terras, algo bem comum na Islândia medieval daquele tempo. Os manuscritos islandeses que falam acerca da colonização da ilha relatam vários casos de brigas familiares pela disputa de terras, invasões, apropriação irregular, vinganças, revanches etc. Erik acabou matando outro homem o que lhe rendeu um processo criminal e a pena de exílio, se permanecesse na ilha seria morto por vingança. 

Graenlendiga Saga informa que Erik e alguns companheiros deixaram a Islândia a fim de procurar novas terras. Marinheiros acostumados com aquelas águas, informavam a respeito da existência de ilhas nos arredores. John Haywood (1995, p. 96) comenta que pelo menos se conhece outros dois homens que teriam chegado a Groenlândia antes de Erik. Gunnbjorn Ulf-Krakuson que teria encontrado a ilha por volta do ano 900 e Snaebjorn Galti, que teria chegado por volta de 978. 

Erik teria passado cerca de dois anos navegando até encontrar terra entre 981-983, a qual ele chamou de "Ilha de Erik", mais tarde renomeada para Greenland (Groenlândia). De fato a Groenlândia não fica distante da Islândia, navegando-se para o oeste chega-se facilmente a ilha, apesar de serem águas bastante frias e as vezes revoltas. 

Mapa com as localidades atuais na Groenlândia e arredores. Percebe-se que devido a curvatura da terra, aqui planificada no mapa, a Islândia fica próxima da gelada ilha, a qual é a maior ilha do mundo

Não se sabe o local certo que Erik teria aportado, mas em 986 ele deixou a Islândia de vez, liderando uma frota de 25 navios para o sul da Groenlândia que naquele tempo era de clima mais quente. Devido ao clima mais ameno isso permitiu o cultivo de algumas plantas, apesar de ser um solo pobre em fertilidade; e a criação de ovelhas, além de o mar groenlandês ser abundante em pescado, como também havia a possibilidade de caça aos ursos polares, focas, morsas e baleias. (HAYWOOD, 1995, p. 96). Porém, a medida que a população crescia os alimentos já não eram suficientes para alimentar a todos, chegando haver surtos de fome na ilha. 

Com isso foi fundado o primeiro assentamento norueguês naquela ilha. Chamado posteriormente de Eystribyggd (assentamento leste) para diferenciar do Vestribyggd (assentamento oeste) fundado posteriormente na costa oeste e mais ao norte. Tornaram-se os núcleos principais da colonização norueguesa na ilha, apesar de que com o tempo várias fazendas foram surgindo. Em torno do Eystribyggd se desenvolveram pelo menos 190 fazendas sendo uma delas a do próprio Erik, o Vermelho, situada em Bratthahild, onde ele ergueu uma capela para sua esposa, a qual era cristã. Por sua vez o Vestribyggd contou com cerca de 90 fazendas. (LOGAN, 1991, p. 73-74). 

A partir da colonização viking da Groenlândia, os noruegueses tomaram conhecimento dos esquimós ou inuítes, os quais possuíam aldeias no norte da ilha, sendo o contato com este povo mais comum a partir do Vestribyggd. Porém, mais a diante voltarei a falar dos esquimós, mas por hora a partir da formação dos assentamentos e das fazendas, alguns marinheiros e pescadores decidiram explorar os mares a oeste da terra verde. 

Markland, Helluland e Vinland: 

Segundo informa a Graenlendiga Saga, ainda na época da fundação do primeiro assentamento, o Vestribyggd, um homem chamado Bjarni Herjólfsson, filho de Herjolf Bárdsson e Thorgerd, os quais se mudaram para a Groenlândia na missão de colonização comandada por Erik, seguiu depois para a ilha, no intuito de encontrar seus pais, mas ventos tiraram sua embarcação do rumo, fazendo-a seguir para o oeste. Após poucos dias Bjarni e sua tripulação avistaram terras que não possuíam montanhas, eram bastantes arborizadas e possuíam pequenas colinas. Era uma terra verdejante, isso se pensarmos que a existência de árvores na Groenlândia é raríssima e apesar de naquele tempo haver algumas árvores, ainda era pouco para manter uma população crescente. De qualquer forma a terra descoberta por Bjarni Herjólfsson foi posteriormente chamada de Markland ("Terra da Madeira") por Leif, devido a abundância de florestas. 

Segundo continua o relato da saga, Bjarni e seus homens não aportaram naquela localidade, e continuaram a navegar para o norte, achando que assim retornariam para a Groenlândia. Cerca de dois ou três dias depois eles avistaram novas terras, dessa vez descritas como sendo montanhosa, com poucas árvores e era rochosa. Tal local foi chamado posteriormente de Helluland ("Terra das Rochas") por Leif, devido ao território rochoso. A partir dessa localidade eles decidiram seguir para o leste, ao avistarem glaciares deduziram que poderia ser a Groenlândia, pois a ilha era conhecida por ser congelada ao norte, com isso seguiram a sua costa ocidental rumo ao sul até encontrar o assentamento estabelecido por Erik. 

Em verde a rota de Bjarni (985/986), o descobridor de Markland e Helluland. Em vermelho a rota de Leif Eriksson (1000), o descobridor de Vinland. 

As "descobertas" de Bjarni e sua tripulação entre os anos de 985 e 986 são considerados por alguns historiadores como o primeiro relato histórico do avistamento do continente americano. No século XX Helluland foi identificada a Ilha Baffin e Markland a região de Labrador, ambos no atual Canadá. Bjarni e seus homens são vistos como os primeiros europeus que se tem notícia a avistar e descrever a costa da América do Norte, isso mais de cinco séculos antes de Colombo. (GRAHAM-CAMPBELL, 2006, p. 177). 

Apesar de tal façanha para nós hoje em dia ser vista como um grande feito, em seu tempo não se sabe como foi a recepção dessa notícia. A saga conta que Bjarni tempo depois viajou a Noruega seu país de origem, onde conversou com o jarl Erik Hákonsson, lhe falando a respeito de suas descobertas, as quais foram recebidas com grande entusiasmo. Mas apesar desse entusiamos apresentado na corte do nobre norueguês, uma nova expedição as terras descobertas demorou a ocorrer, o motivo da demora não é conhecido.

Quinze anos depois da descoberta de Bjarni, um dos filhos de Erik, Leif Erkisson decidiu encontrar as terras avistadas por Bjarni, mas também no intuito de tentar descobrir novas terras. Leif havia trabalhado algum tempo na Noruega para o rei Olaf Tryggvason, mas depois decidiu retornar para a Groenlândia onde se casou com Thorgunna, uma mulher de origem nobre, com quem teve um filho chamado Thorgils. A Saga de Erik fornece mais alguns detalhes sobre a família de Erik, mas de qualquer forma o que nos interessa aqui é que ele reuniu uma tripulação de trinta e cinco homens então zarpou por volta do ano 1000. 

"Deixando a Colônia Oriental, navegou ao longo da costa da Groenlândia e passou diante da Colônia Ocidental, até chegar à ilha de Disko. Daí cruzou o estreito de Davis e chegou a Helluland, agora identificada como a ilha de Baffin. Continuando para sul, encontrou a costa do Lavrador (Markland), povoada de árvores tal como Bjarni a descrevera, e depois continuou, navegando durante mais dois dias, até chegar a um promontório de terra a sudoeste que chamou de Vinland ("Terra das uvas"), devido às uvas silvestres ou bagas que encontrou ali. Leif e seu grupo desembarcaram e passaram ali o inverno antes de regressar à Groenlândia". (GRAHAM-CAMPBELL, 2006. p. 177). 

Estátua de Leif Eriksson, em Reykjavik, capital da Islândia. O monumento foi erguido em 1930 para celebrar Leif como o descobridor de Vinland, e supostamente dos Estados Unidos, pois naquela época achava-se que Vinland fizesse parte do atual território estadunidense, mas hoje sabe-se que isso não está correto. Vinland compreende território canadense. 

Pelo fato de ser filho do notório Erik, o Vermelho a notícia da descoberta de Leif ganhou maior notoriedade na Groenlândia e até na Islândia, onde seu filho Thorgils anunciou os feitos do pai. Leif ganhou o epiteto de o "Sortudo" (hinn heppni) por causa da sua descoberta. Ele informou que aquelas terras eram verdejantes, possuíam praias de areia branca, clima mais quente comparado ao da Groenlândia e da Islândia, e também era habitada por estranhas pessoas de cor escura, as quais pareciam com os skraelingar que viviam no norte da Groenlândia. Neste caso, Leif referia-se aos indígenas. Os nórdicos não desassociavam os povos indígenas que encontraram em suas viagens à América, para eles todos eram iguais e assim chamados pelo termo genérico de skraelingar (no singular skraelings). 

Leif segundo conta-nos as sagas, estava entusiasmado em retornar para Vinland, mas na ocasião seu pai estava gravemente doente ou teria falecido, pois não se sabe a data exata que Erik morreu. Por ser o filho mais velho, Leif teve que ficar em casa para cuidar dos negócios da família, com isso seu irmão Thorvald decidiu ir em seu lugar. Reunindo trinta homens ele zarpou para Vinland por volta de 1001, achando as casas erguidas por Leif e seus homens para passar o inverno do ano anterior. 

A tal terra chamada de Vinland por Leif é hoje reconhecida como a ilha de Terra Nova, na costa canadense. Voltarei a falar a respeito mais adiante, quando abordar as fontes arqueológicas. No momento vejamos o que a Saga dos Groenlandeses e a Saga de Erik tem a nos dizer a respeito de outras viagens ao Canadá. Thorvald e seus companheiros residiram alguns meses em Vinland, até que decidiram explorar suas cercanias. Em certa ocasião ao adentrarem um "fiorde", eles avistaram os skraelingar, os quais amedrontados teriam os atacados. Thorvald foi atingido por uma flecha e morreu na ocasião. Seus companheiros retornaram para Groenlândia sem lhe levar o corpo. 

Gravura representando a morte de Thorvald Eriksson, morto num ataque dos indígenas. Henry Davenport Northrop, c. 1901. 

Mas apesar da morte de Thorvald, os Eriksson não desistiram de reclamar Vinland ao seu controle. Outros dos filhos do falecido Erik, Thorstein decidiu seguir para lá. Não se sabe quantos filhos ao todo Erik teve, mas as sagas de Vinland informam que ele teve três filhos: Leif, Thorvald e Thorstein e uma filha chamada Freydis, apesar de não serem filho da mesma mãe. Neste caso Thorstein reuniu uma tripulação de 25 homens fortes, pois além de tomar posse daquela terra, ele tinha o intuito de combater os skraelingar e reaver o corpo de seu irmão. 

Thorstein ao lado de sua esposa Gudrid Thorbjorndóttir e a tripulação, zarparam rumo a Vinland, mas os ventos como estavam desfavoráveis, acabaram sendo empurrados para o norte. Devido a proximidade do inverno, Thorstein decidiu adiar a viagem, indo morar nos arredores do Vestribyggd, porém, um rigoroso inverno acabou acometendo a todos. Thorstein faleceu na ocasião, mas Gudrid sobreviveu. Passado o inverno ela retornou para Brattahild, a propriedade dos Eriksson e lá sepultou o marido. Posteriormente as sagas informam que Gudrid casou-se com Thorfinn Karlsefni, homem de posses, a quem a esposa incentivou colonizar Vinland. Na Saga de Erik é dado maior destaque a Gudrid, principalmente por falar de sua família. 

Thorfinn Karlseni segundo informa a Saga dos Groenlandeses, conseguiu o apoio e permissão de Leif Eriksson para comandar sua própria expedição à Vinland. Acompanhado por 60 homens, 5 mulheres e alguns animais de gado, a expedição de Thorfinn zarpou para Vinland em data incerta, mas pelo que sugerem alguns historiadores, a expedição teria ocorrido por volta do ano de 1010. A iniciativa de Thorfinn foi a primeira que efetivamente partiu no intuito de estabelecer um assentamento, o qual de fato como será visto adiante, os vestígios arqueológicos encontraram as bases de casas. 

Após o primeiro inverno passado na ilha, com a chegada do verão, aquela comunidade de colonos nórdicos se depararam a primeira vez com os skraelingar que habitavam os arredores. Diferente do confronto ocorrido com Thorvald Eriksson, Thorfinn procurou evitar gerar algum pretexto que levasse aqueles "selvagens" a atacá-los. Para a visão dos nórdicos, os indígenas eram povos rudes, que se vestiam com peles de animais, não sabiam falar nenhuma língua conhecida. Com isso manteve-se a política da boa vizinhança, os escandinavos evitariam de adentrar o território indígena e esses evitariam de se aproximar do vilarejo sem autorização. 

Por pelo menos três anos a comunidade de Thorfinn manteve-se em paz com os skraelingar, inclusive um dos filhos de Thorfinn, chamado Snorri, teria nascido em Vinland. Uma das primeiras crianças europeias que se tem notícia a nascer nas Américas. A Saga dos Groenlandeses também informa que os indígenas forneciam madeira e peles em troca de leite, já a Saga de Erik conta que Thorfinn e seus homens empreenderam viagens de exploração nos arredores da ilha de Terra Nova, chegando mesmo ao continente em si. Todavia, não se sabe exatamente por quais locais eles passaram, apesar de vestígios arqueológicos duvidosos apontarem que algumas inscrições encontradas no norte dos Estados Unidos e sul do Canadá seriam escrita rúnica, alfabeto usado pelos nórdicos. 

A convivência com os indígenas foi pacífica, apesar de não saber até onde isso era verdade. De qualquer forma em certa ocasião como informam as sagas, os skraelingar que estavam no vilarejo se assustaram com os bois, isso gerou desentendimento entre eles os nórdicos, o que levou a uma briga. 

Não se sabe se houve mortos de ambos os lados, mas o confronto foi suficiente para fazer Thorfinn ordenar que o vilarejo fosse fortificado com uma paliçada. Os indígenas retornaram e tentaram invadir o vilarejo, mas foram repelidos, apesar de que houve baixas de ambos os lados. Após esse ataque Thorfinn decidiu abandonar Vinland. Todos retornaram para a Groenlândia. Thorfinn, Gudrid e seu filho Snorri se mudaram para a Islândia. 

Passado algum tempo, uma última expedição foi realizada a terra das vinhas, pelo menos última no sentido de ser narrada nestas sagas. Freydis Erikdaughter (no original é Eiríksdóttir), única filha de Erik, decidiu procurar os irmãos Helgi e Finnbogi, os quais haviam levado Thorfinn e sua família no translado da Groenlândia para a Islândia, a fim de saber se os irmãos estavam interessados em ir a Vinland. Helgi e Finnbogi aceitaram a proposta, então reuniram uma tripulação de trinta homens e algumas mulheres. Freydis e seu marido Thorvard levaram sua própria tripulação. 

Todavia, eles zarparam em data incerta para Vinland. Alguns historiadores sugerem o ano de 1015 para possível viagem. O navio de Helgi e Finnbogi chegou antes do de Freydis, e segundo informa as duas sagas, Freydis ao chegar a ilha, não gostou de ver que os irmãos e seus homens haviam se apossado das casas do vilarejo, alegando que aquela era propriedade sua, pois algumas das casas foram erguidas por seus irmãos. Nesse ponto Freydis não estava errada, mas estava equivocada, pois grande parte do vilarejo foi construído durante o governo de Thorfinn o qual residiu ali por quase três anos. 

Mas a queixa dela era que os irmãos tomaram para si as melhores casas, lhe legando construções menores. Ela na posição de filha de Erik, o Vermelho se sentiu ultrajada com aquilo. Freydis teria mandado erguer novas casas próximo do vilarejo. Porém a situação piorou. Freydis alegou ao seu marido Thorvard que havia ido a casa dos irmãos para fazer as pazes, mas estes a insultaram e lhe bateram. Ela pedia ao marido que lhe vingasse a honra, caso contrário pediria divórcio. Thorvard indignado com aquilo, reuniu seus homens e invadiu o vilarejo na calada da noite matando todos os dois irmãos e seus companheiros, porém decidiram poupar as mulheres. No entanto, Freydis alegou que também fosse traidoras e se nenhum homem iria matá-las, ela mesma faria isso. Na Saga dos Groenlandeses Freydis pede um machado para poder matar aquelas cinco mulheres. 

O relato de Freydis em Vinland lembra muito uma história de desentendimento, de briga de vizinhança. A arrogância de Freydis, a qual acabou sendo taxada de "mulher de louca", levou a desentendimentos problemáticos com os irmãos Helgi e Finnbogi, que culminou em assassinatos. Freydis, Thorvard e os demais permaneceram cerca de um ano em Vinland, até que retornaram para casa. A chacina ocorrida foi abafada. Mas eventualmente Leif ficou sabendo do ocorrido, mas não soube o que fazer ao certo. Como iria punir sua irmã e o cunhado. A saga não nos fornece mais detalhes acerca disso. 

No entanto, após o fim das viagens dos Eriksson a Vinland, a Saga dos Groenlandeses e a Saga de Erik ainda narram o que houve com Gudrid e Thorfinn Karlsini, os quais haviam morado em Vinland por pelo menos três anos. Não abordarei essas últimas páginas, pois não possuem ligação com Vinland. São mais informações acerca do que houve com essa família, além de informar que alguns de seus descendentes chegaram a serem bispos na Islândia.

Alguns comentários sobre as sagas: 

Tanto a Saga dos Groenlandeses quanto a Saga de Erik abordam as mesmas viagens, apesar de fornecerem algumas informações a mais ou a menos, mas curiosamente ambas as narrativas focam na empresa da família Eriksson e de Thorfinn Karlsini na tentativa de colonizar Vinland, principalmente tal fato é mais evidenciado na Saga de Erik ao ponto de Bjarni Herjólfsson nem se quer é mencionado como o "descobridor" de Markland e Helluland. Recaíndo todo o mérito da descoberta daquelas três terras a Leif Eriksson. (LOGAN, 1991, p. 91-92). 

Pelo fato de serem narrativas com elementos dramáticos, voltados para a história de uma família, desentendimentos, assassinatos, disputas de interesses etc., por muito tempo considerou-se tais obras como sendo uma narrativa de ficção. Não no sentido da existência de algumas pessoas, mas na veracidade dos acontecimentos, daí como dito, somente a partir do XIX é que começou a se olhar propriamente para as sagas como possíveis narrativas com dados históricos. Porém, apesar de hoje saber-se que Vinland realmente existiu, não se deve tomar ao pé da letra a narrativa dessas sagas, pois a forma de se redigir história naquela época não estava preocupada em conferir a credibilidade de todo o relato.

Neste caso podemos fazer uma recapitulação das viagens empreendidas às Américas segundo constam nessas narrativas. As datas são aproximadas, pois não a certeza de quando realmente ocorreu tais viagens. 
  • c. 985/986: Bjarni Herjólfsson descobriu Markland (Labrador) e Helluland (Ilha de Baffin), atualmente no Canadá. 
  • c. 1000-1002: Leif Eriksson descobriu Vinland (Ilha de Terra Nova), atualmente no Canadá. 
  • c. 1002-1003/1004: Thorvald Eriksson retornou a Vinland, tendo passado o inverno lá. Foi morto num ataque dos indígenas. 
  • c. 1010-1013: Thorfinn Karlsini estabeleceu um assentamento em Vinland. Após quase três anos o local foi abandonado devido a um ataque indígena. 
  • c. 1015-1016: Freydis Erikdaugther promove nova expedição a Vinland. O assentamento acaba sendo abandonado após um ano, devido a brigas internas. 
Porém, Donald Logan (1991, p. 92) comenta que essa datação normalmente apresentada para as sagas deve ser questionada. Ele salienta que segundo informa a Saga de Erik, Leif Eriksson serviu o rei Olavo Tryggvason da Noruega, mas esse rei governou por cinco anos de 995 a 1000, tendo sido assassinado pelo jarl Erik Hákonsson, o qual se tornou regente da Noruega (1000-1014), pois o país foi reivindicado pelo rei Sueno I da Dinamarca. O que nos interessa nesse ponto é que Erik Hákonsson de acordo com a Saga dos Groenlandeses foi o homem que ouviu de Bjarni a narrativa de sua descoberta, mas isso teria ocorrido antes ou depois de ele virar regente? E em que ano teria sido contado tal relato? 

Além disso, Donald Logan indaga quando exatamente Leif tomou conhecimento da descoberta de Bjarni. Teria sido enquanto residia na Noruega ou em retorno a Groenlândia? Mas esse retorno ocorreu quando? Pois tradicionalmente aponta que Leif teria chegado a Vinland por volta do ano 1000, mas o que sugere Logan, Leif ainda nesse tempo estaria à serviço do rei Olavo, na Noruega, tendo retornado para sua casa em Brattahild apenas em 1001 ou 1002, talvez até mesmo depois. 

Donald Logan (1991, p. 93) também menciona o caso de Snorri Thorfinnson, filho de Thorfinn Karlsini e Gudrid Thorbjorndaughter. Segundo informam as sagas ele teria nascido em Vinland. Um dos netos de Snorri foi Thorlak, o qual como informam as sagas, tornou-se Bispo de Skallhold. Thorlak como apontam registros históricos da época, nasceu em 1085. Não se sabe quantos anos sua mãe Hallfrid teve quando Thorlak nasceu, porém Donald Logan sugere que se Snorri teve sua filha com 40 anos, ele teria que ter nascido em 1025, ou seja, vários anos depois do que se supõe a época que seus pais teriam colonizado Vinland. 40 anos era uma idade avançada para se ser pai naquele tempo. Recuar o nascimento dele antes de 1025, também teria que se recuar o nascimento de Hallfrid, e neste caso, mulheres costumavam ter filhos cedo, logo, Hallfrid não poderia ser uma mãe jovem em 1085, a não ser que ela nasceu bem tardiamente. 

Essas problemáticas comentadas por Donald Logan não eram novidades na época. Entre as décadas de 1830 a 1960, ou seja, por mais de um século, estudiosos debateram se Vinland teria sido um local real, onde ficaria, em que ano realmente Leif Eriksson a teria descoberto, em quais anos seus irmãos teriam viajado para lá, em que ano Gudrid e Thorfinn teriam fundado um vilarejo. Essas perguntas permearam o imaginário por bastante tempo até que em 1965 um antigo mapa veio à tona e empolgou os historiadores, arqueólogos, entusiastas no geral. 

O Mapa de Vinland: 

Chamado de Mapa de Vinland, tal projeção cartográfica foi apresentada pela Universidade Yale no Dia de Colombo, 12 de outubro do ano de 1965. O anúncio oficial dizia que se tratava de uma obra talvez datada de 1440, mas possivelmente cópia de um mapa bem anterior, no qual representava Vinland. A notícia causou um alvoroço mundial. Vários jornais noticiaram o fato como uma grande descoberta. Aquele mapa-múndi, pois mostrava a Europa, Ásia e África, além de apresentar a Islândia, Groenlândia e uma ilha chamada Vinland. Consistia numa prova documental e cartográfica de que tal local poderia ser real. 


Fotografia do Mapa de Vinland. 

Na época a autenticidade do mapa foi atestada por alguns estudiosos de respeito como R. A. Skelton, superintendente da seção de cartografia do Museu Britânico, George D. Painter, especialista em livros impressos, também funcionário do Museu Britânico e Thomas E. Marston curador de manuscritos medievais e renascentistas da Biblioteca da Universidade Yale. Segundo foi informado, o mapa de Vinland junto a outra obra a Hystoria Tartarorum, foram adquiridos pelo Museu Britânico de um vendedor italiano de livros e documentos antigos, chamado Enzo Ferrajoli de Ry. Ninguém sabe como Enzo Ferrajoli encontrou esse mapa e por qual preço foi vendido aos ingleses em 1957. Pois só tempo depois em data não conhecida, o mapa foi vendido a Universidade Yule. Mas o intrigante é que apenas em 1965, o mapa foi oficialmente levado ao conhecimento público. Por que dessa demora? (LOGAN, 1991, p. 106; SEAVER, 2010, p. 211-212). 

O motivo da demora não são totalmente conhecidos. O Mapa de Vinland apesar de ter causado alvoroço com sua publicação, não convenceu a todos. Havia gente cética quanto a sua autenticidade. Especialistas em cartografia solicitaram o mapa ou cópias suas para fazerem análises a fim de determinar em que época realmente ele teria sido feito, além de tentar identificar em que país a obra poderia ter sido desenhada. O mapa possui uma inscrição em latim, na área sobre Vinland, que diz o seguinte:

"Por vontade de Deus, depois de uma longa viagem desde a ilha da Groenlândia rumo ao sul para as partes ocidentais do distante mar oceano, navegando para o sul em meio ao gelo, os companheiros Bjarni [Byarnus] e Leif Eiriksson [Leiphus Erissonius] descobriram uma nova terra, extremamente férteis e até mesmo possuíam vinhas, ilha que eles chamaram Vínland. Eric [Henricus] legado da Sé Apostólica e bispo da Groenlândia e da regiões vizinhas, chegou a essa terra verdadeiramente vasta e muito rica em nome do Deus Todo-Poderoso, no último ano de nosso bem-aventurado pai Pascal, permaneceu muito tempo no verão e no inverno, e mais tarde retornou rumo ao nordeste em direção a Groenlândia e depois prosseguiu na mais humilde obediência à vontade de seus superiores". (Tradução minha feita a partir da versão apresentada por SEAVER, 2010, p. 212). 

Pelo que é mencionado na Saga dos Groenlandeses e na Saga de Erik, Bjarni e Leif não viajaram juntos, nem se quer se tem certeza se eles chegaram a se conhecer. Além disso, pelo relato, Bjarni avistou Markland e Helluland, não Vinland. Não obstante o mapa diz que o bispo Eric teria viajado para Vinland também. Logan (1991, p. 109) sugere que a suposta viagem do bispo teria ocorrido entre 1117 e 1118, pois no ano de 1121, o mesmo bispo referiu-se nos Anais Islandeses acerca da existência de Vinland. Entretanto isso significava que ele teria viajado para lá? 

Apesar de haver essas aparentes contradições no documento, o mapa seguiu quase incólume por vários anos até que em 1974, uma conferência realizada em Londres, por Helen Wallis, sucessora de R. A. Skelton na direção de cartografia no Museu Britânico. Wallis reuniu defensores e opositores do Mapa de Vinland, tendo organizado um grande debate para se atestar a veracidade do documento. Análises materiais feitos no mapa desde 1967 para atestar a datação do pergaminho e da tinta, apontaram que de fato o pergaminho é antigo, mas pigmentos achados na tinta usada, continham óxido de titânio, substância que somente passou a ser sintetizada a partir do século XX. (SEAVER, 2010, p. 213). Ainda nos resultados preliminares houve tentativas de refutar a autenticidade do mapa, mas a oposição foi ferrenha, apenas nove anos depois é que alguns estudiosos do assunto começaram a perceber que a repetição das análises por outros laboratórios chegavam a conclusões similares. 

Essa prova contrária já punha em dúvida a veracidade do mapa, mas outras análises foram sendo feitas nos anos seguintes e hoje sabe-se que o mapa é falso, apesar de que houve gente que tentou provar o contrário. Todavia, enquanto a veracidade do Mapa de Vinland ainda era atestada, nessa mesma época, pesquisas arqueológicas realizadas no Canadá, fizeram uma grande descoberta. 

As fontes arqueológicas: 

Antes do século XVIII a literatura islandesa medieval ainda não havia sido traduzida, estando restrita a um grupo de estudiosos que não apenas eram falantes dessa língua, mas que sabiam paleografia para entender a escrita medieval, pois estamos falando de manuscritos dos séculos XII ao XIV. A partir do XVIII e XIX, estudiosos islandeses, noruegueses, dinamarqueses, suecos, ingleses e alemãs começaram a traduzir as Eddas (principais fontes sobre a mitologia nórdica) e algumas sagas. Isso permitiu que o conhecimento sobre a literatura islandesa medieval se espalhasse e novos estudos de interpretação pudessem ser feitos. Apesar de que no século XIX, como visto com Rafn e Anderson, estes chegaram a ler as Sagas de Vinland, e defendiam se tratar de relatos históricos, ainda havia uma forte resistência quanto a veracidade dos textos islandeses. 

Existem distintas formas de classificar as sagas islandesas, mas uma delas separam as narrativas entre conteúdo histórico e conteúdo mítico e lendário. Embora que algumas sagas se mantivessem no meio desta divisão, possuindo tanto elementos reais quanto míticos e legendários. As Sagas de Vinland foram tidos por alguns como sendo desse tipo. Narravam a colonização da Groenlândia, algo já considerado um fato, pois a ilha ainda era habitada naquele tempo, apesar de ter sofrido problemas devido ao clima rigoroso. Porém, as regiões chamadas de Vinland, Markland e Helluland não eram consideradas locais reais. 

Mitos e lendas de ilhas e continentes perdidos, fantásticos e paradisíacos remontam os tempos antigos e existem em diferentes culturas. Logo, para muitos estudiosos do XIX e na primeira metade do XX, Vinland pudesse ser uma ilha lendária, inclusive na Historia Norwegiae (2006, p. 157, 177) Vinland ("a terra das vinhas") era considerada uma terra real ao lado de outros lugares como a "Terra dos Gigantes" e a "Terra dos Skraelings". Por mais que os noruegueses da época pudessem ter convicção de que fossem locais reais, história e lenda nem sempre eram desassociáveis em algumas culturas. Com isso, há quem visse os trabalhos de Carl C. Rafn e Rasmus B. Anderson como teorias mirabolantes de tentar "comprovar lendas". 

Apesar de haver ceticismo por parte de alguns estudiosos, outros realmente acreditavam que Vinland pudesse se referir a alguma localidade dos Estados Unidos. Durante o final do século XIX e começo do XX, encontram-se artigos em revistas científicas e acadêmicas, apresentando teorias de que Vinland ficasse no norte dos Estados Unidos, logo, caso aquelas histórias fossem reais, os nórdicos e não os espanhóis foram os descobridores da América. Neste caso, tais estudiosos não cogitavam a ideia de que Markland e Helluland foram avistadas antes, para eles interessava apenas Vinland, pois ali formou-se uma pequena colônia nórdica. Não obstante, a divulgação do Mapa de Vinland em 1965, foi recebida por tais estudiosos como uma prova a mais para a existência daquela terra encontrada pelos nórdicos da Era Viking. 

Mas a resposta derradeira, pelo menos em parte, pois como veremos, ainda encontram-se respostas acerca dessa história, sem respostas, vieram na década de 1960. Desde o começo do século XX, escavações arqueológicas estavam sendo realizadas na Groenlândia, tendo encontrados alguns vestígios da presença nórdica na ilha, assim, um arqueólogo norueguês de nome Helge Marcus Ingstad (1899-2001), já alguns anos vinha estudando os relatos das Sagas dos Groenlandeses e da Saga de Erik, determinado a encontrar a localização de Vinland. Para ele, Vinland não se tratava de um local imaginário ou lendário, mas uma terra real a qual cinco séculos antes de Colombo empreender sua jornada, havia sido encontrada pelos noruegueses. 

Helge Ingstad, o descobridor de L'Anse aux Meadows, assentamento nórdico na América do Norte. 

Baseado de que Markland seria uma referência concreta da costa do Labrador, no Canadá, e Vinland ficava ao sul de Markland, em 1960, Ingstad e sua equipe partiram para o Canadá, para a ilha de Terra Nova (Newfoundland). Ele decidiu iniciar suas investigação no norte da ilha, pois a partir de conversas com os habitantes locais, alguns disseram que haviam ruínas que aparentavam ser bem antigas, nas cercanias do Ribeiro do Pato Preto, ao sul da Baía de Epaves. O local era conhecido pelo nome francês de L'Anse-aux-Meadows (Caverna das Águas Vivas). (GRAHAM-CAMPBELL, 2006, p. 178). 

Localização do sítio arqueológico de L'Anse aux Meadows, em Terra Nova, no Canadá. Único sítio arqueológico até hoje encontrado que atesta a presença viking no continente americano. 

Na época que se iniciaram as escavações, os moradores locais não faziam a miníma ideia de quem teria vivido ali. Uns achavam que eram restos de alguma aldeia indígena, ou até mesmo do período colonial, podendo remeter aos ingleses, franceses ou até piratas. As escavacações de L'Anse aux Meadows se iniciaram em 1961 e continuaram até 1968, sendo dirigidas por Helge Ingstad, mas principalmente por sua esposa Anne Stine Ingstad. Posteriormente entre 1973 e 1976, Bengt Schonback e Birgitta Linderoth Wallace também realizaram escavações no sítio. (LOGAN, 1991, p. 99). 

Anne Stine Ingstad, esposa de Helge Ingstad, numa fotografia de 1963, tirada no sítio arqueológico de L'Anse aux Meadows. Enquanto seu marido trabalhava em outros assuntos, Anne dirigiu as escavações ao longo de sete anos.
 
No ano de 1977, Helge e Anne publicaram um relatório sobre suas pesquisas, apresentando provas de que se tratava não de um assentamento indígena, britânico, francês, tão pouco era datado da Idade Moderna, mas remontava ao medievo e possivelmente fosse de origem escandinava, tal dúvida depois foi esclarecida como de fato pertencente a cultura nórdica medieval. 

No sítio foram achados na ocasião oito construções: três casas, uma ferraria, três armazéns, uma oficina e alguns fornos. A arquitetura das casas era idêntica ao estilo usado na Groenlândia e na Islândia no período viking, até os materiais empregados, como os blocos de tepe, era similares aos fabricados na Groenlândia. A disposição das casas também apontava esquema habitacional em comum. Além disso, vestígios de objetos em ferro e em bronze, especialmente uma insígnia anelada era do mesmo modelo usado pelos escandinavos da Era Viking. Posteriormente a datação por Carbono 14 foi realizada em diversas amostras, apontando a data do século XI, como a origem de tais objetos. (GRAHAM-CAMBPELL, 2006, p. 178-179; WALLACE, 2008, p. 606; LOGAN, 1991, p. 101-102). 

Reconstituição de uma longa casa e dois armazéns, encontradas no sítio arqueológico de L'Anse aux Meadows, Terra Nova, Canadá. 

Enquanto o Mapa de Vinland era desacreditado na década de 1970, a publicação do relatório dos Ingstad, depois de Bengt Schonback e de Birgitta Wallace, forneciam cada vez mais provas, fontes, artefatos, argumentos e material para corroborar que ali pudesse ser Vinland, e de fato aquelas ruínas eram de um assentamento viking, encontrado na ponta de uma ilha canadense. 

Considerações finais:

Depois de todo essa material e explanações apresentados é hora de passar em revista os dados coletados e o que se possui de fontes que atestem a presença escandinava no século XI, na América do Norte. Primeiramente vamos começar dissecando os vestígios arqueológicos, pois como eu havia comentado, seria a descoberta de L'Anse aux Meadows a solução definitiva sobre a presença nórdica na América? A resposta é não. 

Provavelmente algumas pessoas não tenham gostado de minha afirmação categórica. Mas vamos a explicação. A datação por Carbono 14 nos fornece datas aproximadas, as quais podem variar entre anos, décadas e até mesmo séculos ou milênios, quanto mais antigo for a amostra estudada. Os objetos metálicos e outras amostras encontradas no assentamento viking em Terra Nova, de fato foram datados da primeira metade do século XI, isso coincide com a questão de que nessa época a Groenlândia já era habitada, logo, os nórdicos que se encontravam por lá teriam vindo dessa ilha, apesar de poderem ser originários de outras terras. 

Não obstante, por mais que a datação remonte a primeira metade do XI, o assentamento não nos fornece dados sobre quem o teria construído. Alguns tentaram afirmar na época que se tratava da colônia fundada por Leif Eriksson, chamada de Leifsbúdir pelos estudiosos. Tal opinião advinha da condição de que Thorfinn Karlsini teria fundado pelo menos dois assentamentos, como sugerem os relatos escritos. 

Quanto a Thorfinn Karlsini, como salienta Wallace (2008, p. 605), as sagas informam que durante a estada de pelo menos três anos em Vinland, Thorfinn e seus homens aproveitaram para explorar as terras locais, inclusive nomeando alguns locais que até hoje não foram identificados. O relato fala de dois grandes acampamentos, o Straumfjord, situado no norte de Vinland, de onde ocorriam expedições de exploração, caça e pesca durante o verão, e o acampamento de Hóp, situado mais ao sul numa região cercada por lagunas, era uma paragem mais agradável, abundante em vinhas silvestres e em árvores. 

Com isso a arqueólogo Birgitta Wallace (2008, p. 605-606) indagou se L'Anse aux Meadows, local que ela chegou a participar das escavações, poderia ser uma referência a Leifsbúdir ou ao Straumfjord? Não há uma resposta clara. Pois o assentamento de L'Anse aux Meadows parece ter abrigado poucas pessoas, assim como, a arqueóloga sugere que parece ter tratado de um entreposto e não um vilarejo ou vila. De fato Leif apenas teria erguido algumas casas temporária, tendo cabido a Thorfinn erguer um vilarejo para dezenas de pessoas. Por tal condição, se descartaria a hipótese de que aquelas ruínas fossem de Straumfjord ou até mesmo de Hóp, sugerindo que pudessem ser a localidade que Leif e Thorvald se estabeleceram durante alguns meses.

Porém, isso não é uma certeza. Primeiro não se sabe quando Leif viajou para a América do Norte e há gente que até mesmo questiona se realmente ele existiu. Logo, não se pode dizer que tais ruínas sejam de seu assentamento. Para Birgitta Wallace (2008, p. 609) L'Anse aux Meadows seria a "porta de entrada" de Vinland, mas aqui no sentido de um entreposto de armazenamento. Normalmente os nórdicos costumavam realizar o armazenamento em casa, exceto quando a produção era grande, isso os levava a construir um armazém. Mas a existência de pelo menos três armazéns no sítio, sugere que se tratasse de um porto para escoamento de mercadorias, ainda mais por sua posição privilegiada no norte de Terra Nova. 

Isso também nos leva a recordar o fato de que nas sagas falam que durante a colônia de Thorfinn, os noruegueses negociavam com os indígenas, em geral madeira e peles de animais em troca de leite. Não podemos confirmar se houve realmente esse comércio entre os dois povos, mas também não podemos descartá-lo. Entretanto, a existência de armazéns não atesta a existência de um comércio, mas possivelmente de uma zona de extração de recursos, lembrando que a Groenlândia ainda hoje é uma ilha pobre em recursos naturais. 

Diante de tais perspectivas, L'Anse aux Meadows atesta em parte a veracidade das Sagas dos Groenlandeses e da Saga de Erik, por confirmar que realmente os escandinavos chegaram à América do Norte e estabeleceram um assentamento em Vinland, no século XI. Porém, L'Anse aux Meadows não atesta a história da jornada da Família Eriksson pelo controle de Vinland e tão pouco se Thorfinn Karlseni e Gudrid teriam fundado uma colônia que durou três anos. Apesar de estas histórias não serem confirmadas, pelo menos hoje se sabe que realmente Colombo e sua expedição não consistiram nos primeiros europeus a chegarem nas Américas. 

NOTA: O suposto assentamento chamado de Hóp, o qual teria sido erguido durante o governo de Thorfinn Karlseni parece que não estaria localizado na ilha de Terra Nova. Até hoje sua localização não foi encontrada. Hipóteses sugerem que ele poderia ficar em alguma localidade no Golfo de São Lourenço, pois a ilha de Terra Nova fica na entrada do golfo. Outras teorias sugerem que Hóp ficaria ainda mais para o sul, em direção a ilha da Nova Escócia, ainda em território canadense. Os entusiastas da presença viking nos Estados Unidos, sugerem que Hóp poderia estar no MaineNova Hampshire ou na Nova Inglaterra
NOTA 2: Nas últimas décadas encontrou-se moedas escandinavas em algumas localidades no norte do Canadá. Devido a falta de mais objetos na região, não se sabe como tais moedas ali chegaram? Teriam sido perdidas por algum explorador escandinavo? Teriam sido dadas para algum indígena como pagamento? Teriam sido roubadas durante um ataque indígena a alguma acampamento? Todavia, a presença de tais moedas são um indicativo a mais para corroborar que os groenlandeses costumavam visitar o Canadá com regularidade. 
NOTA 3: Encontra-se em um documento islandês a menção de uma viagem a Markland no ano de 1347. Na ocasião a viagem tinha como intuito coletar madeira. No entanto, não sabemos se tal viagem realmente chegou a ocorrer. 
NOTA 4: Alguns romances foram escritos com base nas Sagas dos Groenlandeses e da Saga de Erik. Temos o livro The Thrall of Leif the Lucky: A story of viking days (1902) de Ottilie A. Liljencrantz, a qual aborda Leif Eriksson. The Greenlanders (1988) de Jane Smiley, que aborda a vida na Groenlândia, principalmente na época da crise da sua colonização. E o livro Eiriksdottir: A Tale of Dreams and Luck: A Novel (1994) de Joan Clark, cuja história romantiza a vida de Freydis Erikdaugther. 
NOTA 5: No ano de 1964, o presidente americano Lyndon B. Johnson instituiu o feriado do Dia de Leif Eriksson, celebrado na data de 9 de outubro, no intuito de celebrar a chegada dos nórdicos ao continente americano. O curioso é que a data já era celebrada por alguns estados americanos desde a década de 1920, tendo sido um de seus idealizadores o escandinavista Rasmus B. Anderson. Apesar de que antes de 1965 não houvesse comprovação da presença escandinava no continente americano, ainda assim, esse feriado havia sido validado. 
NOTA 6: A descoberta de Vinland serviu de inspiração para o mangá Vinland Saga (2005-presente) de Makoto Yukimura. Leif Ericson é um dos personagens que aparece no mangá. Todavia, apesar de se falar sobre Vinland, a história se desenrola na Islândia, Inglaterra, França e outras localidades, não indo para Vinland ainda. 

Referências Bibliográficas:

Fontes:
BREMEN, Adam of. History of Archbishops of Hamburg-Bremen. Translated and note by Francis J. Tschan. New York, Columbia University Press, 1959. 
HISTORIA Norwegie. Edited by Inger Ekrem and Lars Boje Mortensen. Translated by Peter Fisher. Copenhagen, Museum Tuscalunum Press/University of Copenhagen, 2006. 
THE VINLAND sagas: The Norse discovery of America. Translated and introduction by Magnus Magnusson and Hermann Pálsson. London: Penguin Books, 1965. 

Referências: 
BOULHOSA, Patricia Pires. Sagas islandesas como fonte de história da Escandinávia Medieval. Signum, n. 7, 2005, p. 13-39. 
GRAHAM-CAMPBELL, James. Os Vikings. Barcelona, Edições Folio S.A, 2006. 
HAYWOOD, John. The Penguin Historical Atlas of the Vikings. London, Penguin, 1995. 
HOLMAN, Katherine. Historical dictionary of the vikings. Lanham: Scarecrow Press Inc, 2003.
LOGAN, T. Donald. The vikings in the history. 2. ed. London/New York: Routledge, 1991.
SEAVER, Kirsten A. The Last Vikings. London/New York, I. B. Tauris, 2010. 
WALLACE, Birgitta. The discovery of Vinland. In: BRINK, Stefan (ed.). The Viking World. London/New York, Routledge, 2008. p. 604-612. 

sábado, 25 de março de 2017

O ciclo de agitação social de 1917-1920

O ciclo de agitação social de 1917-1920


Joana Dias Pereira


Introdução

Os últimos anos da Primeira Guerra Mundial e os primeiros do pós-guerra foram marcados por um ciclo de agitação social global. Os países beligerantes, como todos os contextos nacionais afetados pela desestabilização da economia, foram palco de levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida e de uma onda de greves com uma adesão inédita. Este artigo procura examinar este processo de mobilização, prosseguindo uma tradição historiográfica que progrediu desde a análise da evolução dos repertórios de ação coletiva à explicação da dinâmica de conflito.

Na obra Dynamics of Contention (2001), Charles Tilly, Sydney Tarrow e Doug McAdam, desenvolvendo o programa de investigação dos movimentos sociais, procuram destacar a centralidade dos processos relacionais perceptíveis em diversos episódios de ação coletiva, fortalecendo o modelo analítico com novos conceitos. Assim, em vez de oportunidade, estruturas de mobilização, enquadramento e repertórios pré-existentes, examinaremos a percepção de oportunidades, a apropriação social dos recursos organizacionais e a mediação entre diferentes atores e repertórios.

Este modelo destaca as tendências mais significativas implícitas nos processos de mobilização, como o estabelecimento de novos atores e identidades políticas, a polarização ou o salto de escala do conflito local para o translocal. Também explora reconfigurações ao nível das consciências, dos laços de solidariedade e das relações entre a comunidade de atores, em situações excepcionais, como a guerra. Segundo este esquema interpretativo, todavia, os movimentos sociais resultam sempre de um mais abrangente processo de transformação, que é necessário compreender para um profundo entendimento da sua emergência e trajetória.

Por outro lado, extravasando deliberadamente as fronteiras entre os diferentes tipos de conflito – ondas de greves, guerras, movimentos sociais, revoluções, nacionalismos, entre outros –, este modelo relaciona vários repertórios de ação colectiva1. Assim, é particularmente útil para refletir sobre a problemática deste artigo: as designadas «revoltas da fome» e a onda de greves, ambas iniciadas na Primavera de 1917, foram parte do mesmo processo de mobilização?

Com base neste modelo e nas fontes disponíveis – os relatórios oficiais conservados no fundo do Ministério do Interior e a imprensa, sobretudo a operária – será argumentado que estes dois repertórios foram parte de um único processo de mobilização e que a sua articulação foi levada a cabo pela ala mais radical do movimento sindical. Esses atores foram capazes de tomar posse da estrutura organizacional, construída pelos socialistas desde do século XIX, e de tirar vantagens da grande influência que tinha nas redes sociais dos trabalhadores. Os sindicatos e outras associações de trabalhadores, bem como os laços informais que atravessavam as comunidades operárias, possibilitaram a articulação das lutas em torno da produção e do consumo. Ao tomar posse destes recursos organizacionais, os sindicalistas revolucionários foram capazes de estruturar o seu movimento a nível nacional, atingindo uma escala sem precedentes.

Destacando o papel do movimento organizado dos trabalhadores, este artigo não deixa de relevar o papel das mulheres na gestão das redes de reciprocidade, familiares e de vizinhança, que muito embora assumissem um carácter informal, tiveram um papel central como recurso organizacional primário. Como além-fronteiras tem vindo a ser argumentado, a entrada em massa das mulheres nas fábricas foi fundamental para extravasar as fronteiras entre as comunidades de ofício e de residência e entre as lutas em torno do consumo e da produção.

A dinâmica de conflito

As transformações estruturais

No final do século XIX, um multifacetado conjunto de transformações estruturais afeta significativamente o trabalho manufatureiro e as economias domésticas, mesmo nos países de industrialização tardia. As principais inovações registadas no sector transformador foram a sua progressiva deslocalização para as periferias urbanas e o gradual aumento de dimensão das unidades de produção. A concentração de trabalhadores em fábricas não mecanizou o trabalho, mas reorganizou-o. Uma nova distribuição de tarefas tornava possível empregar um grande número de trabalhadores não qualificados, alterando significativamente as hierarquias herdadas do modo de trabalho artesanal e diminuindo o controlo dos antigos artesãos sobre o processo produtivo. No entanto, esta perda de protagonismo dos trabalhadores qualificados foi relativa enquanto os fabricantes não investiram claramente em inovação2.

Com a generalização do sistema salarial, a precariedade e os baixos rendimentos passam a ser as principais características das relações de trabalho industriais. Para além disso, a resiliência das estratégias familiares baseadas nas economias domésticas típicas do Antigo Regime, induziu a perpetuação da divisão sexual do trabalho nas fábricas. Os empregadores aproveitaram essas práticas para reduzir os custos do trabalho, pagando salários muito baixos a mulheres e crianças. No entanto, a sua coexistência com os trabalhadores organizados mais qualificados e com maior capacidade reivindicativa contribuiu para o seu gradual envolvimento em protestos e greves3.

Em paralelo com mais altas taxas de concentração no local de trabalho, a urbanização contribuiu para a criação de um contexto físico e social que potenciou um sentido mais amplo de unidade e solidariedade entre os trabalhadores. O desenvolvimento industrial e do sector de construção em expansão permitiram a fixação de trabalhadores sazonais, que circulavam entre os diferentes segmentos dos mercados de trabalho urbano e suburbano. Este processo foi a base de uma nova divisão social do espaço dentro das aglomerações urbanas europeias, induzindo a formação de bairros socialmente mais homogéneos em torno de áreas industriais. As famílias trabalhadoras, incluindo artesãos, trabalhadores qualificados e indiferenciados, coexistiram desde então em espaços de produção e residência, que se sobrepunham, promovendo uma endogamia social sem precedentes, que os estudos monográficos têm confirmado empiricamente4.

No alvorecer do século XX, o movimento operário assumiu novas proporções e contou com novos protagonistas. Foi o proletariado fabril que deu uma escala sem precedentes às greves, embora, particularmente nos países de industrialização tardia como Portugal, os trabalhadores qualificados e os seus recursos organizacionais tenham desempenhado um papel crucial. As organizações tradicionais dos artesãos, herdadas do Antigo Regime, procuraram adaptar-se à nova organização do trabalho, incorporando as reivindicações dos trabalhadores não qualificados, que se tornaram a maioria dos trabalhadores industriais – as relacionadas com aumentos salariais, sobretudo, em detrimento de outras mais específicas e relacionadas com a organização do trabalho artesanal, como a luta pelo controlo do processo produtivo5.

Não obstante as estratégias dos industriais tendentes a enfraquecer a solidariedade entre os trabalhadores, dividindo-os por especialidades e promovendo a concorrência, os sindicatos foram capazes de forjar um sentimento de unidade entre os diferentes estratos do universo operário. As mulheres e as crianças eram os grupos mais vulneráveis, tendo em vista a natureza sazonal do seu trabalho, muitas vezes feito em casa ou em pequenas unidades de produção. As estratégias dos sindicatos para superar este obstáculo passaram muitas vezes pela integração das mulheres nas organizações masculinas pré-existentes, apoiando as suas reivindicações por melhores salários.

Totalmente dependentes de salários para assegurar as necessidades básicas de subsistência, as economias domésticas das famílias trabalhadoras estavam profundamente subordinadas à relação entre emprego/salário/preços. Durante o período que precede, acompanha e sucede a Primeira Guerra Mundial, os trabalhadores foram severamente afetados pelos ciclos económicos como consumidores. Os preços aumentavam lentamente desde a viragem do século, mas foi na segunda década do século XX que uma galopante inflação se refletiu negativamente e com especial acuidade sobre os salários industriais e as condições de vida dos trabalhadores. Desde então, as mulheres desempenharam um papel fundamental e inédito nos protestos laborais, tendo em conta a sua entrada nas fábricas, mas também o seu papel na economia familiar. No entanto, foi nas lutas em torno do consumo que as mulheres mais se destacaram como gestoras de redes de solidariedade informais que permitiram uma mobilização massiva das populações.

Nos países do sul da Europa, a comunidade territorial desempenhou um papel fundamental neste processo, permitindo a expansão da base social do movimento reivindicativo. As greves tiveram uma adesão excepcional nas vilas e bairros operários que cercavam as principais cidades. A unificação de diferentes protestos locais também beneficiou dos fluxos migratórios do campo para a cidade e dos centros urbanos para a periferia. Nesses movimentos, foram acionadas e transferidas redes familiares e comunitárias, que se tornaram num poderoso recurso organizacional para os protestos das populações6.

Nos primeiros anos de guerra, a repressão tinha parcialmente privado os artesãos e os trabalhadores qualificados dos seus recursos tradicionais de resistência, mas as redes sociais tecidas nos novos espaços urbanos tornaram-se a base da mobilização social. As designadas food riots assolaram toda a Europa desde o Inverno de 1915-1916. A ação coletiva foi dirigida especialmente contra o açambarcamento e a especulação sobre os preços dos géneros de primeira necessidade. A partir de 1917, os protestos contra o consumo tomaram uma dimensão política, quando começaram a articular-se com um novo surto de conflitos laborais. Em toda a Europa, uma onda de greves e manifestações eclodiram, envolvendo milhares de trabalhadores de vários setores e qualificações, devido à crescente carestia de vida (mais elevada do que o aumento dos salários), à agudização da disciplina nas fábricas e à repressão política. Os protestos e greves verificados após a Revolução de Outubro na Rússia culminaram num ciclo de agitação social global. Os parâmetros quantitativos refletem o surgimento deste movimento numa escala mundial, abrangendo todos os continentes. Mostram também que, na maioria dos países, o número de greves foi ultrapassado em comparação com a onda desenvolvida antes da guerra (1910-1913), bem como o número de grevistas, o âmbito das greves, a coesão e a força do movimento7.

A percepção colectiva de uma oportunidade
A primeira hipótese levantada neste artigo, e no que respeita ao desencadear do movimento, é que a crescente intervenção económica e social do Estado foi percepcionada coletivamente pelos trabalhadores como uma oportunidade para lutar por condições de vida e trabalho mais favoráveis. A economia de guerra serviu para enfatizar as contradições fundamentais do sistema capitalista e da economia de mercado, destacando os instrumentos políticos passíveis de utilizar para impedir a especulação e o açambarcamento. Através de legislação reguladora dos abastecimentos, os governos europeus induziram a mobilização das populações pressionando o Estado e com o objetivo de impor uma economia moral. No curso das lutas em torno das subsistências, um sentido de identidade foi forjado à escala das comunidades locais, em oposição a proprietários e a comerciantes. O Estado, no entanto, passou a ser visto não apenas como um inimigo, mas também como um instrumento.

Os estratos sociais mais atingidos pela carestia de vida percepcionaram nas medidas governamentais e na regulação dos preços, uma oportunidade para travarem a inflação desenfreada com o apoio legal. A ação coletiva foi essencialmente direcionada para as autoridades, com o objetivo de pressionar a regulamentação dos preços e da distribuição de alimentos. A ação direta surgiu apenas quando as populações foram confrontadas com a incapacidade das autoridades políticas em mitigar a crise de subsistências.

Um exame minucioso dos protestos relacionados com o consumo em Portugal sugere que estes não se traduzem em explosões súbitas e espontâneas de raiva e desespero. A resistência das populações contra a especulação e o açambarcamento integra um movimento com várias formas de luta – sessões de propaganda, comícios, representações ao governo, manifestações, greves, entre outros –, o que poderia ser classificado como um reportório de ação coletiva centrado no Estado8. Na maioria das vezes, e tendo em conta os relatórios da polícia, os manifestantes insurgiram-se contra as tentativas dos comerciantes venderem produtos acima dos preços oficiais ou a sua recusa em vender bens essenciais armazenados. Em muitos desses testemunhos, afirma-se que os bens foram pagos de acordo com os preços oficiais prescritos, e que não houve violência física significativa.

É útil lembrar o modelo proposto por John Bohstedt. No seu extenso estudo sobre food riots, observa-se que a ação coletiva ocorre somente em comunidades estáveis, normalmente em pequenas e médias cidades, com fortes redes sociais, seja horizontais – família, vizinhança e locais de trabalho; seja verticais – entre as pessoas, as elites e as autoridades. Bohstedt interpreta esse padrão como parte de um processo de negociação controlado dentro das comunidades, apenas possível quando se podia calcular os riscos e os limites dessa negociação em populações estabelecidas com fortes relações recíprocas9. As evidências empíricas recolhidas sobre as revoltas da fome, no contexto nacional, entre 1917 e 1920, sugerem que, durante a guerra, esses laços permitiram o sucesso da ação coletiva visando a apreensão e distribuição de mercadorias com a cumplicidade das autoridades administrativas e policiais.

Vários exemplos de relatórios policiais e das autoridades locais ilustram como as reivindicações dos trabalhadores e das populações criaram divisões no seio do Estado. A percepção coletiva de uma oportunidade também se relacionou com essas tensões, cada vez mais evidentes ao longo da conflagração. As autoridades locais e regionais mostraram uma tendência geral para rejeitar as diretrizes do governo central, cedendo à pressão das populações. Numerosas ameaças e demissões coletivas dos administradores e governadores aparecem na correspondência trocada entre poderes locais, regionais e centrais. A razão era invariavelmente a mesma: as subsistências. À medida que esta questão se agravava, as tensões institucionais transbordavam para o domínio público. Vários exemplos de desafio frontal de ordens superiores por parte das autoridades locais, no interesse das comunidades, foram identificadas nas séries de correspondência do Ministério do Interior.

O mesmo sucedeu no que se refere às autoridades policiais. Está bem documentada a participação da polícia civil na revolta mais dramática que ocorreu na região de Lisboa, a revolução da batata, em Maio de 1917, bem como a recusa por parte dos militares para reprimir alguns dos assaltos a padarias e mercearias durante o levantamento popular. A descrição de um destes episódios, no Poço do Bispo, é compreensível à luz da importância que os laços comunitários preservavam nos bairros operários periféricos da capital portuguesa, durante o primeiro quartel do século XX. Segundo o relatório policial, os guardas-fiscais não impediram o furto de bens alimentares pelas mulheres, que gritavam, «a Guarda está ao lado do povo!»10.

A segunda hipótese apresentada é que estas revoltas populares estiveram na origem de um novo ciclo de lutas laborais. Na verdade, a paralisação da construção civil que precipita a maior onda de greves já experimentada em Portugal, ocorreu exatamente no curso da revolução da batata. A federação nacional dos trabalhadores da construção civil, que liderou o movimento, organizou uma manifestação no centro de Lisboa, no mesmo dia em que os tumultos atingiram o seu clímax. Depois disso, durante a Primavera de 1917, as greves setoriais e gerais agitaram toda a região, em paralelo com novos levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida. Este ciclo de protestos intensificou-se durante o Verão, culminando com a paralisação dos serviços de telégrafos e postais, uma das primeiras greves a generalizar-se em todo o País, desde o Algarve até Bragança, segundo a correspondência dos governos civis para o Ministério do Interior, e que terminou com a mobilização militar dos grevistas.

As conquistas dos trabalhadores em termos salariais, todavia, eram rapidamente ultrapassadas, pela inflação. No final do ano, os dirigentes sindicais decidem então priorizar as lutas em torno do consumo, percepcionando uma oportunidade para ampliar a base social do movimento operário. Durante 1918, todos os esforços foram mobilizados para a organização da chamada greve geral de todos os consumidores, prevista para 18 de Novembro desse ano.

A apropriação social de recursos organizacionais

Embora a historiografia tradicional tenda a apartar os levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida do movimento organizado dos trabalhadores, as evidências empíricas apontam em sentido contrário, em especial nos estudos relativos especificamente às circunstâncias excepcionais da Primeira Guerra Mundial. Lester Golden e Temma Kaplan, ao analisarem os tumultos na Catalunha durante este período, observam, na aparente espontaneidade desses movimentos, uma organização altamente disciplinada, embora informal, que associa rituais antigos e linguagens da cultura popular tradicional e das comunidades de trabalho, com a ideologia e o dinamismo dos movimentos de massa modernos. Golden afirma que uma relação simbiótica foi criada entre a luta da classe trabalhadora moderna e os laços de solidariedade construídos nas comunidades locais, argumentando que os sindicatos, compartilhando o mesmo espaço com outras organizações de bairro, tendem a tornar-se instituições comunitárias11.

Lynne Taylor, revisitando vários estudos sobre food riots, defende que as revoltas do século XX tendem a assumir novas características, que as distinguem daquelas que foram extintas durante o século XIX. Normalmente, esses protestos ocorrem em reação à inflação dos preços dos produtos alimentares ou o custo de vida e, apesar de serem organizadas com base em redes sociais, as organizações políticas com uma relação estreita com as comunidades tendem a ser mobilizadas e as suas ideias e estratégias adaptadas12.

A hipótese a discutir nesta secção é que quer as organizações de trabalhadores quer as redes informais foram apropriadas pelos sindicalistas revolucionários para transformar os motins e as greves num movimento político único. Este processo só foi possível devido ao aumento da interação entre esses recursos organizacionais dentro das comunidades operárias. Em Portugal, a distribuição geográfica das greves, manifestações, sessões de propaganda e de outras iniciativas levadas a cabo pelos sindicatos, por um lado, e as lutas em torno dos meios de subsistência, por outro, prova que estes dois tipos de contestação estavam profundamente inter-relacionadas. Desde o início até ao refluxo, os epicentros de ambos foram as áreas urbanas industriais. Os estudos monográficos mostram como essa interação foi possível. As associações de classe foram envolvidas nas revoltas da fome e as redes informais foram mobilizadas para difundir e sustentar o movimento grevista.

Diversas fontes, desde os relatórios policiais à imprensa, relatam como o movimento organizado dos trabalhadores participou nos levantamentos populares, aparentemente espontâneos. De acordo com estas, os assaltos e tumultos eram planeados nas sedes das associações operárias, como as sociedades de socorros mútuos, as cooperativas e até mesmo as coletividades de cultura e recreio, espaços de agregação fundamentais nas comunidades operárias. Consequentemente, as medidas preventivas e repressivas foram direcionadas especialmente para o movimento associativo. O papel das redes sociais informais na sustentação de greves também é profusamente descrito na imprensa regional e nas outras fontes históricas acima mencionadas. Festas, festivais, performances e subscrições realizadas em bairros operários permitiram sustentar lutas extensas e prolongadas.

A propagação da agitação social deu origem à reorganização do movimento operário, que nos primeiros anos da guerra foi amordaçado pela repressão, mas também levou a uma mudança na sua táctica. A União Operária Nacional (UON) mudou oficialmente o seu foco para as lutas e protestos em torno do consumo. As conferências operárias de 1917, presididas pelo anarco-sindicalista Manuel Joaquim de Sousa, adoptaram uma tese a respeito do custo de vida. Esta questão foi discutida acaloradamente, decidindo-se que, dada a impotência e a incapacidade do governo para minimizar a escassez de alimentos, os próprios trabalhadores deviam defender os seus interesses diretamente, por meio dos seus sindicatos.

Na preparação da greve geral de todos os consumidores, em 1918, as associações de classe, e sobretudo as suas estruturas translocais, foram apropriadas pelos sindicalistas revolucionários para mobilizar as populações contra a especulação e os açambarcamentos. Foram organizadas muitas centenas de iniciativas: comícios, reuniões, protestos e distribuições de manifestos nas principais cidades e centros industriais – Lisboa, Porto, Coimbra, Viana do Castelo, Guimarães, Covilhã, Faro, Funchal, etc. – e profusamente entre os trabalhadores rurais – em Évora, Beja, Portalegre, Sousel, Estremoz, Ferreira do Alentejo, Coruche, Aljustrel, Redondo, Sines, etc. O resultado decepcionante da greve geral, para o qual contribuíram o armistício e a pneumônica, não minimiza a importância do movimento.

Essa mobilização sem precedentes também resultou em centenas de novas organizações, que emergiram com uma grande capacidade de mobilização nos primeiros meses de 1919, quando o Sidonismo foi derrotado.

A mediação entre as lutas em torno da produção e do consumo

O ciclo de protestos e lutas organizados pelos sindicatos contra a carestia de vida constituiu o maior processo de mobilização vivenciado em Portugal até à data, envolvendo tanto o movimento organizado dos trabalhadores como as redes sociais das comunidades operárias. Neste sentido, pode-se argumentar que a ala mais radical do movimento sindical assumiu o papel de intermediário entre a população em geral e os trabalhadores industriais. À medida que esses atores e os seus repertórios de ação coletiva interagiram, os sindicalistas revolucionários e os anarco-sindicalistas transformaram os protestos locais num amplo movimento político.

Os sindicalistas conseguiram construir um movimento de contestação à escala nacional, dando-lhe um carácter político, através da apresentação ao governo de um conjunto de exigências, que foram aprovadas em dezenas de comícios em todo o país. Este caderno reivindicativo, amplamente divulgado na imprensa, ilustra a base em que assentava a mediação entre as lutas em torno da produção e do consumo e também o papel do Estado nesse processo. Na verdade, foi a crescente intervenção deste último nas esferas económica e social que permitiu a articulação das aspirações dos trabalhadores organizados com as dos outros estratos sociais penalizados pelo aumento dos preços e a escassez de alimentos. Era exigido ao Estado a regulamentação legal do trabalho das mulheres e crianças ou do dia oito horas, entre outras regulamentações laborais, ao mesmo tempo que se propunha que os municípios adquirissem bens na fonte para venda direta ao consumidor, eliminando os comerciantes. Também era proposto que as comissões criadas para essa finalidade incluíssem representantes das associações de classe.

Durante 1919 e 1920, juntamente com grandes movimentos em torno do consumo, as duas principais cidades e suas áreas de dependência foram abaladas por amplos movimentos grevistas, que se transformaram sistematicamente em paralisações generalizadas, tendo a solidariedade como mote. Os protestos multiplicaram-se e intensificaram-se de Norte a Sul do País, resultando em vitórias muito significativas. Os trabalhadores da cortiça, por exemplo, conquistaram a jornada de trabalho de oito horas e um aumento salarial de 40%. As lutas dos ferroviários foram particularmente dramáticas devido à sua abrangência, impacto e duração e também por causa dos meios de repressão implementadas pelo governo.

A articulação entre a ação coletiva conduzida pelas associações de classe e a luta das populações contra a especulação e os açambarcamentos é evidente à escala local, onde são criadas formas de luta híbridas, como greves gerais locais contra os açambarcamentos, a apreensão e distribuição de géneros pelas associações de classe, entre outros. Também é verificável, em estudos monográficos, que durante estes movimentos os sindicatos expandem a sua influência entre as comunidades operárias, possibilitando uma participação sem precedentes do proletariado fabril, e especialmente das mulheres, na onda greves que marcou os anos de 1917-1920. As mulheres, geralmente ausentes das associações formais, devido à divisão sexual do trabalho que lhes deu os empregos mais precários e desqualificados, conseguiram mobilizar as redes de entreajuda que geriam nos espaços de residência.

A articulação e radicalização das lutas populares com as dos trabalhadores organizados justificam os rótulos atribuídos ao período pós-guerra em diferentes países, o biénio rosso em Itália ou os chamados anos da ameaça vermelha em Portugal. Em paralelo com a ampliação do processo de mobilização, foi a sua politização que assustou as elites. Na comemoração do dia dos trabalhadores, em 1919, o âmbito geográfico da mobilização ampliou-se. Ainda mais manifestações do que em 1918 tiveram lugar por todo o País, em comunidades operárias em meio urbano e entre os trabalhadores rurais, com o mote dominante da luta contra a carestia de vida. Em Lisboa, a União Operária Nacional mobilizou 30.000 pessoas, uma manifestação monumental para a época, exigindo a «socialização gradual e progressiva da terra e da indústria». Em todos os bairros e vilas operários, os comícios terminavam com vivas aos trabalhadores de todo o mundo e à Revolução Russa13.

Conclusão

Entre 1917 e 1920, as tendências de longo termo que transformavam o mundo do trabalho industrial e o movimento operário foram extraordinariamente aceleradas e reforçadas devido à conjuntura excepcional da Primeira Guerra Mundial. Em Portugal, desde a última década do século XIX que, graças a uma reorganização do trabalho e do espaço urbano, se assistia a um inédito desenvolvimento do movimento e da organização dos trabalhadores, bem como à sua cada vez maior inserção nas comunidades operárias. No entanto, o processo de interação entre as redes sociais pré-existentes das famílias trabalhadoras e o repertório de ação coletiva dos trabalhadores industriais foi visivelmente induzida pelos efeitos económicos, sociais, políticos e psicológicos da guerra.

Estudos transnacionais têm sublinhado o facto de que, num período como 1914-1918, quando os canais tradicionais de protesto foram bloqueados ou atrofiados, outros tipos de relações entre os atores sociais foram chamadas a desempenhar o papel das organizações políticas. Em muitos países europeus, onde os socialistas e líderes sindicais foram cooptados para os governos ou para a colaboração com os empregadores, surgiram novos veículos para as reivindicações dos trabalhadores. O movimento de delegados sindicais e comissões de fábrica que se espalhou em todos os países beligerantes significou a emergência de novos atores na organização da ação coletiva ao nível da base. Estas novas formas de organização explicam porque é que, não obstante a opção colaboracionista de boa parte dos líderes socialistas e sindicais durante a guerra, em 1917 tem início a maior onda de greves de sempre14.

Este ciclo de agitação social, que abalou a sociedade portuguesa entre 1917 e 1920, também foi organizado por ativistas de base, envolvendo associações de trabalhadores comunitárias, incluindo sindicatos e redes sociais informais que cruzavam os bairros operários de então. Este processo relaciona-se com o facto de, desde o final do século XIX, os ativistas sindicais se terem esforçado por organizar as classes trabalhadoras ao nível local, superando as hierarquias entre trabalhadores qualificados e desqualificados.

O processo de mobilização que marcou os últimos anos da guerra e os primeiros do pós-guerra deu origem a uma nova identidade, o proletariado, como o designou A Batalha, rompendo antigas fronteiras entre o ofício e a comunidade. A articulação dos movimentos em torno da produção e do consumo assume características difíceis de tipificar, sugerindo que os trabalhadores, neste período, desenvolveram um repertório de ação coletiva que, como os laços de solidariedade germinados dentro e fora da fábrica, amalgamava as novas formas de luta organizada com as velhas formas de resistência.

Em conclusão, ao eleger as reivindicações dos consumidores como prioritárias, a União Operária Nacional conseguiu estruturar um movimento nacional a partir de levantamentos de carácter local, organizados por redes sociais informais e associações comunitárias. A ala mais radical do movimento operário – o sindicalismo revolucionário – foi capaz de disseminar os protestos por todo o País, dando-lhe um caráter translocal e político. A fundação da Confederação Geral do Trabalho, em Setembro de 1919, é o resultado mais evidente deste processo. Pode-se argumentar que a dinâmica de conflito induzida pelos efeitos econômicos e sociais da Primeira Guerra Mundial teve um papel crucial no alargamento, politização e estruturação nacional do movimento operário português.

NOTAS:
1 McAdam, Adam; Tarrow, Sidney; Tilly, Charles (2001). Dynamics of Contention. Cambridge: University Press.
2 Entre outros Hanagan, Michael (1980). The logic of solidarity: artisans and industrial workers in three French towns, 1871-1914. Urbana: University of Illinois Press; Perrot, Michelle (1986). «On the formation of the French working Class». In: Katznelson, Ira and Zolberg, Aristide (eds.) – Working-Class Formation: Nineteenth-Century Patterns in Western Europe and the United States. Princeton: Princeton University Press; Sewell, William H. (1986). «Artisans, factory, and class formation of French working class, 1789-1948». In: Katznelson, Ira and Zolberg, Aristide (eds.) – Working-Class Formation: Nineteenth-Century Patterns in Western Europe and the United States. Princeton: Princeton University Press; Hanagan, Michael e Stephenson, Charles (1986). Confrontation, class consciousness and the labor process: studies in proletarian formation. Westport, Conn.; London: Greenwood Press; Breuilly, John (1994). Labour and liberalismo in nineteenth-century Europe: essays in comparative history. Manchester: Manchester University Press; Pereira, Miriam Halpern (2001). Diversidade e Assimetrias: Portugal nos séculos XIX e XX. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; Keith Mann (2010), Forging political identity: silk and metal workers in Lyon, France, 1900-1939. New York; Oxford: Berghahn.
3 Entre muitos outros Ramela, Franco (1977). «Famiglia, terra e salario in una comunità tessile dell’Ottocento», Movimento operaio e socialista, XXIII/1 pp. 7-44; Leslie Page Moch and Louise A. Tilly (1985), «Joining the Urban World: Occupation, Family, and Migration in Three French Cities». Comparative Studies in Society and History, 27/1 (Jan., 1985) pp. 33-56; Perrot, Michelle (1986), «On the formation of the French working Class». In: Katznelson, Ira e Zolberg, Aristides, Working-class formation, In: Katznelson, Ira and Zolberg, Aristide (eds.) – Working-Class Formation: Nineteenth-Century Patterns in Western Europe and the United States. Princeton: Princeton University Press; Tilly, Louise (1992), Politics and class in Milan: 1881-1901. Oxford: University Press; García, Agustín Galán (1996), «Estratégia Familiar y mercado de trabalho en Rio Tinto, 1873-1936». In: Alonso, Santiago Castillo (coord.) – El trabajo a través de la historia: actas del IIº congreso de la Asociación de Historia Social. Córdoba, Abril de 1995. Madrid: Asociación de Historia Social, pp. 420-423; Flemming Mikkelsen, Working-class formation in Europe: in search of a synthesis. Disponivel em linha: http://www.iisg.nl/publications/mikkelse.pdf; Borderias, Cristina (2007). Género y políticas del trabajo en la España contemporânea: 1836-1936. Barcelona: Publicacions i Edicions de la Universitat de Barcelona.
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5 Entre muitos outros Eric J. Hobsbawm (1984), «The New Unionism in perspective». In: Workers: worlds of labour. New York: Pantheon Books; Breuilly, John (1994), Labour and Liberalism in nineteenth Europe: essays in comparative history. Manchester: Manchester University Press; Antonioli, Maurizio; Ganapini, Luigi (1995), I sindacati occidentali dall’800 ad oggi in una prospettiva storica comparata. Pisa: Biblioteca Franco Serantini; Keith Mann (2010), Forging political identity: silk and metal workers in Lyon, France, 1900-1939. New York; Oxford: Berghahn.
6 Entre muitos outros Spampinato, Rosario (1977). «Il movimento sindacale di una società urbana meridionale. Catania 1900-1914», Archivio storico per la Sicilia orientale, a. LXXIII; Procacci, Giovanna (1989). «Dalla rassegnazione alla rivolta: osservazione sul comportamento popolare nella prima guerra mondiale», Ricerche Storiche, Ano XIX, n.º 1 (Gennaio-Aprille) pp. 46-111; Tilly, Louise (1992), Politics and class in Milan, 1881-1901, Oxford: University Press; Musso, Stefano (1999), «Gli operai nella storiografia contemporânea. Rapporti di lavoro e relazioni sociali», Annali, XXXIII, pp. IX-XLVI; Borderias, Cristina (2007), Género y políticas del trabajo en la España contemporânea, 1836-1936. Barcelona: Edicions Universitat; Stovall, Tyler (2012), Paris and the spirit of 1919: consumer struggles, transnationalism and revolution Cambridge: Cambridge University Press.
7 Entre outros Leopold Haimson and Giullio Sappeli (1992), Strikes, social conflict and the First World War. Milão: Fondazione Giangacomo Feltrinelli; Chris Wrigley (1993), Challenges of Labour: Central and western Europe 1917-1920. New York: Routledge.
8 Linden, Marcel Van der, «Introduction». In: Jan Kok (ed) – Rebellious Families: household strategies and collective action in the nineteenth and twentieth centuries. New York; Oxford: Berghahn. pp. 7-9.
9 Bohstedt, John (1983). Riots and Community Politics in England and Wales 1790-1810. Harvard: University Press.
10 ANTT. Ministério do Interior: Direcção Geral da Administração Civil e Política. Correspondência recebida. Relatório dos acontecimentos em Poço do Bispo, Caixa 45.
11 Golden, Lester (1985). The Women in Command. The Barcelona Womens’ Consumer War of 1918. In: UCLA Historical Journal, 6, pp. 5-32.
12 Taylor, Lynne (1996). Food riots revisited. In: Journal of Social History, 30/2. http://www.jstor.org/pss/3789390 (retrieved: 2011).
13 Diversos relatórios da UON publicados na Batalha durante Maio de 1919.
14 Sirianni, Carmen. «Workers Control in Europe». In: Cronin, James; Sirianni, Carmen (1983). Work, Community, and Power. The experience of labor in Europe and America, 1900-1925. Philadelphia: Temple University, pp. 254-269.

Fonte: PEREIRA, Joana Dias. O ciclo de agitação social global de 1917-1920. Ler História, n. 66, 2014, p. 44-55.