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sábado, 11 de fevereiro de 2017

As primeiras investigações de Marie Curie sobre elementos radioativos

AS PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕES DE MARIE CURIE SOBRE ELEMENTOS RADIOATIVOS


Dr. Roberto de Andrade Martins


Obs: As imagens presentes nesse texto foram escolhidas por mim, para ilustrar a obra do autor. 

Introdução

Usualmente considera-se que a radioatividade foi descoberta por Henri Becquerel, em 1896, e que a principal contribuição de Marie Curie foi a descoberta de novos elementos radioativos (tório, polônio e rádio) em 1898. Essa contribuição é apresentada como uma conseqüência do trabalho de Becquerel, uma vez que depois da descoberta da radiação do urânio seria “natural” procurar se outros elementos também emitiam radiações do mesmo tipo. Este artigo apresentará, no entanto, uma nova interpretação do trabalho realizado por Marie Curie no início de 1898.

Marie Curie
Com a utilização de um método elétrico para obtenção de medidas quantitativas da radiação, ela foi inicialmente capaz de diferenciar os fenômenos que atualmente chamamos de ‘radioatividade’ de uma série de outros fenômenos espúrios. Por outro lado, guiada por duas conjeturas a respeito da natureza atômica do próprio fenômeno de emissão de radiação, conseguiu orientar de forma bem sucedida uma busca de novos elementos radioativos.

Para permitir uma compreensão adequada do trabalho de Marie Curie, será feita uma breve descrição do período anterior (1895 a 1897), desde a descoberta dos raios X até o final das pesquisas de Becquerel1.

A descoberta dos raios X

No final de 1895, Wilhelm Conrad Röntgen descobriu a existência de um novo tipo de “raios” (coisas que se propagam em linha reta, como a luz), a que deu o nome utilizado para as incógnitas da álgebra, por desconhecer sua natureza (RÖNTGEN, 1895; NITSKE, The life of Wilhelm Conrad Röntgen; JAUNCEY, 1945; MARTINS, 1998a, 1998b). Tratava-se de uma radiação penetrante, capaz de atravessar materiais opacos à luz e às outras radiações conhecidas (raios catódicos, raios ultravioletas e infravermelhos). Era emitida por tubos de alto vácuo, quando os mesmos eram percorridos por uma descarga elétrica de alta voltagem.

A radiação foi estudada por Röntgen que, em poucas semanas, determinou muitas de suas principais propriedades. Ela produzia luminescência em certos materiais fluorescentes (esse foi o fenômeno que levou à sua descoberta), sensibilizava chapas fotográficas, era invisível ao olho humano, não parecia sofrer refração, nem reflexão, nem polarização. Não se tratava de luz (por ser invisível e atravessar grandes espessuras de madeira ou papel), não era igual aos raios catódicos (não sofria desvio com ímãs e tinha poder de penetração muito superior), nem raios ultravioletas ou infravermelhos (pelo seu poder de penetração).

Wilhelm Conrad Röntgen, descobridor do raio X. 
A divulgação da descoberta dos raios X, no início de 1896, teve uma enorme repercussão na comunidade científica (MARTINS, 1997a). No mesmo ano, foram publicados cerca de 1.000 artigos sobre a nova radiação – principalmente sobre suas aplicações médicas. Muitos investigadores se voltaram imediatamente para a pesquisa de novas propriedades dos raios X e o campo se desenvolveu muito rapidamente.

Por se tratar de um fenômeno que não havia sido previsto teoricamente nem era compreendido com base nas teorias da época, a descoberta de que existia uma radiação estranha, que devia estar presente nos laboratórios de física há muitos anos mas que não havia sido notada antes levou à procura de outras radiações desconhecidas (que poderiam igualmente estar presentes sem terem sido percebidas) e de outros processos de emissão de raios X.

Essa busca foi guiada, em grande parte, por uma hipótese apresentada por Henri Poincaré em 20 de janeiro de 1896 (POINCARÉ, 1896). De acordo com o primeiro trabalho de Röntgen sobre os raios X, a radiação saía do ponto da parede de vidro do tubo de descarga que era atingido pelos raios catódicos, e essa parte do vidro se tornava luminosa. Poincaré conjeturou que poderia haver alguma relação entre a própria luminescência e a emissão dos raios X, sugerindo que talvez todos os materiais luminescentes emitissem esse tipo de radiação.

A conjetura de Poincaré foi imediatamente testada por diversos pesquisadores, que descreveram experimentos que pareciam confirmá-la. Charles Henry e Gaston Niewenglowski disseram ter detectado a emissão de radiações penetrantes, semelhantes aos raios X, por substâncias fosforescentes comuns (sulfeto de cálcio e sulfeto de zinco). Algum tempo depois, foi descrita a emissão de radiações penetrantes por vaga-lumes e por bactérias luminescentes. Por fim, como até mesmo algumas substâncias comuns são fracamente fosforescentes, foram testadas muitas outras substâncias, e descrita a emissão de radiações penetrantes por papel, madeira, açúcar, giz, diversos metais e outras substâncias. O mundo parecia estar repleto de corpos que emitiam radiações invisíveis, capazes de atravessar papel opaco à luz e de sensibilizar chapas fotográficas (STEWART, 1898; MARTINS, 1990).

A hiperfosforescência

Foi em meio a esses trabalhos que Henri Becquerel descreveu que uma certa substância fosforescente (sulfato duplo de uranila e potássio) emitia radiações penetrantes semelhantes a raios X (BECQUEREL, 1896a, 1896b). Tratava-se aparentemente de uma nova confirmação da conjetura de Poincaré, embora possua hoje um outro significado para nós, pelos desenvolvimentos ocorridos posteriormente. Independentemente de Becquerel, o físico inglês Silvanus Thompson descreveu um fenômeno semelhante, para o nitrato de urânio (THOMPSON, 1896a, 1896b).

Antonie Henri Becquerel. Seu trabalho permitiu que a radioatividade fosse descoberta pouco tempo depois pelos Curie. 
Tanto Becquerel quanto Thompson acreditaram que os compostos de urânio estudados emitiam algo semelhante à radiação ultravioleta (ondas eletromagnéticas com pequeno comprimento de onda). Uma das hipóteses sobre os raios X era que se tratava de radiação semelhante à ultravioleta, porém com maior poder de penetração. As observações pareciam indicar que a emissão de radiação pelo urânio se tornava mais forte após colocar seus compostos ao Sol (ou seja, parecia um tipo de fosforescência).

No entanto, nos fenômenos luminescentes comuns, a radiação emitida tem um comprimento de onda maior do que o da radiação absorvida (“lei de Stokes”) e os raios luminosos não deveriam, por isso, produzir a emissão de radiação ultravioleta. Tanto Becquerel quanto Thompson acreditaram por isso tratar-se de um caso de violação da lei de Stokes. Na época, isso não parecia de modo nenhum absurdo, pois haviam sido relatados casos em que a lei de Stokes não era obedecida. Becquerel dispunha até mesmo de uma hipótese teórica que lhe permitia antecipar que tal tipo de violação deveria ocorrer particularmente no caso dos compostos do urânio. (MARTINS, 1997b).

Aquilo que atualmente chamamos de “radioatividade” é um fenômeno no qual certos tipos de núcleos atômicos se desintegram espontaneamente, emitindo radiações penetrantes (alfa, beta e gama), de alta energia, e se transformando em núcleos diferentes. Não foi isso, no entanto, que Becquerel descobriu em 1896, ao perceber que certos compostos do urânio emitiam radiações penetrantes. No final do século XIX, ninguém pensava que os átomos tinham um núcleo. Becquerel não imaginou que estava diante de algum tipo de fenômeno de transformação atômica, nem percebeu que havia diferentes tipos de radiações. No período estudado no presente artigo, não se conhecia a natureza das radiações emitidas pelo urânio, nem se sabia da existência de diferentes tipos de radiação (a, b e g), que só foram identificadas nos anos seguintes.

Becquerel afirmou ter confirmado experimentalmente que a radiação do urânio era de natureza eletromagnética, semelhante à luz (refração, reflexão, polarização) e que a emissão diminuía lentamente no escuro, como uma fosforescência invisível de longa duração (BECQUEREL, 1896c, 1896d, 1896e, 1896f)2. Thompson aceitou os resultados de Becquerel e propôs para o fenômeno o nome de “hiperfosforescência”, que se popularizou rapidamente3. Becquerel, por sua vez, chamava essa radiação de “raios do urânio”, pois pensava que se tratava de um fenômeno específico dos compostos desse elemento. O nome “radioatividade” foi proposto pelos Curie, em meados de 1898(4).

Um ano após a descoberta dos raios X ainda não havia certeza sobre sua natureza, mas a opinião mais aceita era a de que se tratava de ondas eletromagnéticas transversais de altíssima freqüência, ou seja, radiação ultravioleta de pequeno comprimento de onda. Não havia sido observada reflexão, refração, difração nem polarização dos raios X, mas isso poderia ser devido ao comprimento de onda excessivamente pequeno. Por outro lado, como Becquerel aparentemente havia mostrado que a radiação do urânio era de natureza eletromagnética e podia ser refletida, refratada e polarizada, podia-se supor que se tratava de radiação intermediária entre os raios X e a radiação ultravioleta comum:

“É impossível discutir aqui o que os raios de Röntgen são realmente, mas talvez seja permissível dizer que um grande número de físicos está agora inclinado a adotar a opinião de que, afinal, estamos tratando com vibrações transversais do éter muito distantes e além do ultravioleta com o qual já estamos familiarizados há muito tempo. Se assim for, não existe razão para assumir que há uma lacuna entre o ultravioleta e os raios X; e realmente Becquerel recentemente nos deu prova da existência de raios emanados do urânio e de seus sais que sugere a possibilidade de que alguns deles já tenham sido descobertos”. (MACINTYRE, 1897, p. 282).

Após um ano de estudos, a investigação da radiação do urânio não proporcionava mais nenhum resultado interessante. Pouquíssimas pessoas se interessaram pelo assunto – um deles sendo o jovem físico Georges Sagnac, que terá um papel curioso descrito posteriormente (SAGNAC, 1896). O próprio Becquerel foi se desinteressando pelo assunto e nunca chegou a fazer uma busca sistemática de outros materiais que tivessem propriedades semelhantes aos compostos do urânio. Em 1897, ele começou a se dedicar a um novo tema de pesquisa que estava em moda na época – o “efeito Zeeman” (ROMER, 1970).

A própria atitude de Becquerel mostra que não era “natural” procurar outros elementos que emitissem radiações como as do urânio. Procurar ou não procurar outros elementos dependia das expectativas que o pesquisador tivesse – e, para Becquerel, que acreditava que o urânio era um elemento sui generis, essa busca não tinha sentido (MARTINS, 1997b).

Os efeitos elétricos da radiação

Logo após a descoberta dos raios X, diversos pesquisadores, independentemente uns dos outros, notaram que a nova radiação era capaz de descarregar eletroscópios e que isso ocorria porque o ar atingido pelos raios X se tornava condutor de eletricidade (CHILD, 1897). O primeiro a divulgar tal descoberta foi o físico inglês Joseph John Thomson, em trabalho apresentado no dia 27 de janeiro de 1896 à Cambridge Philosophical Society (THOMSON, 1896a, 1896b).

Joseph John Thomson, descobridor do elétron. 
Na reunião da Academia de Ciências de Paris de 3 de fevereiro, Benoist e Hurmuzescu informaram uma descoberta equivalente (BENOIST & HURMUZESCU, 1896), e em 9 de março Röntgen publicou um trabalho em que descrevia o mesmo fenômeno (RÖNTGEN, 1897; MARTINS, 1997a). Foram J. J. Thomson e seus colaboradores de Cambridge (especialmente J. A. McClelland e Ernest Rutherford) que fizeram um cuidadoso estudo quantitativo do fenômeno, propondo alguns meses depois a explicação que aceitamos ainda hoje: os raios X rompem as moléculas neutras do ar e produzem íons positivos e negativos, capazes de conduzir a eletricidade (THOMSON & RUTHERFORD, 1896; FEATHER 1958).

No entanto, esses íons de sinais opostos se atraem e tendem a se recombinar, por isso o ar volta a se comportar como um isolante pouco tempo depois que cessa a ação dos raios X sobre ele. O modelo desenvolvido por Thomson permitia prever e explicar muitas características do fenômeno, como a relação entre pressão do gás e sua condutividade, relação entre a corrente elétrica produzida e a distância entre duas placas paralelas, a existência de uma corrente elétrica de saturação, etc.

Guiado pela semelhança entre os raios X e os raios emitidos pelo urânio, Becquerel também investigou se seus raios tornavam o ar condutor, e confirmou essa nova semelhança (BECQUEREL, 1896d). O estudo da condutividade do ar sob efeito dos raios do urânio foi desenvolvido, em seguida, por Lord Kelvin e colaboradores (Lord KELVIN et al., 1897a, 1897b), e em 1898 foi aprofundado por Ernest Rutherford, utilizando a mesma teoria empregada para descrever a ionização produzida pelos raios X.

Logo se tornou claro que os efeitos elétricos da radiação eram muito mais úteis do que o uso da fotografia na investigação científica das radiações, pois o estudo da ionização do ar permitia medir a radiação, sendo por isso superior ao uso de chapas fotográficas. O método fotográfico, utilizado por Becquerel nos seus principais estudos, não permitia medidas, sendo puramente qualitativo.

A intensidade das manchas fotográficas dependia evidentemente do próprio material fotográfico utilizado (e as chapas variavam muito de sensibilidade), assim como do processo de revelação, sendo impossível fazer uma comparação adequada entre duas fotografias obtidas em épocas diferentes. Além disso, o processo fotográfico é influenciado pela temperatura, umidade, pressão e por muitas substâncias químicas, por isso o surgimento de uma mancha em uma placa fotográfica podia ocorrer tanto por influência de radiações penetrantes como por outros motivos.

Pode-se atribuir exatamente a efeitos desses tipos as “descobertas” acima referidas de tantas substâncias que pareciam emitir radiações penetrantes. Enquanto as chapas fotográficas eram o processo principal de detecção de radiação, ficava impossível distinguir as radiações do urânio de todos os outros efeitos espúrios. Dois dos investigadores franceses que se dedicaram ao estudo de descargas elétricas produzidas pelos raios X foram Jean Perrin e Georges Sagnac. Quando os raios X atravessam o ar entre duas placas metálicas que formam um capacitor, esse ar se torna condutor de eletricidade, como já foi dito. Se os raios X atingirem as próprias placas metálicas, o efeito se torna maior do que se ele passar apenas pelo ar. Perrin estudou esse fenômeno e imaginou que os raios X agiam diretamente sobre o metal, produzindo algo semelhante ao efeito fotoelétrico (PERRIN, 1897).

Georges Sagnac, pelo contrário, estudando os metais atingidos pelos raios X notou a emissão de raios secundários, que possuíam a característica de serem mais fortemente absorvidos do que os raios X incidentes (SAGNAC, 1898a)5. Esses raios secundários (ou raios S)6 produziam forte ionização do ar. Uma espessura de poucos milímetros de ar já produzia uma absorção significativa desses raios secundários, enquanto os raios X podiam atravessar espessuras de vários metros de ar. Em metais, a absorção desses raios secundários era cerca de 100 vezes maior do que a dos raios X incidentes. Não se tratava de um mero espalhamento da radiação e sim de um fenômeno semelhante à fluorescência. Perrin logo aceitou os resultados de Sagnac (PERRIN, 1898).

Prosseguindo seus estudos, Sagnac logo notou que uma fina placa metálica atingida por raios X emitia raios secundários para os dois lados (SAGNAC, 1898b). Indicou que embora a placa só absorvesse uma fração muito pequena dos raios X, transformando-os em raios secundários, esses raios secundários produziam fortes efeitos em chapas fotográficas, painéis fluorescentes e eletroscópios.

Essa transformação de raios X em raios S dependeria do material utilizado (SAGNAC, 1898d). Comparando o ar, a água, o alumínio, o cobre, o zinco e o chumbo, Sagnac notou que os raios secundários eram cada vez menos penetrantes, ou seja, havia uma maior transformação dos raios X. Os raios secundários produzidos pelo zinco e pelo chumbo, em particular, eram menos penetrantes do que os raios X emitidos por qualquer tubo existente na época.

Como veremos mais adiante, esse trabalho de Sagnac teve forte influência sobre os Curie.

A contribuição de Gerhard Schmidt

Em janeiro de 1898, Gerhard Carl Nathaniel Schmidt (1865-1949) deu uma grande contribuição para o estudo daquilo que denominamos ‘radioatividade’ (SCHMIDT, 1898; BADASH, 1966). Ele utilizou o método elétrico para estudar diversas supostas radiações e percebeu que os materiais fosforescentes comuns não ionizavam o ar – portanto, não emitiam raios X nem nada parecido. Da mesma forma, os vaga-lumes e outras substâncias que supostamente emitiam radiações penetrantes não produziam nenhum efeito sobre a condutividade do ar.

O urânio ionizava o ar, e o fósforo também tinha uma propriedade semelhante, que já havia sido descoberta alguns anos antes, mas no caso do urânio todos os seus compostos, qualquer que fosse o estado físico ou químico em que se encontrasse, emitiam essas radiações, enquanto no caso do fósforo o efeito dependia das condições químicas, existindo o efeito apenas para o elemento puro e não ocorrendo para os seus compostos. Não se tratava, portanto, de um fenômeno associado a um determinado elemento químico, como no caso do urânio.

Schmidt procurou outras substâncias que tivessem efeitos semelhantes ao do urânio e encontrou que o tório também emitia radiações penetrantes, capazes de ionizar o ar e de penetrar através de papel opaco, sensibilizando placas fotográficas. Pode-se dizer que, pelo método elétrico, Schmidt conseguiu diferenciar as radiações do urânio de efeitos espúrios e descobriu a emissão de radiação pelo tório. No entanto, o trabalho de Schmidt não trouxe outras contribuições importantes – de fato, seu nome está associado, na história da radioatividade, apenas a esse passo (STUEWER, 1970). O método elétrico foi útil, mas ele sozinho não levou à descoberta do polônio e do rádio.

O início das pesquisas de Marie Curie

Independentemente de Schmidt, Marie Sklodowska Curie (1867-1934) também descobriu a emissão de radiações penetrantes pelo tório, logo no início de suas pesquisas (CURIE, 1898). Com 30 anos de idade, Marie Curie era, nessa época, uma pessoa diplomada em física e matemática7, com uma curta experiência de pesquisa de caráter tecnológico – o estudo da magnetização de diversos tipos de aços industriais8. Estava casada desde 1895 com Pierre Curie (1859-1906), um físico mais experiente e 8 anos mais velho do que ela. No final de 1897, época do nascimento de sua primeira filha (Irène), Marie decidiu iniciar uma pesquisa para obtenção do título de doutoramento em física. Nessa época, o título era obtido pela defesa direta de tese, já que não existiam cursos de pós-graduação.

O casal Curie, Pierre e Marie. 
O tema escolhido para a tese foi o estudo das radiações do urânio, através do método elétrico. O que motivou essa escolha, numa época em que ninguém dava atenção a esse fenômeno? Não o sabemos, mas há alguns elementos que ajudam a compreender isso. Um dos motivos parece ter sido prático: o estudo da condutividade do ar produzida pelos raios do urânio poderia ser feito com uma aparelhagem muito simples, desenvolvida por Pierre Curie e seu irmão Jacques, empregando um eletrômetro e um cristal piezoelétrico9. Por outro lado, é possível que Jean Perrin e Georges Sagnac – amigos do casal Curie – tivessem alguma influência na escolha, já que ambos haviam pesquisado a condutividade do ar produzida pelos raios X, e Sagnac havia escrito a respeito da radiação do urânio10.

Nessa época, o estudo da radiação de Becquerel era um assunto pouco explorado (havia menos de 20 artigos sobre esses raios), não muito importante, porém curioso – um tema adequado para uma tese de uma pesquisadora principiante. Não havia a expectativa de fazer nada de excepcional. A pesquisa planejada inicialmente era um estudo padrão, de reproduzir para os raios do urânio o mesmo tipo de estudo que já fora feito para os raios X. A justificativa apresentada pela própria Marie Curie para o uso da técnica elétrica era que ela permitia obter resultados mais rápidos do que o método fotográfico e fornecia medidas numéricas, comparáveis entre si:

“Em geral, utilizou-se nesses estudos o método elétrico, quer dizer, o método que consiste em medir a condutibilidade do ar sob a influência dos raios que se estuda. Esse método possui, de fato, a vantagem de ser rápido e de fornecer números que podem ser comparados entre si”. (CURIE, 1899, p. 41).

Marie Curie não pertencia a nenhuma instituição científica, na época. Seu marido, Pierre, era professor de uma escola de engenharia, a École Municipale de Physique et de Chimie Industrielles, de Paris. O diretor da escola, Charles Schützenberger, autorizou Marie a utilizar um canto de uma sala que servia de casa de máquinas e depósito. Era uma sala úmida e fria11, mas foi o único local disponível para seu trabalho. Costuma-se descrever a pesquisa inicial de Marie Curie como uma busca sistemática por outros elementos, além do urânio, que fossem capazes de emitir radiações semelhantes (ver, por exemplo, WEILL 1970, p. 498).

A própria Marie escreveu, em 1899:

“Após os trabalhos do Sr. Becquerel, era natural perguntar-se se o urânio é o único metal que desfruta de propriedades tão particulares. O Sr. Schmidt estudou sob esse ponto de vista um grande número de elementos e de seus compostos; ele encontrou que os compostos do tório são os únicos dotados de uma propriedade semelhante. Fiz um estudo do mesmo tipo, examinando compostos de quase todos os corpos simples atualmente conhecidos [...]; cheguei ao mesmo resultado que o Sr. Schmidt”. (CURIE 1899, pp. 41-2).

Essa versão, que se apoia também no texto do primeiro artigo publicado por Marie, não parece corresponder à realidade histórica. De um modo geral, é preciso analisar cum grano salis as versões apresentadas pelos próprios cientistas em seus trabalhos publicados, e nesse caso em particular dispomos de documentos que nos permitem desvendar o caminho seguido por Marie Curie no início de suas pesquisas.

Foram conservados os três cadernos de laboratório dos Curie em que são descritos os experimentos realizados a partir de 1897 a 1900(12). A partir desses cadernos, é possível verificar que Marie Curie iniciou seus experimentos com radiações no dia 16 de dezembro de 1897. Suas primeiras atividades consistiram em testes preliminares e familiarização com o aparelho – certamente sob a orientação de Pierre Curie. A manipulação do aparelho não era muito simples – exigia uma certa prática para regular manualmente a força exercida sobre o cristal piezoelétrico.

Os primeiros experimentos mediram a condutividade do ar sob ação tanto de raios X quanto do urânio metálico13. A seguir, vamos descrever uma reconstrução historiográfica do trabalho de Marie Curie, alertando os leitores que, em muitos pontos, os documentos disponíveis não permitem afirmar com certeza o que Marie pensava sobre o que estava fazendo e observando.

Dezembro-Janeiro de 1898

Durante os dois primeiros meses de trabalho, a maior parte das medidas era simplesmente uma reprodução de experimentos já realizados a respeito da condução do ar produzida por raios X: mudava-se a distância entre as placas, o sinal das cargas, a tensão aplicada, colocava-se placas metálicas finas sobre o urânio, etc., construindo-se curvas com os dados experimentais14. No entanto, em meio a esse trabalho de rotina, Marie registrou alguns resultados importantes:
  • aquecimento não aumenta a intensidade da radiação do urânio (1° de janeiro).
  • iluminação e irradiação com raios X não aumentam a radiação do urânio15 (5 de janeiro).

O que estava guiando esses primeiros experimentos? As anotações do caderno de laboratório não indicam o que Marie Curie estava pensando, mas sim o que ela estava fazendo. Aparentemente, os primeiros experimentos se destinavam a testar se a emissão de radiação pelos urânio era um tipo de fosforescência invisível, como Becquerel e Thompson acreditavam. A intensidade da luz emitida por materiais fosforescentes é fortemente influenciada pelo aquecimento e também aumenta quando o material é colocado sob luz forte, diminuindo lentamente depois, no escuro. Mesmo submetendo o urânio a raios X, isso não influenciava a emissão de radiação, por isso provavelmente não se tratava de um fenômeno semelhante à fosforescência16. Os primeiros resultados levavam, por isso, a questionar o conceito de hiperfosforescência.

Outro resultado obtido nesse período foi que a absorção dos raios do urânio pelo alumínio era mais forte do que a dos raios X. Nem todos os raios X possuem igual poder de penetração: sabia-se que suas propriedades dependiam do tubo empregado e da voltagem das descargas que estimulavam a emissão. Os raios X mais penetrantes eram chamados de “raios X duros” e os menos penetrantes eram os “raios X moles”. A radiação do urânio se comportava como raios X moles. Marie Curie associou essa forte absorção aos raios secundários que haviam sido estudados por Sagnac:

O fraco poder penetrante dos raios urânicos e tóricos conduziu a compará-los aos raios secundários que são produzidos pelos raios Röntgen, e cujo estudo foi feito pelo Sr. Sagnac, em vez de aos próprios raios Röntgen (CURIE, Marie, Recherches sur les substances radioactives, p. 8).

Fevereiro de 1898

O segundo grupo de resultados obtidos por Marie Curie, em fevereiro, referia-se ao estudo de diferentes substâncias, comparando-as com o urânio. A partir de 10 de fevereiro, ela examinou um grande grupo de metais (cobre, zinco, chumbo, estanho, platina, ferro, ouro, paládio, cádmio, antimônio, molibdênio, tungstênio) e observou que nenhum deles produzia condutividade no ar. Depois (17 de fevereiro) examinou um mineral de urânio (pechblenda17 ou uraninita), que produziu efeitos semelhantes ao urânio puro, como se previa. No entanto, notou um fato estranho: a corrente elétrica observada com a pechblenda era maior do que no caso do urânio metálico puro.

Ora, Becquerel havia observado que a radiação do urânio metálico era mais intensa do que de qualquer de seus compostos, e esperava-se portanto que a pechblenda mostrasse uma atividade18 inferior à do urânio metálico. A primeira reação de Marie Curie foi a de que poderia ter ocorrido um erro experimental. O caderno de laboratório mostra que ela examinou a aparelhagem, fez testes, refez as medidas – e confirmou os resultados iniciais.

Havia algo de estranho. Teria Becquerel se enganado? O caderno de laboratório mostra que Marie Curie fez logo depois medidas utilizando vários compostos de urânio (óxido de urânio, uranato de amônio) e notou que todos eles tinham radiação menos intensa do que urânio metálico, enquanto a pechblenda, repetidamente testada, teimava em se mostrar mais ativa (18 e 19 de fevereiro).

Este foi um ponto decisivo da pesquisa de Marie Curie. Ela poderia simplesmente não ter dado atenção a essa anomalia da pechblenda e ter continuado sua pesquisa de rotina, para terminar rapidamente sua tese. Mas sua atenção foi capturada pelo fenômeno imprevisto e isso redirecionou toda sua pesquisa. Provavelmente a partir dessa época ela começou a suspeitar que a pechblenda, além do urânio, continha alguma outra substância que também emitia radiações ionizantes e que não havia sido ainda detectada.

Fevereiro-março de 1898

Logo depois Marie Curie examinou muitas substâncias diferentes (aparentemente ao acaso), disponíveis na Escola de Física e Química Industriais, e nenhuma delas emitia radiações ionizantes. Esses testes devem ter convencido Marie de que, se havia algum outro elemento que emitia radiações como as do urânio, tratava-se de um elemento raro.

A pechblenda contém, além de óxido de urânio, várias outras substâncias em pequena quantidade – incluindo tório. Talvez por causa disso Marie tenha examinado em seguida um mineral de tório e nióbio, que não contém urânio (24 de fevereiro), e logo notou que ele emitia radiação ionizante. Examinou então minerais que continham nióbio e notou que não mostravam atividade. Testando separadamente os elementos presentes nesse mineral, observou que apenas o tório emitia radiações (26 de fevereiro).

Exemplar de pechblenda em estado mineral. 
Analisando em seguida diversos minerais de urânio e de tório, notou que todos eles emitiam radiação ionizante, e testando várias outras substâncias, não encontrou nenhuma outra ativa (2 de março).

Estava, assim, estabelecida a existência de um segundo elemento – o tório – com propriedades semelhantes às do urânio. O que Marie Curie não sabia é que Schmidt já havia feito e publicado a mesma descoberta, algumas semanas antes.

Uma propriedade atômica?

Nesse momento, a pesquisa de Marie Curie variava entre o estudo de minerais naturais e de compostos químicos puros. Examinando alguns compostos de laboratório do tório e do urânio, Marie notou que a emissão de radiação parecia ser aproximadamente proporcional à quantidade do metal presente, não dependendo da presença de outras substâncias inativas, que atuavam apenas absorvendo a radiação.

Nesta época, provavelmente, Marie Curie adotou a hipótese de que a emissão de radiação penetrante é uma propriedade atômica, no seguinte sentido:
  • depende da presença de alguns elementos químicos particulares
  • a intensidade da radiação é proporcional à porcentagem desses elementos químicos nos compostos estudados (descontando-se a absorção produzida por elementos inertes)
  • não depende de propriedades moleculares (outros elementos químicos inativos não alteram a emissão de radiação)

Note-se que não havia sido feita ainda nenhuma suposição de que estivesse ocorrendo alguma transformação dos átomos (eles eram considerados imutáveis).

A hipótese da propriedade atômica explicava muitos fatos, mas conflitava com as observações sobre alguns minerais, já que a radiação de alguns minerais, como a pechblenda e a calcolita, era mais forte do que dos seus componentes. Marie Curie fez repetidas comparações desses minerais com o urânio metálico (21-28 de março), o que parece mostrar que essa anomalia incomodava muito a pesquisadora. Era importante verificar se a hipótese estava correta ou não, e explicar essa discrepância.

A calcolita é um mineral que contém principalmente fosfato duplo de urânio e de cobre. A amostra examinada por Marie Curie tinha uma atividade muito superior à do urânio ou do tório puros. Seria possível que a associação do urânio com outros elementos pudesse, pela combinação química, alterar suas propriedades e aumentar a radiação? Ou haveria alguma impureza no mineral que era responsável pela anomalia?

Para tentar esclarecer esse ponto, Marie Curie sintetizou o fosfato duplo de urânio e de cobre, a partir de substâncias químicas puras. A calcolita artificial assim produzida era menos ativa do que o urânio metálico puro, ou seja, comportava-se do modo “normal”, como os outros compostos de urânio (31 de março). Esse resultado confirmava a hipótese de propriedade atômica e sugeria que havia na calcolita natural algum outro elemento desconhecido, mais ativo do que o urânio.

A partir desse instante, a hipótese da propriedade atômica conduziu as pesquisas do casal Curie, levando pouco depois à descoberta do polônio e do rádio. O papel das pesquisas de Marie Curie tem sido interpretado a partir de uma visão bastante diferente, como se os passos decisivos tivessem sido devidos apenas ao uso de um novo tipo de aparelhagem, à obtenção de dados quantitativos (ver WYART 1970, p. 507) e ao exame sistemático dos elementos (ver BADASH 1965, p. 134).

Em vez dessa versão com sabor positivista, um artigo mais recente enfatizou a existência de aspectos teóricos no trabalho de Marie Curie (DAVIS 1995, p. 329) mas não indicou nenhuma influência das suas hipóteses como orientadoras do trabalho de pesquisa. De acordo com a interpretação aqui aventada, pode-se dizer que os elementos básicos que contribuíram para o sucesso da pesquisa dos Curie foram:
  • uso do método elétrico, que era rápido, além de proporcionar resultados quantitativos, e permitiu eliminar efeitos espúrios;
  • papel do acaso, que permitiu encontrar minerais mais ativos do que urânio puro;
  • a atitude de dar atenção às anomalias (os Curie poderiam não ter se preocupado com o caso da pechblenda);
  • imaginar, testar e utilizar a hipótese de que a emissão de radiações ionizantes era uma propriedade atômica.

Este último ponto é aquilo que distingue os Curie dos demais investigadores da época. Para nós, que fomos educados dentro de uma determinada visão da radioatividade, essa hipótese pode ter aparência de algo que deveria surgir naturalmente, mas não parece ter ocorrido de forma clara no trabalho de outros pesquisadores da época. De onde ela pode ter saído?

Essa hipótese não foi, certamente, uma generalização tirada a partir dos experimentos. Afinal de contas, ela conflitava com alguns resultados, como os obtidos pelo estudo dos minerais. A seguir, será proposta uma nova interpretação: a de que, apesar de conflitar com alguns resultados, essa hipótese era considerada como plausível e merecedora de investigação pelos Curie porque era reforçada por outra hipótese, baseada em semelhanças entre radiações do urânio (e do tório) e raios X secundários.

Hipótese da emissão secundária

Como já foi descrito, quando um material é atingido por raios X, ele emite outros raios menos penetrantes (raios secundários) que foram estudados por Sagnac. Esses raios secundários são absorvidos mais facilmente pela matéria (são menos penetrantes) mas produzem efeitos fotográfico e de ionização mais fortes do que os primários (sendo, por isso, mais fáceis de detectar)19. Os estudos de Sagnac haviam indicado que a produção desses raios secundários é mais forte quando os raios X atingem substâncias contendo os elementos de maior peso atômico, como o chumbo.

Ora, o urânio era o elemento de maior peso atômico conhecido e o tório era o elemento seguinte, na escala decrescente de pesos atômicos; além disso, a radiação do urânio era semelhante aos raios X moles. Não haveria alguma relação entre todos esses fatos? Analogia com os raios secundários dos raios de Röntgen – As propriedades dos raios emitidos pelo urânio e pelo tório são muito análogas [très analogues] às dos raios secundários dos raios de Röntgen, estudados recentemente pelo Sr. Sagnac. Constatei além disso que, sob a ação dos raios de Röntgen, o urânio, a pechblenda e o óxido de tório emitem raios secundários que, do ponto de vista da descarga dos corpos eletrizados, produzem geralmente mais efeito do que os raios secundários do chumbo. Entre os metais estudados pelo Sr. Sagnac, o urânio e o tório estariam colocados ao lado e além do chumbo (CURIE, 1898, p. 1103).

Para explicar a emissão de radiações pelo urânio e pelo tório, Marie Curie formulou uma nova hipótese. Poderia existir em todo o espaço uma radiação desconhecida, difícil de ser detectada, semelhante aos raios X duros (porém muito mais penetrantes). Essa radiação poderia passar por chapas fotográficas e por outros materiais praticamente sem ser absorvida e, por isso, sem ser notada. No entanto, ela seria absorvida e transformada em radiação secundária menos penetrante ao atingir os elementos de maior peso atômico. A emissão de radiação pelo urânio, pelo tório e seus compostos poderia ser um fenômeno desse tipo, semelhante à fluorescência.

Para interpretar a radiação espontânea do urânio e do tório poder-se-ia imaginar que todo o espaço está constantemente atravessado por raios análogos aos raios de Röntgen porém muito mais penetrantes e que só poderiam ser absorvidos por certos elementos de grande peso atômico, tais como o urânio e o tório (CURIE, 1898, p. 1103).

Essa hipótese da emissão secundária tinha pequena fundamentação, não havendo qualquer evidência de que existisse tal tipo de radiação “cósmica” 20. No entanto, ela conduzia naturalmente à idéia de que apenas alguns elementos (de alto peso atômico) seriam ativos como o urânio, apoiando, portanto a hipótese da propriedade atômica.

Essas duas hipóteses, embora sem fundamentação experimental, reforçavam-se mutuamente, e conduziram o pensamento de Marie Curie, sendo responsáveis em grande parte pelo sucesso de suas investigações iniciais. Posteriormente, no entanto, a hipótese da emissão secundária tornou-se um obstáculo, pois cessou de levar a novas descobertas e impediu os Curie de desvendarem a natureza da radioatividade.

Aparentemente essa hipótese estava dirigindo o trabalho de Marie Curie logo após o teste da calcolita artificial, pois no dia seguinte (1° de abril) ela realizou testes para verificar se o urânio e o tório (ou seus compostos) emitiam uma radiação mais intensa enquanto estavam sendo irradiados com raios X, procurando detectar uma radiação secundária. A descrição desses experimentos não é muito precisa, mas de qualquer modo confirma que a hipótese da emissão secundária estava guiando essa investigação.

Logo em seguida, Marie Curie se sentiu suficientemente segura para escrever seu primeiro artigo sobre o assunto. Essa comunicação (um trabalho curto, com apenas 3 páginas) foi lido diante da Academia de Ciências de Paris por Gabriel Lippmann21. O trabalho continha, essencialmente, os resultados obtidos durante esses primeiros meses de pesquisa, dando maior ênfase à descoberta da radioatividade do tório. Esse artigo e os que o sucederam (descoberta do polônio e do rádio) não serão descritos aqui. Eles serão objeto de análise detalhada em um outro estudo, a ser publicado futuramente.

Conclusão

Quando se analisa o desenvolvimento do trabalho inicial de Marie Curie, a partir de seus cadernos de laboratório e levando em conta o contexto da época, verifica-se que seu trabalho experimental não foi guiado por uma mera busca empírica de novos elementos radioativos, mas sim por uma série de hipóteses, e uma forte influência pelos estudos de Sagnac sobre a radiação secundária emitida por metais atingidos pelos raios X.

Já no seu primeiro artigo, publicado após poucos meses de investigação, Marie Curie apresenta a hipótese da natureza atômica da radiação, que guiou suas pesquisas posteriores. Em grande parte, o sucesso do trabalho dos Curie foi devido a essa hipótese que não tinha fundamentação experimental, mas que era reforçada por uma outra conjetura (a hipótese de emissão secundária) que também não era fundamentada.

Agradecimentos
O autor agradece o apoio recebido da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), sem o qual teria sido impossível a realização desta pesquisa.

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NOTAS:
1 Uma boa descrição histórica sobre esse período pode ser encontrada nos artigos: JAUNCEY 1946 e BADASH 1965. Ver também MARTINS, 1990.
2 Antes de 1898, apenas dois aspectos do trabalho de Becquerel haviam sido criticados: a polarização dos raios de urânio e a excitação dessa radiação pela luz. Gustave le Bon foi o primeiro a colocar em dúvida a polarização da radiação do urânio, em maio de 1897. Quanto à excitação por luz, Julius Elster e Hans Geitel, em 1897, notaram que a emissão de radiação pelo urânio não aumentava quando ele era submetido à luz solar, e permanecia constante no escuro, durante vários meses (ELSTER & GEITEL 1897).
3 Weill atribuiu erroneamente a invenção do nome “hiperfosforescência” a Henri Poincaré (WEILL 1970, p. 498).
4 A palavra aparece pela primeira vez no título do artigo “Sobre uma nova substância radio -ativa contida na pechblenda” (CURIE & CURIE, 1898).
5 Os resultados obtidos por Sagnac não eram totalmente novos. Logo após a descoberta dos raios X, Röntgen e outros pesquisadores haviam investigado se essas radiações podiam ser refletidas por metais e outras substâncias. Os primeiros resultados indicavam que não havia reflexão regular, mas que ocorria aparentemente uma difusão de raios X, ou seja, uma parte dos raios X incidentes era espalhada para todos os lados quando atingiam uma superfície metálica. No entanto, estudando essa radiação difundida, Dwelshauvers-Dery notou que ela era menos penetrante do que os raios X incidentes (DWELSHAUVERS-DERY, 1896). Concluiu que “a reflexão difusa, constatada por diversos físicos, é devida, pelo menos em parte, à produção de raios diferentes dos raios X na substância; não é portanto uma reflexão propriamente dita” (DWELSHAUVERS-DERY, 1896, p. 487).
6 Atualmente nós nos referimos a raios X primários e raios X secundários. Sagnac utilizava uma nomenclatura um pouco diferente. Ele não se referia aos raios secundários como sendo um tipo de raios
X, mas dava-lhes um nome diferente (raios S), o que parece indicar que ele imaginava tratar-se de radiação de um outro tipo. Ele também não se referia aos raios X incidentes como raios “primários”.
7 Embora muitas vezes se associe Marie Curie à química (ver por exemplo WYART 1970, p. 507: “Marie Curie, por outro lado, tinha sido treinada principalmente como química...”), ela nunca teve qualquer título nessa área. Em 1893, Marie foi aprovada e classificada em primeiro lugar no concurso de licenciatura em física pela Sorbonne. No ano seguinte, foi aprovada em segundo lugar no concurso de licenciatura em matemática. Para informações biográficas sobre Marie Curie, ver: CURIE, Eve, Madame Curie; REID, Marie Curie.
8 Esse primeiro estágio de pesquisa da vida de Marie Curie foi obtido graças a seu ex-professor, Gabriel Lippmann, que foi também quem apresentou à Academia de Ciências de Paris o primeiro artigo de Marie sobre a radiação do tório.
9 Quando certos cristais são comprimidos ou distendidos, surgem cargas elétricas e produz-se uma diferença de potencial entre suas faces. Isso ocorre, por exemplo, no caso do quartzo. Esse tipo de fenômeno foi descoberto e investigado por Pierre e Jacques Curie (WYART 1970, p. 504), e tem hoje diversas aplicações práticas, como certos acendedores de fogão que soltam uma faísca quando se aperta
um botão. Na época, era muito difícil medir pequenas correntes elétricas com precisão. O efeito piezoelétrico permitia produzir cargas elétricas sempre iguais e reguláveis, aplicando-se ao cristal uma força sempre igual. Medindo-se cargas elétricas e o tempo, podia-se determinar com grande precisão e de modo reprodutível as pequenas correntes elétricas envolvidas no fenômeno. Como já estava familiarizado com esse fenômeno, Pierre Curie logo pensou em utilizá-lo na investigação das radiações do urânio.
10 Marie Curie utilizou em seus primeiros estudos uma câmara de ionização de placas paralelas, muito semelhante à utilizada por Perrin e por Sagnac anteriormente.
11 Uma famosa anotação de Marie Curie nos cadernos de laboratório, no dia 6 de fevereiro de 1898, indica que a temperatura ambiente era de 6°.
12 Esses cadernos, contaminados e fortemente radioativos como muitos outros documentos dos Curie, foram descritos por Irène Curie. Vamos nos basear nessa descrição (JOLIOT-CURIE, 1940), indicando as datas dos experimentos mais importantes, de tal forma a facilitar a verificação das informações em qualquer outra edição dessa obra.
13 O urânio metálico foi preparado pela primeira vez em 1896 por Henri Moissan, que foi quem forneceu amostras para Becquerel e depois aos Curie.
14 É provável que Marie Curie estivesse se baseando na tese de doutoramento de Jean Perrin sobre raios X (PERRIN, 1897).
15 Evidentemente, como os próprios raios X produzem efeitos de ionização do ar, os experimentos eram feitos irradiando-se o urânio e, depois de desligados os raios X, medindo-se a ionização produzida pelo urânio.
16 Marie Curie aceitou como provado conclusivamente por Elster e Geitel que a radioatividade não pode ser aumentada pela luz (CURIE, 1899).
17 O nome “pechblenda” é simplesmente um aportuguesamento de “pechblende” (em inglês, pitchblende) e não tem nenhum significado óbvio. No entanto, “pech” ou “pitch” significa pixe, e o min eral recebeu esse nome por ser negro e ter uma aparência semelhante à do pixe. A tradução correta seria, portanto, “pixeblenda”, mas como essa palavra não existe nos dicionários, vamos utilizar o termo absurdo tradicionalmente empregado por todos.
18 Não existia ainda a palavra “radioatividade”, mas desde o início de suas pesquisas Marie Curie
utilizava a expressão “atividade”.
19 A correlação entre essas propriedades pode ser compreendida facilmente em termos de trocas de energia. Uma radiação pouco penetrante é aquela que é absorvida facilmente e cuja energia, portanto, é facilmente transmitida a outros materiais. Essa energia absorvida pelas substâncias é que produz efeitos observáveis e, portanto, uma absorção mais fácil indica uma maior produção de efeitos observáveis. Inversamente, uma radiação muito penetrante é mais difícil de ser detectada (pensem, por exemplo, nos neutrinos atuais).
20 Aquilo que atualmente chamamos de radiação cósmica somente foi descoberto posteriormente, e não tem semelhança com aquilo que Marie Curie imaginava.
21 Os trabalhos lidos diante da Academia de Ciências só eram apresentados pelos seus próprios autores quando eles eram membros da Academia. Nos outros casos, era preciso que um membro da Academia se tornasse avalista do trabalho, apresentando-o.
22 Esta foi a tese de doutoramento de Marie Curie.
23 Este artigo reproduz a tese de doutoramento de Perrin.
24 Publicado sob forma de separata com o título: Eine neue Art von Strahlen. Würzburg: Verlag und Druck der Stahel’schen K. Hof - und Universitäts- Buch- and Kunsthandlung, 1895. Reproduzido também em: Annalen der Physik und Chemie [3] 64 (1): 1-11, 1898. Traduções em inglês: On a new kind of rays. Trad. Arthur Stanton. Nature 53 (1369): 274-6, 1896; On a new form of radiation. The Electrician 36 (13): 415-7, 1896. Tradução em francês: Une nouvelle espèce de rayons. Revue Générale des Sciences Pures et Appliquées 7: 59-63, 1896.
25 Publicado sob forma de separata com o título: Eine neue Art von Strahlen. II. Mittheilung. Würzburg: Verlag und Druck der Stahel’schen K. Hof - und Universitäts- Buch- and Kunsthandlung, 1896. Reproduzido também em: Annalen der Physik und Chemie [3] 64 (1): 12-7, 1898.


Fonte: MARTINS, Roberto de Andrade. As primeiras investigações de Marie Curie sobre elementos radioativos. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, São Paulo, v. 1, n. 1, 2003, p. 29-41. 

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