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sábado, 15 de fevereiro de 2014

Museologia: correntes teóricas e consolidação científica

Museologia: correntes teóricas e consolidação científica


Dr. Carlos Alberto Ávila Araújo


1 Antecedentes

A Museologia como campo de práticas e conhecimentos tem uma história milenar, embora sua constituição científica seja recente, com início há pouco mais de um século, e ainda em processo. Diferentes conhecimentos foram produzidos oriundos de diversos campos de aplicação prática ou disciplinas científicas, conformando um quadro plural e disperso. Muitos autores têm se dedicado a traçar um panorama desses conhecimentos, gerando diferentes agrupamentos. Mairesse e Desvallés (2005), por exemplo, apresentam cinco fases da “breve história da Museologia”, marcadas por fatos como a obra de Quiccheberg (publicada em 1565), a aparição do termo “museologia” no século XIX, o nascimento do International Council of Museums (ICOM), o surgimento da Nova Museologia e, por fim, o fenômeno do museu virtual com a internet.

Já Gómez Martínez (2006) constata a existência de “duas” museologias: uma “mediterrânea”, que tem como modelo de inspiração o Musée du Louvre, e outra “anglo-saxã”, construída sob a influência do British Museum. Bolaños (2002), tratando especificamente da realidade do século XX, apresenta três grandes momentos da Museologia, embora advirta que essas delimitações não possam ser tomadas de forma muito rígida. Essas três fases seriam a pesada herança vinda do século XIX (1900-1935), as décadas obscuras (1936-1967) e a mundialização do museu, com sua expansão para todos os contextos (1968-2000).

O objetivo deste artigo é contribuir para os esforços de sistematização do conhecimento produzido na Museologia, a partir dos resultados de uma pesquisa que buscou identificar as diferentes perspectivas teóricas que se manifestaram no campo. Com isso, pretende-se também contribuir para o debate sobre o efetivo estatuto da Museologia como disciplina científica, temática essencial para o campo (STRÁNSKÝ, 2008), correlacionando essa discussão com o desenho teórico aqui apresentado.

A referida pesquisa realizou-se por meio de uma perspectiva epistemológica. Buscou-se, num primeiro momento, a partir de uma busca na bibliografia em língua inglesa, francesa, espanhola e portuguesa, obras e autores que apresentassem algum tipo de sistematização teórica do campo da Museologia. As sistematizações encontradas (como, por exemplo, as de Mairesse e Desvallés, de Gómez Martínez ou de Bolaños, citadas acima) foram confrontadas em busca da verificação daquelas que apareciam mais vezes, ou com mais consistência, no conjunto das obras identificadas. A partir daí, buscou-se promover uma sistematização dos autores, teorias e conceitos encontrados, por meio da sua filiação ou aproximação com as diferentes “escolas de pensamento” que perpassam as várias ciências humanas e sociais.

Para a sistematização da vasta e dispersa produção teórica encontrada, promoveu-se um agrupamento em quatro eixos, que representam quatro grandes perspectivas de estudo. Deve-se ressaltar, contudo, que não se deve pensar nesses eixos como fronteiras rígidas, nem o pertencimento das teorias e autores a apenas um dos eixos apresentados. Como em toda sistematização, algumas vezes certos aspectos são privilegiados e outros descartados, como é o caso de teorias ou ideias que foram “classificadas” em um eixo, mas que dialogam também com ideias de um outro, ou as várias “subfiliações” a outras perspectivas teóricas.

Durante a execução da pesquisa, percebeu-se a necessidade de se considerar algumas realidades históricas que proporcionaram e condicionaram as primeiras obras e tratados, que formaram um conjunto de pressupostos que sedimentaram um primeiro modelo de Museologia. É esse trabalho que constitui a primeira parte apresentada neste texto. A seguir, são identificadas e discutidas determinadas contribuições teóricas, agrupadas nos quatro eixos mencionados, que apontaram para a superação do primeiro modelo formulado, indicando alguns de seus limites e reivindicando novas formulações. Por fim, são apresentadas algumas perspectivas contemporâneas de construção de conhecimentos no campo da Museologia, incorporando questões levantadas pelas perspectivas mencionadas.

2 Do colecionismo à museografia

De acordo com Duarte, “a conscientização de um sentido museológico estará inerente ao próprio ser humano na medida em que, desde tempos ancestrais, o homem pratica uma recolha de materiais diversos pelas mais diversas razões” (2007, p. 27-28). Assim, a ideia de musealidade, antes até do que a de museu, mistura-se à ação humana de intervir na realidade (natural e humana), reconhecendo nela objetos e elementos a serem guardados, colecionados, exibidos, atribuindo significados a estes objetos. O termo “museu” vem do grego mouseion, também usado na época romana como museum, que designava o templo dedicado às Musas – as nove divindades filhas de Zeus, segundo a mitologia grega.

À ação humana, simbólica, soma-se a constituição de uma instituição específica, um local físico, um conjunto de procedimentos. O legado da Antiguidade Clássica e da época romana se expressa tanto pela ação do colecionismo (a ação humana de selecionar, entre os diversos “objetos” da realidade - tanto os produzidos pelo ser humano como aqueles existentes na natureza - alguns para serem guardados, preservados e/ou exibidos, a partir de seu valor estético, histórico, político ou mesmo exótico, de raridade) como pela instituição museu.

O termo “museu” ressurgiu com o Renascimento, para descrever as coleções de arte como a de Lorenzo de Médici, em Florença (WOODHEAD; STANSFIELD, 1994), e foi com ele, a partir do século XV, que apareceram os primeiros traços efetivos daquilo que se poderia chamar de um conhecimento teórico específico em Museologia, com a publicação dos primeiros tratados relativos aos museus, como os de Quiccheberg, Comenius e Camilo (MAIRESSE; DESVALLÉS, 2005). Renasceu, nessa época, o interesse pela produção humana, pelas obras artísticas, filosóficas e científicas – tanto as da Antiguidade Greco-Romana como aquelas que se desenvolviam no próprio momento. Salientou-se assim o interesse pelo culto das obras, pela sua guarda, sua preservação.

Proliferaram, entre os séculos XV e XVII, tratados e manuais voltados para as regras de procedimentos nas instituições responsáveis pela guarda das obras, para as regras de preservação e conservação física dos materiais, para as estratégias de descrição formal das peças e documentos, incluindo aspectos sobre sua legitimidade, procedência e características. Formou-se um volume de conhecimentos normativos, mais preocupados com o fazer do que com o conhecer, e assim “a técnica introduziu a ciência” (BAZIN apud DUARTE, 2007, p. 30).

A produção simbólica humana, compreendida como um “tesouro” que precisaria ser devidamente preservado, tornou-se objeto de uma visão patrimonialista (o conjunto da produção intelectual e estética humana, a ser guardado e repassado para as gerações futuras). Contudo, o foco do interesse fixou-se no conteúdo dos acervos, constituindo os museus apenas em instituições a serviço dos campos de estudo da Literatura, das Artes, da História e das ciências. Não se construíram, neste momento, conhecimentos museológicos consistentes (para além de algumas regras operativas muito próximas do senso comum), mas apenas conhecimentos artísticos, literários, filosóficos ou históricos sobre os conteúdos guardados nestas instituições.

O passo seguinte na evolução da área se deu com a Revolução Francesa e as demais revoluções burguesas na Europa, que marcam a transição do Antigo Regime para a Modernidade. Operou-se uma profunda transformação em todas as dimensões da vida humana (na política, na economia, no direito) e, dessa forma, também os museus foram drasticamente transformados. Surge o conceito moderno de “Museu Nacional”, que tem no caráter público (no sentido de “nacional”, relativo ao coletivo dos nascentes Estados modernos) sua marca distintiva, e no Musée du Louvre sua instituição paradigmática
(POULOT, 2002). São formadas as grandes coleções, operam-se amplos processos de aquisição e acumulação de acervos – o que reforçou a natureza custodial destas instituições. A necessidade de se ter pessoal qualificado para os nascentes museus modernos levou à formação dos primeiros cursos profissionalizantes, voltados essencialmente para regras de administração das rotinas dos museus e, seguindo a tradição anterior, para conhecimentos gerais em Artes e Humanidades (ou seja, os assuntos dos acervos guardados). Ao mesmo tempo, os museus se inserem num quadro do “surto de nacionalismo” com os nascentes Estados Nacionais (MENDES, 2009) e, na esfera dos ideais de progresso e civilização, alinham-se com o conceito de cultura que, nesse momento, expressava o desejo de promover “o indivíduo nobilitado não pelo sangue ou herança, mas pelo espírito cultivado, erudito, superior, livre face aos costumes, às tradições arcaicas, à irracionalidade e à religião” (LOPES, 2007, p. 12).

Por fim, com a consolidação da ciência moderna como forma legítima de produção de conhecimento e de intervenção na natureza e na sociedade, também o campo das humanidades se viu convocado a constituir-se como ciência. Surgiram então, ao longo de todo o século XIX, diversos manuais, como os de Rathgeber, Graesse e Reinach, que buscaram estabelecer o projeto de constituição científica do campo dedicado aos museus, mas ainda na vertente de uma “Museografia”, isto é, de um trabalho técnico de descrição nos museus, na linha inaugurada por Neickel em 1727 (MAIRESSE; DESVALLÉS, 2005).

O modelo de ciência então dominante, oriundo das ciências naturais, voltado para a busca de regularidades e desenvolvimento de instrumentos técnicos para intervenção na natureza, se expandiu para as ciências sociais e humanas através do Positivismo. Esse modelo inspirou as pioneiras conformações científicas da área, que privilegiou os procedimentos técnicos de intervenção: as estratégias de inventariação, descrição, ordenação e exposição dos acervos museológicos. É nesse sentido que a primeira conformação científica do campo aproxima-se mais da noção de museografia: um conjunto de práticas, de técnicas, a serem aplicadas junto aos acervos guardados nas instituições museais.

Foi por meio desse movimento de consolidação positivista que se promoveu, contudo, a “libertação” da Museologia das outras disciplinas das quais ela era apenas um campo auxiliar (as Artes e a História, sobretudo). Houve uma relativa autonomização, abrindo caminho para a construção de um campo científico específico dedicado aos museus. Esse movimento foi reforçado nos anos seguintes com a criação das primeiras associações profissionais (a primeira foi a Museum Association criada em Londres, em 1889) e a atuação dos movimentos associativos - que levaram à criação do Office International des Museés (OIM), em Paris, em 1926 (MAIRESSE; DESVALLÉS, 2005).

Mais do que oposições, os três movimentos acima destacados se somam. A perspectiva custodial renascentista voltou-se para os “tesouros” que deveriam ser preservados, ressaltando a importância da produção simbólica humana. A entrada na Modernidade enfatizou as especificidades da instituição museu, que deveria ter estruturas organizadas e rotinas estabelecidas para o exercício da custódia. E a
fundamentação positivista deu mais ênfase às técnicas museográficas a serem utilizadas para o correto tratamento e exposição do material custodiado. Constituíram-se assim, no século XIX, os elementos que marcaram a consolidação de um paradigma patrimonialista, custodial e tecnicista (SILVA, 2006) para a área. Tal modelo representa, por um lado, a ideia de uma “ciência do museu”, isto é, voltada para o funcionamento e as rotinas desta instituição; ao mesmo tempo, de uma área dedicada ao “patrimônio”, ou seja, à preservação de seu acervo e sua salvaguarda para as gerações futuras; e de uma “museografia”, isto é, das técnicas empregadas para o tratamento do acervo acondicionado na instituição museu.

3 As diferentes perspectivas teóricas

Desde os finais do século XIX, portanto em plena vigência do modelo custodial e tecnicista, começaram a ser produzidas, em diferentes contextos, diversas reflexões e pesquisas sobre os museus. Tal produção se caracterizou, sobretudo, pela diversidade. Muitos trabalhos foram oriundos de diferentes disciplinas científicas, outros, produto da atividade cooperativa no âmbito das associações profissionais, outros ainda, fruto das atividades formativas na área. Alguns representam verdadeiros tratados consolidados sobre questões gerais ou específicas do campo, outros pequenos ensaios ou críticas, e outros reflexões sobre aplicações práticas e exemplos concretos. Para contemplar toda essa distinta produção conforme os objetivos deste texto, essa vasta produção foi aqui agrupada conforme a presença de certos elementos que apontam tanto para a superação do modelo custodial/tecnicista quanto para a reivindicação de reformulações conceituais e proposição de novos modelos.

Para contemplar esse objetivo, estabelecido para este artigo, as diversas contribuições analisadas a seguir foram separadas em quatro grandes grupos. Elas não representam propriamente escolas ou correntes, no sentido de se constituírem como uma unidade programática ou compartilharem de uma unidade teórica. São, ao contrário, vertentes muitas vezes distintas, de contextos vários, produzidas a partir de uma pluralidade de referenciais, mas que, em um ou outro aspecto, apresentam críticas específicas ao modelo então hegemônico.

3.1 A corrente funcionalista

No final do século XIX, surgiram ensaios, manifestos e iniciativas evocando mudanças no modo de se conceber os museus. Para Gómez Martínez (2006), tratou-se da manifestação da perspectiva “anglo-saxã”, uma perspectiva “verbal”, voltada para a ação, que se constituiu em oposição à tradição “mediterrânea”, tida como “nominal-substantiva”, desenvolvida na Itália, Espanha e França, na qual os museus eram tidos como instituições estáticas e a conservação seria um fim em si mesmo. Na visão de Van Mensch (1995), o período que vai de 1880 a 1920, nos EUA, marcou a primeira “revolução dos museus”, passando-se de uma preocupação centrada nas coleções para um perfil mais dinâmico e ativo. Na análise de Mendes (2009), o que mudou foi a hierarquia das funções do museu: no modelo “tradicional”, a função de conservar era superior à de democratizar e tornar a coleção acessível e, na abordagem dos museus norte-americanos, inverteu-se essa prioridade.

Essa tradição que se originou na Inglaterra com o modelo do British Museum, desenvolveu-se de forma mais acentuada nos Estados Unidos onde, sob forte inspiração funcionalista, desenvolveu-se a área da Museum Education. Seus motes foram o ideal iluminista da universalidade, isto é, do acesso a todos os cidadãos, e o discurso da eficácia (o imperativo do retorno, para a sociedade, dos investimentos feitos), também convoca a que se pense e problematize as funções dos museus. A matriz funcionalista coloca na agenda de reflexões e práticas questões sobre quais eram ou deveriam ser as funções dos museus na sociedade e quais as barreiras e impedimentos para o cumprimento destas funções.

Em 1891, Flower defendeu a ideia do “museu local”, isto é, um museu profundamente relacionado com a comunidade local à qual serve, tanto em termos da sua gestão, quanto em relação aos itens da sua coleção. O autor também defendeu a “dupla função” dos museus: permitir a pesquisa dos estudiosos e o conhecimento geral do cidadão comum. Assim, a cada uma das funções corresponderia certos procedimentos e certos serviços.

Pouco depois, em 1909, Benjamin Gilman apresentou, no primeiro encontro da American Association of Museums (AAM), um trabalho em que começava a esboçar a ideia de um “novo museu”, contra os princípios canônicos de constituição das coleções e das regras de exposição, propondo, em oposição ao valor de contemplação, o valor de uso, defendendo princípios como a simplicidade e a integração (contra a segregação).

Tal ideia foi complementada, em 1917, por John Cotton Dana, que propôs o “novo museu” em oposição ao “museu lúgubre”. Para ele, o museu não deveria ser construído a partir de uma ideia fixa do que o museu deve ser (uma clara referência ao modelo europeu calcado no paradigma do Louvre, local de adquirir raridades, curiosidades, objetos valiosos e colocá-los num lugar para as pessoas verem), mas sim ser responsivo à comunidade, deveria proporcionar efetivo aprendizado a partir desses objetos, devendo atender a uma necessidade definida pela comunidade.

Em 1927, Coleman defendeu numa reunião do OIM que os museus dos EUA eram instituições que abominavam o isolamento social, em oposição aos europeus, para os quais o termo “coleção” seria o descritor mais apropriado. Em vez de se voltarem para o valor das coleções, em sua visão, os museus norte-americanos priorizavam o cumprimento de certos objetivos, fazendo das coleções um meio para os atingir – ou seja, estímulos para se obter determinados comportamentos e valores.

Zeller (1989) explica que, nos EUA, os museus sempre foram entendidos como instituições educacionais, sendo essa a principal justificativa para seus pedidos e campanhas de financiamento. O “fundamento filosófico” dos museus nos EUA seria, justamente, a ideia de tornar as coleções acessíveis ao público. Diversos museus firmaram parcerias com o setor privado para, por meio de suas exposições, estimularem as vendas de produtos decorativos, ou proporcionarem condições de estudo das artes decorativas produzidas em outros países de forma a incrementar a produção industrial e evitar assim os custos com importação.

Em outros casos, os museus assumiam formalmente compromissos em formar o “bom gosto” da população, promover certos valores como a “responsabilidade civil”, integrar comunidades de imigrantes e até mesmo “acalmar” trabalhadores revoltosos, fazendo os retornar à “vida produtiva” (ZELLER, 1989). Aliada ao desempenho destas funções, tal perspectiva acabou por conduzir a uma série de inovações de ordem prática nos museus: novos horários de funcionamento, guias mais didáticos, linguagem simples, priorização de elementos visuais em lugar dos verbais, exposições itinerantes, maior acessibilidade física, entre outros.

A abordagem funcionalista acabou por se manifestar em outras realidades. Na França, desenvolveu-se após a década de 1950, no plano teórico, com André Malraux, que propôs o seu “museu imaginário” em oposição ao museu “necrópole”, fossilizado.
Anos depois, os museus inseriram-se nas temáticas das políticas culturais e de engenharia cultural (MOLLARD, 1994). No campo da prática, deu-se com a criação, em 1971, do Centre National d’Art et de Culture Georges Pompidou, em Paris, que nasceu com a proposta de ser um centro “vivo”, “democrático”.

No Canadá, a abordagem funcionalista se deu com menos ênfase na ideia de educação e mais no conceito de “comunicação”, com os trabalhos pioneiros de Cameron (1968). A ideia de que a difusão é a função básica do museu acabou por enfatizar a ideia de comunicação, em que emissor, canal, mensagem e receptor deveriam ser “perfeitos” (isto é, adequados) e o ruído deveria ser eliminado (ROSAS, 1994).

A partir da década de 1980, com as tecnologias digitais, revitalizou-se a perspectiva funcionalista, com as possibilidades de acesso remoto, interatividade e design de exposições, com manifestações em várias escolas e correntes como, por exemplo, no grupo de pesquisadores ligados à Universidade de Leicester (Merriman, Pearce, Arnold, Hooper-Greenhill, entre outros) e, ainda no contexto inglês, com a New Museology defendida por Vergo (1989) e outros. Outras subáreas mais específicas da Museologia, também funcionalistas, são a dos estudos em tipologias de museus (já que, a diferentes tipos, correspondem diferentes funções) e a de gestão de museus a partir de estratégias de marketing, envolvendo autores como Moore e Tobelem.

3.2 A abordagem crítica

Logo na virada do século XIX para o século XX, o impacto do pensamento crítico sobre o positivismo, a sociedade e o ser humano começa a se manifestar no espaço reflexivo sobre os museus. Também tendo como centro de preocupação as relações entre essas instituições e a sociedade, desenha-se uma perspectiva calcada, sobretudo, na denúncia de processos de dominação, de ações ideológicas ocultas por detrás de práticas tidas como pretensamente neutras, no questionamento sobre as reais necessidades a serem atendidas e sobre os enquadramentos culturais promovidos. Essa abordagem se construiu tanto na crítica ao paradigma custodial/tecnicista quanto à corrente funcionalista. Seu ponto de partida foi uma concepção da realidade humana como fundada no conflito, na luta de interesses entre atores em posições desiguais por condições de domínio e legitimidade – por meio principalmente (mas não só) do conceito de ideologia.

Os museus, produto da modernidade, passaram a ser alvo das mesmas críticas feitas a ela, inicialmente por meio de manifestos publicados por artistas, escritores e filósofos. Entre eles, Bolaños (2002) destaca a obra La Taberna, de Émile Zola, publicado em 1877 (que retrata bem a dificuldade do museu para se fazer compreender e suscitar o interesse das classes menos “ilustradas”) e El problema de los museos, de Paul Valéry, publicado em 1923 (que apresenta o museu como “mal estar”, espaço autoritário, sufocante, opressor).

Também Fernando Magalhães identifica as primeiras abordagens críticas sobre os museus nesse período, destacando a postura de Filippo Tomasi, fundador do Futurismo italiano, para quem os museus seriam cemitérios, “verdades numa sinistra promiscuidade de tantos objetos desconhecidos uns dos outros” (TOMASI apud MAGALHÃES, 2005, p. 16).

Contudo, o desenvolvimento da perspectiva crítica sobre os museus teve maior incidência em abordagens mais próximas da sociologia da cultura, buscando problematizar os vínculos entre a ação museológica e a manutenção das hierarquias culturais. Nesse sentido, destaca-se o trabalho pioneiro de Pierre Bourdieu, que inspirou toda uma geração de pesquisadores voltados para estudos críticos dos museus.

Bourdieu (2007) realizou reflexões a partir de extensas pesquisas empíricas, estudando não só um grupo ou classe específicos, mas com foco no relacionamento entre as diferentes classes. Também viu o papel que a cultura exerce na dinâmica social, ao apontar a percepção de que as relações de força no ambiente social não se relacionam apenas com uma dimensão objetiva, fruto da distribuição desigual das riquezas econômicas, mas também possuem uma dimensão simbólica, operada por meio da escola, das artes e das práticas culturais – e também das visitas aos museus.

Bourdieu descobriu que existe uma ligação entre as práticas e gostos culturais e o nível de instrução e a origem social dos indivíduos, e buscou ir além da aparente banalidade desta constatação. Assim, buscou ver em que medida tal relação esconde o fato de que os grupos possuem diferentes relações com a cultura, e que no quadro dessa dinâmica se desenharia um processo pelo qual a existência em sociedade de cada um se daria por meio de processos de distinção, de marcação de distâncias, ou seja, as posições sociais e as práticas culturais não são dois fatores independentes, antes se relacionam, se constituem mutuamente, conformando uma estrutura mais ampla de relações sociais. Daí deriva o conceito de “capital cultural”, que se tornou a base de vários estudos posteriores sobre a realidade dos museus (LOPES, 2006).

A perspectiva crítica, a partir de Bourdieu, recoloca a questão da inacessibilidade dos museus para as classes populares num quadro de compreensão bastante diverso da perspectiva funcionalista, para a qual o museu deveria “elevar o nível” das massas, atuar como elemento de “democratização” da cultura. Nessa perspectiva, a questão é muito mais complexa, pois a prática de ir ao museu se insere como uma atividade de distinção, cumprindo um papel na dinâmica de marcação dos lugares e das distâncias sociais, ou seja, é apropriada como uma prática de distinção, exercendo um papel de construção da dimensão simbólica das relações sociais.

Uma outra linha de análise crítica se relaciona com a identificação do papel dos museus na construção ideológica da ideia de nacionalidade. O trabalho inspirador neste campo foi o de Anderson (2008), que examinou os vários aspectos por detrás da nação como projeto de uma “comunidade imaginada” e os vários mecanismos de construção desse projeto – sendo os museus um destes mecanismos.

No campo das iniciativas práticas em museus, Hooper-Greenhill (1998) aponta alguns exemplos significativos de como a história sempre foi um terreno de disputa e conseguir escrevê-la, sinal de domínio – e o papel dos museus nesse processo. Um deles ocorreu na África do Sul, onde os negros, após a queda do regime do apartheid, buscaram desmontar algumas falácias apresentadas nos museus, como a de que os brancos e negros haviam chegado ao mesmo tempo à África do Sul, ou de que apenas a população negra era tomada por guerras e disputas tribais (HOOPERGREENHILL, 1998).

Além disso, durante o regime do apartheid, os objetos dos grupos de brancos estavam nos museus de história, enquanto os objetos dos povos negros eram expostos em museus de história natural (HOOPER-GREENHILL,1998). Outro exemplo, ocorrido no Canadá, deu-se durante dos jogos olímpicos de inverno, em que uma multinacional do petróleo se propôs a patrocinar uma exposição sobre um povo indígena – justamente o povo que estava em conflito com essa empresa pelo direito à sua terra.

Conforme a autora, em vários lugares os museus passaram a se dar conta da força ideológica e política de suas exposições (HOOPER-GREENHILL, 1998). A mesma autora destaca a existência de reflexões de natureza crítica sobre a adesão dos museus a estratégias de marketing, tendo como consequência sua submissão aos valores comerciais, que imporiam à instituição museal a lógica do entretenimento.

Numa linha bastante diferente, também Santacana Mestre e Hernández Cardona (2006) propõem o desenvolvimento de uma “Museologia Crítica”. Seu objetivo é a análise das incongruências e contradições que ocorrem no processo de intervenção operado pela Museologia junto ao patrimônio, a partir da percepção de que, em muitos casos, a prática museológica incide sobre o patrimônio com critérios mais ideológicos do que científicos.
3.3 Os estudos sobre os visitantes

No início do século XX, os estudos funcionalistas perceberam a importância de se obter dados de satisfação junto aos visitantes dos museus. Nascidos como uma extensão desta corrente, os estudos de visitantes foram uma ferramenta de produção de diagnóstico para o planejamento e a otimização dos serviços e processos. Aos poucos, foram se convertendo numa subárea com relativa autonomia. Neste processo, se afirmaram a partir da crítica tanto aos estudos funcionalistas como aos críticos, na medida em que ambos tendiam a ver apenas a ação dos museus sobre os indivíduos, estes tomados apenas como seres passivos, meros receptáculos de informação.

Como argumenta Pérez Santos (2000), os museus mudaram muito desde sua origem, saindo do fenômeno do colecionismo, das câmaras de maravilhas, passando pelos grandes museus modernos e chegando ao século XIX com o risco de se tornarem instituições obsoletas. Para evitar isso, precisaram conhecer seu público para melhor dirigir-se a ele. Para Hooper-Greenhill (1998), tratou-se de uma grande mudança dos museus: de depósitos de objetos (orientados para as coleções) para lugares de aprendizagem (orientados para os públicos).

Os primeiros estudos começaram no início do século, com Francis Galton seguindo os visitantes pelos corredores dos museus vitorianos e Benjamin Gilman estudando a fadiga e os problemas de ordem física na concepção de exposições nos museus. Em 1928, Edward Robinson, da Universidade de Yale, publicou o primeiro estudo sistemático de comportamento de visitantes, centrando-se em quatro aspectos: a duração da visita, o número de salas visitadas, o número de obras vistas em cada sala e o tempo de parada diante de cada obra. Em parceria com Melton, realizou outro estudo sobre a influência do desenho da exposição no grau de interesse e poder de atração.

Ainda no âmbito do grupo de Yale, apareceram os primeiros estudos com uso de questionários, como o de Gibson, em 1925, e o de Bloomberg, em 1929. Juntos, eles compõem o chamado “enfoque conductual” dos estudos de visitantes (PÉREZ SANTOS, 2000). Ainda segundo Pérez Santos (2000), nos anos seguintes, além dos estudos sobre comportamentos das pessoas nos museus, autores como Cummings, Derryberry e Gebhard buscaram ver o impacto das exposições sobre elas. Outros estudos continuaram os métodos de Robinson e Melton, como o de Kearns, em 1940, sobre as trajetórias das pessoas nos museus e o uso de folhetos; de Yashioka, em 1942, que buscou traçar uma tipologia dos visitantes (os que fazem uma visita completa, os que saltam partes, e os que passam mais de uma vez por certas partes) e o de Nielsen, em 1946, que buscou analisar hábitos de fotografar por parte dos visitantes.

Uma parte considerável destes estudos buscou traçar perfis sócio-demográficos dos públicos. O pioneirismo neste campo foi do Pennsylvania Museum of Art que, em 1930, buscou analisar fatores como a ocupação, moradia, motivo da visita, salas preferidas e grau de satisfação, entre outros. Rea e Powell foram pioneiros numa área que ganhou grande destaque na década de 1950 (PÉREZ SANTOS, 2000).

Na década de 1960, Haris Shettel e Chanler Screven, focados na efetividade da transmissão das mensagens no processo expositivo, buscaram verificar o sucesso dos objetivos pedagógicos pretendidos pelos museus. Para tanto, construíram um modelo centrado nos objetivos de aprendizagem e de mudança de conduta dos visitantes. Entre suas várias conclusões está a descoberta de que o tempo dedicado à visita e a motivação do visitante influenciam na quantidade de conhecimentos adquiridos através dos elementos expositivos. Seguindo a linha inaugurada por Robinson e Melton, eles representam a abordagem das “medidas de aprendizagem” nos estudos de visitantes (PÉREZ SANTOS, 2000).

Nas décadas seguintes, outras perspectivas teóricas acabam sendo desenvolvidas. Uma parte considerável se deu numa linha cognitivista, a partir da década de 1970, desenvolvida por autores como Eason, Friedman, Borun, Card, Moran e Newell, relacionando conceitos como percepção, aprendizado e memória com a experiência de visitação aos museus. A outra parte dos estudos, de orientação construtivista, iniciada na década de 1980, expressa-se em teorias como o modelo tridimensional de Loomis, a teoria dos filtros de McManus, o modelo sociocognitivo de Uzzell e a abordagem comunicacional de Hooper-Greenhill, entre vários outros.

McManus buscou um fundamento construtivista para os estudos de visitantes, criticando o modelo behaviorista presente nos estudos condutivistas. Para ela, o ato de aprender não é “informação entrando na mente” como “água despejada num jarro” (McMANUS, 2009, p. 63). O educando precisa se engajar ativamente com os fenômenos apresentados a fim de construir um significado. Os visitantes constroem o sentido ativamente e não apenas adicionam parcelas de conhecimento a estruturas já existentes. A autora recorre aos conceitos de assimilação e acomodação de Piaget.

Na concepção dela, o método tradicional de ensino se baseia na autoridade pessoal ou institucional do professor e da escola, que apresentam “a verdade” com força suficiente para ficar “gravada” a fim de que os educandos aceitem. No campo dos museus, isso teria reflexo nos edifícios grandiosos, imponentes, e nas exposições “pedantes”, que funcionariam na lógica da imposição de respeito, inclusive com itinerários prescritos, com objetivos de manter os visitantes num papel passivo.

Uma parte considerável destes estudos buscou traçar perfis sócio-demográficos dos públicos. O pioneirismo neste campo foi do Pennsylvania Museum of Art que, em 1930, buscou analisar fatores como a ocupação, moradia, motivo da visita, salas preferidas e grau de satisfação, entre outros. Rea e Powell foram pioneiros numa área que ganhou grande destaque na década de 1950 (PÉREZ SANTOS, 2000).

Na década de 1960, Haris Shettel e Chanler Screven, focados na efetividade da transmissão das mensagens no processo expositivo, buscaram verificar o sucesso dos objetivos pedagógicos pretendidos pelos museus. Para tanto, construíram um modelo centrado nos objetivos de aprendizagem e de mudança de conduta dos visitantes. Entre suas várias conclusões está a descoberta de que o tempo dedicado à visita e a motivação do visitante influenciam na quantidade de conhecimentos adquiridos através dos elementos expositivos. Seguindo a linha inaugurada por Robinson e Melton, eles representam a abordagem das “medidas de aprendizagem” nos estudos de visitantes (PÉREZ SANTOS, 2000).

Nas décadas seguintes, outras perspectivas teóricas acabam sendo desenvolvidas. Uma parte considerável se deu numa linha cognitivista, a partir da década de 1970, desenvolvida por autores como Eason, Friedman, Borun, Card, Moran e Newell, relacionando conceitos como percepção, aprendizado e memória com a experiência de visitação aos museus. A outra parte dos estudos, de orientação construtivista, iniciada na década de 1980, expressa-se em teorias como o modelo tridimensional de Loomis, a teoria dos filtros de McManus, o modelo sócio-cognitivo de Uzzell e a abordagem comunicacional de Hooper-Greenhill, entre vários outros.

McManus buscou um fundamento construtivista para os estudos de visitantes, criticando o modelo behaviorista presente nos estudos condutivistas. Para ela, o ato de aprender não é “informação entrando na mente” como “água despejada num jarro” (McMANUS, 2009, p. 63). O educando precisa se engajar ativamente com os fenômenos apresentados a fim de construir um significado. Os visitantes constroem o sentido ativamente e não apenas adicionam parcelas de conhecimento a estruturas já existentes. A autora recorre aos conceitos de assimilação e acomodação de Piaget. Na concepção dela, o método tradicional de ensino se baseia na autoridade pessoal
ou institucional do professor e da escola, que apresentam “a verdade” com força suficiente para ficar “gravada” a fim de que os educandos aceitem. No campo dos museus, isso teria reflexo nos edifícios grandiosos, imponentes, e nas exposições “pedantes”, que funcionariam na lógica da imposição de respeito, inclusive com itinerários prescritos, com objetivos de manter os visitantes num papel passivo.

O paradigma historiográfico e nacionalista que marcou o contexto de nascimento dos museus modernos pautou em grande medida todos os processos de ordenamento, descrição, classificação e exposição dos acervos museológicos (MENDES, 2009) A partir do final do século XVIII, os museus sofreram também fortemente a influência dos ideais enciclopedistas que buscavam levar a termo uma “taxonomia de todo o mundo conhecido” (PÉREZ SANTOS, 2000, p. 20), de forma que os modelos de classificação das ciências incidiram fortemente sobre estas instituições.

Tanto a perspectiva cientificista utilizada nas coleções de história natural quanto a historiográfica dos museus de belas artes compunham um “espírito enciclopedista, classificador e taxonômico” (DUARTE, 2007, p. 48). Conforme Marín Torres (2002), até o começo do século XX, não houve uma grande preocupação com a questão da documentação das coleções e com o tratamento das operações museográficas.

Assim, foi a partir do trabalho de autores como Wittlin, Taylor, Schnapper, Roberts, Theather e Claudel, além do impulso dado pela formação da Museum Documentation Association, que se desenhou um campo específico de estudos em torno da documentação museológica. As preocupações, neste momento, giravam em torno das questões da normalização, da necessidade de ordem e controle para proporcionar a recuperação das peças, para a produção de guias para os visitantes e também instrumentos de pesquisa para investigadores – e, paralelamente, em garantir que a ordenação não “matasse” o potencial artístico do museu, transformando-o em mausoléu (MARÍN TORRES, 2002).

Parte considerável da produção teórica da Museologia, contudo, buscou problematizar menos as técnicas museográficas em si, em seu papel funcional dentro da instituição museu. Para isso, deu-se uma importante mudança de perspectiva, passando-se a assumir que “a realidade apresentada por museus é uma invenção – é o resultado de uma forma particular de construir a realidade” (SEMEDO, 2006, p. 13) e que, assim, “os museus não reproduzem meramente a realidade, os museus (re)definem essa mesma realidade no contexto da sua própria ideologia e, por essa razão, devem ser compreendidos como performers, criadores de sentido, como práticas de significação” (SEMEDO, 2006, p. 14). O resultado disso é que “as conceptualizações dos grandes museus do século XIX, com as suas ambições moralizadoras e disciplinadoras, que se apresentavam como repositórios de classificações científicas do mundo natural e humano, têm sido fortemente afrontadas nos últimos anos por novas práticas de colecionar, de expor e interpretar” (SEMEDO, 2006, p. 19). Ainda conforme a autora, o campo de estudos sobre a representação do e pelo museu se converteu em um “campo de investigação fértil que tem sido explorado nos últimos anos por alguns dos mais conceituados investigadores do campo”, tais como Lorente, Walsh, Karp, Lavine, Duncan, Shanks e Tilley (SEMEDO, 2006, p. 20).

Hooper-Greenhill é uma das autoras envolvidas com esta questão. Em um de seus trabalhos (1997), ela aponta para um processo de mudança nos museus rumo a “filosofias” mais “democráticas”, em que os museus, abertos ao escrutínio público (accountability) passaram a rever seus critérios de classificação dos objetos, as informações a serem disponibilizadas sobre eles, as formas de descrevê-los, por exemplo revendo sua postura muito assentada ainda na modernidade, que promovia uma divisão binária do “nós” e “eles”, sendo o “nós” o sujeito masculino, de classe média e europeu, e o “outro” o restante do mundo. Pearce (1994) aprofunda essa análise, mostrando como os museus construíram suas representações a partir de um quadro do “nós” e “eles”, sendo o ponto de partida o homem branco cristão (o “nós”), e a referência se afastando na direção do “outro” (árabe, indiano, negro africano, polinésio, passando também pelo impérios antigos).

Próxima a esta abordagem encontra-se o trabalho de Bennett (2004), que, a partir da perspectiva do governmentality de Michel Foucault, buscou ver o papel do conhecimento e da expertise em organizar diferenciados campos sociais. Sua análise se foca em como distintas relações de poder são constituídas em e pelo exercício de formas específicas de conhecimento e expertise, e nos modos como eles dão ênfase a mecanismos e técnicas específicas para enquadrar e moldar pensamentos, sentimentos, percepções e comportamentos – como, por exemplo, o importante papel desempenhado pelos princípios evolucionários de classificação e exibição nos museus de história natural, etnologia e geologia no século XIX.

No campo das aplicações práticas de tal raciocínio, pode-se identificar, já na década de 1920 que, entre os conservadores e planejadores de exposições, abalavam-se as “suas compreensões da instabilidade dos vários esquemas interpretativos vigentes” (LUTZ, 2008, p. 21).

No campo das aplicações práticas, Bolaños (2002) apresenta vários exemplos históricos de inovações em métodos de representação, como o historicismo radical de Dorner, os period rooms do Museu do Prado, o enfoque multidisciplinar do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, a postura antirracista do Museu Trocadero e o modelo dinâmico do Museu de Etnografia de Neuchâtel, merecendo destaque, recentemente, a criação de edifícios que em si mesmos constituem peças museológicas, numa perspectiva inaugurada com o Museu Guggenheim de Bilbao.

4 Abordagens contemporâneas: mediações, identidades e o imaterial

Os avanços mais recentes em Museologia têm buscado agregar as contribuições das várias teorias e práticas desenvolvidas ao longo do século XX de forma a superar o caráter limitado do quadro teórico do modelo custodial/tecnicista. Novos tipos de instituições, serviços e mesmo ações executadas no âmbito extrainstitucional conferiram maior dinamismo ao campo teórico e à prática. Para superar os modelos voltados apenas para a ação dos museus junto aos visitantes, ou apenas para os usos que os visitantes fazem das exposições, surgiram também modelos voltados para a interação e a mediação, contemplando as ações reciprocamente referenciadas destes atores. Modelos sistêmicos também surgiram na tentativa de integrar ações, acervos ou serviços antes contemplados isoladamente. A própria ideia de acervo, ou item de coleção, foi problematizada, na esteira de questionamentos sobre o objeto da Museologia e sobre o imaterial como objeto museológico.

Desenvolveram-se, ainda, as tecnologias digitais, com um impacto profundo sobre os museus, reconfigurando tanto o fazer quanto a teorização sobre o museu. Entre os diversos desenvolvimentos teóricos e práticos no campo da Museologia que ocorreram nas últimas décadas, destaca-se a questão dos eco-museus e da Nova Museologia. Contudo, é preciso algum cuidado no exame destes termos, pois são usados para designar diferentes questões e, algumas vezes, ainda confundidos um com o outro ou tomados como sinônimos.

Davis (1999) explica que o conceito de “ecomuseu” surgiu no começo do século XX, sob o impacto das ideias ambientalistas, com a criação dos chamados “museus ao ar livre”, que, numa perspectiva ampliada de museu, incorporavam sítios geológicos ou naturais ao seu “acervo”. Outros museus de natureza semelhante foram os heimatmuseums (museus dedicados à celebração da identidade e da cultura nacionais), os museus de folclore e os museus da vizinhança, que buscavam também musealizar espaços físicos e contribuíram para desconstruir a ideia de museu como um prédio dotado de objetos organizados em exposição.

Um outro sentido para o termo foi dado no âmbito do movimento da Nova Museologia. Surgida a partir das ideias de Georges Henri Rivière, Hugues de Varine- Bohan e Germain Bazin, ligados à Ecole du Louvre, mas atuantes no seio do ICOM, a Nova Museologia propôs-se a repensar o significado da própria instituição museu. Nessa visão, os museus deveriam envolver as comunidades locais no processo de tratar e cuidar de seu patrimônio. Como coloca Davis (1999), o termo “território” é então utilizado para definir tanto os limites geográficos como também as conotações dos sujeitos e comunidades que vivem no espaço, as apropriações que fazem dele.

Com isso, ressurgiu o conceito de eco-museu, mas tomado num sentido que incorpora também as identidades culturais e a ideia de comunidade. Van Mensch (1995) caracterizou esse movimento como a “segunda revolução” no campo da Museologia. Mudou o sentido de museu, de lugar de entrega de um conhecimento a uma comunidade (transmissão), para lugar construído pela própria comunidade (veículo de expressão de uma identidade).

A primeira expressão pública e internacional deste movimento se deu em 1972, na Mesa Redonda de Santiago do Chile, organizada pelo ICOM, que buscou debater a função social do museu e o caráter global das suas intervenções. Daí surgiu a ideia do museu integral, que deveria proporcionar à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural. Do ponto de vista teórico, tal noção busca propor que a relação que o homem estabelece com o patrimônio cultural passe a ser estudada pela Museologia e que o museu seja entendido como instrumento e agente de transformação social – o que significa ir além das suas funções tradicionais de identificação, conservação e educação, em direção à inserção da sua ação nos meios humano e físico, integrando as populações na sua ação.

O movimento foi formalizado na Declaração de Quebec, em 1984, nascendo aí o Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM). Defendendo a participação comunitária no lugar do “monólogo” do técnico especialista, tratou de colocar no lugar do tradicional tripé edifício/coleções/público da Museologia uma nova rede de conceitos composta por território, patrimônio e comunidade (ALONSO FERNÁNDEZ, 1999).

A Nova Museologia recebeu adesão de teóricos de várias partes do mundo, como Burcaw (EUA), Van Mensch (Europa Ocidental) e Stránský (Leste Europeu). Teve diversos desdobramentos práticos (vários ecomuseus espalhados pelo mundo), teóricos (na direção de novas definições da instituição museu) e no âmbito da formação (influenciando os programas em estudos museológicos de centros como os de Brno, Leicester, Leiden, Newark, além da própria Ecole du Louvre).
Numa linha específica, embora próxima, foram desenvolvidos estudos tomando os museus como mediadores, a partir da contribuição dos Cultural Studies inaugurados pela Escola de Birmingham. Nestes estudos, defende-se a ideia de que, pela ação mediadora dos museus, aqueles que terão sua história apresentada têm o direito de participar dessa representação (Hooper-Greenhill, 1997).

Uma contribuição também mais específica, mas que teve efeitos na Museologia como um todo, foi a reflexão sobre a musealização, que “consiste na metamorfose de objectos que, não deixando de ter valor social e cultural, adquirem outro, mais especial, com a nova recontextualização” (MAGALHÃES, 2005, p. 12). Dessa forma, a musealização, mais do que mero processo técnico de adquirir, documentar e exibir um objeto, significa um “caminho que consiste em transformar objetos materiais e imateriais aparentemente vulgares em legados históricos ou testemunhos do desenvolvimento científico, técnico, artístico ou outro de uma determinada cultura” (MAGALHÃES, 2005, p. 12).

Fernández de Paz e Agudo Torrico (1999) ressaltam que a discussão sobre a musealização traz uma problematização sobre quais bens ou objetos serão musealizados, isto é, que serão destacados como de especial significado dentro de um contexto cultural – e ainda, uma vez realizado esse processo, de que forma eles serão interpretados na realidade museal. Conforme os autores, essa questão começou a ser problematizada no âmbito da Comissão Franceschini, formada em 1966 para discutir a questão dos “bens culturais” a serem patrimonializados, tendo como desdobramento a Convenção da Unesco em Paris, em 1972, sobre a proteção ao Patrimônio Mundial Cultural e Natural.

Nesta nova concepção de patrimônio, de uma só vez passou-se a considerar nas definições do interesse patrimonial a conhecer e proteger dois terços dos componentes do entorno cultural do ser humano: o natural (conceito modificado mais tarde para ‘paisagens culturais’ para reconhecer mais acertadamente a relação simbiótica que se dá entre ser humano e seu entorno físico) e o etnológico (no qual se inserem as atividades e conquistas - materiais e imateriais - que formam parte da bagagem mais cotidiana que contribui para dotar de uma identidade diferenciada cada coletivo).

Com isso, buscou-se pôr fim a uma dinâmica surgida com a expansão colonial européia: a desvinculação entre objetos e sujeitos sociais, processo pelo qual os bens culturais (objetos materiais, representações simbólicas, rituais) teriam valor em si mesmos, desligados de quem os seguem criando e reproduzindo. A velha imagem monumentalista do termo patrimônio histórico, nestes estudos, passou a ser reinterpretada como patrimônio cultural, mudando a valoração dos referentes eleitos por seu “reconhecido” valor como testemunhos de culturas desaparecidas ou por serem obras materiais de notáveis singularidades, para uma significação a partir de sua condição de reflexos materiais/imateriais do modo de vida e proteção histórica de um determinado povo ou etnia - ou seja, da identidade desse coletivo.

Uma questão especial discutida nos estudos contemporâneos em Museologia a respeito da incorporação do patrimônio imaterial, cujos primórdios se encontram numa convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO) realizada em Haia, em 1954 e uma versão formalizada na Convenção de Belgrado em 1980. Para a UNESCO, o patrimônio cultural imaterial abrange “as tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial; as artes do espetáculo; as práticas sociais, rituais e acontecimentos festivos; os conhecimentos e práticas que dizem respeito à natureza e ao universo; os saberes fazer ligados ao artesanato” (LEAL, 2009, p. 289). Alargando seus horizontes dessa forma, a Museologia se desloca da ênfase nos objetos para a dimensão imaterial da ação humana e dos sentidos construídos.

Por fim, o fenômeno contemporâneo dos museus virtuais representa uma ampla dimensão com desdobramentos práticos e teóricos. Para Deloche (2002), a chegada da tecnologia digital à realidade dos museus representa muito mais do que apenas uma conjuntura nova à qual se adaptar, reformulando a própria concepção da instituição museal. Sem edifício ou coleções, marcos institucionais tradicionais, o museu precisa oferecer novos serviços, por meio de novas práticas e funções. Os usuários também se modificam em termos de ações e possibilidades. Assim, a adoção de tecnologias para o tratamento e o planejamento de exposições aproxima o museu do conceito de sistema de informação (HIGGINS; MAIN; LANG, 1996). Têm se desenvolvido ainda estudos numa área específica denominada “Museum Informatics”, que trata das interações sociotécnicas que ocorrem entre as pessoas, a informação e a tecnologia nos espaços museais (MARTY; JONES, 2008). Aliada à discussão do patrimônio imaterial, também tal dimensão relaciona-se ao que vem sendo denominado “patrimônio cultural digital” (ZORICH, 2010).

O conjunto de teorias apresentadas neste tópico permite perceber como os modelos contemporâneos representam principalmente um grau maior de abstração na compreensão do fenômeno museal. Se o desenho das reflexões que vão do Renascimento ao século XIX ancora-se na extrema concretude dos objetos (a instituição museu, os acervos, as técnicas), as perspectivas desenvolvidas no século XX foram importantes para deslocar e ampliar o eixo de preocupações (para as funções sociais dos museus, seu papel nos tensionamentos sociais, as apropriações dos sujeitos, os efeitos de sentido gerados por seus acervos e pelas técnicas aplicadas). É o aprofundamento desse processo que acaba por conduzir às perspectivas contemporâneas, mais atentas à complexidade dos fenômenos e à interrelação de seus elementos constituintes.

5 Considerações finais

Como discutido na introdução, deve-se lembrar que todo processo de sistematização envolve agrupamentos, aproximações, que tendem a privilegiar certos aspectos mais estruturais e ignorar algumas nuances ou detalhes. Assim, as mesmas teorias e autores aqui apresentados e discutidos poderiam ser “reorganizados” de outra forma, caso se utilizasse algum outro tipo de critério. Também outros autores e obras poderiam ser incluídos na sistematização.

A identificação de um amplo modelo ou “paradigma” é sempre passível de discussão, uma vez que ele não significa uma postura exclusiva de todas as possíveis reflexões promovidas em um campo – antes, sinaliza para um consenso, para uma forma geral, embora aplicada sempre de maneira singular, a um conjunto amplo de teorias, ou seja, a sistematização pode, por vezes, dar a ideia de uma linearidade ou homogeneidade quando, na verdade, as teorias não se identificam ou se diferenciam umas das outras assim de maneira tão clara ou absoluta.

Como, contudo, o objetivo da pesquisa aqui relatada foi o de uma sistematização epistemológica a partir dos fundamentos de cada teoria analisada, pode-se dizer que o agrupamento a partir da ideia da consolidação de um paradigma (centrado nas ideias da instituição museu, do patrimônio custodiado e das técnicas museográficas), da superação dele e de perspectivas que apresentam alternativas a ele encontra considerável consistência face aos resultados encontrados.

Ao mesmo tempo, e como um fechamento da discussão, o quadro epistemológico desenhado tem um importante significado na própria configuração do campo como disciplina científica. Stránský (2008), em 1980, colocava o problema da identidade científica da Museologia. Em sua visão, a área se desenvolveu, desde o século XIX, de maneira bastante empírica e intuitiva, tratando de questões organizacionais e técnicas, contemplando a historiografia dos museus e descrições de práticas individuais, pouco voltadas para o descobrir – o que, quando ocorria, era sob a égide das outras disciplinas científicas vinculadas aos museus. Mas, em sua avaliação, gradualmente a Museologia vinha se aproximando de um estatuto científico, por meio da qual se afastaria da prática para, em seguida, relacionar-se novamente com ela, porém, numa nova condição.

Conforme a discussão empreendida neste texto, parece que, de 1980 para cá, muito se avançou no campo em direção à sua consolidação, não apenas no sentido das teorias e práticas formuladas desde o início do século XX (agrupadas, neste texto, em quatro eixos) como, e principalmente, pelos arranjos e reconfigurações realizadas a partir delas nas últimas três décadas - as abordagens contemporâneas em torno da Nova Museologia, da mediação, do patrimônio imaterial, dos museus virtuais e, enfim, da ampliação do objeto da área do museu (sua organização, suas técnicas e seus acervos) para a musealidade.

Como apontou Stránský (apud DELOCHE, 2002), da mesma forma que o objeto da Ciência Política não são as instituições políticas mas “o político”, isto é, a dimensão política de toda ação humana, assim também vale para Museologia: seu objeto não é o museu, a instituição, mas “o museal”, uma dimensão da ação humana presente nos mais diversos contextos – inclusive, mas não só, no museu.

Assim, enquanto campo capaz de abrigar e fazer dialogar distintas correntes e perspectivas teóricas, a Museologia reafirma sua vocação não apenas de ciência, mas de uma ciência humana e social, voltada para um objeto que só existe no âmbito da ação humana construída socialmente.

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Fonte: ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Museologia: correntes teórica e consolidação científica. Revista Museologia e Patrimônio, vol. 5, n. 2012. Disponívelem: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/159/199.

3 comentários:

Rita Pádua disse...

Olá! Eu estou jogando Assassin's Creed e estava acompanhando a história por uma postagem sua muito bem escrita, mas percebi que ele foi apagada. Se não me engano o nome era A História por trás de Assassin's Creed. Tem como repostar ou me me mandar poe e-mai? Obrigada.
ritapdua@yahoo.com.br

Leandro Vilar disse...

A postagem não foi apagada. É um erro do servidor do Blogger onde parece constar que ela não existe, mas ela ainda está on-line: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2011/10/a-historia-por-tras-de-assassins-creed.html.

Estou tentando corrigir esse problema.

Rita Pádua disse...

Obrigada!