O Rei Artur através dos séculos:
uma trajetória das lendas arturianas
Ma. Fernanda Karovsky Moura
O
Rei Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda têm despertado o interesse de
muitos autores e leitores através dos séculos. Ainda parte do nosso imaginário
nos dias de hoje, o interesse pelo rei ultrapassou áreas de estudos, tendo sido
aceito como fato histórico por alguns e elevado a herói mítico por outros. Tal
pluralidade de abordagens às lendas requer atenção acadêmica; daí o
desenvolvimento do presente artigo, que busca traçar uma trajetória dos textos
inspirados pela figura do Rei Artur, desde o século IX até os dias de hoje.
De
acordo com Archibald e Putter (2009, p. 1), Laʒamon, um padre de Worcestershire é um dos
primeiros escritores a recontar as lendas do Rei Artur, profetizou no início do
século XIII que o lendário rei e suas conquistas e feitos heroicos seriam uma
fonte inesgotável para contadores de histórias até o fim dos tempos. Mal sabia
Laʒarmon o quão correta
estava a sua profecia, já que até os dias de hoje, mais de oitocentos anos
depois, o Rei Artur e outros personagens de sua corte ainda figuram em inúmeras
mídias: romances, poemas, peças de teatro, óperas, filmes, histórias em
quadrinhos, pinturas, séries de televisão, entre outras.
Mesmo
que Artur tenha sido um rei bretão, suas histórias ultrapassaram barreiras
geográficas e foram adaptadas por diversos autores de diversos países e em
momentos históricos distintos. Como Archibald e Putter (2009, p. 1) apontam, os romances de
cavalaria arturianos foram escritos primeiramente na França e depois seguiram
para a Alemanha. Logo as lendas arturianas seriam conhecidas por
toda a Europa e, mais tarde, ganharam também influência nos outros continentes,
deixando sua marca até mesmo no Brasil.
Uma
das razões apresentadas por Archibald e Putter (2009, p. 2) para o sucesso e
abrangência das lendas arturianas é que elas não se limitam a um só herói, um
único local ou contexto histórico. Pelo contrário, as histórias do período
arturiano não são exclusivamente sobre Artur, mas também relatam as aventuras
de outros cavaleiros da Távola Redonda e, em versões mais recentes, as histórias
por trás das personagens femininas da corte, como a Dama de Shalott, cuja lenda
foi retratada no poema de Alfred Tennyson (1809-1892), The Lady of Shalott
(1833/1842), e Morgana e Guinevere, irmã e esposa do rei respectivamente,
personagens centrais da obra de Marion Zimmer Bradley (1930-1999), As Brumas de
Avalon (1979).
A
primeira menção a Artur em registros escritos é datada de 830, mais de
trezentos anos após o período do seu possível reinado. Trata-se de Historia
Brittonum, ou História dos Bretões em língua portuguesa, um compêndio da
história bretã encomendada por Merfyn, rei de Gwynedd, um reino no noroeste do
atual País de Gales, e provavelmente escrito por Nennius. Merfyn era um rei
aventureiro que havia acabado de tomar o trono e fixado sua dinastia em
Gwynedd. Ele pretendia tomar todo o País de Gales e, por isso, sua encomenda da
Historia Brittonum tinha razões e intenções políticas: ela representa os
galeses como os verdadeiros donos de toda a Bretanha, injustiçados pelas
invasões inglesas (HUTTON, 2009, p. 21). Em Historia Brittonum, Artur não é um
rei, mas um grande guerreiro que lidera o exército bretão em doze batalhas até
a vitória (LAMBDIN; LAMBDIN, 2009, p. 2).
Segundo
Hutton (2009, p. 21-22), o compêndio de Nennius representa os galeses como
devotos, guerreiros e galantes, enquanto os ingleses são retratados como
traiçoeiros e invasores. Além disso, Gwynedd tem lugar de destaque entre os
reinos ingleses. Essas decisões tomadas por Nennius certamente agradaram o rei
Merfyn.
Além
de Historia Brittonum, Ronald Hutton aponta apenas mais um texto que faz
referência a Artur nos primeiros séculos após o seu provável reinado. Trata-se
de Annales Cambriae, ou Anais de Gales, um conjunto de crônicas compilado por
volta de 950, quase cem anos após Historia Brittonum (2009, p. 25). Hutton,
contudo, aponta que as lendas arturianas tinham um caráter de reprodução oral
e, portanto, muitos registros, infelizmente, se perderam muito antes da nossa
era (2009, p. 34).
O
Rei Artur só ganha proeminência na literatura a partir do século XII, quando
ele é "revelado como uma figura literária de estatura verdadeiramente
internacional" (HUTTON, 2009, p. 26). Foi nesse século que Artur e os
demais personagens de sua corte ganharam um espaço sem precedentes em diversas
áreas: nomes arturianos tornaram-se em voga entre a aristocracia, personagens
arturianos foram transformados em esculturas, seus feitos convertidos em
canções e, principalmente, temas arturianos rechearam as produções literárias
do período (PUTTER, 2009, p. 36).
A
enorme importância que Artur adquiriu a partir desse século, segundo Putter
(2009), se deve, principalmente, a Geoffrey de Monmouth e Chrétien de Troyes.
Geoffrey de Monmouth foi um clérigo e mestre na universidade de Oxford. Segundo
Putter, Monmouth alegava que seu amigo Walter, arquidiácono de Oxford, havia
lhe entregue um antigo manuscrito bretão, que o autor dedicou-se a traduzir
como Historia Regum Britanniae, ou História dos Reis da Bretanha. Putter,
contudo, alerta que a existência de tal manuscrito nunca foi comprovada.
Ademais, escritores medievais tinham o costume de buscar fontes para seus
escritos em textos antigos e, se tais documentos não fossem possíveis de serem
encontrados, eles os inventavam (PUTTER, 2009, p. 39). Segundo Laura e Robert
Lambdin, Geoffrey de Monmouth solidificou a importância das lendas arturianas,
principalmente pelo fato de que seu texto foi tomado como história verídica por
muitos leitores e escritores até o Renascimento (2000, p. 2).
Geoffrey
de Monmouth publicou três trabalhos relacionados ao universo arturiano que
sobreviveram até os dias de hoje e influenciaram diversas obras que os
seguiram: As Profecias de Merlin, Vita Merlini, ou A Vida de Merlin, e o já
mencionado História dos Reis da Bretanha, tido por muitos como uma história
verídica dos antigos reis bretões até ser desacreditada pelos humanistas do
século XVI (PUTTER, 2009, p. 41). Seus relatos dos feitos heroicos do Rei Artur
e sua corte foram levados a sério e traduzidos livremente para outros idiomas:
Jerseyman Wace o traduziu para o francês e o já mencionado padre de
Worcestershire, Laʒamon, o traduziu para
o inglês (PUTTER, 2009, p. 43). É importante ressaltar que nesta época a
tradução literária era vista sob outra perspectiva e o tradutor, que se tornava
um co-autor, tinha a liberdade para alterar o enredo e adicionar passagens de
acordo com o seu julgamento e objetivos da tradução em si. Segundo o poeta
argentino Jorge Luis Borges,
"ao
longo de toda a Idade Média, as pessoas pensavam a tradução não em termos de
uma versão literal, mas em termos de algo sendo recriado. De um poeta, tendo
lido uma obra, desenvolver essa obra a partir de si mesmo, de sua própria
força, das possibilidades até ali conhecidas de sua língua" (2000, p. 78). Portanto,
não havia uma preocupação em preservar o texto de origem.
Outro
autor do século XII que deu novo fôlego às lendas arturianas foi Chrétien de
Troyes, que escrevia da corte de Champagne na França. Seus romances Erec, O
Cavaleiro do Leão (Ivain), O Cavaleiro da Carreta (Lancelote), Cligés e O Conto
do Graal – deixado inacabado devido à morte do autor – encantaram os leitores
do seu tempo e continuam a ser lidos até os dias de hoje, além de terem
contribuído para o surgimento de outros textos referentes à corte do Rei Artur
através dos séculos.
Chrétien
de Troyes, ao contrário dos escritores que o precederam, libertou-se das
amarras da veracidade histórica e apresenta um mundo explicitamente ficcional,
sem restrições, onde as personagens seguem suas próprias regras (PUTTER, 2009,
p. 44). Laura e Robert Lambdin afirmam que o autor francês "levou os
exóticos contos de fadas dos heróis galeses para os castelos da Inglaterra e
França" (2000, p. 4). Ademais, de Troyes inovou com a elaboração de
romances arturianos curtos, que tinham como protagonista não o Rei, mas um dos
cavaleiros da corte de Artur, o qual, normalmente, dava nome à narrativa
(PUTTER, 2009, p. 50). A partir dele, as lendas aturianas passaram a abranger,
também, o universo da escrita prosaica, o que seria seguido e desenvolvido por
outros escritores nos séculos seguintes.
Jane
Taylor (2009, p. 53) aponta que, no século XIII, os escritores arturianos
seguiam três vertentes distintas: escrita em verso, cada vez mais focada em
aventuras individuais de cavaleiros da corte do Rei Artur, como as aventuras do
sedutor cavaleiro Gawain: Le Chevalier à l'épée, La Mule sans Frein e Vengeance
Raguidel, de autoria incerta; em prosa, misturando história e romance, como nos
trabalhos do chamado Ciclo Vulgar Arturiano: Lancelot en Prose, La Queste del
Saint Graal e La Mort le roi Artu. O Ciclo afirmava ter sido escrito por Walter
Map, um clérigo da corte de Henrique II, no início do século XIII, porém Taylor
afirma que muitos críticos acreditam que ele tenha sido escrito por diversos
autores, provavelmente todos clérigos (2009, p. 59); e, finalmente, alguns
escritores se dedicaram a continuar a obra O Conto do Graal, deixado
tentadoramente inacabado por Chrétien de Troyes no século anterior.
No
século seguinte, o século XIV, Artur continuou sendo visto tanto como figura
histórica, tendo como base os escritos de séculos anteriores de Geoffrey de
Monmouth e Wace já mencionados, como personagem de romances. Segundo A. J.
Burrow (2009, p. 69-70), a figura do Rei Artur histórico, grande monarca e
conquistador de terras, pode ser encontrado no poema Chronicle escrito por
Robert Manning em 1338, durante o reinado de Eduardo III, monarca inglês que
possuía tal admiração pelo Rei Artur que encomendou sua própria Távola Redonda
para usar em seu governo. Outro poema do século XIV que também exalta os feitos
históricos de Artur, porém sem deixar de adicionar fatos e detalhes – muito
provavelmente fictícios – não encontrados em Monmouth ou Wace, é Morte Arthure
(BURROW, 2009, p. 70), cuja autoria permanece desconhecida.
Contudo,
como afirma Burrow, a tradição da escrita de crônicas arturianas, pautadas na
plausibilidade histórica e originadas a partir de Geoffrey de Monmouth e Wace,
tinha pouco espaço para o maravilhoso ou para aventuras individuais de
cavaleiros da corte (2009, p. 72). Foi a vertente da escrita narrativa do
século XIV que desenvolveu a figura do Rei Artur como personagem de ficção.
Segundo Burrow, "ao passo que na França, como na Alemanha, a principal era
de escritos arturianos tivesse ficado no passado, o século XIV viu um
desabrochar tardio [dessa era] na Inglaterra" (BURROW, 2009, p. 74). Um
exemplo é o romance Sir Gawain and the Green Knight, escrito no final do século
e de autoria incerta. Outros poemas de grande popularidade na época surgiram de
traduções livres ou adaptações de textos franceses, como Ywain and Gawain,
baseado em Yvain de Chrétien de Troyes (BURROW, 2009, p. 74); Sir Percyvell of
Galles, que provavelmente teve como inspiração o Conto do Graal de Chrétien
(BURROW, 2009, p. 76); Sir Landevale e Sir Launfal, ambos derivados dos Lais de
Marie da França (BURROW, 2009, p. 77); e Lybeaus Desconus, provavelmente
escrito por Thomas Chestre (BURROW, 2009, p. 78).
A
presença de Artur na literatura avançou no século seguinte e, segundo
perspectivas teóricas modernas, a grande realização do século XV em termos
arturianos foi a publicação do volumoso Le Morte D’Arthur por volta de 1458,
escrito por Sir Thomas Malory (WINDEATT, 2009, p. 84). De acordo com Barry
Windeatt, a ambiciosa proposta de Malory era compilar sequencialmente os
grandes acontecimentos da vida e governo de Artur e a história da Távola
Redonda, tendo como ponto de partida diversas fontes, principalmente textos
poéticos franceses (Ibid). Segundo Windeatt, Le Morte D’Arthur é o resultado da
incerta negociação entre história e romance histórico (2009, p. 86), seguindo a
tradição da prosificação de versos. Esse entrelaçamento entre história e
romance comum no século XV proporcionou uma intertextualidade, na qual há
sempre mais de uma verdade sobre os feitos de Artur (WINDEATT, 2009, p. 96).
O
imenso compêndio de Malory abrange um grande período de tempo, desde a relação
amorosa entre Uther e Igraine, e o consequente nascimento de Artur, até o
início do reinado de Sir Constantine, que substituiu Artur no trono após a sua
morte. La Morte D’Arthur é dividido em oito partes, sendo que as duas primeiras
abordam a ascensão de Artur ao trono, as três seguintes seguem Artur em seu
auge e, finalmente, as últimas três seções relatam a queda de Camelot (LAMBDIN;
LAMBDIN, 2000, p. 6). Segundo Laura e Robert Lambdin, Malory simplificou muito
a forma para agradar o público leitor inglês, retirando episódios de magia e
mistérios religiosos em favor do realismo, sem grandes análises emocionais
complicadas (Ibid). Além de Malory, a literatura arturiana em língua inglesa no
século XV floresceu com um grande número de traduções e adaptações de romances
escritos em outras línguas anteriormente, principalmente em língua francesa
(WINDEATT, 2009, p. 85).
A
temática de Artur e sua corte ganhou grande proeminência entre a realeza e
nobreza inglesas. Segundo Windeatt, "durante todo o século XV, ler sobre
Artur e a Távola Redonda era buscar um ideal, e a corte do Rei Artur
proporcionava um modelo imaginário de conduta e vida cortês" (2009, p.
100). Reis como James IV na Escócia e Eduardo IV e Henrique VII da Inglaterra
exibiam sua admiração por Artur através da organização de torneios entre
cavaleiros, uso de peças de decoração com temas arturianos, escolha de nomes
para membros da família inspirados na literatura arturiana, entre outros
(Ibid).
Segundo
Rob Gossedge e Stephen Knight (2009, p. 103), grandes escritores e grandes
obras tendem a debilitar os seus sucessores, e isso pode ter sido exatamente o
que aconteceu a partir do século XVI após a publicação de Le Morte D’Arthur de
Thomas Malory. O período que se seguiu a Malory não apresentou nenhuma novidade
no tratamento das lendas arturianas. Segundo Laura e Robert Lambdin, as lendas
foram praticamente esquecidas até a segunda metade do século XVIII (2000, p.
10). Contudo, Gossedge e Knight apontam que não foi apenas a angústia da
influência, como chamaria Harold Bloom, que ocasionou esse declínio da
representação do Rei Artur e sua corte na literatura, mas houve outras razões
que não devem ser ignoradas. Uma delas é o desenvolvimento da História como
área de estudo, que cada vez mais desafiava a versão "histórica" de
Geoffrey de Monmouth sobre os reis da Bretanha, colocando em xeque a própria existência
de Artur. Outra razão foi o crescente interesse pelo legado da Antiguidade
Clássica em detrimento do passado medieval, fazendo com que a figura de Artur
perdesse a sua superioridade. Ademais, a organização administrativa da corte
Tudor, provida de exércitos e ministros de Estado, tornava irrelevante a ideia
de um rei que governava através de seus cavaleiros e sob a orientação de um
sábio druida. Outro fator para o decréscimo de popularidade das lendas
arturianas foi o surgimento do Protestantismo na Inglaterra, incongruente com o
ambiente católico das histórias de Artur, além do fato de narrativas repletas
de violência e sugestão sexual irem contra o moralismo puritano da época (2009,
p. 103).
No
entanto, apesar do declínio de interesse em Artur, alguns romances arturianos
continuaram a ser escritos, lidos e apreciados, mesmo que em menor medida. Um
exemplo é o poema épico Faerie Queene, escrito por Edmund Spenser e publicado
por volta de 1590-6 (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 104), no qual Artur, personificação
de todas as virtudes, está desesperadamente apaixonado pela Faerie Queene, ou
Rainha das Fadas, que poderia ser interpretada como a própria Rainha Elizabeth
I.
Muito
embora Artur tenha perdido parte de sua força entre os grandes nomes da
literatura durante os séculos XVI e XVII, ele permaneceu presente na literatura
popular, como, por exemplo, nos romances de provável autoria de Richard
Johnson: Tom a Lincoln (1611), no qual o filho ilegítimo de Artur, Tom, chega à
corte, e The History of Tom Thumb (1621), cujo minúsculo protagonista também
chega à corte do rei (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 105).
No
século XVII, os feitos do Rei Artur chegaram também aos palcos através da ópera
de John Dryden intitulada King Arthur: The Worthy (1691), na qual o rei se apaixona
por Emmeline, uma princesa cega, e é confrontado por seu rival, o príncipe
saxão Oswald (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 106). Segundo Gossedge e Knight, nessa
peça as batalhas são facilmente vencidas pelos bretões, porém a magia e a
musicalidade propiciam uma tensão erótica, que destaca o texto (Ibid).
Esses
populares romances e ópera foram mais tarde, no século XVIII, parodiados pelo
escritor inglês Henry Fielding, que proporcionou ainda mais visibilidade à
vertente popular das lendas arturianas. Em The Tragedy of Tragedies: The Life
and Death of Tom Thumb, Fielding ridiculariza a pomposidade de Dryden e parodia
a tragédia clássica: todos os personagens morrem e Artur, o último a permanecer
vivo, acaba tirando a sua própria vida (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 107).
Durante
o fim do século XVIII e início do XIX, durante o Romantismo na literatura de
língua inglesa, os poetas tiveram pouco interesse nas histórias do Rei Artur,
mesmo que temas medievais fossem constantes na produção artística desse
período. De acordo com Gossedge e Knight, os Românticos não viam em Artur uma
figura com alto valor de moralidade ou sentimentos sinceros (2009, p. 108). Ao
contrário de séculos anteriores, em que o Rei Artur era retomado como uma
figura de orgulho e poder nacional, esse período utilizou-se de Artur como
material para sátiras. No entanto, a sátira dos românticos era mais relacionada
à forma extremamente rebuscada dos romances e poemas arturianos dos séculos
anteriores e à representação da soberania do monarca do que ao contexto
medieval presente neles. A peça The Fairy of the Lake, por exemplo, do ateu e
radical John Thelwall, publicada em 1801, "desafia o classicismo
conservador de Artur, como visto em Dryden e Blackmore, e questiona a santidade
da masculinidade e da realeza, assim como o decoro narrativo e teatral"
(GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 108). Além de Thelwall, o inglês John Hookham
Frere, em The Monks and Giants, publicado primeiramente em 1816, "é mais
uma sátira dos valores burgueses, tanto comportamental como política, do que um
texto arturiano" (Ibid). Portanto, a figura do Rei Artur serve como um
pretexto para críticas políticas e sociais.
Segundo
Gossedge e Knight, o Rei Artur aparece na poesia desse período
predominantemente de forma irônica ou meramente referencial. "Artistas
criativos ingleses ainda não respondiam seriamente ao mito. Os autores que
tinham noção da importância específica de Artur como uma imagem de identidade
nacional eram, na verdade, celtas" (2009, p. 109), como os escoceses
Walter Scott e Anne Bannerman; os galeses William Owen Pughe, Richard Llwyd e a
poeta inglesa que passou sua juventude no País de Gales, Felicia Hemans; e na
região da Cornualha, os escritores Thomas Hogg, John Magor Boyle e R. S.
Hawker, que mais tarde aconselharia Alfred Tennyson em questões relacionadas a
temas e locais arturianos.
Por
fim, essa jornada das lendas arturianas através dos séculos chega a Alfred
Tennyson, nome chave na disseminação das lendas arturianas no século XIX.
Segundo Laura e Robert Lambdin, houve outras histórias com personagens
arturianos nesse período, mas nenhuma de grande importância até a publicação do
primeiro poema arturiano de Alfred Tennyson em 1833: a primeira versão de The
Lady of Shalott (2000, p. 11). O poema em questão teve como fonte, segundo
Gossedge e Knight (2009, p. 112-13), uma novela italiana publicada em 1804, Qui
conta come la Damigella di Scalot mori per amore di Lancialotto de Lac. De
acordo com os autores, Tennyson já planejava um grande trabalho arturiano desde
a década de 1830. A influência de Malory em seu trabalho é evidente,
principalmente nos seus primeiros poemas e na que viria a tornar-se sua
obra-prima, The Idylls of the King.
The
Lady of Shalott é um exemplo do resgate de antigos gêneros, como a balada
medieval. Segundo Alice Chandler, durante o período de Medieval Revival, “a
Idade Média foi idealizada como um período de fé, ordem, alegria, generosidade
e criatividade” (1970, p. 1). Os ingleses voltaram-se para a Idade Média como o
período de ouro em sua história, em contraste com as dificuldades da
modernidade pós-Revolução Industrial. Como consequência, temas medievais
voltaram a figurar na literatura, como os romances góticos de final do século
XVIII e início do XIX, os romances históricos de Walter Scott e os poemas
arturianos de Alfred Tennyson. Nesse período, o gênero balada foi resgatado,
principalmente por sua conexão com a Idade Média, porém com novas
características, adaptadas ao novo contexto.
Tennyson,
ao recuperar os escritos de Malory, trouxe-o de volta ao centro da literatura
inglesa (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 113). Além de Malory, Tennyson também
trouxe o próprio Rei Artur de volta ao cerne da produção literária inglesa,
resgatando-o do submundo cômico e político e restabelecendo seu valor literário
e cultural. Tal conduta seria seguida por outros artistas durante o século XIX,
principalmente na arte, como os pintores J. W. Waterhouse, William Morris,
Dante Gariel Rossetti, W. Holman Hunt, Edward Burne-Jones, James Archer e G. F.
Watts, integrantes e simpatizantes da Irmandade Pré-Rafaelita; e na poesia, com
Edward Hamley, Elinor Sweetman, William Morris e Algernon Swinburne.
Finalmente,
o Rei Artur adentra os séculos XX e XXI e encontra representação em diversos
gêneros e mídias, como no recente universo cinematográfico. Segundo Norris
Lacy, principalmente a partir da década de 1950, as lendas foram transformadas
em sátiras políticas e sociais, comédias, ficção científica, fantasia, ficção
feminista, mistérios, thrillers, revistas em quadrinhos e muitos outros, tanto
na literatura como também no teatro e no cinema (p. 120). Nas primeiras décadas
do século XX, a poesia dominou a maior parte da produção literária arturiana,
como os poemas Merlin (1917), Lancelot (1920) e Tristram (1927), do norte-americano
Edwin Arlington Robinson (1869-1935) e as antologias poéticas do inglês Charles
Williams (1886-1945) sobre a ascensão e queda de Camelot (LACY, 2009, p. 122).
Com o desenrolar do século, no entanto, a poesia cedeu lugar ao romance como
gênero predominante (LACY, 2009, p. 121).
De
um modo geral, Lacy afirma ser possível dividir a produção artística arturiana
do século XX em quatro grupos principais: adaptações de histórias escritas
anteriormente, narrativas modernizadas, uso de temas arturianos como metáfora
ou estrutura, e adaptações revisionistas das lendas (p. 122). Como exemplos do
primeiro grupo, Lacy cita, entre outros, Rei Artur (1903), de Howard Pyle
(1853-1911), e A Espada Excalibur (1981), de Rosemary Sutcliff (1920-1992), que
apresenta adaptações da obra de Malory (p. 123). Narrativas modernizadas, o
segundo grupo mencionado por Lacy, trazem o Rei Artur para o presente, como em
Aquela Força Medonha (1945), de C. S. Lewis (1898-1963), ou para o futuro, como
em Witch World (1963), de Andre Norton (1912-2005) (p. 126-7). Como exemplos do
terceiro grupo, nos quais temas ou motivos arturianos são identificáveis na
obra, porém de maneira menos explícita, Lacy cita Brazil (1944), de John Updike
(1932-2009), que apresenta elementos da história de Tristão e Isolda na moderna
Rio de Janeiro, e Lancelot (1977), de Walker Percy (1916-1990), no qual um
advogado chamado Lancelot assassina a sua mulher por desconfiar de sua
infidelidade (p. 127). Por fim, como adaptações revisionistas, Lacy menciona o
irônico Arthur Rex (1978), de Thomas Berger (1924-2004), que apresenta de uma
maneira nua, crua e cômica as falhas dos personagens arturianos; e o já
mencionado As Brumas de Avalon, de Bradley, que reconta as lendas através da
perspectiva de personagens femininas (p. 125).
Entrando
no século XXI, o Rei Artur se vê reinterpretado por uma nova geração,
participante de “poderosas transformações culturais e sociais” (LACY, 2009, p.
129). Segundo Lacy,
"quer
seja instabilidade cultural, relativismo moral, nostalgia de uma clareza real
ou imaginada no passado, rebelião contra a tradição, ou simplesmente a
necessidade de falar e escrever de formas diferentes das do passado, o período
frequentemente identificado como pós-moderno bombou a lenda arturiana"(2009, p.
129).
As
lendas foram resgatadas mais uma vez para serem reexaminadas e reinterpretadas,
buscando uma forma de torná-las ainda mais relevantes para a audiência
contemporânea.
O
Rei Artur e demais personagens de sua corte invadiram novas mídias, como vídeo
games, jogos de RPG, jogos para computador, jogos de tabuleiro, livros de
colorir, entre muitos outros (LACY, p. 129). Na literatura, as lendas
continuaram a inspirar autores ano 2000 adentro, como em Baudolino (2000), de
Umberto Eco (1932-2016), e Labirinto (2005), de Kate Mosse (1961-). No cinema e
na televisão, a figura do rei e sua corte é frequente, como nas séries
televisivas Merlin, produzida pela BBC One e no ar de 2008 a 2012, e Camelot,
produzida por TV GK e Starz e com uma única temporada exibida em 2011; e nos
filmes Rei Arthur de 2004, e o mais recente Rei Arthur: A Lenda da Espada de
2017.
Após
o estudo da trajetória das lendas arturianas através dos séculos na literatura
e em outras artes, pode-se perceber que o Rei Artur e os demais personagens de
sua corte sempre estiveram presentes nas manifestações artísticas e no
imaginário coletivo da população, principalmente nas regiões da Inglaterra e
França. Há menções a Artur desde Historia Brittonum, do início do século IX, e
Annales Cambriae, de meados do século X. Antes um misterioso personagem da
história bretã, Artur logo se tornou um dos personagens favoritos da literatura
de ficção, principalmente a partir de Geoffrey de Monmouth e Chrétien de Troyes
no século XII. No século XV, a presença de Artur na literatura se consolidou
com a publicação de Le Morte D’Arthur, de Sir Thomas Malory, autor que
certamente influenciou o trabalho de Tennyson quatro séculos mais tarde.
Após
um período de pouca presença do Rei Artur e demais personagens de sua corte na
literatura e outras manifestações artísticas, o século XIX viu surgir uma
renovação de interesse na Idade Média, o chamado Medieval Revival (CHANDLER,
1970). Através desse movimento, parte do movimento romântico na literatura
inglesa de fins do século XVIII e início do XIX, personagens medievais – reais
ou fictícios – foram resgatados por escritores, poetas, pintores e outros
artistas, como os integrantes da Irmandade Pré-Rafaelita e o poeta Alfred
Tennyson. E, por fim, os séculos XX e XXI levaram o Rei Artur e seus cavaleiros
para diversas mídias, como o cinema, a televisão e video games, além de propor
novas interpretações e adaptações revisionistas de antigas lendas.
Chegando
ao final de nossa jornada com o Rei Artur através dos séculos, é possível
identificar o grande impacto dessas lendas na literatura e produção artística
como um todo, desde o século IX até os dias de hoje. Mesmo tendo surgido há
mais de mil anos, essas lendas ainda tocam o leitor, que século após século
confere novas leituras às velhas histórias, adicionando novas camadas de
significado que tornam esse imenso legado cultural ainda mais rico.
Referências:
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PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge
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