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Leandro Vilar

domingo, 28 de julho de 2024

Os séculos da Era Viking (VIII-XI)

Era Viking consiste num conceito historiográfico desenvolvido a partir do século XIX para se referir ao período em que os nórdicos empreenderam suas expedições, invasões, conquistas, descobrimentos e até a fundação de reinos. Esse período normalmente é definido como tendo ocorrido entre os séculos VIII e XI, embora a historiografia britânica opte pelas datas de 793 a 1066, baseada em acontecimentos ocorridos em seu território. 

Entretanto, por mais que a Era Viking tenha durado mais de trezentos anos, porém, nem todo século foi igual ao outro, cada um foi marcado por acontecimentos centrais que lhe concedem características específicas, assim como, os torna diferente um do outro. Dessa forma, pensar a Era Viking é saber que as ações dos vikings foram mudando com o tempo, à medida que suas sociedades e governos se desenvolviam, como sua cultura também se alterava. 

Século VIII: o início das expedições

Tradicionalmente a data para o início da Era Viking é demarcada em 793, quando um ataque viking saqueou o Mosteiro de Lindisfarne na Nortúmbria (nordeste da Inglaterra). O ataque até foi relatado nas Crônicas Anglo-Saxônicas. Dizendo que: 

"793: neste ano apareceram presságios terríveis na Nortúmbria, que assustaram muito as pessoas. Consistiam em imensos torvelinhos e relâmpagos, e viam-se dragões chamejantes voando pelo ar. Aqueles sinais foram imediatamente seguidos por uma época de grande fome, e pouco depois, em 8 de junho do mesmo, ano os homens pagãos destruíram a igreja de Deus em Lindisfarne, saqueando e matando". (PRICE, 2006, p. 122). 

Ilustração representando o ataque viking de 793 ao Mosteiro de Lindisfarne. 

O autor do relato interpretou o ataque a Lindisfarne como parte de uma série de maus presságios que acometiam os reinos anglo-saxões. De qualquer forma, após esse ataque, outros se sucederam seguidamente até 800, depois houve intervalo entre eles. Além disso, ataques pontuais também ocorreram na Escócia, Irlanda e na França. No entanto, o contato dos vikings com esses povos não começou em 793 como já foi pensado anteriormente. (HAYWOOD, 1995). 

Os dinamarqueses possuíam relações comerciais com os reinos anglo-saxões e a Frísia desde o o final do século VII, pelo menos. Os suecos possuíam uma rede mercante pelo Mar Báltico, conectando-os a portos dos eslavos, finos e ru's. Condição essa que achados arqueológicos na ilha de Gotland, mostram moedas oriundas de distintas localidades, inclusive moedas islâmicas. Por conta disso, alguns arqueólogos e historiadores consideram que a Era Viking teria se iniciado antes de 793. Alguns sugerem remontar esse período até 750, quando encontramos a presença nórdica em Staraya Ladoga, um entreposto comercial próximo ao lago Ladoga (atual território russo). (PRICE, 2006). 

"Do final do século IX até dentro do X, a região de Ládoga foi sendo gradualmente colonizada por suecos, sempre em boas relações com a população nativa, provavelmente finlandesa, que eles encontraram já ali fixada. Só nestas condições puderam  expandir-se com segurança, como fizeram no século X, provavelmente a partir de Staraja Ládoga, par toda a região a Sudoeste do lago Ládoga". (ARBMAN, 1971, p. 103).

Mapa destacando a rota de Staraya Ladoga a Novgorod, duas cidades mercantes e contou com a presença nórdica. 

Dessa forma, o início das expedições da Era Viking foram uma mistura de viagens mercantes com alguns assaltos pontuais, já que a onda de ataques vikings somente se desenvolveu propriamente no século IX e diferente do que se pensa, não foi motivada por invernos rigorosos, excesso populacional e fome, pois tais invasões não ocorriam anualmente, havendo décadas que nada ocorriam. Sem contar que a maior parte dos ataques vikings começaram na década de 840. Ora, se houvesse uma forte crise econômica e alimentar nas terras nórdicas (como já foi alegado) em fins do VIII, por que os nórdicos teriam demorado quarenta anos para agir? 

Século IX: a era das invasões

Foi no século IX em que as invasões tiveram propriamente início, expandindo-se por várias localidades da Europa, apesar que a maior parte dos ataques se concentraram na Inglaterra e na França. Mas esse período não marcou apenas as expedições vikings, mas também inclui a conquista de territórios e a formação de núcleos coloniais, por conta disso, é visto como uma época de expansão territorial, política e econômica. 

A região da Frísia, hoje compreendida entre os territórios da Holanda e da Alemanha, no século IX, fazia parte do Império Carolíngio de Carlos Magno. Era um território conhecido por seus portos e cidades mercantes, condição essa que desde o século anterior, os anglo-saxões, germânicos e dinamarqueses mantinham negócios na Frísia. Logo, com o crescimento nas expedições vikings, a Frísia era um alvo em potencial, condição essa que os ataques entre 800 e 814 se intensificaram, levando o rei Luís, o Pio a negociar acordos para evitar novas invasões, dando início ao pagamento do danegeld, uma taxa de extorsão cobrada geralmente em prata ou ouro (embora pudesse incluir outros produtos também). Assim, Luís, o Pio conseguiu amenizar novos atos de saque no norte de seu império por algum tempo, até que na década de 840 a situação se complicou, havendo vários ataques a cidades. (HAYWOOD, 1995). 

"O número de navios aumenta: a torrente interminável de vikings parece não parar. Por toda a parte os cristãos são vítimas de suas chacinas, incêndios e espoliações. Os Vikings, no seu caminho, tomam tudo e ninguém lhes resiste: apoderam-se de Bordéus, Périgueux, Limoges, Angoulème e Toulouse. Angers, Tours e Orleãs são aniquiladas e uma esquadra numerosa sobre o Sena e o perigo torna-se mais intenso em toda aquela região. Ruão perde-se, saqueada. Paris, Beavauis e Meaux são tomadas, a resistente fortaleza de Melun é arrasada, Chartres ocupada, Evreux e Bayeux são saqueadas e todas as cidades sitiadas. Raras são as cidades e os mosteiros que escapam: toda a gente foge e poucos ousam dizer - ficai e lutai pelas nossas terras, pelas nossas crianças, pelos nossos lares! Na sua inconsciência, preocupados com rivalidades, resgatam com tributos o que deveriam defender com a espada, e fazem perigar o reino dos cristãos". (ARBMAN, 1971, p. 87).

Na década de 850 a cidade de Paris passou a ser alvo de incursões vikings. Por sua vez, várias outras localidades ao longo do rio Sena também eram atacadas. As expedições vikings seguiram assolando a França até o século X. Mesmo vários reis tendo pago o danegeld ao longo de anos, isso nunca pôs fim a vinda dos vikings durante o século IX. 

Nas primeiras décadas do IX, a Escócia e a Irlanda foram alvos de várias incursões vikings ao seu litoral, cujos alvos eram principalmente mosteiros, igrejas e fazendas, eventualmente alguns pequenos portos e vilarejos pesqueiros. Entretanto, os vikings diferente da Inglaterra e da França, neste momento, não procuraram adentrar o interior dos territórios escocês e irlandês, optando em permanecer nas ilhas e na costa. Porém, por volta da década de 820, alguns grupos começaram a decidir fundar colônias nas ilhas escocesas dos arquipélagos das Hébridas, Órcades e Shetlands, já que algumas eram desabitadas ou parcialmente habitadas. Por essa época a ilha de Mann também foi invadida e começou a receber assentamentos nórdicos. No caso da Irlanda, as invasões perduraram até a década de 830. (HAYWOOD, 1995). 

"Na Irlanda, havia mais que o suficiente para atrair os vikings. As maiores concentrações de colônias eram grandes mosteiros complexos, às vezes, denominados de "cidades", que estavam situados no meio de uma paisagem de fazendas dispersas. Outros centros de riqueza importantes se encontravam em ilhas feitas pelos homens nos terrenos pantanosos". (BATEV, 2006, p. 160).

A realidade irlandesa começou a mudar na década de 830 quando se estabeleceram acampamentos de inverno (longphorts) e finalmente Dublin foi fundada em 841. Neste caso, houve uma redução nos assaltos marítimos, mas não nos conflitos, pois a partir de Dublin, incursões terrestres começaram a serem promovidas para os arredores e o interior. A cidade de Dublin se tornou em poucos anos um entreposto comercial importante e próspero, o que levou a disputa de seu controle por vários líderes ao longo de dois séculos. 

Entre as décadas de 830 a 860 se intensificaram as invasões ao território inglês, ocorrendo quase que anualmente e promovido por diferentes chefes e bandos, os quais atacavam diferentes localidades da costa oriental, durante os meses de primavera e verão e as vezes até de outono. Todavia, os ataques não ia para além do outono, pois não era seguro viajar no inverno. Entretanto, a realidade mudou em 850, quando um acampamento de inverno foi montado na ilha Yhanet, na foz do rio Tâmisa, levando alguns grupos posteriormente a adotarem essa prática. Ao invés de retornarem para seus lares antes da chegada do inverno, eles permaneciam o mesmo em solo inglês, saqueando, e depois na primavera iam embora. (OLIVEIRA, 2018a). 

"Durante 15 anos (até 865) os ataques regulares continuaram, e nesse ano se faz referência pela primeira vez ao pagamento de danegeld, um termo empregado para descrever uma soma que os escandinavos exigiam dos ingleses como dinheiro de proteção, mediante o pagamento do qual deixariam em paz a população. Os vikings tinham descoberto que a extorsão era potencialmente mais lucrativa que a luta, e menos arriscada". (PRICE, 2006, p. 125).

No entanto, a realidade inglesa mudou drasticamente a partir do ano seguinte, quando ocorreu a invasão do "grande exército pagão" (micel here), uma força invasora de contingente desconhecido, formado por vários grupos, que invadiram a Ânglia Oriental em 866 e passaram os anos seguintes conquistando territórios. A missão não era apenas o saque, mas tomar controle de portos, cidades, vilas e fazendas. Por conta disso, o "grande exército" se desdobrou em várias frentes de batalha e lideranças, conquistando territórios dos reinos da Ânglia Oriental, Nortúmbria e Mércia, foram subjugados, restando Wessex como último reino anglo-saxão a resistir devido a um acordo firmado em 878 entre o rei Alfredo, o Grande e o chefe Gudrun, o Velho. (OLIVEIRA, 2018a). 

Assim, em 878 as batalhas contínuas, iniciadas em 866 com a invasão do "grande exército pagão", cessaram-se, o resultado foi catastrófico para os reinos anglo-saxões, os quais passaram a englobar um território ocupado e governado por lideranças dinamarquesas e norueguesas, que os ingleses vieram a chamar de Danelaw. Uma região dividida entre o Reino de York (no norte), os Cinco Burgos (no centro) e o Reino Dinamarquês da Ânglia Oriental (no sul). Esses territórios foram disputados ao longo de duzentos anos, somente sendo recuperados pelos ingleses efetivamente no século XI. Dessa forma, a formação do Danelaw na Inglaterra encerrou as invasões vikings, mas não os conflitos, pois disputas por terras e o governo continuavam, além de batalhas entre chefes e ataques para tentar se conquistar o Reino de Wessex. (HADLEY, 2008). 

Divisão geopolítica da Inglaterra em 878. 

As décadas de 840 e 850 também foram marcadas pelos ataques vikings em Portugal e Espanha. Cidades como Lisboa, Cádiz e Sevilha foram saqueadas pelo menos duas vezes, além de que outras cidades e vilas foram assaltadas durante essas duas décadas e até mesmo mais tardiamente já no século X, quando os ataques vikings já tinham entrado em declínio total. Todavia, o caso da Península Ibérica assemelha-se ao da França, pois em ambos os territórios os vikings optaram apenas em permanecer pouco tempo, realizando seus assaltos, diferente da Inglaterra, Escócia e Irlanda, onde colônias foram fundadas. (PIRES, 2017). 

Além dos ataques realizados a Portugal e Espanha, os vikings ainda chegaram a atacar o sul da França, algumas localidades da Itália, passaram pela Grécia e se dirigiram a Constantinopla. O norte da África, onde hoje é o Marrocos também foi atacado brevemente. Outro acontecimento de destaque foi a expedição de Bjorn, Flanco de Ferro e Hastein entre 859 e 861, que saqueou algumas localidades da Península Ibérica e percorreu o Mediterrâneo. Todavia, não se sabe a rota que foi tomada nesse mar. (PIRES, 2017). 

Mas no tocante ao leste europeu, as incursões seguiam a partir do Mar Báltico indo para cidades como Staraya Ladoga e Novgorodadentrando o que hoje são a Estônia, Rússia e Polônia, descendo pelos rios como Dniepre e o Danúbio, atravessando os atuais territórios da Romênia, Ucrânia e Hungria até chegar ao Mar Negro. De onde seguiam para a Constantinopla (atual Istambul), então capital do Império Bizantino. O leste europeu era habitado por eslavos e ru's, sendo dividido num aglomerado de principados chamados de Rússia de Kiev. Nessa região os vikings não fundaram colônias, mas procuraram se unir aos eslavos e ru's. (HAYWOOD, 1995). 

"As expedições do Suecos para o Oriente foram muito diferentes das dos Noruegueses e Dinamarqueses no Ocidente. Estes navegavam no mar alto, enfrentando reinos organizados, apesar de desunidos. A riqueza dos países estava concentrada, o que constituía um estímulo e facilitava a pilhagem. Para leste os Suecos tiveram que seguir pelo curso dos rios, através de extensas regiões habitadas apenas por tribos finlandesas e eslavas, antes de contactar com os Árabes e o Império Bizantino. A riqueza disponível era os recursos naturais de peles e escravos, que podiam ser comerciados com o Oriente. Mais, tarde, os Suecos recorreram com êxito ao lançamento de impostos sobre a população nativa e no século X houve alguns actos de pirataria do tipo dos do Ocidente". (ARBMAN, 1971, p. 98).

Rotas de viagem pela Europa central e oriental, e por parte do Oriente Médio. Em roxo a rota mais comum utilizada pelos vikings para ir do norte até Constantinopla. Já em vermelho a rota do Volga até o Mar Cáspio.

Os vikings até tentaram invadir Constantinopla em três ocasiões, mas seu cinturão de muralhas eram intransponível na época, o que os levou a optarem pela via do comércio e de se tornarem mercenários, aderindo principalmente a Guarda Varenga instituída pelos imperadores bizantinos. Além disso, a partir do serviço prestado aos bizantinos, alguns vikings eram enviados a campanhas pelo Balcãs, Grécia, Sicília e até outras localidades do império. (HAYWOOD, 1995). 

Também se sabe que alguns grupos optavam em fazer incursões através do rio Volga na Rússia, descendo até o Mar Cáspio, em direção ao território dos cazares. Foi nessa região que o embaixador árabe Ahmed ibn Fadlan, no século IX, conheceu um grupo de vikings e relatou sobre esse encontro. Quando a embaixada árabe chegou a região, o funeral de um chefe viking ocorria, Ahmed e seus companheiros acharam aquilo bastante estranho, já que tinham os vikings como sendo um povo bárbaro. Não se sabe até onde os ataques no Oriente Médio chegaram e se comerciantes nórdicos chegaram a viajar para outras cidades da região, como Bagdá. (PRICE, 2006). 

Século X: o surgimento dos reinos unificados

Reinos já existiam na Escandinávia desde o começo da Idade Média pelo menos, já que informações históricas antes do século VI d.C, são difíceis de serem apuradas. Condição essa que os atuais territórios da Dinamarca, Noruega e Suécia por muito tempo foram divididos em pequenos reinos, mas a realidade somente começou a mudar propriamente falando no século X, apesar que no caso dinamarquês houve tentativas ainda no IX de tentar unificar a região. 

No caso da Noruega, o território era dividido em pequenos reinos, a unificação também foi um processo demorado, e diferente da Dinamarca, foi mais violento. Ainda no século IX, o jarl Haldano, o Negro (c. 810 - c. 860) iniciou algumas campanhas para conquistar um reino para si, especialmente nas terras do Folde Ocidental. Com sua morte em batalha, ele foi sucedido por seu filho Haroldo Cabelo Belo (c. 850-943), o qual tomou para si a missão de se tornar o único rei da Noruega, ou seja, subjugando os outros reis e jarls ao seu domínio. Assim, Haroldo iniciou uma série de campanhas militares, além de acordos políticos e econômicos para ganhar aliados. 

A Batalha do Fiorde de Hafrs (872) marcou a grande vitória de Haroldo, pois depois dessa ele se proclamou único rei da Noruega, sendo reconhecido por alguns jarls, apesar de ainda ter opositores que não reconheciam a legitimidade dele como soberano. Com isso, ele iniciou uma série de perseguições contra seus opositores, em que parte deles migraram para a Islândia. 

Todavia, a Noruega não se unificou de imediato, pois além dos opositores do rei Haroldo Cabelo Belo, ele como teve muitos filhos, concedeu pequenos reinos aos mesmos. Somente no ano de 930 ele designou seu filho Érico Machado Sangrento (c. 855-954) como herdeiro principal e senhor de toda a Noruega. Todavia, devido ao caráter impulsivo e violento de Érico, ele enfrentou uma rebelião dos seus vassalos que o levaram a ser deposto em 934, mudando-se mais tarde para a Inglaterra, indo disputar o Reino de York. No caso, Érico nunca mais voltou a governar a Noruega, sendo sucedido por seu irmão Haakon, o Bom (c. 920-961), o qual efetivamente assegurou a unificação do território norueguês e iniciou sua cristianização. Todavia, após sua morte, seu sobrinho Haroldo Manto Cinza (c. 935-970) se tornou rei, mas teve seu domínio contestado por Haroldo Dente Azul da Dinamarca e nos anos seguintes, os noruegueses perderam parte de seu território. 

Localização do Reino da Noruega, incluindo a Islândia. 

Na Dinamarca o rei Gorm, o Velho (c. 900-958) conseguiu unificar seu domínio sobre a Jutlândia, a porção continental da Dinamarca, apesar que as ilhas ainda estivessem foram de seu controle pleno, sendo governadas por jarls. Gorm mudou sua sede de governo para Jelling, onde mandou erguer a pedra rúnica de Jelling 1, pequeno monumento que apresenta o nome de Gorm e de sua esposa Thyra, como legítimos soberanos da Dinamarca. A importância dessa pedra rúnica consiste na condição de que percebemos o território dinamarquês já refernciado como um reino propriamente falando. Pois em momento algum ele diz ser governante de determinada região, mas proclama-se como senhor de um país. (OLIVEIRA, 2018b). 

Frente da pedra rúnica Jelling I, na Dinamarca. 

Gorm, o Velho foi sucedido por seu filho Haroldo Gormson (c. 935-985), conhecido também pelo seu epíteto de Dente Azul. Os historiadores costumam considerar que a Dinamarca foi efetivamente unificada durante o reinado de Haroldo, o qual governou de 958 a 986, durante seu governo ele realizou várias reformas políticas no país como mando construir fortes para protegê-lo, construir estradas, portos e muros. Haroldo por ser cristão, também investiu na difusão do cristianismo e permitiu a construção de igrejas, além disso, ele incentivou o comércio e expandiu seu domínio sobre as ilhas dinamarquesas e depois sobre o sul da Noruega e o sul da Dinamarca, região disputada com os alemães, condição essa que na pedra rúnica de Jelling 2, ele se apresentava como rei cristão da Dinamarca e da Noruega. (OLIVEIRA, 2018b). 

Haroldo Dente Azul acabou sofrendo um golpe de estado executado pelo seu filho Sueno Barba-Bifurcada, que o levou ao exílio e depois a ser assassinato. Apesar da sua morte, Sueno e seus descendentes asseguraram a Dinamarca como um reino unificado e o primeiro reino escandinavo a aderir ao cristianismo como religião oficial. 

O caso da Suécia também foi problemático, sendo mais parecido com o norueguês, pois o território não foi unificado de imediato. O território sueco do século X estava dividido nos reinos do Suíones e do Götas, por sua vez, a ilha de Gotland e Öland eram administrados por uma aristocracia mercante, não obstante, terras ao norte do Reino dos Suíones eram controladas por jarls, e mais além tínhamos os domínios dos povos sámis

A Suécia no século X. Em amarelo o reino dos suíones, em azul o reino dos götas e em verde a ilha de Gotland. 

A unificação da Suécia foi pretendida pelo rei Érico VI, o Vitorioso (c. 945 - c. 995), o qual governava o reino dos suíones, mas proclamou-se senhor de uma Suécia unida. Na prática ele não obtive a unificação, mas iniciou tais tentativas, assim como, reconheceu o cristianismo como religião oficial do seu reino. Érico foi sucedido por seu filho Olavo, o Tesoureiro (c. 980 - c. 1022), o qual deu continuidade aos planos de unificação do pai e até passou a cunhar moedas com sua efígie, representando-o como soberano da Suécia. Foi durante seu reinado que sua influência sobre a Gotälândia começou a ficar mais perceptível, sugerindo que o reino dos Götas estava sendo anexado. Olavo foi sucedido por seu filho Anundo Jacó (c. 1007-1050) que deu seguimento ao processo de cristianização do país e a consolidação de seus domínios, englobando o antigo reino dos götas, apesar que a região da Escânia foi perdida para os dinamarqueses e Gotland mantinha-se autônoma. Além disso, algumas terras ao norte também continuavam a serem governadas por jarls. Embora a unificação da Suécia somente concretizou-se no século XII, ainda assim, o processo já estava bem adiantado. 

O século X para além do surgimento dos reinos escandinavos também contou com a consolidação de outros territórios. Por exemplo, graças ao acordo entre Rollo, o Viajante e o rei Carlos III, o Simples para pôr fim aos ataques vikings na França, o monarca concedeu a Rollo o Condado da Normandia, no noroeste do país. Mais tarde o condado se tornou um ducado, sendo povoado inicialmente por famílias dinamarquesas e norueguesas que acabaram se misturando aos francos, originando os normandos. 

A Islândia acentuou seu processo de colonização iniciado no final do IX. A Groenlândia começou a ser colonizada na década de 980 por iniciativa de Érico, o Vermelho. No leste europeu descendentes de nórdicos tomaram o controle do Principado de Novgorod, culminando na ascensão do príncipe Vladimir I (c. 958-1015) como senhor de Novgorod e depois grão-príncipe de Kiev, sendo responsável por cristianizar aquele reino. (PRICE, 2006). 

Século XI: a guerra dos reis

O último século da Era Viking foi caracterizado pelo fim das expedições de navegação, sendo a maior de todas a chegada a costa oriental do Canadá a partir da Groenlândia. Tais terras foram chamadas de Helluland (Terra das Pedras Planas), Markland (Terra da Floresta) e Vinland (Terra das Vinhas). As expedições promovidas por Leif Ericson e seus parentes e outros colonos, ocorreram entre os anos de 1000 e 1015, apesar que o contato entre nórdicos e nativos norte-americanos ainda se manteve por bem mais tempo como atestam achados arqueológicos, sendo o mais significativo o assentamento do sítio L'Anse Meadoux, situado no norte da ilha de Terra Nova, considerada como sendo parte de Vinland. (GRAHAM-CAMBPELL, 2006). 

Entretanto, as viagens a Vinland não receberam destaque na época que foram realizadas, somente sendo mencionadas na literatura mais de cem anos depois, além de que não houve um interesse em colonizar aquelas terras efetivamente, como foi o caso de outras localidades. Sendo assim, o século XI foi marcado pelas guerras travadas por reis nórdicos e de nações vizinhas. É um período que houve o surgimento de impérios e até mesmo a troca de monarcas em poucos anos, assim como, dinastias e príncipes se digladiavam para assumir o trono. 

O primeiro grande conflito que marcou o século XI, foi a disputa pela Inglaterra. A partir do ano 1013 o rei Sueno Barba Bifurcada da Dinamarca (963-1014), invadiu o reino inglês para conquistá-lo. Sueno anos antes já havia enviado tropas para atacar os ingleses, mas uma campanha de conquista propriamente falando nunca tinha ocorrido, porém, naquele ano de 1013 ele decidiu mudar isso. Na época o então monarca inglês era Etelredo II, o Despreparado (c. 968-1016), o qual diante da chegada do exército dinamarquês, abandonou a Inglaterra, indo refugiar-se no Ducado da Normandia, onde possuía parentes. Sua fuga lhe rendeu a alcunha de o "despreparado". (ROACH, 2016). 

Assim, a Inglaterra ficou a mercê do exército invasor, apesar que alguns lordes ainda chegaram a combater os dinamarqueses, porém, Sueno à base de vitórias militares, ameaças, extorsão e acordos, foi reconhecido rei em 1014, entretanto, misteriosamente ele morreu naquele ano. Não se sabe ao certo a causa da sua morte, o mais provável que ele possa ter sido traído. Com a sua morte, Etelredo II retornou para o país e nomeou seu filho Edmundo II (990-1016) como regente, já que dois anos depois o filho de Sueno, o príncipe Canuto Sveinson (c. 990-1035) retornou a Inglaterra para reivindicar seu direito ao trono. (ROACH, 2016). 

Etelredo II acabou adoecendo e falecendo em abril de 1016, deixando seu filho Edmundo II na missão de confrontar Canuto, o qual após a decisiva Batalha de Assadum (18 de outubro), um acordo entre os dois governantes foi realizado. Canuto ficaria de posse das terras do Danelaw, enquanto Edmundo ficaria com Wessex. No entanto, Edmundo faleceu em novembro daquele mesmo ano, assim, Canuto convocou o conselho inglês do Witan, e foi coroado rei da Inglaterra. Era a primeira vez que o país era governado por um "rei viking". (BOLTON, 2017). 

Canuto, o Grande como ficou conhecido, passou em seguida a reinar na Dinamarca após a morte de seu irmão Haroldo II, depois iniciou os ataques para invadir a Noruega, ambicionando constituir um império. De fato, ele logrou êxito. Suas campanhas na Noruega o levaram a disputar o controle daquele reino com o rei Olavo II Haraldson (995-1030). Por volta de 1025, Olavo II e o rei Anundo Jacó da Suécia (c. 1008 - c. 1050), uniram forças para barrar o acesso dos navios ingleses e dinamarqueses ao Mar Báltico, já que a maior parte da frota dinamarquesa estava no Mar do Norte(LINDKVIST, 2008). 

A medida se devia a condição de que Canuto pretendia invadir a Noruega e a Suécia para expandir seu império, de fato, isso aconteceu, gerando batalhas que resultaram na perda do sul da Suécia, mas no caso da Noruega a situação foi pior, pois grande parte do reino foi conquistada e Olavo II fugiu para Rus, a fim de buscar apoio militar. Com a vitória sobre a Noruega em 1028, Canuto, o Grande fundava o Império do Mar do Norte(BOLTON, 2017). 

Mapa do Império do Mar do Norte fundado por Canuto, o Grande. 

O rei Anundo Jacó firmou uma acordo com Canuto para evitar novos ataques, por sua vez, em 1030 Olavo II retornou com o apoio dos rus e convocou os jarls noruegueses leais e decidiu expulsar os dinamarqueses, resultando na Batalha de Stiklestad, a qual terminou com a morte de Olavo e uma nova derrota para os noruegueses. Inclusive anos depois o falecimento de Olavo nessa batalha ganhou contornos religiosos, sendo concebida como um ato de martírio, condição essa que quase um século depois de sua morte, ele foi canonizado, tornando-se São Olavo da Noruega, o primeiro "santo viking". (LINDKVIST, 2008). 

Com a nova vitória na Noruega, Canuto assegurava seu império. Porém, em 1035 após retornar de Roma, onde foi se reunir ao papa, Canuto adoeceu no caminho, ficando gravemente doente por meses até que faleceu no outono daquele ano. Sua morte inesperada abriu uma crise de sucessão, já que o monarca possuía vários filhos. Haroldo Pé de Lebre reivindicou a Inglaterra, Canuto III (Hardacanuto) ficou com a Dinamarca, e Sueno I ficou com a Noruega. Até então parecia estar tudo resolvido, pois o império foi dividido entre os filhos, mas eles não eram os únicos governantes que reivindicaram esses reinos. (BOLTON, 2017). 

A situação inglesa e norueguesa eram mais problemáticas. Na Noruega o príncipe Magno, o Bom (c. 1024-1047), filho de Olavo II, desafiou Sueno I pelo direito ao trono, vencendo em batalha e levando ao assassinato do mesmo, assim, ele assumiu o governo. 

Por sua vez, na Inglaterra, Haroldo Pé de Lebre em teoria era o regente de seu irmão Hardacanuto, que foi reconhecido como legítimo rei inglês, mas Haroldo aproveitou-se para usurpar o poder como pudesse, entretanto, seus planos foram comprometidos por contados príncipes Eduardo e Alfredo, filhos de Ema da Normandia e Etelredo II. Os irmãos após a morte do pai, foram enviados ao exílio na Normandia, e viveram à margem do governo de Canuto, que casou-se com Ema. Dessa forma, os dois príncipes retornaram a Inglaterra com um exército e desafiaram Haroldo, levando a morte desse em 1040. Porém, o trono não passou para eles, pois legalmente ele pertencia a Hardacanuto, que finalmente foi coroado rei da Inglaterra em 1040. (ROACH, 2016). 

Ao retornar a Inglaterra para assumir o trono, Hardacanuto acabou contraindo tuberculose, o que o levou a nomear seu meio-irmão Eduardo como herdeiro. Hardacanuto faleceu em 1042, e assim Eduardo, o Confessor (c. 1003-1066) foi coroado rei da Inglaterra. Por sua vez, Magno, o Bom reivindicou para si o governo da Dinamarca, conquistando o país, já que Eduardo não tinha interesse lá. (DOUGLAS, 1964). 

Com a coroação de Eduardo, o Confessor a Inglaterra não voltaria a ser ameaçada por mais de vinte anos, por sua vez, a situação na Escandinávia era diferente. Magno, o Bom morreu de causas incertas em 1047, com cerca de 23 anos de idade. Naquela época seu direito ao trono da Noruega e da Dinamarca era contestado. Seu tio Haroldo Hardrada (1015-1066) havia reivindicado o trono da Noruega ainda em 1046, após retornar de exílio do Império Bizantino. Inicialmente um acordo de regência foi proposto, mas acredita-se que Haroldo tenha mandado assassinar o sobrinho. Assim, ele foi coroado rei da Noruega. Enquanto isso, com a morte do jovem Magno, o trono dinamarquês foi reivindicado por Sueno II, neto de Sueno I. Com a coroação dos novos monarcas, anos de paz se seguiram para seus reinos. (DOUGLAS, 1964). 

A situação se complicaria a partir da década de 1060. Na Suécia o rei Edmundo III, o Velho faleceu em 1060 sem deixar herdeiros masculinos, então seu genro Estenquilo assumiu como novo governante, porém, seu reinado durou até 1066, quando ele morreu de causas incertas, mas foi sucedido por seu filho Eric VII, no entanto, um jarl também chamado Eric VIII reivindicou o direito ao trono, iniciando uma guerra entre os dois pretensos reis, resultando na morte de ambos em 1067. No lugar deles o segundo filho de Estenquilo, Halstano foi coroado rei, mas ele vivenciou uma crise política e foi derrubado em 1070, sendo sucedido por Anundo Gardske (ou Anundo, o Ru's), governante estrangeiro que reivindicou o controle da Suécia. (LINDKVIST, 2008). 

Entretanto, não era apenas a Suécia que passava por uma crise sucessória, a Inglaterra também enfrentou isso. Eduardo, o Confessor estava velho e não teve filhos, com sua morte, Lorde Godwin, uma espécie de "chanceler" convocou o conselho do Witin, e sugeriu o nome de seu filho Haroldo como candidato a rei. Evidentemente que sua escolha foi a acatada. Neste momento, o duque Gulherme da Normandia, que era primo de Eduardo, recusou a decisão, considerando a eleição uma fraude. Então decidiu invadir a Inglaterra e reivindicar o trono, sob alegação de que Eduardo o havia escolhido como herdeiro. (DOUGLAS, 1964). 

No entanto, Haroldo II da Inglaterra teve outro problema pela frente. O rei Haroldo Hardrada da Noruega também decidiu entrar nessa disputa e invadiu o norte da Inglaterra, ocorrendo a fatídica Batalha de Stamford Bridge (25/09/1066), que resultou na vitória inglesa, mas numa dura derrota para os noruegueses, incluindo o fato de que o rei Haroldo Hardrada morreu em combate. Apesar da vitória, Haroldo II ainda tinha os normandos pela frente, então ele marchou com seu exército para o sul, indo confrontá-los na Batalha de Hastings (14/10/1066), a qual resultou na morte do rei inglês e na derrota de seu exército. Guilherme acabou sendo reconhecido pelo Witin como monarca de direito, tornando-se o rei Guilherme, o Conquistador (c. 1028-1087), iniciando um reinado de vinte anos. (DOUGLAS, 1964). 

Sob os governos dos reis Guilherme I e Guilherme II, a Inglaterra não enfrentou grandes ameaças estrangeiras, consolidando sua paz e unidade. Na Noruega os filhos de Haroldo herdaram o trono, primeiro Magno II, que governou de 1066 a 1069, quando adoeceu e morreu aos 21 anos, sendo sucedido por seu irmão Olavo III, o Pacífico (1050-1093), que teve um reinado de mais de vinte anos, todavia, ele assegurou a paz no país. Na Dinamarca não houve problemas significativos e nem guerras reais, o maior incidente ocorreu com o rei Canuto IV (c. 1043-1086), que tentou invadir a Inglaterra, mas foi traído por seu povo que se revoltou com a ideia, então o mataram. Por fim, na Suécia o filho caçula de Estenquilo, o rei Ingo I (c. 1040-1110) governou de 1079 a 1084 quando foi deposto num golpe de Estado, sendo sucedido por Sueno, que governou por três anos quando foi assassinado, permitindo Ingo I reassumir o trono. (DOUGLAS, 1964). 

Dessa forma, a Inglaterra e os reinos escandinavos entraram em paz. Já a Islândia, essa rompeu com o domínio norueguês no começo do século XI, constituindo-se num governo aristocrata. A Groenlândia mantinha-se como uma colônia rural e de pescadores; o Reino de Dublin na Irlanda vivenciou uma série de disputas no século XI. Após a morte de Sithric II, Barba de Seda em 1036, o pequeno reino entrou numa crise política que perdurou até 1052, quando Murchad mac Diarmata subiu ao trono e instaurou a ordem por vinte e dois anos, mas após sua morte, crises reais continuaram nas décadas seguintes, em que os reis governavam poucos anos. Já as ilhas escocesas, essas eram governadas por diferentes jarls, até que foram unificadas em 1079 tornando-se o Reino de Mann e das Ilhas (1079-1266) perdurando por mais de duzentos anos, sobrevivendo o fim da Era Viking. (GRAHAM-CAMBPELL, 2006). 

Todavia, o século XI embora tenha sido marcado pela guerra dos reis como foi visto, ele também foi o período de consolidação do cristianismo em grande parte da Escandinávia. A Islândia reconheceu oficialmente a fé cristã por volta do ano 1000. A Groenlândia fez isso pouco tempo depois. Os reinos da Dinamarca e da Noruega já eram cristãos desde o século X, embora seus reis voltaram a legitimar isso. O caso mais emblemático era a Suécia, pois nem todo o território sueco estava unificado ainda, algo somente que ocorreu no século XII, apesar disso, no século XI, a Suécia já contava com dois bispados, mostrando como a cristianização estava avançada no país. Os territórios nórdicos na Irlanda e na Escócia também já estavam cristianizados. (LINDKVIST, 2008). 

Outro aspecto a ser mencionado em referência ao século XI, foi a proliferação de pedras rúnicas, monumentos comemorativos surgidos no século V, mas que se tornaram uma "moda" na Suécia no final da Era Viking, sendo esculpidos mais de dois e quinhentos deles só em território sueco. Já que a Dinamarca e a Noruega possuem juntos, menos de trezentas pedras rúnicas. Esses monumentos eram principalmente dedicados aos mortos, contendo simbolismo religioso pagão e cristão. (SAWYER, 2006). 

NOTA: A série Vikings (2013-2020) retrata alguns acontecimentos históricos dos séculos VIII, IX e X, mas de forma anacrônica. 

NOTA 2: A série The Last Kingdom (2015-2022) centra-se nos acontecimentos que antecedem o surgimento do Danelaw e seu começo. 

NOTA 3: O jogo Assassin's Creed Valhalla (2020) traz algumas referências a grande invasão viking da Inglaterra. 

NOTA 4: A séria Vikings Valhalla (2022-2024) apresenta alguns acontecimentos históricos do século XI, mas de forma anacrônica. 

Referências bibliográficas:

ARBMAN, Holger. Os Vikings. Tradução de Jerônimo Ludovice. São Paulo, Editora Verbo, 1971. (Coleção História Mundi).

BATEV, Collen. O mundo celtaIn: GRAHAM-CAMPBELL, James (org.). Os Vikings. Barcelona, Ediciones Folio, S.A, 2006. 

BOLTON, Timothy. Cnut the Great. New Haven/London: Yale University Press, 2017.

GRAHAM-CAMPBELL, James (org.). Os Vikings. Barcelona, Ediciones Folio, S.A, 2006. (Coleção Grandes civlizações do passado).

DOUGLAS, David C. William the Conqueror: The Norman Impact Upon England. Berkeley: University of California Press, 1964. 

HADLEYDawn M. The Creation of Danelaw. In: BRINK, Stefan (ed.). The Viking World. London/New York: Routledge, 2008, p. 375-378.

HAYWOOD, John. The Penguin Historical Atlas of the Vikings. London, Penguin, 1995. 

LINDKVIST, Thomas. Kings and provinces in Sweden. In: HELLE, Knut (ed.). The Cambridge History of Scandinavia, vol. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 221-236. 2v

OLIVEIRA, Leandro Vilar. Grande armada danesa (866-878). In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de história e cultura da Era Viking. São Paulo, Hedra, 2018a, p. 323-325. 

OLIVEIRA, Leandro Vilar. Haroldo Dente Azul (Haraldr Gormson). In: LANGER, Johnni (org.). Dicionário de história e cultura da Era Viking. São Paulo, Hedra, 2018b, p. 356-358. 

PIRES, Hélio. Os vikings em Portugal e na Galiza. Sintra, Zéfiro, 2017. 

PRICE, Niel S. A Europa Ocidental. In: GRAHAM-CAMPBELL, James (org.). Os Vikings. Barcelona, Ediciones Folio, S.A, 2006. (Capítulo 7).

ROACH, Levi. Æthelred the Unready. New Haven, Connecticut: Yale University Press, 2016. 

SAWYER, Birgit. The Viking-age rune-stones: custom and commemoration in early medieval Scandinavia. Oxford: Oxford University Press, 2000.

Links relacionados: 

A saga viking

A grande invasão viking à Inglaterra (866-878)

Vinland: A "América Viking"

Pedras rúnicas: preservando os feitos dos vikings

terça-feira, 16 de julho de 2024

A lenda do Rei Artur

O rei Artur é um dos personagens lendários mais conhecidos da Inglaterra e do mundo, tendo se popularizado desde o período medieval. Além dele, vários outros personagens de suas histórias também ganharam destaque, além de que diferentes narrativas foram escritas sobre esse lendário monarca, perfazendo o chamado Ciclo Arturiano ou Matéria da Bretanha, que, por sua vez, influenciou artistas diversos a fazerem pinturas, esculturas, músicas, romances, poemas, filmes, jogos etc. sobre Artur, Camelot e os Cavaleiros da Távola Redonda. O presente texto conta alguns aspectos das fontes medievais sobre essa lenda, em que época supostamente Artur teria vivido, e alguns aspectos principais das suas narrativas e até algumas adaptações famosas sobre sua lenda. 

Capa do livro The Boy's King Arthur (1922).
 
Fontes medievais mais antigas (IX-XI)

As fontes medievais sobre o Rei Artur englobam uma variedade de gêneros literários: crônicas, anais, romances, contos e poemas, os quais foram redigidos ao longo de mais de trezentos anos, principalmente na Inglaterra e na França, os dois países onde tais narrativas se popularizaram inicialmente. Por conta dessa diversidade de fontes e autores, os literatos mais tarde criaram o conceito de Ciclo Arturiano para se referir as várias fontes e versões da lenda do Rei Artur. Entretanto, vejamos algumas das fontes da Idade Média mais significativas.

A primeira a se destacar é o livro Historia Brittonum (História dos Bretões), escrito possívelmente pelo monge galês Nênio nas primeiras décadas do século IX, apesar de haver incertezas quanto a sua autoria. Essa obra trata-se de uma crônica histórica cuja proposta era apresentar algumas batalhas famosas travadas na Bretanha, entre o final da dominação romana no século V até o século VII, época das invasões dos saxões. Foi nesse período que a crônica menciona a bravura de um tal rei chamado Artur. Sendo a fonte mais antiga a mencionar esse monarca, a qual narra o seguinte: 

"Foi então que o magnânimo Artur, com todos os reis e força militar da Grã-Bretanha, lutou contra os saxões. E embora houvesse muitos mais nobres do que ele, ele foi escolhido doze vezes como seu comandante e com a mesma frequência foi conquistador. A primeira batalha em que travou foi na foz do rio Gleni. A segunda, terceira, quarta e quinta, ficavam em outro rio, chamado pelos britânicos de Duglas, na região de Linuis. A sexta, no rio Bassas. A sétima na floresta Celidon, que os bretões chamam de Cat Coit Celidon. A oitava foi perto do castelo Gurnion, onde Artur carregava a imagem da Santa Virgem, mãe de Deus, sobre seus ombros, e através do poder de nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Maria, colocou os saxões em fuga e os perseguiu o dia inteiro com grande matança. A nona foi na Cidade da Legião, chamada Cair Lion. A décima ficava às margens do rio Trat Treuroit. A décima primeira foi na Montanha Breguoin, que chamamos de Cat Bregion. A décima segunda foi uma disputa muito severa, quando Artur penetrou na Colina de Badon. Nesse combate, novecentos e quarenta caíram apenas pelas suas mãos, ninguém além do Senhor lhe deu assistência. Em todos esses combates os bretões tiveram sucesso. Pois nenhuma força pode ser usada contra a vontade do Todo-Poderoso". (Historia Brittonum, tradução minha). 

O relato de Nênio nos apresenta Artur como um formidável rei que confrontou os saxões, vencendo-os em doze batalhas, sendo a última a qual ele se destacou mais, tendo sozinho matado 960 inimigos. Além das façanhas militares atribuídas a esse rei, a crônica também destaca o fato de ele ser um cristão devoto e graças a isso, foi abençoado por Deus com as vitórias em batalha. 

Apesar de sua pretensão histórica, hoje sabe-se que boa parte do livro apresenta acontecimentos lendários, logo, a ideia de que Artur teria sido um rei bretão que viveu entre os séculos V e VI, herdado costumes romanos, apesar de atrativa, é posta totalmente em dúvida devido a falta de informações do período, já que o autor desse livro consultou obras mais antigas, as quais nada comentam sobre Artur, mas isso será abordado novamente mais adiante. 

A segunda obra mais antiga a mencionar Artur são os Annales Cambriae (Anais de Gales), redigido no século X, o qual informa acontecimentos político-militares importantes da Bretanha e do País de Gales, ocorridos entre 450 d.C e 950 d.C, o que demonstra que esse livro foi escrito perto do final do século X. De qualquer forma, a obra assinala que o rei Artur viveu entre os séculos V e VI, apontando duas batalhas em que ele esteve envolvido: A Batalha do Monte Badon (516), marcando grande vitória de Artur contra os saxões, inclusive o relato diz que o rei carregou uma cruz no campo de batalha, algo que enaltece sua imagem de grande monarca cristão. Por fim, os anais mencionam a Batalha de Camlann (537), em que Artur e Medraut morreram em combate.

Artur combate Mordred. Pintura de N. C. Wyeth para o livro The Boy's King Arthur (1922) de Sidney Lanier. 

Por se tratar de anais, esses não costumavam fornecer detalhes sobre os acontecimentos, apenas registrar o que houve, logo, não se sabe como foram esses conflitos, além de haver incertezas se eles realmente ocorreram, pois autores anteriores a esses anais não comentam tais batalhas. Entretanto, é nesse livro que encontramos a primeira menção a Medraut, mais tarde renomeado para Mordred, dito ser o filho bastardo de Artur. Porém, nos Annales Cambriae nada informa se ambos seriam parentes ou até mesmo inimigos. 

Além desses relatos pseudo-históricos, o nome de Artur é mencionado brevemente em alguns poemas de origem galesa como Kadeir Teyrnon (A Cadeira do Príncipe), Preiddeu Annwn (Os Despojos de Annwn), Marwnat vthyr pen (A Elegia de Uther Pen). Informações sobre Artur também são citadas brevemente em alguns poemas irlandeses e antologias de contos galeses, sempre se referindo a ele como um nobre e honroso líder. Essas obras teriam sido compiladas entre os séculos IX e XI, entretanto, a narrativa comumente conhecida sobre Artur que conhecemos somente começou a se desenvolver mais tardiamente.

Fontes medievais mais tardias (XII-XV)

No século XII o cronista Godofredo de Monmouth (c. 1100 - c. 1155) escreveu o livro Historia Regum Britanniae (História dos Reis da Bretanha), livro escrito entre 1135 e 1139, o qual traz relatos sobre vários monarcas da Bretanha, centrando-se na fundação da Cornualha, destacando entre eles o Rei Artur. O livro segue a tradição da mitologia greco-romana, apontando que os primeiros senhores da Cornualha eram descendentes dos troianos, que chegaram numa época em que gigantes viviam naquela região. Então a obra avança por alguns séculos comentando alguns reis notáveis e guerras, para finalmente chegar ao tempo de Artur. Dos doze capítulos que compõem essa narrativa, os capítulos nove ao doze são dedicados a história de Artur, sendo ele o monarca mais importante a ser retratado nesse livro. 

É neste livro que a lenda de Artur ganhou contornos hoje mais conhecidos, já que anteriormente praticamente não tínhamos informações genealógicas e coesas sobre Artur, pois cada fonte ou nada dizia sobre seu passado, governo, família, aliados, ou quando citava isso, era algo vago e mudava de fonte para fonte. Porém, Monmouth é creditado como tendo sido o primeiro escritor que procurou organizar as histórias sobre o Rei Artur. Sendo assim, nesse livro ele informa que Artur era filho do rei Uther Pendragon, ele menciona também o mago Merlin como conselheiro de Artur, comenta em mais detalhes o governo do rei e algumas campanhas militares travadas, especialmente sua guerra contra os saxões; aborda alianças políticas com diferentes lideranças da Bretanha, Gales e da Irlanda. Até cita governantes estrangeiros; fala de cavaleiros juramentados a Artur; apresenta a rainha GuinevereMordred (descrito como sobrinho de Artur), a feiticeira Morgana (meia-irmã de Artur), entre outros personagens secundários. Monmounth também cita a espada Excalibur, mas diz que essa foi forjada na mística ilha de Avalon

Merlin abençoa o bebê Artur. Pintura de Emil Johann Lauffer, 1909. 

Um detalhe interessante é que nessa obra o rei é descrito como bastante ambicioso, expandindo sua influência para a Dinamarca e a Gália, e até mesmo possuía planos de invadir a Itália e conquistar Roma, todavia, sabendo da traição de seu sobrinho Mordred que pretendia usurpar o trono, Artur voltou para a Bretanha para confrontá-lo, vencendo na Batalha de Camlann. Artur ficou bastante ferido, então decidiu renunciar ao trono, passando-o para Constantino III da Bretanha, e seguiu em exílio para Avalon. 

Nota-se que alguns aspectos sobre a organização do reinado de Artur surgem nesse livro: temos o nome do pai, apesar da mãe não ser citado; Merlin possui um ar místico e até profético; a Távola Redonda não existe, mas já temos menções a vários cavaleiros juramentados; Camelot não existe; Mordred ainda é inimigo de Artur, sendo um dos seus cavaleiros que o traem; Guinevere aparece como rainha; Avalon é apresentada como uma misteriosa ilha, para onde Artur parte em seu exílio; Excalibur é uma espada especial, embora não seja espicificado o motivo; Morgana é uma feiticeira que é meia-irmã de Artur. 

Viagem de Artur e Morgana para a ilha de Avalon. Pintura de Frank W. W. Topham, 1888. 

O trabalho de Monmouth se tornou bastante popular e referência, sendo copiado várias vezes e traduzido, influenciando outros escritores, poetas e cronistas a se interessarem pela lenda do Rei Artur. Condição essa que foi também a partir do século XII que narrativas centradas em outros personagens das lendas arturianas começaram a se difundir, destacando-se as aventuras relacionadas aos cavaleiros como Lancelot, Tristão, Gawain e Perceval. Essas narrativas passaram a deixar Artur em segundo plano, buscando explorar outros personagens que tiveram ligação direta com ele, prática inclusive até hoje mantida por escritores contemporâneos. 

O poeta francês Chrétien de Troyes (c. 1135 - c. 1191) começou a escrever sobre as lendas arturianas, sendo o primeiro autor em língua francesa a se destacar nessa temática. Seus trabalhos eram centrados em alguns dos cavaleiros do Rei Artur, destacando-se os poemas: Érec et Énide (c. 1170), Clégis (c. 1776), Ivain, o Cavaleiro Leão (c. 1178-1181), Lancelot, O Cavaleiro da Carreta (c. 1178-1181) e Perceval, ou o Conto do Graal (c. 1182-1190). Em todos esses livros o Rei Artur surge como personagem secundário nas tramas, as quais se centram nas aventuras e dilemas de seus cavaleiros. (MORRIS, 1982). 

Érec, Clégis e Ivain são cavaleiros menos conhecidos, aparecendo basicamente na obra de Troyes. Porém, Lancelot e Perceval são bem mais reconhecidos. No caso do poema sobre Lancelot, Troyes explorou o romance adúltero do cavaleiro com a rainha Guinevere, tema já em voga a bastante tempo, porém, uma das novidades que ele trouxe foi a presença de Camelot, que passou a designar a cidade que sediava a corte de Artur. Já o poema sobre Perceval, o autor inseriu a lenda da demanda do Santo Graal, que estava popular na época. Condição essa que além de Perceval, outros cavaleiros também realizariam essa busca como Galahad, cujas narrativas foram contadas por outros autores. 

Além desses cavaleiros, Tristão também recebeu atenção dos escritos e poetas. O cavaleiro era sobrinho do rei Marcos da Cornualha, sendo enviado à Irlanda pelo tio para escoltar sua nova noiva, a princesa Isolda. Todavia, o cavaleiro e a princesa acabaram se apaixonando, iniciando o drama da narrativa. Essa história recebeu algumas versões famosas como Tristão e Isolda (XII) do poeta normando Béroul, Tristão (XII) do poeta inglês Thomas da Bretanha, Tristão (XIII) do poeta alemão Godofredo de Estrasburgo(MORRIS, 1982). 

Tristão e Isolda, pintura Herbert Draper, 1901. 

O poeta e cronista francês Wace (c. 1100 - c. 1174/1183) escreveu uma crônica "histórica" sobre os reis da Bretanha, intitulada Roman de Brut (1155), nessa obra ele menciona o governo do Rei Artur, além de ter a primeira menção a Távola Redonda, uma mesa usada pelo soberano para se reunir com seus nobres, honrados e valentes cavaleiros. Além dessa menção, Wace também escreveu aventuras inéditas sobre Artur, incluindo o contato dele com gigantes. 

O tema do amor proibido entre Lancelot e Guinevere acabou inspirando outros autores, como Ulrich von Zatzikhoven que escreveu o poema Lanzelet (c. 1194), primeira obra em alemão sobre o cavaleiro. Aqui o autor procurou dar sua visão sobre o personagem sua narrativa, apresentando aspectos da sua infância e juventude, passando por sua vida como cavaleiro do Rei Artur e seu amor por Guinevere. (DOVER, 2003). 

O poeta francês Robert de Boron se destacou na produção das lendas arturianas, tendo escrito os poemas Merlin (XII) e Percival (XII), nessas narrativas ele apresenta a profecia envolvendo Artur como rei da Bretanha, estando predestinado aquilo, além de contar que um dos sinais para isso, foi ele ter tirado uma espada cravada numa pedra. Neste caso, a famosa Excalibur. Por sua vez, no poema de Percival, ele retomou a demanda do Santo Graal, além de fornecer mais algumas informações sobre a corte de Artur e até mesmo escreveu que a Excalibur era uma espada mágica. Todavia, autores posteriores mudaram a origem da espada, associando-a com a Dama do Lago. 

Artur tentando tirar a Excalibur da pedra. Ilustração de Arthur Rackman para o livro The Romance of King Arthur (1917) de Alfred W. Pollard. 

Entre as décadas de 1210 e 1230 surgiu em francês o chamado Ciclo de Lancelot-Graal, uma coleção de cinco narrativas em prosa que abordavam os dois temas em alta. Se desconhece a autoria dessas obras, já que inicialmente cogitou-se ser trabalho do escritor Walter Map, mas essa hipótese foi descartada. A primeira obra é intitulada História do Santo Graal, a qual conta como José de Arimatéia obteve o cálice sagrado e o levou até a Bretanha. Em seguida temos História de Merlin, obra que inicia a lenda arturiana propriamente; História de Lancelot, livro focado no cavaleiro; A Busca do Santo Graal, apresentando a jornada de Perceval, Boors e Galahad atrás do cálice; A Morte do Rei Artur, obra que encerra o reinado de Artur apresentando o confronto dele com Mordred. (DOVER, 2003). 

Guinevere e Lancelot. Pintura de Emil Teschendorff, 1850. 

Vários poemas e contos anônimos sobre o Rei Artur, mas também seus cavaleiros como Lancelot, Tristão, Gawain e Perceval foram publicados entre os séculos XIII e XIV, principalmente na França, mostrando a popularidade dessas narrativas para fora do contexto inglês. 

Nos séculos XIV e XV surgiram algumas publicações do ciclo arturiano que se destacaram, entre as quais: o conto Sir Gawain e o Cavaleiro Verde (XIV) de autoria anônima; o Mabinogion (XIV), uma coletânea de lendas sobre a Bretanha, Gales e a Irlanda, sendo que dois poemas dele abordam brevemente o Rei Artur; Perceforest (XIV) um romance francês sobre a origem da Bretanha, logo citando o reinado de Artur; Os Contos de Cantebury (XIV) de Geoffrey Chaucer, que reúne várias narrativas, algumas citam Artur e seus cavaleiros; La Tavola Ritonda (XV), de autoria desconhecida, mas escrito em italiano, destacando os cavaleiros à serviço de Artur.

Entretanto, nesse período destacou-se publicações que exploravam a morte do monarca. Fato esse que encontramos várias produções a respeito como: Morte Arthure, The Awntyrs of Arthure, Morte Arthur, todos escritos em formato de poesia, aplicando-se diferentes técnicas, entretanto, a obra que mais se destacou nessa abordagem foi o livro Le Morte d' Arthur (1485) do cavaleiro inglês Thomas Malory, o qual reuniu várias referências do Ciclo Arturiano inglês e francês, compilando ideias de diferentes versões para compor sua própria narrativa, a qual ele concebeu com a pretensão de ser "a versão definitiva" sobre a lenda do Rei Artur. (MORRIS, 1982). 

O último sono de Artur, pintura de Edward-Burne-Jones, 1898. 

O livro é dividido em capítulos que vão desde a profecia dada por Merlin a Uther Pendragon, passando pela infância de Artur, finalizando com sua morte na Batalha de Camlann contra Mordred. Nessa obra encontramos Guinevere, Morgana, Lancelot, Perceval, Gawain, Tristão, entre outros cavaleiros; a Excalibur encravada na rocha; Camelot, a Távola Redonda, Avalon, entre outros aspectos comuns das lendas arturianas. A obra de Malory se tornou bastante popular, influenciado autores nos séculos seguintes.

Todavia, entre os séculos XVI e XVIII, a lenda arturiana caiu em popularidade vertiginosa. Excetuando-se algumas obras clássicas que ainda eram reimpressas ou traduzidas, tivemos poucas produções originais como a peça King Arthur (1691) de John Dryden e Henry Purcell, e os livros Prince Arthur (1695) e King Arthur (1697) de Richard Blackmore. O interesse por Artur e sua lenda somente foi recuperado no século XIX com influência do Romantismo, quando tivemos escritores, poetas, pintores, escultores, músicos e compositores que voltaram a se interessar por esse personagem e sua história. 

Por sua vez, no século XX o personagem ganhou popularidade principalmente no cinema, depois retornando para a literatura, e indo para os quadrinhos, desenhos, seriados, jogos de tabuleiro, RPGs e videogames. 

A origem da lenda

Na maior parte das vezes não é possível determinar quando uma lenda teve início, o máximo que se consegue é apontar o possível século para isso. No caso do Rei Artur, os historiadores assinalam que a lenda arturiana teria se formado a partir da tradição popular galesa e bretã, em algum momento entre os séculos VII e VIII, já que o relato mais antigo encontrado sobre o monarca é a crônica Historia Brittonum que data do século IX, e atribui a condição de que Artur teria vivido entre os séculos V e VI.

Todavia, pesquisas históricas e arqueológicas nada encontraram sobre as evidências das batalhas mencionadas na Historia Brittonum e nos Annales Cambriae e de outras crônicas anteriores, o que põe em dúvida a veracidade de alguns desses conflitos. Destacam-se sobre isso os livro The Age of Arthur (1973) de John Morris e The Arthur of the Welsh (1991), uma coletânea de estudos diversos. Ambos os livros são algumas das obras de referência que buscaram encontrar evidências de um possível governante chamado Artur ou com outro nome que pudesse tê-lo inspirado. Mas nada foi conseguido. 

Francis Pryor (2004) aponta alguns aspectos interessantes. A crônica De Excidio et Conquestu Brittaniae (VI), escrita pelo clérigo Gildas, menciona a Batalha do Monte Madon, mas não cita Artur. O livro foi escrito quase um século depois de tal batalha. O livro Historia ecclesiastica gentis Anglorum (VIII) do monge Beda, o Venerável, também nada menciona sobre Artur. Por fim, o importante livro histórico das Crônicas Anglo-Saxãs (IX), as quais reúnem relatos históricos do século I ao IX (depois uma versão atualizada incluiu relatos dos séculos X e XI), nenhuma delas menciona Artur, embora contenha informações sobre dezenas de reis e governantes. 

Dessa forma, Pryor aponta que somente citando essas três obras importantes que antecedem o trabalho de Nênio, nenhuma delas menciona a existência de Artur. Sobre isso, o autor chegou a algumas conclusões: Artur não teria sido tão famoso e importante como acabou se tornando com o tempo; Artur não teria sido um rei real, talvez um personagem inspirado em algum governante ou general que hoje desconhecemos. As narrativas sobre Artur apresentadas pelos livros dos séculos IX e X adviriam de relatos oriundos de lendas e contos populares, não de crônicas históricas e anais históricos. 

Quanto a Artur ter sido inspirado em um homem real, existem algumas hipóteses, duas delas que citaremos aqui, as quais consideram homens de origem romana para ter inspirado ele. A primeira hipótese foi apresentada no livro The Discovery King of Arthur (1985) de Geoffrey Ashe, o qual sugeriu que o general romano Magno Máximo (c. 335-388), o qual comandava a Britânia teria inspirado a lenda de Artur, pois em 383 ele rebelou-se contra o imperador Graciano e depois contra o imperador Valentiniano II que sucedeu seu irmão Graciano. Máximo se autoproclamou imperador romano, reivindicando a Britânia, Irlanda e a Gália como seu domínio e em 388 ele invadiu a Itália, mas morreu em combate. 

A hipótese de Ashe era bastante interessante, o problema é que as crônicas históricas bretãs mencionam Máximo. Por sua vez, na Historia Brittonum, Máximo também é citado, mas Artur é outra pessoa. Se houvesse a percepção de que Magno Máximo inspirou o personagem do Rei Artur, por que ambos eram tratados como monarcas distintos? 

A segunda hipótese surgiu no livro From Scythia to Camelot (1994) de Scott Littleton e Linda Malcor, os quais se basearam na hipótese de Kemp Malone, proposta em 1924, que sugeriu que o comandante romano Lúcio Artório Casto (séculos II-III) teria sido a inspiração para Artur. Os autores partiram da etimologia do sobrenome Artório, que supostamente teria originado o nome Artur. Essa teoria até foi usada no filme Rei Arthur (2004). 

Entretanto, excetuando-se a condição de que Lúcio foi um centurião que serviu em algumas legiões na Britânia, nada se sabe sobre sua vida, além de não haver evidências de que tenha sido uma liderança que ganhou destaque militar e político em seu tempo, a ponto de inspirar um rei lendário. 

Dessa forma, ainda hoje não se sabe a origem da lenda do Rei Artur, possívelmente seja até impossível descobrir onde tudo começou, apesar que os relatos mais antigos sugerem que essa tradição teria se originado na parte sudoeste da Inglaterra, nos territórios da Cornualha, Devon, Somerset, Glastonbury e o sul do País de Gales. Inclusive algumas localidades que aparecem nas lendas como Tintagel, fica na Cornualha, por sua vez, considera-se que Avalon ficaria situada em Glastonbury. Alguns historiadores e escritores também apontaram que Artur teria sido um antigo rei da Dumnônia, um antigo reino situado nos territórios da Cornualha e de Devon. (PEARCE, 1978). 

O Rei Artur contempla Camelot. Ilustração de Gustave Doré para o livro Idílios do Rei (1868) do poeta Alfred Tennyson. 

Aspectos principais da lenda:

Uther Pendragon: rei destinado a gerar um filho que unificará a Bretanha, sendo esse Artur. Em geral ele costuma falecer quando o filho ainda é criança ou adolescente. 

Igraine: é irmã de Morgouse, sobrinha de Viviane, sendo mãe de Artur e Morgana. É casada inicialmente com o duque Gorlois da Cornualha, depois é despojada pelo rei Uther. 

Artur: filho de Uther e Igraine, destinado a ser o Grande Rei da Bretanha. A forma como ele é coroado, costuma mudar de acordo com a versão, algumas inclusive o colocam como órfão, príncipe renegado, fugitivo, prisioneiro etc. 

Morgana, a Fada: meia-irmã de Artur, sendo filha de Igraine e Gorlois. É ora descrita como sacerdotisa ou feiticeira, as vezes ambas as ocupações. Em algumas narrativas aparece como uma personagem ardilosa e sombria, em outras ela não possui tanta importância. Dependendo da versão da história, Morgana pode ajudar ou causar problemas para Artur. 

Merlin: velho mago que normalmente é dito ser um druida. Em geral ele aparece como um homem sábio e conselheiro para Artur.

Viviane: referida também como a Dama do Lago, a Senhora do Lago, Nimue, e por outros nomes. É uma sacerdotisa e feiticeira que normalmente se torna mestra de Morgana. Em algumas versões ela é dita ser amante de Merlin e presentear Artur com a espada Excalibur. 

Guinevere: é a esposa mais famosa de Artur, pois em outras versões ele teria casado mais de uma vez. A rainha costuma ser descrita como jovem e bela, enquanto Artur é mais velho. Algumas narrativas passaram a enfatizar o romance extraconjugal de Guinevere com Lancelot. 

Lancelot do Lago: o mais famoso dos cavaleiros à serviço de Artur. Ele é um príncipe filho do rei Ban de Benoic, a identidade de sua mãe muda em algumas narrativas. Costuma ser retratado como um homem belo, jovem e honrado, apesar que algumas versões o tragam como amante de Guinevere e até mesmo um cavaleiro arrogante e ambicioso. 

Mordred: um cavaleiro à serviço de Artur. Em algumas versões ele seria seu sobrinho, jovem tutelado ou até mesmo filho bastardo. Apesar da origem diversa, as histórias medievais são unânimes em retratá-lo como um grande traidor que ambiciona o trono da Bretanha, desafiando Artur. 

Tristão: um dos cavaleiros da Távola Redonda, é principalmente lembrado por suas próprias narrativas devido ao seu dramático romance com a princesa Isolda, a qual foi prometida como noiva de seu tio. 

Perceval: um dos cavaleiros da Távola Redonda, lembrado por sua busca pelo Santo Graal.  

Gawain: um dos cavaleiros da Távola Redonda, sendo sobrinho de Artur. O personagem é descrito como sendo valente e honrado. Ele ganhou uma narrativa própria intitulada Sir Gawain e o Cavaleiro Verde. 

Boors: um dos cavaleiros da Távola Redonda, sendo primo de Lancelot. É descrito como um dos mais bravos, fortes e leais cavaleiros de Artur. 

Galahad: um dos cavaleiros da Távola Redonda, sendo filho de Lancelot. É dito ser o "mais puro" dos cavaleiros de Artur, e o responsável por encontrar o Santo Graal. 

Camelot: cidade ou castelo onde fica a corte de Artur. Surge nas produções francesas do século XII.

Excalibur: espada mágica do Rei Artur. A arma é citada desde as fontes antigas por outros nomes e nem sempre é referida como sendo mágica. Robert de Boron popularizou a história dela estar presa a uma pedra, mas outros autores colocavam sua localização oculta num lago místico, sendo dada a Artur por Viviane. 

Avalon: ilha mística onde Artur parte para exílio ou é sepultado, a depender da versão. Nesta ilha também viajam Viviane, Morgana, Merlin e outros personagens. O local é tido como mágico e não sendo acessível por qualquer pessoa, por estar envolto em névoa. 

Távola Redonda: nome dado a uma grande mesa onde Artur se reunia com seus cavaleiros mais honrosos em Camelot. 

O Santo Graal na Távola Redonda. Pintura por Évard d'Espinques, 1475. 

NOTA: A espada Excalibur tem esse nome advindo do galês Caledfwlch, embora essa arma apareça mencionada por outros nomes derivados do galês, do bretão e do irlandês, surgindo como Calabrum, Callibourc, Chalabrun, e Calabrun (com soletrações alternativas como Chalabrum, Calibore, Callibor, Caliborne, Calliborc, e Escaliborc. 

NOTA 2: O famoso escritor Mark Twain escreveu o livro A Connecticut Yankee in King Arthur's Court (1889), obra na qual ele parodia as lendas arturianas, colocando um americano voltando no tempo e vivenciando um choque de cultura na corte de Artur. 

NOTA 3: O primeiro filme sobre o ciclo arturiano foi Parsifal (1904), uma paródia baseada na versão da ópera composta por Richard Wagner em 1882

NOTA 4: O famoso ilustrador e escritor Howard Pyle publicou sua versão das lendas arturianas, compilando diferentes versões e fazendo alguns ajustes, originando The Story of King Arthur and His Knights (1903), obra inclusive dirigida ao público infanto-juvenil. 

NOTA 5: O primeiro filme épico sobre o ciclo arturiano foi As Aventuras de Sir Galahad (1949), entretanto, a primeira produção épica centrada na história de Artur mesmo foi no filme Os Cavaleiros da Távola Redonda (1953). 

NOTA 6: As histórias em quadrinhos do Príncipe Valente (1937), criada por Hal Foster, são ambientadas numa Europa medieval fantástica no tempo do Rei Artur. 

NOTA 5: O escritor, professor e filólogo J. R. R. Tolkien escreveu um livro de poesia intitulado A Queda de Artur (2013). A obra acabou não sendo concluída. Tolkien a desistiu de redigi-la na década de 1950, sendo publicado muitos anos depois após sua morte. 

NOTA 7: A animação A Espada Era a Lei (1963) é o único filme da Walt Disney a abordar a lenda do Rei Artur. O filme é uma adaptação do livro homônimo, que apresenta uma versão infanto-juvenil da lenda. 

NOTA 8: O filme Monty Python em Busca do Cálice Sagrado (1975) é considerado até hoje a paródia mais famosa sobre as lendas arturianas do ciclo do Graal. 

NOTA 9: King Arthur and the Knights of Round Table (1979-1980) é o primeiro anime dedicado totalmente ao Rei Artur, apesar que o personagem já tivesse sido citado e aparecido anteriormente em outros animes. 

NOTA 10: O filme Excalibur (1981) é considerado um dos filmes mais populares e cultuados entre a vasta produção cinematográfica sobre Artur. 

NOTA 11: As Brumas de Avalon (1983) de Marion Zimmer Bradley, é um longo romance que foi dividido em quatro volumes, os quais narram a tradicional história do Rei Artur, mas dando maior destaque as personagens femininas como Morgana, Igraine, Viviane, Morgouse e Guinevere. Além disso, a obra também enfatiza a importância do culto a "Deusa" e outras crenças pagãs de origem celta. O livro fez bastante sucesso, originando até uma série escrita por Marion Bradley e Diana Paxson. Além de ter originado um filme em 2001. 

NOTA 12: A história em quadrinhos Camelot 3000 (1982-1985) mostra uma versão em que Artur e os demais personagens reencarnam no ano 3000 e devem lutar contra uma invasão alienígena comandada por Morgana. 

NOTA 13: O escritor Bernard Crownwell, conhecido por seus livros de aventura medieval, decidiu escrever sua própria versão da lenda arturiana, criando assim a trilogia As Crônicas de Artur (1995-1997), a qual apresenta uma versão mais sombria da história. Por exemplo, nesses livros personagens como Merlin, Morgana e Nimue (Viviane) são sombrios, já Lancelot aparece como um cavaleiro narcisista e farsante. Além disso, a narrativa é contada a partir do cavaleiro Derfel Cadarn, homem de confiança de Artur. 

NOTA 14: O seriado Merlin (2008-2012) apresenta uma versão jovem de Merlin, o qual deve orientar um jovem Artur para alcançar seu destino de ser rei. 

NOTA 15: O seriado Camelot (2011) procurou adaptar a trama clássica ambientada no século VI, mas a produção acabou não fazendo sucesso e a série foi cancelada na primeira temporada. 

NOTA 16: O mangá Nanatsu no Taizai/Sete Pecados Capitais (2012-2020) é ambientado na época do Rei Artur, embora o personagem tenha pouca expressividade na trama.

NOTA 17: Na franquia The Legend of Zelda, Link retira a Espada Mestra de um pedestal de pedra. O ato é inspirado na versão da Excalibur encravada numa rocha. 

NOTA 18: Não existe um número exato de quantos cavaleiros teriam na Távola Redonda. A maioria das narrativas não especificam a quantidade e citam apenas os mais conhecidos. Algumas obras citam outros cavaleiros que são exclusivas de suas narrativas. 

NOTA 19: Artur é citado entre um dos Nove da Fama, tradição francesa surgida por volta do século XIV, que elencava os nove mais honrados cavaleiros da História. 

NOTA 20: Na série literária Harry Potter, o mago Merlin existiu e era bem famoso. Ele inclusive inspirou uma ordem honorífica que leva seu nome, dividida em três classes. 

Referências bibliográficas:

ASHE, Geoffrey. The Discovery of King Arthur. Garden City, Anchor Press, 1985. 

DOVER, Carol. A Companion to the Lancelot-Grail Cycle. London, D. S. Brewer, 2003. 

LITTLETON, C. Scott; MALCOR, Linda A. From Scythia to Camelot: A Radical Reassessment of the Legends of King Arthur, the Knights of the Round Table and the Holy Grail. New York, Garland, 1994. 

MORRIS, John. The Age of Arthur: A History of the British Isles from 350 to 650. New York, Scribner, 1973. 

MORRIS, Rosemary. The Character of King Arthur in Medieval Literature. Cambridge, Brewer, 1982. 

PEARCE, Susan M. The Kingdom of Dumnonia: Studies in History and Tradition in South-Western Britain A.D. 350–1150. Padstow, Lodenek Press, 1978. 

PRYOR, Francis. Britain AD: A Quest of England, Arthur, and the Anglo-Saxons. London, HarperCollins, 2014. 

Fontes na internet: 

Historia Brittonum

Annales Cambriae

Historia Regum Brittaniae

LINK

List of works based on Arthurian Legends