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quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O Rei Artur através dos séculos: uma trajetória das lendas arturianas

O Rei Artur através dos séculos: 
uma trajetória das lendas arturianas


Ma. Fernanda Karovsky Moura


O Rei Artur e seus cavaleiros da Távola Redonda têm despertado o interesse de muitos autores e leitores através dos séculos. Ainda parte do nosso imaginário nos dias de hoje, o interesse pelo rei ultrapassou áreas de estudos, tendo sido aceito como fato histórico por alguns e elevado a herói mítico por outros. Tal pluralidade de abordagens às lendas requer atenção acadêmica; daí o desenvolvimento do presente artigo, que busca traçar uma trajetória dos textos inspirados pela figura do Rei Artur, desde o século IX até os dias de hoje.

De acordo com Archibald e Putter (2009, p. 1), Laʒamon, um padre de Worcestershire é um dos primeiros escritores a recontar as lendas do Rei Artur, profetizou no início do século XIII que o lendário rei e suas conquistas e feitos heroicos seriam uma fonte inesgotável para contadores de histórias até o fim dos tempos. Mal sabia Laʒarmon o quão correta estava a sua profecia, já que até os dias de hoje, mais de oitocentos anos depois, o Rei Artur e outros personagens de sua corte ainda figuram em inúmeras mídias: romances, poemas, peças de teatro, óperas, filmes, histórias em quadrinhos, pinturas, séries de televisão, entre outras.

Mesmo que Artur tenha sido um rei bretão, suas histórias ultrapassaram barreiras geográficas e foram adaptadas por diversos autores de diversos países e em momentos históricos distintos. Como Archibald e Putter (2009, p. 1) apontam, os romances de cavalaria arturianos foram escritos primeiramente na França e depois seguiram para a Alemanha. Logo as lendas arturianas seriam conhecidas por toda a Europa e, mais tarde, ganharam também influência nos outros continentes, deixando sua marca até mesmo no Brasil.

Uma das razões apresentadas por Archibald e Putter (2009, p. 2) para o sucesso e abrangência das lendas arturianas é que elas não se limitam a um só herói, um único local ou contexto histórico. Pelo contrário, as histórias do período arturiano não são exclusivamente sobre Artur, mas também relatam as aventuras de outros cavaleiros da Távola Redonda e, em versões mais recentes, as histórias por trás das personagens femininas da corte, como a Dama de Shalott, cuja lenda foi retratada no poema de Alfred Tennyson (1809-1892), The Lady of Shalott (1833/1842), e Morgana e Guinevere, irmã e esposa do rei respectivamente, personagens centrais da obra de Marion Zimmer Bradley (1930-1999), As Brumas de Avalon (1979).

A primeira menção a Artur em registros escritos é datada de 830, mais de trezentos anos após o período do seu possível reinado. Trata-se de Historia Brittonum, ou História dos Bretões em língua portuguesa, um compêndio da história bretã encomendada por Merfyn, rei de Gwynedd, um reino no noroeste do atual País de Gales, e provavelmente escrito por Nennius. Merfyn era um rei aventureiro que havia acabado de tomar o trono e fixado sua dinastia em Gwynedd. Ele pretendia tomar todo o País de Gales e, por isso, sua encomenda da Historia Brittonum tinha razões e intenções políticas: ela representa os galeses como os verdadeiros donos de toda a Bretanha, injustiçados pelas invasões inglesas (HUTTON, 2009, p. 21). Em Historia Brittonum, Artur não é um rei, mas um grande guerreiro que lidera o exército bretão em doze batalhas até a vitória (LAMBDIN; LAMBDIN, 2009, p. 2).

Segundo Hutton (2009, p. 21-22), o compêndio de Nennius representa os galeses como devotos, guerreiros e galantes, enquanto os ingleses são retratados como traiçoeiros e invasores. Além disso, Gwynedd tem lugar de destaque entre os reinos ingleses. Essas decisões tomadas por Nennius certamente agradaram o rei Merfyn.

Além de Historia Brittonum, Ronald Hutton aponta apenas mais um texto que faz referência a Artur nos primeiros séculos após o seu provável reinado. Trata-se de Annales Cambriae, ou Anais de Gales, um conjunto de crônicas compilado por volta de 950, quase cem anos após Historia Brittonum (2009, p. 25). Hutton, contudo, aponta que as lendas arturianas tinham um caráter de reprodução oral e, portanto, muitos registros, infelizmente, se perderam muito antes da nossa era (2009, p. 34).

O Rei Artur só ganha proeminência na literatura a partir do século XII, quando ele é "revelado como uma figura literária de estatura verdadeiramente internacional" (HUTTON, 2009, p. 26). Foi nesse século que Artur e os demais personagens de sua corte ganharam um espaço sem precedentes em diversas áreas: nomes arturianos tornaram-se em voga entre a aristocracia, personagens arturianos foram transformados em esculturas, seus feitos convertidos em canções e, principalmente, temas arturianos rechearam as produções literárias do período (PUTTER, 2009, p. 36).

A enorme importância que Artur adquiriu a partir desse século, segundo Putter (2009), se deve, principalmente, a Geoffrey de Monmouth e Chrétien de Troyes. Geoffrey de Monmouth foi um clérigo e mestre na universidade de Oxford. Segundo Putter, Monmouth alegava que seu amigo Walter, arquidiácono de Oxford, havia lhe entregue um antigo manuscrito bretão, que o autor dedicou-se a traduzir como Historia Regum Britanniae, ou História dos Reis da Bretanha. Putter, contudo, alerta que a existência de tal manuscrito nunca foi comprovada. Ademais, escritores medievais tinham o costume de buscar fontes para seus escritos em textos antigos e, se tais documentos não fossem possíveis de serem encontrados, eles os inventavam (PUTTER, 2009, p. 39). Segundo Laura e Robert Lambdin, Geoffrey de Monmouth solidificou a importância das lendas arturianas, principalmente pelo fato de que seu texto foi tomado como história verídica por muitos leitores e escritores até o Renascimento (2000, p. 2).

Geoffrey de Monmouth publicou três trabalhos relacionados ao universo arturiano que sobreviveram até os dias de hoje e influenciaram diversas obras que os seguiram: As Profecias de Merlin, Vita Merlini, ou A Vida de Merlin, e o já mencionado História dos Reis da Bretanha, tido por muitos como uma história verídica dos antigos reis bretões até ser desacreditada pelos humanistas do século XVI (PUTTER, 2009, p. 41). Seus relatos dos feitos heroicos do Rei Artur e sua corte foram levados a sério e traduzidos livremente para outros idiomas: Jerseyman Wace o traduziu para o francês e o já mencionado padre de Worcestershire, Laʒamon, o traduziu para o inglês (PUTTER, 2009, p. 43). É importante ressaltar que nesta época a tradução literária era vista sob outra perspectiva e o tradutor, que se tornava um co-autor, tinha a liberdade para alterar o enredo e adicionar passagens de acordo com o seu julgamento e objetivos da tradução em si. Segundo o poeta argentino Jorge Luis Borges,

"ao longo de toda a Idade Média, as pessoas pensavam a tradução não em termos de uma versão literal, mas em termos de algo sendo recriado. De um poeta, tendo lido uma obra, desenvolver essa obra a partir de si mesmo, de sua própria força, das possibilidades até ali conhecidas de sua língua" (2000, p. 78). Portanto, não havia uma preocupação em preservar o texto de origem.

Outro autor do século XII que deu novo fôlego às lendas arturianas foi Chrétien de Troyes, que escrevia da corte de Champagne na França. Seus romances Erec, O Cavaleiro do Leão (Ivain), O Cavaleiro da Carreta (Lancelote), Cligés e O Conto do Graal – deixado inacabado devido à morte do autor – encantaram os leitores do seu tempo e continuam a ser lidos até os dias de hoje, além de terem contribuído para o surgimento de outros textos referentes à corte do Rei Artur através dos séculos.

Chrétien de Troyes, ao contrário dos escritores que o precederam, libertou-se das amarras da veracidade histórica e apresenta um mundo explicitamente ficcional, sem restrições, onde as personagens seguem suas próprias regras (PUTTER, 2009, p. 44). Laura e Robert Lambdin afirmam que o autor francês "levou os exóticos contos de fadas dos heróis galeses para os castelos da Inglaterra e França" (2000, p. 4). Ademais, de Troyes inovou com a elaboração de romances arturianos curtos, que tinham como protagonista não o Rei, mas um dos cavaleiros da corte de Artur, o qual, normalmente, dava nome à narrativa (PUTTER, 2009, p. 50). A partir dele, as lendas aturianas passaram a abranger, também, o universo da escrita prosaica, o que seria seguido e desenvolvido por outros escritores nos séculos seguintes.

Jane Taylor (2009, p. 53) aponta que, no século XIII, os escritores arturianos seguiam três vertentes distintas: escrita em verso, cada vez mais focada em aventuras individuais de cavaleiros da corte do Rei Artur, como as aventuras do sedutor cavaleiro Gawain: Le Chevalier à l'épée, La Mule sans Frein e Vengeance Raguidel, de autoria incerta; em prosa, misturando história e romance, como nos trabalhos do chamado Ciclo Vulgar Arturiano: Lancelot en Prose, La Queste del Saint Graal e La Mort le roi Artu. O Ciclo afirmava ter sido escrito por Walter Map, um clérigo da corte de Henrique II, no início do século XIII, porém Taylor afirma que muitos críticos acreditam que ele tenha sido escrito por diversos autores, provavelmente todos clérigos (2009, p. 59); e, finalmente, alguns escritores se dedicaram a continuar a obra O Conto do Graal, deixado tentadoramente inacabado por Chrétien de Troyes no século anterior.

No século seguinte, o século XIV, Artur continuou sendo visto tanto como figura histórica, tendo como base os escritos de séculos anteriores de Geoffrey de Monmouth e Wace já mencionados, como personagem de romances. Segundo A. J. Burrow (2009, p. 69-70), a figura do Rei Artur histórico, grande monarca e conquistador de terras, pode ser encontrado no poema Chronicle escrito por Robert Manning em 1338, durante o reinado de Eduardo III, monarca inglês que possuía tal admiração pelo Rei Artur que encomendou sua própria Távola Redonda para usar em seu governo. Outro poema do século XIV que também exalta os feitos históricos de Artur, porém sem deixar de adicionar fatos e detalhes – muito provavelmente fictícios – não encontrados em Monmouth ou Wace, é Morte Arthure (BURROW, 2009, p. 70), cuja autoria permanece desconhecida.

Contudo, como afirma Burrow, a tradição da escrita de crônicas arturianas, pautadas na plausibilidade histórica e originadas a partir de Geoffrey de Monmouth e Wace, tinha pouco espaço para o maravilhoso ou para aventuras individuais de cavaleiros da corte (2009, p. 72). Foi a vertente da escrita narrativa do século XIV que desenvolveu a figura do Rei Artur como personagem de ficção. Segundo Burrow, "ao passo que na França, como na Alemanha, a principal era de escritos arturianos tivesse ficado no passado, o século XIV viu um desabrochar tardio [dessa era] na Inglaterra" (BURROW, 2009, p. 74). Um exemplo é o romance Sir Gawain and the Green Knight, escrito no final do século e de autoria incerta. Outros poemas de grande popularidade na época surgiram de traduções livres ou adaptações de textos franceses, como Ywain and Gawain, baseado em Yvain de Chrétien de Troyes (BURROW, 2009, p. 74); Sir Percyvell of Galles, que provavelmente teve como inspiração o Conto do Graal de Chrétien (BURROW, 2009, p. 76); Sir Landevale e Sir Launfal, ambos derivados dos Lais de Marie da França (BURROW, 2009, p. 77); e Lybeaus Desconus, provavelmente escrito por Thomas Chestre (BURROW, 2009, p. 78).

A presença de Artur na literatura avançou no século seguinte e, segundo perspectivas teóricas modernas, a grande realização do século XV em termos arturianos foi a publicação do volumoso Le Morte D’Arthur por volta de 1458, escrito por Sir Thomas Malory (WINDEATT, 2009, p. 84). De acordo com Barry Windeatt, a ambiciosa proposta de Malory era compilar sequencialmente os grandes acontecimentos da vida e governo de Artur e a história da Távola Redonda, tendo como ponto de partida diversas fontes, principalmente textos poéticos franceses (Ibid). Segundo Windeatt, Le Morte D’Arthur é o resultado da incerta negociação entre história e romance histórico (2009, p. 86), seguindo a tradição da prosificação de versos. Esse entrelaçamento entre história e romance comum no século XV proporcionou uma intertextualidade, na qual há sempre mais de uma verdade sobre os feitos de Artur (WINDEATT, 2009, p. 96).

O imenso compêndio de Malory abrange um grande período de tempo, desde a relação amorosa entre Uther e Igraine, e o consequente nascimento de Artur, até o início do reinado de Sir Constantine, que substituiu Artur no trono após a sua morte. La Morte D’Arthur é dividido em oito partes, sendo que as duas primeiras abordam a ascensão de Artur ao trono, as três seguintes seguem Artur em seu auge e, finalmente, as últimas três seções relatam a queda de Camelot (LAMBDIN; LAMBDIN, 2000, p. 6). Segundo Laura e Robert Lambdin, Malory simplificou muito a forma para agradar o público leitor inglês, retirando episódios de magia e mistérios religiosos em favor do realismo, sem grandes análises emocionais complicadas (Ibid). Além de Malory, a literatura arturiana em língua inglesa no século XV floresceu com um grande número de traduções e adaptações de romances escritos em outras línguas anteriormente, principalmente em língua francesa (WINDEATT, 2009, p. 85).

A temática de Artur e sua corte ganhou grande proeminência entre a realeza e nobreza inglesas. Segundo Windeatt, "durante todo o século XV, ler sobre Artur e a Távola Redonda era buscar um ideal, e a corte do Rei Artur proporcionava um modelo imaginário de conduta e vida cortês" (2009, p. 100). Reis como James IV na Escócia e Eduardo IV e Henrique VII da Inglaterra exibiam sua admiração por Artur através da organização de torneios entre cavaleiros, uso de peças de decoração com temas arturianos, escolha de nomes para membros da família inspirados na literatura arturiana, entre outros (Ibid).

Segundo Rob Gossedge e Stephen Knight (2009, p. 103), grandes escritores e grandes obras tendem a debilitar os seus sucessores, e isso pode ter sido exatamente o que aconteceu a partir do século XVI após a publicação de Le Morte D’Arthur de Thomas Malory. O período que se seguiu a Malory não apresentou nenhuma novidade no tratamento das lendas arturianas. Segundo Laura e Robert Lambdin, as lendas foram praticamente esquecidas até a segunda metade do século XVIII (2000, p. 10). Contudo, Gossedge e Knight apontam que não foi apenas a angústia da influência, como chamaria Harold Bloom, que ocasionou esse declínio da representação do Rei Artur e sua corte na literatura, mas houve outras razões que não devem ser ignoradas. Uma delas é o desenvolvimento da História como área de estudo, que cada vez mais desafiava a versão "histórica" de Geoffrey de Monmouth sobre os reis da Bretanha, colocando em xeque a própria existência de Artur. Outra razão foi o crescente interesse pelo legado da Antiguidade Clássica em detrimento do passado medieval, fazendo com que a figura de Artur perdesse a sua superioridade. Ademais, a organização administrativa da corte Tudor, provida de exércitos e ministros de Estado, tornava irrelevante a ideia de um rei que governava através de seus cavaleiros e sob a orientação de um sábio druida. Outro fator para o decréscimo de popularidade das lendas arturianas foi o surgimento do Protestantismo na Inglaterra, incongruente com o ambiente católico das histórias de Artur, além do fato de narrativas repletas de violência e sugestão sexual irem contra o moralismo puritano da época (2009, p. 103).

No entanto, apesar do declínio de interesse em Artur, alguns romances arturianos continuaram a ser escritos, lidos e apreciados, mesmo que em menor medida. Um exemplo é o poema épico Faerie Queene, escrito por Edmund Spenser e publicado por volta de 1590-6 (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 104), no qual Artur, personificação de todas as virtudes, está desesperadamente apaixonado pela Faerie Queene, ou Rainha das Fadas, que poderia ser interpretada como a própria Rainha Elizabeth I.

Muito embora Artur tenha perdido parte de sua força entre os grandes nomes da literatura durante os séculos XVI e XVII, ele permaneceu presente na literatura popular, como, por exemplo, nos romances de provável autoria de Richard Johnson: Tom a Lincoln (1611), no qual o filho ilegítimo de Artur, Tom, chega à corte, e The History of Tom Thumb (1621), cujo minúsculo protagonista também chega à corte do rei (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 105).

No século XVII, os feitos do Rei Artur chegaram também aos palcos através da ópera de John Dryden intitulada King Arthur: The Worthy (1691), na qual o rei se apaixona por Emmeline, uma princesa cega, e é confrontado por seu rival, o príncipe saxão Oswald (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 106). Segundo Gossedge e Knight, nessa peça as batalhas são facilmente vencidas pelos bretões, porém a magia e a musicalidade propiciam uma tensão erótica, que destaca o texto (Ibid).

Esses populares romances e ópera foram mais tarde, no século XVIII, parodiados pelo escritor inglês Henry Fielding, que proporcionou ainda mais visibilidade à vertente popular das lendas arturianas. Em The Tragedy of Tragedies: The Life and Death of Tom Thumb, Fielding ridiculariza a pomposidade de Dryden e parodia a tragédia clássica: todos os personagens morrem e Artur, o último a permanecer vivo, acaba tirando a sua própria vida (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 107).

Durante o fim do século XVIII e início do XIX, durante o Romantismo na literatura de língua inglesa, os poetas tiveram pouco interesse nas histórias do Rei Artur, mesmo que temas medievais fossem constantes na produção artística desse período. De acordo com Gossedge e Knight, os Românticos não viam em Artur uma figura com alto valor de moralidade ou sentimentos sinceros (2009, p. 108). Ao contrário de séculos anteriores, em que o Rei Artur era retomado como uma figura de orgulho e poder nacional, esse período utilizou-se de Artur como material para sátiras. No entanto, a sátira dos românticos era mais relacionada à forma extremamente rebuscada dos romances e poemas arturianos dos séculos anteriores e à representação da soberania do monarca do que ao contexto medieval presente neles. A peça The Fairy of the Lake, por exemplo, do ateu e radical John Thelwall, publicada em 1801, "desafia o classicismo conservador de Artur, como visto em Dryden e Blackmore, e questiona a santidade da masculinidade e da realeza, assim como o decoro narrativo e teatral" (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 108). Além de Thelwall, o inglês John Hookham Frere, em The Monks and Giants, publicado primeiramente em 1816, "é mais uma sátira dos valores burgueses, tanto comportamental como política, do que um texto arturiano" (Ibid). Portanto, a figura do Rei Artur serve como um pretexto para críticas políticas e sociais.

Segundo Gossedge e Knight, o Rei Artur aparece na poesia desse período predominantemente de forma irônica ou meramente referencial. "Artistas criativos ingleses ainda não respondiam seriamente ao mito. Os autores que tinham noção da importância específica de Artur como uma imagem de identidade nacional eram, na verdade, celtas" (2009, p. 109), como os escoceses Walter Scott e Anne Bannerman; os galeses William Owen Pughe, Richard Llwyd e a poeta inglesa que passou sua juventude no País de Gales, Felicia Hemans; e na região da Cornualha, os escritores Thomas Hogg, John Magor Boyle e R. S. Hawker, que mais tarde aconselharia Alfred Tennyson em questões relacionadas a temas e locais arturianos.

Por fim, essa jornada das lendas arturianas através dos séculos chega a Alfred Tennyson, nome chave na disseminação das lendas arturianas no século XIX. Segundo Laura e Robert Lambdin, houve outras histórias com personagens arturianos nesse período, mas nenhuma de grande importância até a publicação do primeiro poema arturiano de Alfred Tennyson em 1833: a primeira versão de The Lady of Shalott (2000, p. 11). O poema em questão teve como fonte, segundo Gossedge e Knight (2009, p. 112-13), uma novela italiana publicada em 1804, Qui conta come la Damigella di Scalot mori per amore di Lancialotto de Lac. De acordo com os autores, Tennyson já planejava um grande trabalho arturiano desde a década de 1830. A influência de Malory em seu trabalho é evidente, principalmente nos seus primeiros poemas e na que viria a tornar-se sua obra-prima, The Idylls of the King.

The Lady of Shalott é um exemplo do resgate de antigos gêneros, como a balada medieval. Segundo Alice Chandler, durante o período de Medieval Revival, “a Idade Média foi idealizada como um período de fé, ordem, alegria, generosidade e criatividade” (1970, p. 1). Os ingleses voltaram-se para a Idade Média como o período de ouro em sua história, em contraste com as dificuldades da modernidade pós-Revolução Industrial. Como consequência, temas medievais voltaram a figurar na literatura, como os romances góticos de final do século XVIII e início do XIX, os romances históricos de Walter Scott e os poemas arturianos de Alfred Tennyson. Nesse período, o gênero balada foi resgatado, principalmente por sua conexão com a Idade Média, porém com novas características, adaptadas ao novo contexto.

Tennyson, ao recuperar os escritos de Malory, trouxe-o de volta ao centro da literatura inglesa (GOSSEDGE; KNIGHT, 2009, p. 113). Além de Malory, Tennyson também trouxe o próprio Rei Artur de volta ao cerne da produção literária inglesa, resgatando-o do submundo cômico e político e restabelecendo seu valor literário e cultural. Tal conduta seria seguida por outros artistas durante o século XIX, principalmente na arte, como os pintores J. W. Waterhouse, William Morris, Dante Gariel Rossetti, W. Holman Hunt, Edward Burne-Jones, James Archer e G. F. Watts, integrantes e simpatizantes da Irmandade Pré-Rafaelita; e na poesia, com Edward Hamley, Elinor Sweetman, William Morris e Algernon Swinburne.

Finalmente, o Rei Artur adentra os séculos XX e XXI e encontra representação em diversos gêneros e mídias, como no recente universo cinematográfico. Segundo Norris Lacy, principalmente a partir da década de 1950, as lendas foram transformadas em sátiras políticas e sociais, comédias, ficção científica, fantasia, ficção feminista, mistérios, thrillers, revistas em quadrinhos e muitos outros, tanto na literatura como também no teatro e no cinema (p. 120). Nas primeiras décadas do século XX, a poesia dominou a maior parte da produção literária arturiana, como os poemas Merlin (1917), Lancelot (1920) e Tristram (1927), do norte-americano Edwin Arlington Robinson (1869-1935) e as antologias poéticas do inglês Charles Williams (1886-1945) sobre a ascensão e queda de Camelot (LACY, 2009, p. 122). Com o desenrolar do século, no entanto, a poesia cedeu lugar ao romance como gênero predominante (LACY, 2009, p. 121).

De um modo geral, Lacy afirma ser possível dividir a produção artística arturiana do século XX em quatro grupos principais: adaptações de histórias escritas anteriormente, narrativas modernizadas, uso de temas arturianos como metáfora ou estrutura, e adaptações revisionistas das lendas (p. 122). Como exemplos do primeiro grupo, Lacy cita, entre outros, Rei Artur (1903), de Howard Pyle (1853-1911), e A Espada Excalibur (1981), de Rosemary Sutcliff (1920-1992), que apresenta adaptações da obra de Malory (p. 123). Narrativas modernizadas, o segundo grupo mencionado por Lacy, trazem o Rei Artur para o presente, como em Aquela Força Medonha (1945), de C. S. Lewis (1898-1963), ou para o futuro, como em Witch World (1963), de Andre Norton (1912-2005) (p. 126-7). Como exemplos do terceiro grupo, nos quais temas ou motivos arturianos são identificáveis na obra, porém de maneira menos explícita, Lacy cita Brazil (1944), de John Updike (1932-2009), que apresenta elementos da história de Tristão e Isolda na moderna Rio de Janeiro, e Lancelot (1977), de Walker Percy (1916-1990), no qual um advogado chamado Lancelot assassina a sua mulher por desconfiar de sua infidelidade (p. 127). Por fim, como adaptações revisionistas, Lacy menciona o irônico Arthur Rex (1978), de Thomas Berger (1924-2004), que apresenta de uma maneira nua, crua e cômica as falhas dos personagens arturianos; e o já mencionado As Brumas de Avalon, de Bradley, que reconta as lendas através da perspectiva de personagens femininas (p. 125).

Entrando no século XXI, o Rei Artur se vê reinterpretado por uma nova geração, participante de “poderosas transformações culturais e sociais” (LACY, 2009, p. 129). Segundo Lacy,

"quer seja instabilidade cultural, relativismo moral, nostalgia de uma clareza real ou imaginada no passado, rebelião contra a tradição, ou simplesmente a necessidade de falar e escrever de formas diferentes das do passado, o período frequentemente identificado como pós-moderno bombou a lenda arturiana"(2009, p. 129).

As lendas foram resgatadas mais uma vez para serem reexaminadas e reinterpretadas, buscando uma forma de torná-las ainda mais relevantes para a audiência contemporânea.

O Rei Artur e demais personagens de sua corte invadiram novas mídias, como vídeo games, jogos de RPG, jogos para computador, jogos de tabuleiro, livros de colorir, entre muitos outros (LACY, p. 129). Na literatura, as lendas continuaram a inspirar autores ano 2000 adentro, como em Baudolino (2000), de Umberto Eco (1932-2016), e Labirinto (2005), de Kate Mosse (1961-). No cinema e na televisão, a figura do rei e sua corte é frequente, como nas séries televisivas Merlin, produzida pela BBC One e no ar de 2008 a 2012, e Camelot, produzida por TV GK e Starz e com uma única temporada exibida em 2011; e nos filmes Rei Arthur de 2004, e o mais recente Rei Arthur: A Lenda da Espada de 2017.

Após o estudo da trajetória das lendas arturianas através dos séculos na literatura e em outras artes, pode-se perceber que o Rei Artur e os demais personagens de sua corte sempre estiveram presentes nas manifestações artísticas e no imaginário coletivo da população, principalmente nas regiões da Inglaterra e França. Há menções a Artur desde Historia Brittonum, do início do século IX, e Annales Cambriae, de meados do século X. Antes um misterioso personagem da história bretã, Artur logo se tornou um dos personagens favoritos da literatura de ficção, principalmente a partir de Geoffrey de Monmouth e Chrétien de Troyes no século XII. No século XV, a presença de Artur na literatura se consolidou com a publicação de Le Morte D’Arthur, de Sir Thomas Malory, autor que certamente influenciou o trabalho de Tennyson quatro séculos mais tarde.

Após um período de pouca presença do Rei Artur e demais personagens de sua corte na literatura e outras manifestações artísticas, o século XIX viu surgir uma renovação de interesse na Idade Média, o chamado Medieval Revival (CHANDLER, 1970). Através desse movimento, parte do movimento romântico na literatura inglesa de fins do século XVIII e início do XIX, personagens medievais – reais ou fictícios – foram resgatados por escritores, poetas, pintores e outros artistas, como os integrantes da Irmandade Pré-Rafaelita e o poeta Alfred Tennyson. E, por fim, os séculos XX e XXI levaram o Rei Artur e seus cavaleiros para diversas mídias, como o cinema, a televisão e video games, além de propor novas interpretações e adaptações revisionistas de antigas lendas.

Chegando ao final de nossa jornada com o Rei Artur através dos séculos, é possível identificar o grande impacto dessas lendas na literatura e produção artística como um todo, desde o século IX até os dias de hoje. Mesmo tendo surgido há mais de mil anos, essas lendas ainda tocam o leitor, que século após século confere novas leituras às velhas histórias, adicionando novas camadas de significado que tornam esse imenso legado cultural ainda mais rico.

Referências:

ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 265.
BORGES, Jorge Luís. Esse ofício do verso. São Paulo: Editora Schwarcz, 2000.
BURROW, J. A. The fourteenth-century Arthur. In: ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 69-83.
CHANDLER, Alice. A Dream of Order: The Medieval Ideal in Nineteenth-Century English Literature. Lincoln: University of Nebraska Press, 1970.
GOSSEDGE, Rob; KNIGHT, Stephen. The Arthur of the sixteenth to nineteenth centuries. In: ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 103-119.
HUTTON, Ronald. The early Arthur: history and myth. In: ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 21-35.
LACY, Norris. The Arthur of the twentieth and twenty-first centuries. In: ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 120-135.
LAMBDIN, Laura C.; LAMBDIN, Robert T. Camelot in the Nineteenth Century: Arthurian Characters in the Poems of Tennyson, Arnold, Morris, and Swinburne. Londres: Greenwood Press, 2000.
PUTTER, Ad. The twelfth-century Arthur. In: ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 36-52.
TAYLOR, Jane H. M. The thirteenth-century Arthur. In: ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 53-68.
WINDEATT, Barry. The fifteenth-century Arthur. In: ARCHIBALD, Elizabeth; PUTTER, Ad. The Cambridge Companion to the Arthurian Legend. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 84-102.

Fonte: MOURA, Fernanda Karovsky. O Rei Artur através dos séculos: uma trajetória das lendas arturianas. Revista Entrelaces, v. 1, n. 10, jul/dez 2017, p. 22-34. 







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