AS PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕES DE MARIE CURIE SOBRE ELEMENTOS
RADIOATIVOS
Dr. Roberto de Andrade Martins
Obs: As imagens presentes nesse texto foram escolhidas por mim, para ilustrar a obra do autor.
Introdução
Usualmente considera-se que a radioatividade foi descoberta por
Henri Becquerel, em 1896, e que a principal contribuição de Marie Curie foi a
descoberta de novos elementos radioativos (tório, polônio e rádio) em 1898. Essa
contribuição é apresentada como uma conseqüência do trabalho de Becquerel, uma vez
que depois da descoberta da radiação do urânio seria “natural” procurar se outros
elementos também emitiam radiações do mesmo tipo. Este artigo apresentará, no
entanto, uma nova interpretação do trabalho realizado por Marie Curie no início
de 1898.
Marie Curie |
Com a utilização de um método elétrico para obtenção de medidas
quantitativas da radiação, ela foi inicialmente capaz de diferenciar os
fenômenos que atualmente chamamos de ‘radioatividade’ de uma série de outros
fenômenos espúrios. Por outro lado, guiada por duas conjeturas a respeito da natureza
atômica do próprio fenômeno de emissão de radiação, conseguiu orientar de forma
bem sucedida uma busca de novos elementos radioativos.
Para permitir uma compreensão adequada do trabalho de Marie Curie,
será feita uma breve descrição do período anterior (1895 a 1897), desde a
descoberta dos raios X até o final das pesquisas de Becquerel1.
A descoberta dos raios X
No final de 1895, Wilhelm Conrad Röntgen descobriu a existência de
um novo tipo de “raios” (coisas que se propagam em linha reta, como a luz), a
que deu o nome utilizado para as incógnitas da álgebra, por desconhecer sua
natureza (RÖNTGEN, 1895; NITSKE, The life
of Wilhelm Conrad Röntgen; JAUNCEY, 1945;
MARTINS, 1998a, 1998b). Tratava-se de uma radiação penetrante, capaz de
atravessar materiais opacos à luz e às outras radiações conhecidas (raios catódicos,
raios ultravioletas e infravermelhos). Era emitida por tubos de alto vácuo,
quando os mesmos eram percorridos por uma descarga elétrica de alta voltagem.
A radiação foi estudada por Röntgen que, em poucas semanas,
determinou muitas de suas principais propriedades. Ela produzia luminescência
em certos materiais fluorescentes (esse foi o fenômeno que levou à sua descoberta),
sensibilizava chapas fotográficas, era invisível ao olho humano, não parecia
sofrer refração, nem reflexão, nem polarização. Não se tratava de luz (por ser invisível e
atravessar grandes espessuras de madeira ou papel), não era igual aos raios
catódicos (não sofria desvio com ímãs e tinha poder de penetração muito
superior), nem raios ultravioletas ou infravermelhos (pelo seu poder de
penetração).
Wilhelm Conrad Röntgen, descobridor do raio X. |
A divulgação da descoberta dos raios X, no início de 1896, teve
uma enorme repercussão na comunidade científica (MARTINS, 1997a). No mesmo ano,
foram publicados cerca de 1.000 artigos sobre a nova radiação – principalmente
sobre suas aplicações médicas. Muitos investigadores se voltaram imediatamente
para a pesquisa de novas propriedades dos raios X e o campo se desenvolveu
muito rapidamente.
Por se tratar de um fenômeno que não havia sido previsto teoricamente
nem era compreendido com base nas teorias da época, a descoberta de que existia
uma radiação estranha, que devia estar presente nos laboratórios de física há
muitos anos mas que não havia sido notada antes levou à procura de outras
radiações desconhecidas (que poderiam igualmente estar presentes sem terem sido
percebidas) e de outros processos de emissão de raios X.
Essa busca foi guiada, em grande parte, por uma hipótese
apresentada por Henri Poincaré em 20 de janeiro de 1896 (POINCARÉ, 1896). De
acordo com o primeiro trabalho de Röntgen sobre os raios X, a radiação saía do
ponto da parede de vidro do tubo de descarga que era atingido pelos raios
catódicos, e essa parte do vidro se tornava luminosa. Poincaré conjeturou que
poderia haver alguma relação entre a própria luminescência e a emissão dos
raios X, sugerindo que talvez todos os materiais luminescentes emitissem esse
tipo de radiação.
A conjetura de Poincaré foi imediatamente testada por diversos
pesquisadores, que descreveram experimentos que pareciam confirmá-la. Charles
Henry e Gaston Niewenglowski disseram ter detectado a emissão de radiações
penetrantes, semelhantes aos raios X, por substâncias fosforescentes comuns
(sulfeto de cálcio e sulfeto de zinco). Algum tempo depois, foi descrita a
emissão de radiações penetrantes por vaga-lumes e por bactérias luminescentes.
Por fim, como até mesmo algumas substâncias comuns são fracamente
fosforescentes, foram testadas muitas outras substâncias, e descrita a emissão
de radiações penetrantes por papel, madeira, açúcar, giz, diversos metais e outras
substâncias. O mundo parecia estar repleto de corpos que emitiam radiações invisíveis,
capazes de atravessar papel opaco à luz e de sensibilizar chapas fotográficas (STEWART,
1898; MARTINS, 1990).
A hiperfosforescência
Foi em meio a esses trabalhos que Henri Becquerel descreveu que
uma certa substância fosforescente (sulfato duplo de uranila e potássio) emitia
radiações penetrantes semelhantes a raios X (BECQUEREL, 1896a, 1896b).
Tratava-se aparentemente de uma nova confirmação da conjetura de Poincaré,
embora possua hoje um outro significado para nós, pelos desenvolvimentos
ocorridos posteriormente. Independentemente de Becquerel, o físico inglês
Silvanus Thompson descreveu um fenômeno semelhante, para o nitrato de urânio
(THOMPSON, 1896a, 1896b).
Antonie Henri Becquerel. Seu trabalho permitiu que a radioatividade fosse descoberta pouco tempo depois pelos Curie. |
Tanto Becquerel quanto Thompson acreditaram que os compostos de
urânio estudados emitiam algo semelhante à radiação ultravioleta (ondas
eletromagnéticas com pequeno comprimento de onda). Uma das hipóteses sobre os
raios X era que se tratava de radiação semelhante à ultravioleta, porém com
maior poder de penetração. As observações pareciam indicar que a emissão de
radiação pelo urânio se tornava mais forte após colocar seus compostos ao Sol
(ou seja, parecia um tipo de fosforescência).
No entanto, nos fenômenos luminescentes comuns, a radiação emitida
tem um comprimento de onda maior do que o da radiação absorvida (“lei de
Stokes”) e os raios luminosos não deveriam, por isso, produzir a emissão de
radiação ultravioleta. Tanto Becquerel quanto Thompson acreditaram por isso
tratar-se de um caso de violação da lei de Stokes. Na época, isso não parecia
de modo nenhum absurdo, pois haviam sido relatados casos em que a lei de Stokes
não era obedecida. Becquerel dispunha até mesmo de uma hipótese teórica que lhe
permitia antecipar que tal tipo de violação deveria ocorrer particularmente no
caso dos compostos do urânio. (MARTINS, 1997b).
Aquilo que atualmente chamamos de “radioatividade” é um fenômeno
no qual certos tipos de núcleos atômicos se desintegram espontaneamente,
emitindo radiações penetrantes (alfa, beta e gama), de alta energia, e se
transformando em núcleos diferentes. Não foi isso, no entanto, que Becquerel
descobriu em 1896, ao perceber que certos compostos do urânio emitiam radiações
penetrantes. No final do século XIX, ninguém pensava que os átomos tinham um
núcleo. Becquerel não imaginou que estava diante de algum tipo de fenômeno de
transformação atômica, nem percebeu que havia diferentes tipos de radiações. No
período estudado no presente artigo, não se conhecia a natureza das radiações
emitidas pelo urânio, nem se sabia da existência de diferentes tipos de
radiação (a, b e g), que só foram identificadas nos anos seguintes.
Becquerel afirmou ter confirmado experimentalmente que a radiação do
urânio era de natureza eletromagnética, semelhante à luz (refração, reflexão,
polarização) e que a emissão diminuía lentamente no escuro, como uma fosforescência
invisível de longa duração (BECQUEREL, 1896c, 1896d, 1896e, 1896f)2. Thompson
aceitou os resultados de Becquerel e propôs para o fenômeno o nome de
“hiperfosforescência”, que se popularizou rapidamente3. Becquerel, por sua vez,
chamava essa radiação de “raios do urânio”, pois pensava que se tratava de um
fenômeno específico dos compostos desse elemento. O nome “radioatividade” foi
proposto pelos Curie, em meados de 1898(4).
Um ano após a descoberta dos raios X ainda não havia certeza sobre
sua natureza, mas a opinião mais aceita era a de que se tratava de ondas
eletromagnéticas transversais de altíssima freqüência, ou seja, radiação
ultravioleta de pequeno comprimento de onda. Não havia sido observada reflexão,
refração, difração nem polarização dos raios X, mas isso poderia ser devido ao
comprimento de onda excessivamente pequeno. Por outro lado, como Becquerel
aparentemente havia mostrado que a radiação do urânio era de natureza
eletromagnética e podia ser refletida, refratada e polarizada, podia-se supor
que se tratava de radiação intermediária entre os raios X e a radiação
ultravioleta comum:
“É impossível discutir aqui o que os raios de Röntgen são
realmente, mas talvez seja permissível dizer que um grande número de físicos
está agora inclinado a adotar a opinião de que, afinal, estamos tratando com
vibrações transversais do éter muito distantes e além do ultravioleta com o
qual já estamos familiarizados há muito tempo. Se assim for, não existe razão
para assumir que há uma lacuna entre o ultravioleta e os raios X; e realmente
Becquerel recentemente nos deu prova da existência de raios emanados do urânio
e de seus sais que sugere a possibilidade de que alguns deles já tenham sido
descobertos”. (MACINTYRE, 1897, p. 282).
Após um ano de estudos, a investigação da radiação do urânio não
proporcionava mais nenhum resultado interessante. Pouquíssimas pessoas se
interessaram pelo assunto – um deles sendo o jovem físico Georges Sagnac, que
terá um papel curioso descrito posteriormente (SAGNAC, 1896). O próprio Becquerel
foi se desinteressando pelo assunto e nunca chegou a fazer uma busca
sistemática de outros materiais que tivessem propriedades semelhantes aos
compostos do urânio. Em 1897, ele começou a se dedicar a um novo tema de
pesquisa que estava em moda na época – o “efeito Zeeman” (ROMER, 1970).
A própria atitude de Becquerel mostra que não era “natural”
procurar outros elementos que emitissem radiações como as do urânio. Procurar
ou não procurar outros elementos dependia das expectativas que o pesquisador
tivesse – e, para Becquerel, que acreditava que o urânio era um elemento sui generis, essa busca não tinha
sentido (MARTINS, 1997b).
Os efeitos elétricos da radiação
Logo após a descoberta dos raios X, diversos pesquisadores,
independentemente uns dos outros, notaram que a nova radiação era capaz de descarregar
eletroscópios e que isso ocorria porque o ar atingido pelos raios X se tornava
condutor de eletricidade (CHILD, 1897). O primeiro a divulgar tal descoberta foi
o físico inglês Joseph John Thomson, em trabalho apresentado no dia 27 de
janeiro de 1896 à Cambridge Philosophical Society (THOMSON,
1896a, 1896b).
Joseph John Thomson, descobridor do elétron. |
Na reunião da Academia de Ciências de Paris de 3 de fevereiro,
Benoist e Hurmuzescu informaram uma descoberta equivalente (BENOIST &
HURMUZESCU, 1896), e em 9 de março Röntgen publicou um trabalho em que
descrevia o mesmo fenômeno (RÖNTGEN, 1897; MARTINS, 1997a). Foram J. J. Thomson
e seus colaboradores de Cambridge (especialmente J. A. McClelland e Ernest
Rutherford) que fizeram um cuidadoso estudo quantitativo do fenômeno, propondo
alguns meses depois a explicação que aceitamos ainda hoje: os raios X rompem as
moléculas neutras do ar e produzem íons positivos e negativos, capazes de
conduzir a eletricidade (THOMSON & RUTHERFORD, 1896; FEATHER 1958).
No entanto, esses íons de sinais opostos se atraem e tendem a se
recombinar, por isso o ar volta a se comportar como um isolante pouco tempo
depois que cessa a ação dos raios X sobre ele. O modelo desenvolvido por Thomson
permitia prever e explicar muitas características do fenômeno, como a relação entre
pressão do gás e sua condutividade, relação entre a corrente elétrica produzida
e a distância entre duas placas paralelas, a existência de uma corrente
elétrica de saturação, etc.
Guiado pela semelhança entre os raios X e os raios emitidos pelo
urânio, Becquerel também investigou se seus raios tornavam o ar condutor, e
confirmou essa nova semelhança (BECQUEREL, 1896d). O estudo da condutividade do
ar sob efeito dos raios do urânio foi desenvolvido, em seguida, por Lord Kelvin
e colaboradores (Lord KELVIN et al., 1897a, 1897b), e em 1898 foi aprofundado
por Ernest Rutherford, utilizando a mesma teoria empregada para descrever a ionização
produzida pelos raios X.
Logo se tornou claro que os efeitos elétricos da radiação eram
muito mais úteis do que o uso da fotografia na investigação científica das
radiações, pois o estudo da ionização do ar permitia medir a radiação, sendo por isso superior ao uso de
chapas fotográficas. O método fotográfico, utilizado por Becquerel nos seus
principais estudos, não permitia medidas, sendo puramente qualitativo.
A intensidade das manchas fotográficas dependia evidentemente do
próprio material fotográfico utilizado (e as chapas variavam muito de
sensibilidade), assim como do processo de revelação, sendo impossível fazer uma
comparação adequada entre duas fotografias obtidas em épocas diferentes. Além
disso, o processo fotográfico é influenciado pela temperatura, umidade, pressão
e por muitas substâncias químicas, por isso o surgimento de uma mancha em uma
placa fotográfica podia ocorrer tanto por influência de radiações penetrantes
como por outros motivos.
Pode-se atribuir exatamente a efeitos desses tipos as
“descobertas” acima referidas de tantas substâncias que pareciam emitir
radiações penetrantes. Enquanto as chapas fotográficas eram o processo principal
de detecção de radiação, ficava impossível distinguir as radiações do urânio de
todos os outros efeitos espúrios. Dois dos investigadores franceses que se
dedicaram ao estudo de descargas elétricas produzidas pelos raios X foram Jean
Perrin e Georges Sagnac. Quando os raios X atravessam o ar entre duas placas
metálicas que formam um capacitor, esse ar se torna condutor de eletricidade,
como já foi dito. Se os raios X atingirem as próprias placas metálicas, o
efeito se torna maior do que se ele passar apenas pelo ar. Perrin estudou esse
fenômeno e imaginou que os raios X agiam diretamente sobre o metal, produzindo algo
semelhante ao efeito fotoelétrico (PERRIN, 1897).
Georges Sagnac, pelo contrário, estudando os metais atingidos
pelos raios X notou a emissão de raios
secundários, que possuíam a característica de serem mais
fortemente absorvidos do que os raios X incidentes (SAGNAC, 1898a)5. Esses
raios secundários (ou raios S)6 produziam forte ionização do ar. Uma espessura
de poucos milímetros de ar já produzia uma absorção significativa desses raios
secundários, enquanto os raios X podiam atravessar espessuras de vários metros
de ar. Em metais, a absorção desses raios secundários era cerca de 100 vezes
maior do que a dos raios X incidentes. Não se tratava de um mero espalhamento
da radiação e sim de um fenômeno semelhante à fluorescência. Perrin logo
aceitou os resultados de Sagnac (PERRIN, 1898).
Prosseguindo seus estudos, Sagnac logo notou que uma fina placa
metálica atingida por raios X emitia raios secundários para os dois lados
(SAGNAC, 1898b). Indicou que embora a placa só absorvesse uma fração muito
pequena dos raios X, transformando-os em raios secundários, esses raios
secundários produziam fortes efeitos em chapas fotográficas, painéis fluorescentes
e eletroscópios.
Essa transformação de raios X em raios S dependeria do material
utilizado (SAGNAC, 1898d). Comparando o ar, a água, o alumínio, o cobre, o
zinco e o chumbo, Sagnac notou que os raios secundários eram cada vez menos
penetrantes, ou seja, havia uma maior transformação dos raios X. Os raios secundários
produzidos pelo zinco e pelo chumbo, em particular, eram menos penetrantes do
que os raios X emitidos por qualquer tubo existente na época.
Como veremos mais adiante, esse trabalho de Sagnac teve forte
influência sobre os Curie.
A contribuição de Gerhard Schmidt
Em janeiro de 1898, Gerhard Carl Nathaniel Schmidt (1865-1949) deu
uma grande contribuição para o estudo daquilo que denominamos ‘radioatividade’
(SCHMIDT, 1898; BADASH, 1966). Ele utilizou o método elétrico para estudar
diversas supostas radiações e percebeu que os materiais fosforescentes comuns
não ionizavam o ar – portanto, não emitiam raios X nem nada parecido. Da mesma
forma, os vaga-lumes e outras substâncias que supostamente emitiam radiações
penetrantes não produziam nenhum efeito sobre a condutividade do ar.
O urânio ionizava o ar, e o fósforo também tinha uma propriedade
semelhante, que já havia sido descoberta alguns anos antes, mas no caso do
urânio todos os seus compostos, qualquer que fosse o estado físico ou químico
em que se encontrasse, emitiam essas radiações, enquanto no caso do fósforo o efeito
dependia das condições químicas, existindo o efeito apenas para o elemento puro
e não ocorrendo para os seus compostos. Não se tratava, portanto, de um
fenômeno associado a um determinado elemento químico, como no caso do urânio.
Schmidt procurou outras substâncias que tivessem efeitos
semelhantes ao do urânio e encontrou que o tório também emitia radiações
penetrantes, capazes de ionizar o ar e de penetrar através de papel opaco,
sensibilizando placas fotográficas. Pode-se dizer que, pelo método elétrico,
Schmidt conseguiu diferenciar as radiações do urânio de efeitos espúrios e
descobriu a emissão de radiação pelo tório. No entanto, o trabalho de Schmidt não
trouxe outras contribuições importantes – de fato, seu nome está associado, na história
da radioatividade, apenas a esse passo (STUEWER, 1970). O método elétrico foi
útil, mas ele sozinho não levou à descoberta do polônio e do rádio.
O início das pesquisas de Marie Curie
Independentemente de Schmidt, Marie Sklodowska Curie (1867-1934)
também descobriu a emissão de radiações penetrantes pelo tório, logo no início
de suas pesquisas (CURIE, 1898). Com 30 anos de idade, Marie Curie era, nessa
época, uma pessoa diplomada em física e matemática7, com uma curta experiência
de pesquisa de caráter tecnológico – o estudo da magnetização de diversos tipos
de aços industriais8. Estava casada desde 1895 com Pierre Curie (1859-1906), um
físico mais experiente e 8 anos mais velho do que ela. No final de 1897, época
do nascimento de sua primeira filha (Irène), Marie decidiu iniciar uma pesquisa
para obtenção do título de doutoramento em física. Nessa época, o título era
obtido pela defesa direta de tese, já que não existiam cursos de pós-graduação.
O casal Curie, Pierre e Marie. |
O tema escolhido para a tese foi o estudo das radiações do urânio,
através do método elétrico. O que motivou essa escolha, numa época em que
ninguém dava atenção a esse fenômeno? Não o sabemos, mas há alguns elementos
que ajudam a compreender isso. Um dos motivos parece ter sido prático: o estudo
da condutividade do ar produzida pelos raios do urânio poderia ser feito com
uma aparelhagem muito simples, desenvolvida por Pierre Curie e seu irmão
Jacques, empregando um eletrômetro e um cristal piezoelétrico9. Por outro lado,
é possível que Jean Perrin e Georges Sagnac – amigos do casal Curie – tivessem
alguma influência na escolha, já que ambos haviam pesquisado a condutividade do
ar produzida pelos raios X, e Sagnac havia escrito a respeito da radiação do
urânio10.
Nessa época, o estudo da radiação de Becquerel era um assunto
pouco explorado (havia menos de 20 artigos sobre esses raios), não muito importante,
porém curioso – um tema adequado para uma tese de uma pesquisadora principiante.
Não havia a expectativa de fazer nada de excepcional. A pesquisa planejada
inicialmente era um estudo padrão, de reproduzir para os raios do urânio o mesmo
tipo de estudo que já fora feito para os raios X. A justificativa apresentada pela
própria Marie Curie para o uso da técnica elétrica era que ela permitia obter
resultados mais rápidos do que o método fotográfico e fornecia medidas
numéricas, comparáveis entre si:
“Em geral, utilizou-se nesses estudos o método elétrico, quer
dizer, o método que consiste em medir a condutibilidade do ar sob a influência
dos raios que se estuda. Esse método possui, de fato, a vantagem de ser rápido
e de fornecer números que podem ser comparados entre si”. (CURIE, 1899, p. 41).
Marie Curie não pertencia a nenhuma instituição científica, na
época. Seu marido, Pierre, era professor de uma escola de engenharia, a École Municipale de Physique et de Chimie Industrielles, de Paris. O diretor da escola, Charles Schützenberger, autorizou
Marie a utilizar um canto de uma sala que servia de casa de máquinas e
depósito. Era uma sala úmida e fria11, mas foi o único local disponível para
seu trabalho. Costuma-se descrever a pesquisa inicial de Marie Curie como uma
busca sistemática por outros elementos, além do urânio, que fossem capazes de
emitir radiações semelhantes (ver, por exemplo, WEILL 1970, p. 498).
A própria Marie escreveu, em 1899:
“Após os trabalhos do Sr. Becquerel, era natural perguntar-se se o
urânio é o único metal que desfruta de propriedades tão particulares. O Sr.
Schmidt estudou sob esse ponto de vista um grande número de elementos e de seus
compostos; ele encontrou que os compostos do tório são os únicos dotados de uma
propriedade semelhante. Fiz um estudo do mesmo tipo, examinando compostos de
quase todos os corpos simples atualmente conhecidos [...]; cheguei ao mesmo resultado
que o Sr. Schmidt”. (CURIE 1899, pp. 41-2).
Essa versão, que se apoia também no texto do primeiro artigo
publicado por Marie, não parece corresponder à realidade histórica. De um modo
geral, é preciso analisar cum grano salis as versões apresentadas pelos próprios cientistas em seus
trabalhos publicados, e nesse caso em particular dispomos de documentos que nos
permitem desvendar o caminho seguido por Marie Curie no início de suas
pesquisas.
Foram conservados os três cadernos de laboratório dos Curie em que
são descritos os experimentos realizados a partir de 1897 a 1900(12). A partir
desses cadernos, é possível verificar que Marie Curie iniciou seus experimentos
com radiações no dia 16 de dezembro de 1897. Suas primeiras atividades consistiram
em testes preliminares e familiarização com o aparelho – certamente sob a
orientação de Pierre Curie. A manipulação do aparelho não era muito simples –
exigia uma certa prática para regular manualmente a força exercida sobre o
cristal piezoelétrico.
Os primeiros experimentos mediram a condutividade do ar sob ação
tanto de raios X quanto do urânio metálico13. A seguir, vamos descrever uma
reconstrução historiográfica do trabalho de Marie Curie, alertando os leitores
que, em muitos pontos, os documentos disponíveis não permitem afirmar com
certeza o que Marie pensava sobre o que estava fazendo e observando.
Dezembro-Janeiro de 1898
Durante os dois primeiros meses de trabalho, a maior parte das
medidas era simplesmente uma reprodução de experimentos já realizados a
respeito da condução do ar produzida por raios X: mudava-se a distância entre as
placas, o sinal das cargas, a tensão aplicada, colocava-se placas metálicas
finas sobre o urânio, etc., construindo-se curvas com os dados experimentais14.
No entanto, em meio a esse trabalho de rotina, Marie registrou alguns
resultados importantes:
- aquecimento não aumenta a intensidade da radiação do urânio (1° de janeiro).
- iluminação e irradiação com raios X não aumentam a radiação do urânio15 (5 de janeiro).
O que estava guiando esses primeiros experimentos? As anotações do
caderno de laboratório não indicam o que Marie Curie estava pensando, mas sim o
que ela estava fazendo. Aparentemente, os primeiros experimentos se destinavam
a testar se a emissão de radiação pelos urânio era um tipo de fosforescência
invisível, como Becquerel e Thompson acreditavam. A intensidade da luz emitida
por materiais fosforescentes é fortemente influenciada pelo aquecimento e também
aumenta quando o material é colocado sob luz forte, diminuindo lentamente
depois, no escuro. Mesmo submetendo o urânio a raios X, isso não influenciava a
emissão de radiação, por isso provavelmente não se tratava de um fenômeno
semelhante à fosforescência16. Os primeiros resultados levavam, por isso, a
questionar o conceito de hiperfosforescência.
Outro resultado obtido nesse período foi que a absorção dos raios
do urânio pelo alumínio era mais forte do que a dos raios X. Nem todos os raios
X possuem igual poder de penetração: sabia-se que suas propriedades dependiam
do tubo empregado e da voltagem das descargas que estimulavam a emissão. Os
raios X mais penetrantes eram chamados de “raios X duros” e os menos penetrantes
eram os “raios X moles”. A radiação do urânio se comportava como raios X moles.
Marie Curie associou essa forte absorção aos raios secundários que haviam sido
estudados por Sagnac:
O fraco poder penetrante dos raios urânicos e tóricos conduziu a
compará-los aos raios secundários que são produzidos pelos raios Röntgen, e
cujo estudo foi feito pelo Sr. Sagnac, em vez de aos próprios raios Röntgen
(CURIE, Marie, Recherches sur les substances radioactives, p. 8).
Fevereiro de 1898
O segundo grupo de resultados obtidos por Marie Curie, em
fevereiro, referia-se ao estudo de diferentes substâncias, comparando-as com o
urânio. A partir de 10 de fevereiro, ela examinou um grande grupo de metais (cobre,
zinco, chumbo, estanho, platina, ferro, ouro, paládio, cádmio, antimônio,
molibdênio, tungstênio) e observou que nenhum deles produzia condutividade no
ar. Depois (17 de fevereiro) examinou um mineral de urânio (pechblenda17 ou
uraninita), que produziu efeitos semelhantes ao urânio puro, como se previa. No
entanto, notou um fato estranho: a corrente elétrica observada com a pechblenda
era maior do que no caso do urânio metálico puro.
Ora, Becquerel havia observado que a radiação do urânio metálico
era mais intensa do que de qualquer de seus compostos, e esperava-se portanto
que a pechblenda mostrasse uma atividade18 inferior à do urânio metálico. A
primeira reação de Marie Curie foi a de que poderia ter ocorrido um erro
experimental. O caderno de laboratório mostra que ela examinou a aparelhagem,
fez testes, refez as medidas – e confirmou os resultados iniciais.
Havia algo de estranho. Teria Becquerel se enganado? O caderno de
laboratório mostra que Marie Curie fez logo depois medidas utilizando vários
compostos de urânio (óxido de urânio, uranato de amônio) e notou que todos eles
tinham radiação menos intensa do que urânio metálico, enquanto a pechblenda,
repetidamente testada, teimava em se mostrar mais ativa (18 e 19 de fevereiro).
Este foi um ponto decisivo da pesquisa de Marie Curie. Ela poderia
simplesmente não ter dado atenção a essa anomalia da pechblenda e ter
continuado sua pesquisa de rotina, para terminar rapidamente sua tese. Mas sua
atenção foi capturada pelo fenômeno imprevisto e isso redirecionou toda sua
pesquisa. Provavelmente a partir dessa época ela começou a suspeitar que a
pechblenda, além do urânio, continha alguma outra substância que também emitia
radiações ionizantes e que não havia sido ainda detectada.
Fevereiro-março de 1898
Logo depois Marie Curie examinou muitas substâncias diferentes
(aparentemente ao acaso), disponíveis na Escola de Física e Química Industriais,
e nenhuma delas emitia radiações ionizantes. Esses testes devem ter convencido
Marie de que, se havia algum outro elemento que emitia radiações como as do
urânio, tratava-se de um elemento raro.
A pechblenda contém, além de óxido de urânio, várias outras
substâncias em pequena quantidade – incluindo tório. Talvez por causa disso
Marie tenha examinado em seguida um mineral de tório e nióbio, que não contém urânio
(24 de fevereiro), e logo notou que ele emitia radiação ionizante. Examinou
então minerais que continham nióbio e notou que não mostravam atividade. Testando
separadamente os elementos presentes nesse mineral, observou que apenas o tório
emitia radiações (26 de fevereiro).
Exemplar de pechblenda em estado mineral. |
Analisando em seguida diversos minerais de urânio e de tório,
notou que todos eles emitiam radiação ionizante, e testando várias outras
substâncias, não encontrou nenhuma outra ativa (2 de março).
Estava, assim, estabelecida a existência de um segundo elemento –
o tório – com propriedades semelhantes às do urânio. O que Marie Curie não
sabia é que Schmidt já havia feito e publicado a mesma descoberta, algumas
semanas antes.
Uma propriedade atômica?
Nesse momento, a pesquisa de Marie Curie variava entre o estudo de
minerais naturais e de compostos químicos puros. Examinando alguns compostos de
laboratório do tório e do urânio, Marie notou que a emissão de radiação parecia
ser aproximadamente proporcional à quantidade do metal presente, não dependendo
da presença de outras substâncias inativas, que atuavam apenas absorvendo a
radiação.
Nesta época, provavelmente, Marie Curie adotou a hipótese de que a
emissão de radiação penetrante é uma propriedade
atômica, no seguinte sentido:
- depende da presença de alguns elementos químicos particulares
- a intensidade da radiação é proporcional à porcentagem desses elementos químicos nos compostos estudados (descontando-se a absorção produzida por elementos inertes)
- não depende de propriedades moleculares (outros elementos químicos inativos não alteram a emissão de radiação)
Note-se que não havia sido feita ainda nenhuma suposição de que
estivesse ocorrendo alguma transformação dos átomos (eles eram considerados
imutáveis).
A hipótese da propriedade atômica explicava muitos fatos, mas
conflitava com as observações sobre alguns minerais, já que a radiação de
alguns minerais, como a pechblenda e a calcolita, era mais forte do que dos seus
componentes. Marie Curie fez repetidas comparações desses minerais com o urânio
metálico (21-28 de março), o que parece mostrar que essa anomalia incomodava
muito a pesquisadora. Era importante verificar se a hipótese estava correta ou
não, e explicar essa discrepância.
A calcolita é um mineral que contém principalmente fosfato duplo
de urânio e de cobre. A amostra examinada por Marie Curie tinha uma atividade
muito superior à do urânio ou do tório puros. Seria possível que a associação
do urânio com outros elementos pudesse, pela combinação química, alterar suas
propriedades e aumentar a radiação? Ou haveria alguma impureza no mineral que
era responsável pela anomalia?
Para tentar esclarecer esse ponto, Marie Curie sintetizou o
fosfato duplo de urânio e de cobre, a partir de substâncias químicas puras. A
calcolita artificial assim produzida era menos ativa do que o urânio metálico
puro, ou seja, comportava-se do modo “normal”, como os outros compostos de
urânio (31 de março). Esse resultado confirmava a hipótese de propriedade
atômica e sugeria que havia na calcolita natural algum outro elemento
desconhecido, mais ativo do que o urânio.
A partir desse instante, a hipótese da propriedade atômica
conduziu as pesquisas do casal Curie, levando pouco depois à descoberta do
polônio e do rádio. O papel das pesquisas de Marie Curie tem sido interpretado
a partir de uma visão bastante diferente, como se os passos decisivos tivessem
sido devidos apenas ao uso de um novo tipo de aparelhagem, à obtenção de dados
quantitativos (ver WYART 1970, p. 507) e ao exame sistemático dos elementos
(ver BADASH 1965, p. 134).
Em vez dessa versão com sabor positivista, um artigo mais recente
enfatizou a existência de aspectos teóricos no trabalho de Marie Curie (DAVIS
1995, p. 329) mas não indicou nenhuma influência das suas hipóteses como orientadoras
do trabalho de pesquisa. De acordo com a interpretação aqui aventada, pode-se
dizer que os elementos básicos que contribuíram para o sucesso da pesquisa dos
Curie foram:
- uso do método elétrico, que era rápido, além de proporcionar resultados quantitativos, e permitiu eliminar efeitos espúrios;
- papel do acaso, que permitiu encontrar minerais mais ativos do que urânio puro;
- a atitude de dar atenção às anomalias (os Curie poderiam não ter se preocupado com o caso da pechblenda);
- imaginar, testar e utilizar a hipótese de que a emissão de radiações ionizantes era uma propriedade atômica.
Este último ponto é aquilo que distingue os Curie dos demais
investigadores da época. Para nós, que fomos educados dentro de uma determinada
visão da radioatividade, essa hipótese pode ter aparência de algo que deveria
surgir naturalmente, mas não parece ter ocorrido de forma clara no trabalho de
outros pesquisadores da época. De onde ela pode ter saído?
Essa hipótese não foi, certamente, uma generalização tirada a
partir dos experimentos. Afinal de contas, ela conflitava com alguns
resultados, como os obtidos pelo estudo dos minerais. A seguir, será proposta
uma nova interpretação: a de que, apesar de conflitar com alguns resultados,
essa hipótese era considerada como plausível e merecedora de investigação pelos
Curie porque era reforçada por outra hipótese, baseada em semelhanças entre radiações do urânio (e do tório) e
raios X secundários.
Hipótese da emissão secundária
Como já foi descrito, quando um material é atingido por raios X,
ele emite outros raios menos penetrantes (raios secundários) que foram
estudados por Sagnac. Esses raios secundários são absorvidos mais facilmente
pela matéria (são menos penetrantes) mas produzem efeitos fotográfico e de ionização
mais fortes do que os primários (sendo, por isso, mais fáceis de detectar)19.
Os estudos de Sagnac haviam indicado que a produção desses raios secundários é
mais forte quando os raios X atingem substâncias contendo os elementos de maior
peso atômico, como o chumbo.
Ora, o urânio era o elemento de maior peso atômico conhecido e o
tório era o elemento seguinte, na escala decrescente de pesos atômicos; além
disso, a radiação do urânio era semelhante aos raios X moles. Não haveria
alguma relação entre todos esses fatos? Analogia
com os raios secundários dos raios de Röntgen – As propriedades dos raios emitidos pelo urânio e pelo tório são
muito análogas [très analogues] às dos raios secundários dos raios de Röntgen, estudados
recentemente pelo Sr. Sagnac. Constatei além disso que, sob a ação dos raios de
Röntgen, o urânio, a pechblenda e o óxido de tório emitem raios secundários
que, do ponto de vista da descarga dos corpos eletrizados, produzem geralmente mais efeito
do que os raios secundários do chumbo. Entre os metais estudados pelo Sr.
Sagnac, o urânio e o tório estariam colocados ao lado e além do chumbo (CURIE,
1898, p. 1103).
Para explicar a emissão de radiações pelo urânio e pelo tório,
Marie Curie formulou uma nova hipótese. Poderia existir em todo o espaço uma
radiação desconhecida, difícil de ser detectada, semelhante aos raios X duros
(porém muito mais penetrantes). Essa radiação poderia passar por chapas
fotográficas e por outros materiais praticamente sem ser absorvida e, por isso,
sem ser notada. No entanto, ela seria absorvida e transformada em radiação
secundária menos penetrante ao atingir os elementos de maior peso atômico. A
emissão de radiação pelo urânio, pelo tório e seus compostos poderia ser um fenômeno
desse tipo, semelhante à fluorescência.
Para interpretar a radiação espontânea do urânio e do tório
poder-se-ia imaginar que todo o espaço está constantemente atravessado por
raios análogos aos raios de Röntgen porém muito mais penetrantes e que só
poderiam ser absorvidos por certos elementos de grande peso atômico, tais como
o urânio e o tório (CURIE, 1898, p. 1103).
Essa hipótese da emissão secundária tinha pequena fundamentação,
não havendo qualquer evidência de que existisse tal tipo de radiação “cósmica”
20. No entanto, ela conduzia naturalmente à idéia de que apenas alguns elementos
(de alto peso atômico) seriam ativos como o urânio, apoiando, portanto a
hipótese da propriedade atômica.
Essas duas hipóteses, embora sem fundamentação experimental,
reforçavam-se mutuamente, e conduziram o pensamento de Marie Curie, sendo
responsáveis em grande parte pelo sucesso de suas investigações iniciais.
Posteriormente, no entanto, a hipótese da emissão secundária tornou-se um
obstáculo, pois cessou de levar a novas descobertas e impediu os Curie de
desvendarem a natureza da radioatividade.
Aparentemente essa hipótese estava dirigindo o trabalho de Marie
Curie logo após o teste da calcolita artificial, pois no dia seguinte (1° de abril)
ela realizou testes para verificar se o urânio e o tório (ou seus compostos) emitiam
uma radiação mais intensa enquanto estavam sendo irradiados com raios X, procurando
detectar uma radiação secundária. A descrição desses experimentos não é muito
precisa, mas de qualquer modo confirma que a hipótese da emissão secundária
estava guiando essa investigação.
Logo em seguida, Marie Curie se sentiu suficientemente segura para
escrever seu primeiro artigo sobre o assunto. Essa comunicação (um trabalho
curto, com apenas 3 páginas) foi lido diante da Academia de Ciências de Paris
por Gabriel Lippmann21. O trabalho continha, essencialmente, os resultados
obtidos durante esses primeiros meses de pesquisa, dando maior ênfase à
descoberta da radioatividade do tório. Esse artigo e os que o sucederam
(descoberta do polônio e do rádio) não serão descritos aqui. Eles serão objeto
de análise detalhada em um outro estudo, a ser publicado futuramente.
Conclusão
Quando se analisa o desenvolvimento do trabalho inicial de Marie
Curie, a partir de seus cadernos de laboratório e levando em conta o contexto
da época, verifica-se que seu trabalho experimental não foi guiado por uma mera
busca empírica de novos elementos radioativos, mas sim por uma série de
hipóteses, e uma forte influência pelos estudos de Sagnac sobre a radiação secundária
emitida por metais atingidos pelos raios X.
Já no seu primeiro artigo, publicado após poucos meses de
investigação, Marie Curie apresenta a hipótese da natureza atômica da radiação,
que guiou suas pesquisas posteriores. Em grande parte, o sucesso do trabalho
dos Curie foi devido a essa hipótese que não tinha fundamentação experimental,
mas que era reforçada por uma outra conjetura (a hipótese de emissão
secundária) que também não era fundamentada.
Agradecimentos
O autor agradece o apoio recebido da FAPESP (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo) e do CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico), sem o qual teria sido impossível a
realização desta pesquisa.
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NOTAS:
1 Uma boa descrição histórica sobre esse período pode ser
encontrada nos artigos: JAUNCEY 1946 e BADASH 1965. Ver também MARTINS, 1990.
2 Antes de 1898, apenas dois aspectos do trabalho de Becquerel
haviam sido criticados: a polarização dos raios de urânio e a excitação dessa
radiação pela luz. Gustave le Bon foi o primeiro a colocar em dúvida a polarização
da radiação do urânio, em maio de 1897. Quanto à excitação por luz, Julius
Elster e Hans Geitel, em 1897, notaram que a emissão de radiação pelo urânio
não aumentava quando ele era submetido à luz solar, e permanecia constante no
escuro, durante vários meses (ELSTER & GEITEL 1897).
3 Weill atribuiu erroneamente a invenção do nome
“hiperfosforescência” a Henri Poincaré (WEILL 1970, p. 498).
4 A palavra aparece pela primeira vez no título do artigo “Sobre
uma nova substância radio -ativa contida na pechblenda” (CURIE & CURIE, 1898).
5 Os resultados obtidos por Sagnac não eram totalmente novos. Logo
após a descoberta dos raios X, Röntgen e outros pesquisadores haviam
investigado se essas radiações podiam ser refletidas por metais e outras
substâncias. Os primeiros resultados indicavam que não havia reflexão regular,
mas que ocorria aparentemente uma difusão de raios X, ou seja, uma parte dos
raios X incidentes era espalhada para todos os lados quando atingiam uma
superfície metálica. No entanto, estudando essa radiação difundida, Dwelshauvers-Dery
notou que ela era menos penetrante do que os raios X incidentes (DWELSHAUVERS-DERY,
1896). Concluiu que “a reflexão difusa, constatada por diversos físicos, é devida,
pelo menos em parte, à produção de raios diferentes dos raios X na substância;
não é portanto uma reflexão propriamente
dita” (DWELSHAUVERS-DERY, 1896, p. 487).
6 Atualmente nós nos referimos a raios X primários e raios X secundários.
Sagnac utilizava uma nomenclatura um pouco diferente. Ele não se referia aos
raios secundários como sendo um tipo de raios
X, mas dava-lhes um nome diferente (raios S), o que parece indicar
que ele imaginava tratar-se de radiação de um outro tipo. Ele também não se
referia aos raios X incidentes como raios “primários”.
7 Embora muitas vezes se associe Marie Curie à química (ver por exemplo
WYART 1970, p. 507: “Marie Curie, por outro lado, tinha sido treinada
principalmente como química...”), ela nunca teve qualquer título nessa área. Em
1893, Marie foi aprovada e classificada em primeiro lugar no concurso de licenciatura
em física pela Sorbonne. No ano seguinte, foi aprovada em segundo lugar no
concurso de licenciatura em matemática. Para informações biográficas sobre
Marie Curie, ver: CURIE, Eve, Madame Curie; REID, Marie Curie.
8 Esse primeiro estágio de pesquisa da vida de Marie Curie foi
obtido graças a seu ex-professor, Gabriel Lippmann, que foi também quem
apresentou à Academia de Ciências de Paris o primeiro artigo de Marie sobre a
radiação do tório.
9 Quando certos cristais são comprimidos ou distendidos, surgem cargas
elétricas e produz-se uma diferença de potencial entre suas faces. Isso ocorre,
por exemplo, no caso do quartzo. Esse tipo de fenômeno foi descoberto e
investigado por Pierre e Jacques Curie (WYART 1970, p. 504), e tem hoje diversas
aplicações práticas, como certos acendedores de fogão que soltam uma faísca
quando se aperta
um botão. Na época, era muito difícil medir pequenas correntes elétricas
com precisão. O efeito piezoelétrico permitia produzir cargas elétricas sempre
iguais e reguláveis, aplicando-se ao cristal uma força sempre igual. Medindo-se
cargas elétricas e o tempo, podia-se determinar com grande precisão e de modo
reprodutível as pequenas correntes elétricas envolvidas no fenômeno. Como já
estava familiarizado com esse fenômeno, Pierre Curie logo pensou em utilizá-lo
na investigação das radiações do urânio.
10 Marie Curie utilizou em seus primeiros estudos uma câmara de
ionização de placas paralelas, muito semelhante à utilizada por Perrin e por
Sagnac anteriormente.
11 Uma famosa anotação de Marie Curie nos cadernos de laboratório,
no dia 6 de fevereiro de 1898, indica que a temperatura ambiente era de 6°.
12 Esses cadernos, contaminados e fortemente radioativos como muitos
outros documentos dos Curie, foram descritos por Irène Curie. Vamos nos basear
nessa descrição (JOLIOT-CURIE, 1940), indicando as datas dos experimentos mais
importantes, de tal forma a facilitar a verificação das informações em qualquer
outra edição dessa obra.
13 O urânio metálico foi preparado pela primeira vez em 1896 por Henri
Moissan, que foi quem forneceu amostras para Becquerel e depois aos Curie.
14 É provável que Marie Curie estivesse se baseando na tese de
doutoramento de Jean Perrin sobre raios X (PERRIN, 1897).
15 Evidentemente, como os próprios raios X produzem efeitos de
ionização do ar, os experimentos eram feitos irradiando-se o urânio e, depois
de desligados os raios X, medindo-se a ionização produzida pelo urânio.
16 Marie Curie aceitou como provado conclusivamente por Elster e
Geitel que a radioatividade não pode ser aumentada pela luz (CURIE, 1899).
17 O nome “pechblenda” é simplesmente um aportuguesamento de
“pechblende” (em inglês, pitchblende) e não tem nenhum significado óbvio. No entanto, “pech” ou
“pitch” significa pixe, e o min eral recebeu esse nome por ser negro e ter uma
aparência semelhante à do pixe. A tradução correta seria, portanto, “pixeblenda”,
mas como essa palavra não existe nos dicionários, vamos utilizar o termo
absurdo tradicionalmente empregado por todos.
18 Não existia ainda a palavra “radioatividade”, mas desde o início
de suas pesquisas Marie Curie
utilizava a expressão “atividade”.
19 A correlação entre essas propriedades pode ser compreendida facilmente
em termos de trocas de energia. Uma radiação pouco penetrante é aquela que é
absorvida facilmente e cuja energia, portanto, é facilmente transmitida a
outros materiais. Essa energia absorvida pelas substâncias é que produz efeitos
observáveis e, portanto, uma absorção mais fácil indica uma maior produção de
efeitos observáveis. Inversamente, uma radiação muito penetrante é mais difícil
de ser detectada (pensem, por exemplo, nos neutrinos atuais).
20 Aquilo que atualmente chamamos de radiação cósmica somente foi descoberto
posteriormente, e não tem semelhança com aquilo que Marie Curie imaginava.
21 Os trabalhos lidos diante da Academia de Ciências só eram
apresentados pelos seus próprios autores quando eles eram membros da Academia.
Nos outros casos, era preciso que um membro da Academia se tornasse avalista do
trabalho, apresentando-o.
22 Esta foi a tese de doutoramento de Marie
Curie.
23 Este artigo reproduz a tese de doutoramento de Perrin.
24 Publicado sob forma de separata com o título: Eine neue Art von Strahlen. Würzburg: Verlag und Druck
der Stahel’schen K. Hof - und Universitäts- Buch- and Kunsthandlung, 1895.
Reproduzido também em: Annalen der Physik und Chemie [3] 64 (1): 1-11, 1898.
Traduções em inglês: On a new kind of rays. Trad. Arthur Stanton. Nature 53 (1369): 274-6, 1896;
On a new form of radiation. The Electrician 36 (13): 415-7, 1896. Tradução em francês: Une nouvelle espèce de rayons. Revue Générale des Sciences Pures et Appliquées 7: 59-63, 1896.
25 Publicado sob forma de separata com o título: Eine neue Art von Strahlen. II. Mittheilung. Würzburg: Verlag
und Druck der Stahel’schen K. Hof - und Universitäts- Buch- and Kunsthandlung,
1896. Reproduzido também em: Annalen der Physik und Chemie [3]
64 (1): 12-7,
1898.
Fonte: MARTINS, Roberto de Andrade. As primeiras investigações de Marie Curie sobre elementos radioativos. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, São Paulo, v. 1, n. 1, 2003, p. 29-41.
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