O conceito de história pública surgiu em 1976, sendo cunhado pelo historiador Robert Kelley, que fundou a revista The Publican Historian, para se referir ao aumento de historiadores profissionais ou amadores, que se valiam de museus, arquivos, bibliotecas, institutos, fundações e revistas, para difundir o saber histórico. Dessa forma, Kelley chamou essa tendência de uma publicização da História, não no sentido de ensino apenas, mas principalmente pela divulgação do conhecimento histórico.
Para Kelley, a história pública foi uma saída para profissionais desempregados, que não conseguiam emprego nas escolas e universidades em meio à crise dos anos 1970, repercutida pela crise do petróleo, Guerra do Vietnã e outros fatores, a saída que algumas dessas pessoas acharam foi promover itinerários, exposições, palestras, cursos, revistas etc., para a popularização da História.
Nesse período em que a história pública estava se difundindo nos Estados Unidos, também passou a se expandir os grupos recriacionistas e se formalizou a história viva (living history). O primeiro era praticado por entusiastas da Guerra Civil Americana (1861-1865) encenando batalhas. Por sua vez, alguns historiadores e antropólogos pegaram essa ideia dos grupos recriacionistas e investiram no que ficou conhecido como história viva, uma metodologia de encenação histórica, em que as pessoas usam trajes de época, além de elaborarem roteiros de atuação, ou simplesmente podem desenvolver um diálogo com a plateia, a qual faz perguntas sobre os costumes, aspectos sociais, políticos, econômicos, religiosos etc., da época retratada, e o praticante de história viva responde tais perguntas. Atualmente nos Estados Unidos, Europa, Japão, Brasil e México, o recriacionismo e a história viva cresceram bastante.
A história pública, em sua gênese, também contou com forte apoio da metodologia da história oral, pois a revista de Kelley era dedicada também a apresentar entrevistas, memórias e relatos de desconhecidos, como uma maneira de dar voz a memória, testemunho e conhecimento de “pessoas comuns”. Condição essa que o Oral History Institute se tornou parceiro da The Publican Historian.
A literatura de popularização ou de entretenimento também teve a contribuir para a difusão da história pública. No livro Introdução a História pública (2011) informa que houve um crescimento significativo de revistas sobre temas históricos, essa tendência se manteve até final dos anos 1990, quando entrou em declínio. Atualmente ela praticamente desapareceu, sendo substituída pelas mídias digitais, as quais serão comentadas adiante.
No entanto, na época em que as pessoas tinham ainda o hábito de irem a bancas de revista ou de jornal, não era incomum encontrar revistas sobre curiosidades. A própria National Geographic Magazine lançava obras e dossiês do tipo, pois era algo que vendia bem. No Brasil revistas como Superinteressante e Aventuras da História seguiram essa tendência, embora tais periódicos ainda existam, não possuem a mesma visibilidade de antes.
Além disso, escritores também aproveitaram o sucesso de temáticas históricas para lançarem romances históricos. Um que se destacou na época foi Devoradores de Mortos (1976) de Michael Crichton, o autor de Jurassic Park e Westworld. Crichton pegou como base um relato do emissário árabe Ahmed ibn Fadlan e seu encontro com vikings no sul na Rússia no século X, e criou um romance histórico, porém, a obra foi vendida na época como sendo uma crônica de uma aventura real, em que supostamente Crichton havia encontrado o restante da história.
No entanto, a história pública não apenas ajudou na difusão de obras de literatura e revistas sobre história, a produção de historiadores também cresceu. No livro História Pública no Brasil (2016), Mariana Barbosa comenta o caso de que na França, a Terceira Geração dos Annales teve um crescimento considerável na venda de livros. Historiadores como Jacques Le Goff, George Duby, Pierre Nora, Emmanuel Le Roy Ladurie, Marc Ferro, os quais participavam de programas de rádio e de tv, ajudaram a aumentar o interesse pela produção acadêmica, na época, predominantemente influenciada pela história cultural. Condição essa que o livro O queijo e os vermes (1976) de Carlo Ginzburg foi um sucesso de vendas, apesar de abordar um tema bem específico, mas a forma que Ginzburg o redigiu agradou ao público não familiarizado com aqueles tipos de pesquisa.
Na década de 1990 a história pública se tornou oficialmente reconhecida como campo da historiografia nos Estados Unidos, com direito a ter programas de pós-graduação com linhas temáticas a respeito; disciplinas e até foi criado em 1996 o National Council on Public History (NCPH) para representar todos os programas, grupos, organizações e profissionais de história pública. Apesar disso havia contestações se a história pública seria uma metodologia ou campo historiográfico.
O historiador Jurandir Malerba comenta que nos anos 1990 nos Estados Unidos, a história pública não era vista como amadorismo como foi no início, mas já era considerada como algo profissional, embora ainda contasse com amadores trabalhando nela, os quais tinham seus programas de rádio, televisão, revistas, grupos recriacionistas, e organizações próprias voltadas para o turismo, a memória, a história oral e visitas a museus. De qualquer forma, com a oficialização da história pública, passou a se investir na formação dos historiadores capacitando-os de como proceder nessa área.
Os anos 1990 também contribuiu para que a história pública abordasse novas temáticas como história da vida privada, história das mulheres, patrimônio histórico, história do cinema, além de temas mais diversos como infância, família, medo, morte, cores, costumes, identidade, sexualidade, meio ambiente, entre outros.
Sobre isso, o livro Introdução a História Pública (2011) aponta que os historiadores eram instruídos em técnicas de discurso, de como se dirigir a diferentes públicos num linguajar menos academicista, de como abordar temas importantes e que chamassem a atenção do público, mas não ficasse apenas na curiosidade ou no sensacionalismo (como ocorria algumas vezes). Os historiadores também eram ensinados a como utilizar a história oral, a história viva e outros métodos de apresentação do conhecimento histórico para elaborar suas apresentações, palestras, cursos, exposições, programas, projetos etc.
No Brasil o interesse da história pública é mais recente, tendo começado por volta de 2011 quando foi criado o Curso de História Pública na USP e lançado o livro Introdução a História Pública. Apesar de isso ter acontecido a 22 anos, ainda assim, o campo da história pública segue desconhecido de parte dos historiadores e ainda mais do grande público, mesmo que livros, artigos, eventos e até programas de pós-graduação a respeito tenham sido criados nesse tempo.
Sobre isso, o historiador Bruno Leal aponta que ainda existe uma resistência por parte dos acadêmicos de história em não reconhecer a história pública como um campo da historiografia, mas como uma metodologia de divulgação do conhecimento histórico. Outros historiadores de postura mais conservadora, não levam com seriedade a produção da história pública, fato esse que jornalistas como Laurentino Gomes e Eduardo Bueno tem seus livros de história subvalorizados. Até mesmo a historiadora Mary del Priori quando passou a escrever livros de história com linguajar mais simples, recebeu críticas por conta disso, dizendo que suas obras não tratavam da História de “forma profissional”.
Apesar desse preconceito com a história pública, esse campo teve muito a contribuir nos países onde foi desenvolvido. O livro História Pública no Brasil (2016), apresenta uma série de abordagens de como utilizá-la, o que inclui: museus, arquivos históricos, bibliotecas, cinema, programas de televisão, programas de rádio, revistas, jornais etc. Como exemplo podemos citar a TV Cultura e TV Escola, importantes canais brasileiros, infelizmente subvalorizados e até desconhecidos da população. Ambos os canais trazem importantes documentários sobre história brasileira e até de outros países e épocas, num linguajar acessível. Algumas dessas produções foram até usadas como material didático.
Todavia, por serem canais pouco conhecidos, o público acabava tendendo a ir assistir canais estrangeiros como o History Channel, que surgiu com influência da história pública dos EUA, inicialmente com um canal sério, depois de 2010 abraçou um viés de ser um canal de variedades e curiosidades, focando em programas sobre loja de penhores, garimpeiros de antiquários, alienígenas, teorias da conspiração etc.
O livro Public History (2015) destaca o papel da história oral na difusão da história pública, a influência da história social e cultural na formulação de conteúdos. Além de abordar a história pública para fins pedagógicos no ensino escolar e na divulgação geral, a obra também possui capítulos que destacam como a história pública pode ser usada para a difusão da história local, micro-história, questões de identidade, memória, cultura popular e outros temas sociais e políticos, dando voz aos excluídos e marginalizados, o que nos faz lembrar da história vista de baixo, iniciada com a Escola Social Inglesa, na década de 1950. Dessa forma, a história pública era um meio de se alcançar essas pessoas, suas narrativas, vivências e saberes.
Por outro lado, o campo da história pública nem sempre produz bons trabalhos, existe um lado problemático e até “sujo” em alguns casos. Isso já era observado nos Estados Unidos desde a década de 1980, quando se tinha produções de caráter sensacionalista e abertamente ideológico para favorecer determinados posicionamentos políticos, sociais, culturais e religiosos ou detratar a oposição. Dessa forma, a história pública que deveria proporcionar a difusão do saber histórico, acabou passando a ser usada como palco de embates políticos. Lembrando que na década de 1980 nos Estados Unidos, estávamos no final da Guerra Fria e na década de Ronald Reegan.
Esse problema dos abusos dados a história pública também foram vistos no Brasil. Um exemplo é a série do Guia Politicamente Incorreto produzida pelo jornalista Leandro Narloch, conhecido por suas matérias sensacionalistas e posicionamentos negacionistas. O primeiro livro de Narloch foi best-seller em 2009, antes da própria oficialização da história pública no Brasil. A obra de Narloch é ainda hoje duramente criticada por historiadores e outros profissionais das ciências sociais por apresentar uma visão sensacionalista, deturpada e ideologicamente enviesada, curiosamente uma crítica que ele faz a historiografia no geral, alegando que os historiadores não agem com imparcialidade, se ele mesmo nem fez isso.
Vale ressalvar que além de Narloch, o escritor Olavo de Carvalho (1947-2022) também se popularizou nesse meio, mesmo que seu foco não fosse falar de História e muito menos de Filosofia (apesar de ele ser chamado de filósofo), mas abordar de forma sensacionalista, debochada, rude e negacionista, temáticas sociais e políticas diversas. Carvalho desenvolveu seu próprio curso online, além de ter seu canal no Youtube, em que dava suas entrevistas, palestras e comentários absurdos. Além disso, seus livros que eram vendidos como sendo uma alternativa ao que ele chamava de “versão esquerdista” eram uma coletânea de arrogância, deboche, preconceitos e absurdos.
Além desses autores, mais recentemente a história pública no Brasil vem enfrentando problemas através da difusão de canais no Youtube e de podcasts, mas também de páginas nas redes sociais como Facebook, Instagram, X (antigo Twitter), Tiktok e Kuwai. Aqui entra-se na problemática do ensino de história na era digital.
O livro História Pública no Brasil (2016) em seu último capítulo já apontava a problemática dos usos ideológicos concedidos a esse campo de estudo. E isso somente veio a piorar com o acirramento político vivenciando no país a partir do impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão do Bolsonarismo, abrindo a oportunidade para grupos políticos como o MBL, Vem para Rua e outros a ascenderem, como também incentivar o surgimento de youtubers e influencers sensacionalistas como Nando Moura e Monark, somente para citar alguns casos que ganharam destaque nesse tempo.
Nos últimos cinco anos, artigos abordando o problema das fake news e como essas interferem no aprendizado de história, assim como, acabam enganando a população no geral, se tornou um tema em alta, ainda mais devido aos absurdos de fake news perpetrados no Brasil durante as campanhas eleitorais de 2018, 2020, 2022 e a própria pandemia de covid-19. Tais acontecimentos alavancaram a um nível nunca antes visto de notícias falsas, a ponto de popularizar o próprio termo inglês no cotidiano brasileiro. Devido a esse cenário desolador e sem fiscalização, nas redes sociais, blogs, sites, canais e aplicativos de mensagem como o Whatsapp e o Telegram, a desinformação se espalhou de forma rápida e funesta.
Os alunos que tiveram que ficar reclusos por conta da pandemia, tendo que estudar em seus lares, passaram a consumir com maior frequência materiais provenientes de fontes duvidosas e até propositalmente concebidas para a desinformação. Assim, os estudantes e o público no geral passaram a dar mais ouvidos aos youtubers e influencers que surgiam como críticos dos mais diversos assuntos; os “especialistas da internet” como se diz ironicamente.
Esses homens e mulheres bombardeavam regularmente a população de diversas idades e em muitos casos com falta de um bom senso crítico, promovendo a desinformação. E quando os estudantes, fossem crianças, adolescentes e adultos iam para as escolas e faculdades, entravam em conflito com os professores defendendo o que ouviram e viram como se fosse a plena verdade. Isso gerou desentendimentos em vários momentos, até brigas entre amigos e familiares.
Dessa forma, como apontado no recente livro Ensino de História e História Pública (2022), um dos maiores problemas do estudo histórico, mas também de outras áreas do saber é o combate as fake news, que se disseminam rapidamente e possuem forte influência. E com o espaço e visibilidade gerados pelas mídias digitais, a história pública foi inundada por pessoas que espalham tais informações por descuido ou até intencionalmente.
Além disso, cresceu também grupos nitidamente ideológicos, um exemplo disso é o grupo Brasil Paralelo, que possui canal, documentários, livros, que alega apresentar a “verdadeira história brasileira”, que segundo eles, foi deturpada e/ou omitida pela esquerda universitária. No caso, o Brasil Paralelo contou entre seus membros com Leandro Narloch e Olavo de Carvalho, conhecidos por suas polêmicas, absurdos e textos falaciosos. Além desse caso, existem youtubers, influencers, podcasts e grupos com tendências nacionalistas conservadoras e até neofascistas.
Mas, além das fake news, os autores do livro também sublinham em alguns capítulos, que outros problemas vistos são um aumento do negacionismo, da intolerância e do preconceito. Dessa forma, projetos e grupos de história pública associados com iniciativas que concediam visibilidade as mulheres, pessoas negras, indígenas, quilombolas, LGBTs etc., passaram a serem ainda mais hostilizados. Dessa forma, a história pública tem entre seu principal desafio atual é como enfrentar uma ignorância não apenas teimosa, mas agressiva e alienada.
Referências bibliográficas:
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