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Leandro Vilar

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

As faces de Juliano Moreira: luzes e sombras sobre seu acervo pessoal e suas publicações

Nesta singela homenagem aos 150 anos do nascimento do "pai da psiquiatria brasileira", o médio Juliano Moreira, compartilho esse artigo da professora Dra. Ana Venancio. 

O tema deste artigo é o estatuto de originalidade e verdade concedido aos documentos que compõem o arquivo pessoal de Juliano Moreira (1873-1933) e aos trabalhos publicados sobre e por esse psiquiatra baiano. Este trabalho advém de um estudo de antropologia histórica preocupado em discutir o "lugar" de Juliano Moreira na produção da psiquiatria no Brasil e em compreender o papel desse campo científico nos projetos de construção de uma "nação" brasileira. O caminho aqui apresentado é de ida ao campo dos acervos históricos em busca de fontes secundárias e primárias sobre o tema. Nesse percurso, discuto questões relativas à idealização dos acervos pessoais e à forma como o próprio processo de busca me informou sobre meu objeto, problematizando as noções de verdade e ciência que estiveram aí implicadas.

Não é difícil reconhecer que muitos dos trabalhos produzidos desde os anos 1980 sobre a história da psiquiatria indicam que Juliano Moreira foi o "fundador" da psiquiatria científica brasileira, por oposição à figura de Teixeira Brandão, difusor do pensamento psiquiátrico francês no Brasil e precursor da "entrada" da psiquiatria na esfera da assistência pública, como se verificou nas últimas décadas do século XIX (Costa, 1989; Oda, 2001; Portocarrero, 2002; Vasconcelos, 1998). Tal produção, ainda que tenha difundindo uma perspectiva crítica sobre a história da psiquiatria e sobre a obra de Juliano Moreira, afirmava o caráter "excepcional" ou "singular" desse personagem, também presente, em décadas precedentes, em trabalhos de psiquiatras preocupados em registrar os "avanços históricos" da psiquiatria brasileira (Austregésilo, 1933; Colares, 1973; Lopes 1964; Roxo, 1933).

O que me interessava, entretanto, não era julgar a atribuição de paternidade da psiquiatria brasileira a Juliano Moreira ou a Teixeira Brandão, e sim o fato de Juliano Moreira ser representado, historicamente, como o pai da psiquiatria científica no Brasil. Por que Juliano Moreira permanece no imaginário erudito como o fundador do saber e da prática psiquiátrica por excelência? Quais as suas concepções científicas sobre os estados "perturbados" nomeados como doença mental? Quais as relações entre tais concepções e a construção de uma imagem de homem brasileiro para o processo civilizatório nacional das três primeiras décadas do século XX? Até então o que eu poderia dizer é que o estatuto de verdade concedido pelo próprio campo psiquiátrico às proposições publicadas por Juliano estava referido à proposta programática para a política assistencial e tratamentos especializados para doentes mentais que ele formulara. Foi como autor dessa proposta programática, divulgada em dezenas de artigos publicados em periódicos científicos, que Juliano Moreira perpetuou a imagem de ator fundador da psiquiatria científica no Brasil.

O personagem

Juliano Moreira, mestiço e de origem pobre, nasceu em Salvador em 6 de janeiro de 1873. Segundo Carvalhal (1997), aos 13 anos matriculou-se como interno na Faculdade de Medicina da Bahia. Adquiriu o grau de doutor em 1891 com a tese "Sífilis maligna precoce", que foi divulgada e elogiada no exterior, no Jornal des Maladies Chlauées el Syphililiques e nos Annales de Dermatologie el Syphiligraphie. Em 1896 ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia como professor substituto da Seção de Doenças Nervosas, após defender a dissertação "Disquinesias arsenicais". Na Bahia, dedicou-se à dermatologia e à neuropsiquiatria, colaborou no periódico Gazeta Médica da Bahia, na Revista Médico-Legal e na Revista dos Internos da Faculdade de Medicina da Bahia e foi um dos fundadores da Sociedade de Medicina e Cirurgia e da Sociedade de Medicina Legal da Bahia.

Retrato de Juliano Moreira na década de 1920. 

Entre 1895 e 1902 fez uma série de viagens à Europa para tratar-se de tuberculose, contraída pela rotina desregrada e pela dedicação intensiva aos estudos. Nesse período, frequentou diversos cursos de doenças mentais, tendo, como professores Flechsig, Krafft-Ebing, Emil Kraepelin, Magnan, entre outros, cujas experiências resultaram em trabalhos publicados na Gazela Médica da Bahia. Na Europa também realizou estágio de anatomia patológica com Virchow e visitou as principais clínicas psiquiátricas e manicômios da Alemanha, Inglaterra, Escócia, Bélgica, França, Itália, Áustria e Suíça.

De volta ao Brasil, Juliano Moreira instalou-se no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. Em 1903, por influência de Afrânio Peixoto e J.J. Seabra (ministro da Justiça do governo Rodrigues Alves), foi nomeado diretor do Hospital Nacional de Alienados. Sua nomeação dava-se após uma série de escândalos ocorridos na administração de Antonio Dias Barros, que resultou num inquérito levado a cabo pelo Ministério da Justiça. Esse inquérito constatou as péssimas condições de tratamento no hospital e a completa promiscuidade entre crianças e adultos (Engel, 2001: 255). E verdade que as críticas à assistência prestada aos alienados eram recorrentes desde a época do antigo hospício. Já nos anos 1860 discutia-se sua administração e quase 20 anos mais tarde eram comuns denúncias de violência e maus tratos (Teixeira, 1997: 312). O que distingue as antigas críticas daquelas que resultaram na nomeação de Juliano Moreira é o momento sociopolítico no qual estiveram inseridas.

A nomeação de Juliano Moreira para a direção desse hospital de alienados e as reformas que ele lá empreendeu coadunavam-se com o processo de saneamento e urbanização da cidade do Rio de Janeiro durante a gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906). Nessa época, no intuito de atrair capital e mão-de-obra imigrante, e de melhorar as vias de acesso ao porto do Rio de Janeiro, várias ruas foram alargadas, casas foram demolidas e uma intensa campanha de vacinação e profilaxia de doenças infecciosas (febre tifoide, febre amarela, malária etc.) foi promovida por Oswaldo Cruz, então diretor geral de Saúde Pública. Nesse contexto, a nomeação e a atuação de Juliano Moreira no referido hospital reforçavam as iniciativas "modernizadoras" do Estado, ampliando-as para essa esfera da assistência pública - a dos alienados - corroborada pelo projeto de desenvolvimento de uma ciência psiquiátrica brasileira.

No período em que esteve na direção do Hospital Nacional de Alienados (1903-1930) Juliano Moreira atuou como divulgador de uma psiquiatria científica brasileira tanto no âmbito nacional quanto no panorama internacional. Em 1905 fundou os Archivos Brasileiros de Medicina, juntamente com Antonio Austregésilo e Ernani Lopes. No mesmo ano, com Afrânio Peixoto, criou a Sociedade Brasileira de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins. No contexto internacional participou de diversos congressos médicos, como os de Lisboa (1906), Amsterdã e Milão (1907), Londres e Bruxelas (1913), sendo também membro de várias sociedades cientificas européias. Em 1911 foi nomeado diretor da Assistência Médico-Legal de Alienados, órgão criado em 1890 para a formulação de uma política assistencial para os alienados - órgão este que em 1927 foi rebatizado de Serviço de Assistência a Psychopatas (Sap), pelo Decreto no 17.805 de 23 de maio, passando a integrar o Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores. 

E durante sua gestão, Juliano Moreira criou o Manicômio Judiciário e envidou esforços para a aquisição do terreno, a construção e a fundação da Colônia Juliano Moreira

Já em 1928, foi convidado pelas universidades japonesas de Tokyo, Kyoto, Sendai e Osaka para fazer diversas conferências sobre sua especialidade, sendo condecorado com a Ordem do Tesouro Sagrado pelo Imperador Hirohito (1901-1992). Somente em 1930 se afastaria da direção do Hospital Nacional de Alienados, vindo a falecer, três anos mais tarde, na cidade de Correias, no Rio de Janeiro, para onde se mudara já muito debilitado devido à tuberculose.

A ida a campo

Minha aproximação da história desse personagem, entretanto, foi inicialmente secundária. Em 1987, quando iniciei o mestrado em antropologia social, me interessei pelo tema da psiquiatria como modo social erudito de representar as "perturbações mentais" através da conjugação da ciência com a assistência pública. Essa relação entre a produção de uma ciência - que toma a loucura como um objeto a ser investigado - e de uma assistência pública – inaugurada com a instituição asilar - é mesmo fundamental na constituição da psiquiatria, sendo atualizada de forma distinta em diferentes contextos nacionais, como informam Foucault (1980: 2), Castel (1978: 101) e Shorter (1997: 69) sobre os casos francês e alemão.2

Naquela época eu estava particularmente curiosa a respeito da transformação pela qual a psiquiatria brasileira vinha passando - mais tarde intitulada pelo próprio campo de "reforma psiquiátrica" - e que tinha como principal lema "Por uma sociedade sem manicômios". Coincidentemente, naquele período fui trabalhar num núcleo de pesquisa em psiquiatria social localizado na Colônia Juliano Moreira. Situada em Jacarepaguá, a Colônia Juliano Moreira era uma instituição psiquiátrica tipicamente asilar que, desde 1981, estava engajada num processo de transformação de seu aparato institucional e assistencial. A própria criação de um núcleo de pesquisa numa unidade de assistência fazia parte das propostas de transformação: buscava-se compreender os determinantes e os atores sociais importantes no processo de mudança de paradigma do cuidado e construir uma visão crítica no interior da própria instituição. Esse foi o meu primeiro contato com o nome de Juliano Moreira, quando tomei conhecimento de que ele havia sido um "psiquiatra importante" que se dedicara com afinco à criação da referida Colônia, em 1924, então chamada Colônia de Jacarepaguá.

Ainda nesse período, tive contato com a dissertação de mestrado em filosofia de Vera Portocarrero, intitulada "Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria". A fotocópia desse trabalho circulava bastante como referência entre os profissionais da área voltados para uma "psiquiatria social". Tratava-se de um trabalho que indicava o papel pioneiro de Juliano Moreira na construção de uma ciência psiquiátrica e que o articulava aos processos de medicalização e normatização social, entre fins do século XIX e a década de 1930. Pareceu-me à época que esse era um trabalho definitivo sobre a figura de Juliano Moreira e que náo era possível falar mais nada a respeito.

Doze anos mais tarde eu já concluíra o doutorado, trabalhava no Instituto de Psiquiatria (Ipub) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e prestava assessoria ao Instituto Franco Basaglia (IFB), uma organização não-governamental na área da saúde mental. Imersa profissionalmente no campo psiquiátrico, deparei-me inúmeras vezes com o nome de Juliano Moreira, por essas duas vias institucionais. No Ipub, Juliano Moreira não somente era citado como o fundador da psiquiatria científica brasileira, mas também tinha sido objeto de uma dissertação de mestrado que enaltecia sua originalidade e seu papel avant la lettre frente à questão das relações entre ciência e assistência pública. No IFB, ele era objeto de uma pesquisa intitulada "Fontes primárias e secundárias relativas a Juliano Moreira", que visava a reunir documentos e trabalhos publicados por e sobre esse personagem. A perspectiva que informava essa pesquisa era mais crítica do que a produzida na instituição universitária e me fez suspeitar de que havia mais coisas entre o céu e a terra no mundo psiquiátrico do que poderia suspeitar minha vã filosofia.

Nesse período eu trabalhava no Ipub numa pesquisa antropológica sobre a hegemonia biológica no campo psiquiátrico contemporâneo e as representações da pessoa moderna aí implicadas. Interessei-me em buscar compreender como, historicamente, a psiquiatria brasileira se auto-representara como científica, exatamente por sua atenção mais detida no caráter orgânico das doenças mentais. Juliano Moreira aparecia, assim, como figura fundamental para a investigação. Juntei-me então à equipe de pesquisa do IFB - um psiquiatra e uma historiadora recém-graduada -, que já realizava a busca de fontes primárias e secundárias sobre o referido psiquiatra.

Duas vias investigativas estavam sendo perseguidas. A primeira visava a reunir os trabalhos publicados por e sobre Juliano Moreira, e a segunda pretendia localizar os documentos, fotos etc. que conformariam seu acervo pessoal, o qual supúnhamos existir devido à importância desse personagem para a história da psiquiatria no Brasil segundo as auto-representações do próprio campo: tanto as mais críticas quanto as mais afeitas a uma historiografia sobre suas eminentes figuras. Com relação a essa segunda via, apoiávamo-nos também em nossa própria representação do estatuto de um "arquivo pessoal" como aquele que expressaria a experiência vivida, dada a forma como o arquivo teria sido elaborado por seu autor.

A equipe de pesquisa já realizava visitas a diversas instituições do campo médico-psiquiátrico e a bibliotecas, em busca de documentos e periódicos de época: Colônia Juliano Moreira, Hospital Philippe Pinel, Centro Psiquiátrico Pedro II,3 Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Faculdade de Medicina da UFRJ, Academia Nacional de Medicina, Academia Brasileira de Ciências, Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Biblioteca Nacional e Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro. Através do levantamento realizado, produziu-se uma relação de 112 artigos publicados por Juliano Moreira, nove artigos de outros psiquiatras sobre seu colega baiano, escritos entre 1913 e 1934, e mais dois outros trabalhos, escritos em 1964 e 1973 - este último por ocasião da comemoração do centenário de seu nascimento. Desse total, foram obtidas cópias de 48 artigos de Juliano Moreira e de alguns artigos sobre ele, sendo que parte dos textos teve de ser transcrita à mão e depois digitada, em virtude de suas condições precárias de conservação.4

Dois fatos chamavam a atenção: o péssimo estado de conservação dos periódicos médicos e psiquiátricos na maior parte das instituições de assistência e das universidades em que eram mantidos-muitas vezes amarrados em pacotes jogados em sótãos ou salas de depósito - e a total inexistência de informações sobre onde estaria o arquivo pessoal de Juliano Moreira. Além disso, as sociedades científicas que Juliano Moreira fundara não existiam mais, e mesmo a atual Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) nada guardava de seu acervo pessoal.

O contato com a psiquiatra que redigira no Ipub sua dissertação de mestrado sobre Juliano Moreira, e que mais tarde seria presidente da Aperj, lançaria algumas luzes sobre os silêncios e dúvidas relativos ao destino desse acervo. Segundo essa informante, de fato o acervo pessoal de Juliano Moreira não estava sob a guarda de nenhuma instituição. Ele teria sido mantido pela mulher de Juliano, sra. Augusta Moreira, enfermeira alemã que o psiquiatra conhecera numa de suas viagens à Europa e que aqui viveria até sua morte, em meados de 1970 ou início dos anos 1980.

A estória que me foi contada era a de que Juliano Moreira era um homem de muito poucas posses, que vivia de seus proventos como funcionário público e residia com sua esposa no próprio Hospital Nacional de Alienados (atual sede da Uni-Rio, Praia Vermelha), como cabia à função de diretor da instituição. Sua mulher também não possuía bens; ao vir morar no Brasil, trocara-os por títulos do governo alemão que deixaram de ter qualquer valor nos anos 1920. Após deixar a direção do Hospital Nacional de Alienados, Juliano teria se mudado com a mulher para o antigo Hotel dos Estrangeiros, situado na praça José de Alencar, no Largo do Machado, e os parcos recursos de sua aposentadoria precisariam ser acrescidos da "ajuda de amigos", de modo a prover os cuidados necessários à sua saúde, já debilitada.

Ainda segundo essa informante, Juliano teria poucos livros, pois além da vida modesta que levava, sempre se empenhara em formar uma ótima biblioteca para o próprio hospital, sobre a qual encontramos menção em O cemitério dos vivos de Lima Barreto. Após sua morte, os livros de Juliano Moreira teriam sido doados por d. Augusta ao Hospital de Juqueri, em São Paulo, não havendo, entretanto, mais notícias a esse respeito. Havia, sim, álbuns de fotografias, de recortes de jornais e de documentos, feitos pelo próprio Juliano Moreira e por sua mulher. E onde estão esses álbuns, perguntava eu? Até onde sei, respondeu a informante, alguns foram distribuídos por d. Augusta aos amigos que sustentaram Juliano Moreira no fim da vida; como Ernani Lopes, a fim de retribuir a ajuda recebida. Além disso, completava a informante, em 1973, ano do centenário de nascimento de Juliano Moreira, o psiquiatra dr. Neves Manta empenhou-se na realização de uma comemoração na Academia Nacional de Medicina, ocasião em que d. Augusta teria doado cinco desses álbuns para ele. O dr. Neves Manta conhecera essa informante e, segundo ela, ao longo do convívio que tiveram na Santa Casa da Misericórdia, vez ou outra lá chegava presenteando-a com um desses álbuns. Eu encontrava, assim, pane do acervo pessoal de Juliano Moreira, embora a informante não tenha franqueado, na época, meu acesso a esse material.

Em 2004 retomei o contato com essa psiquiatra, após quatro anos de convivência institucional com ela no Ipub e alguns trabalhos que publiquei sobre Juliano Moreira. O contato telefônico foi cordial e, como insisti para que me contasse mais sobre o acervo que guardava, ela me convidou para uma visita. Mostrou-me então dois desses álbuns, mencionando que não sabia mais onde estavam os outros três, pois tinha se mudado e precisaria procurá-los. Dois dos álbuns estavam à mão porque ela acabara de produzir um DVD sobre Juliano Moreira, para apresentação no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, utilizando muitas das imagens que os compunham. Ela não sabia ao certo quais álbuns haviam sido organizados pelo próprio Juliano Moreira ou por d. Augusta, nem se essa organização datava de antes ou depois da morte do psiquiatra.

Quando o campo é o arquivo: história e ciência psiquiátrica

A ida ao campo era um processo tanto de busca quanto de realização de encontros: de um lado, as fantasias e expectativas de um encontro com o "passado" guardado em algum lugar acessível, no qual seria possível "mergulhar" para conhecê-lo; de outro; o fato de que era mais a busca do que o encontro dos arquivos que lançava luz sobre o personagem em estudo e seu lugar na história da psiquiatria no Brasil. As fantasias e expectativas apoiavam-se num certo preciosismo das fontes, que construía a imagem de um arquivo pessoal rico em fotos e recortes de jornais, com vasta documentação de todos os grandes feitos reveladores da história da psiquiatria no Brasil, tal como construída por Juliano Moreira. Entretanto, a busca por seu acervo pessoal não nos remeteu à autoimagem de J Juliano nem nos descortinou a cena de três décadas de vida pública, iluminada por holofotes, como demonstra sua produção de artigos e a de seus comentadores.

No ponto de chegada dessa busca e do encontro possível, havia apenas um certo "retrato" do final da vida de Juliano Moreira, marcado pela doença e pelo ostracismo. Pela via do arquivo, não houve acesso à sua própria visão de sua trajetória pessoal e de sua vivência como "fundador da ciência psiquiátrica brasileira", à sua percepção da relação entre a experiência que viveu e as questões cientificas que abordou. O pequeno fragmento da experiência desse personagem, contido em apenas poucos álbuns de recortes, também estava destituído de um possível sentido "original", pois nem ao menos se sabia se ele fora "construído" em vida por Juliano Moreira ou se fora elaborado a posteriori por sua mulher, como tentativa de rememorar os anos vividos em conjunto com seu marido.

A estória que me foi recontada por minha informante havia sido ouvida por ela de outro psiquiatra (o dr. Neves Manta). Percebi então que também não havia elementos para atribuir um estatuto de verdade, senão ao acervo pessoal de Juliano Moreira, ao menos aos fatos que eram contados: não havia testemunha ocular e, segundo a informante, "os que poderiam saber mais sobre esses fatos já morreram". O que se podia depreender era apenas que, no imaginário das pessoas que teriam vivido ou contado essa estória, o acervo pessoal de Juliano Moreira teria tido o valor de moeda de troca em relação aos recursos materiais e afetivos que ele recebeu ao final de sua vida.

Caía o pano. A única via de acesso alternativa seriam os trabalhos publicados por Juliano Moreira ao logo de sua vida e as fontes secundárias. Tais fontes, datadas em sua maioria de 1913 a 1934, como já mencionado, foram redigidas, portanto, durante a vida de Juliano Moreira por colegas de profissão. Todas elas são marcadas por um tom enaltecedor da importância da obra do psiquiatra baiano para a ciência e a assistência psiquiátrica brasileira. Interessante notar que em nenhum desses artigos encontra-se menção ao fato de Juliano Moreira ser mulato e ter se casado com uma mulher alemã (união que não gerou filhos), apesar de todo o debate da época sobre a constituição racial do povo brasileiro e suas possíveis relações com os temas da alienação mental e da degeneração. A bibliografia mais crítica produzida a partir dos anos 1980 - que problematizava a obra de Juliano Moreira e a psiquiatria a partir da análise dos processos de medicalização e normatização da sociedade brasileira - também não se detinha nas possíveis relações entre a trajetória pessoal desse personagem e temas sociais cruciais da época, como a questão racial. A única referência que encontramos a esse respeito é uma menção de Freyre (1973: 183) ao fato de que Juliano Moreira conseguira ascensão social e embranquecimento através de seus estudos médicos.

O que encontramos nessas fontes secundárias foi o mesmo imaginário que produziu nossa curiosidade em buscar o arquivo pessoal de Juliano Moreira: o de que seu acervo pessoal ou sua obra serviriam como testemunho do sentido último de uma verdade. No primeiro caso, tratava-se da verdade sobre a relação entre a experiência pessoal desse personagem e sua vida pública, enquanto no segundo a verdade dizia respeito à comprovação dos "avanços" incontestes da psiquiatria capitaneados por ele nas três primeiras décadas do século XX, como se tudo que Juliano Moreira escreveu e publicou tivesse sido de fato efetivado. Medidas jurídico-punitivas para os sifilíticos que se casavam, fundação de laboratórios nos hospitais de alienados, colônias para os epilépticos e reformatórios para alcoolistas são alguns dos temas das exemplares propostas assistenciais de Juliano Moreira presentes em seus artigos. Mas o que se pode observar é que, até o momento, as pesquisas históricas não informam se tais diretrizes foram, em grande medida, implantadas no Rio de Janeiro. Seria aqui necessário um trabalho de investigação que se debruçasse sobre os prontuários psiquiátricos da época - os diagnósticos e as práticas terapêuticas - e sobre outros acervos institucionais, de modo a iluminar os princípios que organizaram a criação de "núcleos", "blocos" e "hospitais" nas instituições psiquiátricas do Rio de Janeiro.

Deste percurso ficou a questão sobre a tensa relação entre um "outro" que, distinto de nós, é constituído como objeto, e o que dele encontramos em nós mesmos. A construção do "objeto" histórico nos remeteu, portanto, à idéia de verdade que encontramos no campo da ciência, mas que também podemos estar reproduzindo em nossas próprias pesquisas. Constatávamos que a auto-representação da psiquiatria sobre suas origens científicas no Brasil poderia ser identificada como análoga à própria representação que essa pesquisa em ciências sociais estava construindo em relação aos arquivos pessoais, sua originalidade e o estatuto de verdade sobre o indivíduo que eles comportam.

A psiquiatria científica e o processo civilizatório brasileiro

De qualquer modo, para além de nossa ilusão inicial sobre as revelações que poderíamos encontrar no acervo pessoal de J Juliano Moreira e para além das referências elogiosas presentes nas fontes secundárias citadas, permanecíamos sem resposta à nossa pergunta inicial: o que havia de científico no modo de Juliano Moreira pensar o conhecimento e a prática psiquiátrica? Dito de outro modo: por que o conhecimento e a prática psiquiátrica empreendida por Juliano Moreira permaneciam no imaginário erudito como fundadores de uma "verdadeira" ciência brasileira? Nossa hipótese, era a de que, como toda ciência, sua prática teria se imbuído da tarefa de responder a uma questão de modo sistemático e com base em evidências. Mas qual era essa questão?

Nesse momento da pesquisa, buscamos somente analisar as "grandes idéias" desse personagem presentes em seus artigos, tomando por base as representações sociais que sustentavam a própria construção de um modelo de ciência psiquiátrica e comparando-as às noções precedentes, expressas à época como superáveis pelos "avanços do conhecimento". Em Venancio e Carvalhal (2001) e Venancio (2004) perseguiríamos então a relação entre os temas candentes à época, que discutiam a imagem do Brasil - o clima tropical e seus efeitos sobre o comportamento do brasileiro, incluindo-se aí os excessos sexuais, a miscigenação das raças, os ideais de saúde e doença -, e as teorias científicas psiquiátricas divulgadas por Juliano Moreira.

Por um lado, o conhecimento psiquiátrico que vigorava na época de Juliano Moreira estabelecia uma relação de determinação entre raça e aparecimento de doença mental. Nina Rodrigues (1862-1906), um dos maiores expoentes da nascente psiquiatria brasileira, da medicina legal e da antropologia - num período em que tais disciplinas estavam entrelaçadas -, discutiria a relação entre loucura e crime, utilizando para tanto o aporte teórico da noção de degeneração e de sua correlação com a miscigenação racial. Para Nina Rodrigues (1939 apud Oda, 2001), a distinção racial era importante para a compreensão das doenças físicas e mentais, considerando-se que as raças transmitiriam "aos produtos de seus cruzamentos caracteres patológicos diferenciais de valor". Nesse contexto, segundo Oda (2001: 3),

“a inferioridade racial dos negros e indígenas com relação ao branco era indiscutível e, assim sendo, a miscigenação entre raças em diferentes patamares evolutivos resultaria, fatalmente, em indivíduos desequilibrados, degenerados, híbridos do ponto de vista físico, intelectual e nas suas manifestações comportamentais”.

Por outro lado, como já mencionado, Juliano Moreira fundamentara sua ciência psiquiátrica no pensamento do alemão Emil Kraepelin, que, em sua grande síntese classificatória das doenças mentais de meados do século XIX, preocupara-se em estabelecer nítidos critérios classificatórios do quadro clínico - tendo-se em vista a etiologia patológica - e do curso ou evolução das doenças mentais. Conforme já analisado em Venancio e Carvalhal (2001), para Kraepelin, assim como 'para Juliano Moreira, as chamadas doenças mentais eram uma exceção biológica passível de ser observada através da dimensão orgânica dos indivíduos.

O mais notável, entretanto, na adoção da psiquiatria kraepeliniana por Juliano Moreira foi a ousadia de sua transposição para uma realidade como a nossa, que, do ponto de vista do mundo "civilizado", poderia servir como testemunho societário da irredutibilidade das diferenças biológicas/naturais. O Brasil vivia um período de desmantelamento de uma ordem social "tradicional", com a eclosão de questões em torno da construção de uma identidade nacional. Conforme Russo (1997), tratava-se de uma sociedade caracterizada pela miscigenação de raças e que trazia em seu cerne as marcas de uma ordem social hierárquica fortalecida pelos modelos de organização social imperial e escravocrata, há bem pouco tempo colocados formalmente em jogo. Além disso, fatores como o clima e as incipientes condições sanitárias reforçavam a composição de um quadro social no mínimo problemático, tendo-se em vista o estado de civilização dos países europeus na época.

E, portanto, em relação a esse contexto que podemos entender o valor de ciência conferido aos esforços de Juliano Moreira para refutar a idéia de uma hierarquia dos povos pautada na diferença entre países de climas variados ou formações raciais diversificadas. Moreira e Peixoto (1906) desenvolveriam a tese de que não existem doenças mentais climáticas, afirmando assim que os climas tropicais em si não dariam origem naturalmente a mais ou menos casos desse tipo de moléstia. Na perspectiva desses autores, a incidência de neurastenia e histeria no Brasil, por exemplo, não era diferente dos índices encontrados na Europa e na América do Sul, mesmo considerando-se que formas convulsivas da histeria poderiam se tornar epidemias, como a da Astasie-Abasia, em São Luís do Maranhão, de 1879-1881. São recorrentes, nesse sentido, as afirmações sobre a importância de um meio social saudável e uma educação eficaz na prevenção do possível aparecimento de doenças mentais.

“O clima não influi em nada sobre os sintomas de diversas psicoses. E no grau de instrução do indivíduo que reside a causa das diferenças que podem se apresentar. O descendente puro de dois caucasianos, igualmente puros, criado no interior, no meio de pessoas ignorantes, apresenta os mesmos delírios rudimentares que os indivíduos de cor desprovidos de instrução”. (Moreira e Peixoto, 1906: 238, tradução minha).

Juliano Moreira negaria também a correlação entre degeneração e constituição racial, indicando que a primeira decorria de outros fatores causais: o alcoolismo, a sífilis e as condições educacionais e sanitárias precárias. Como representante do pensamento sanitarista no campo psiquiátrico, defenderia medidas profiláticas que, entretanto, não tinham uma conotação racista (Oda, 2001: 6).

O pensamento de Juliano Moreira sobre a dimensão físico-orgânica das doenças mentais e sobre suas causas e evolução coadunava-se assim com uma perspectiva inovadora para o pensamento psiquiátrico, pautada numa visada sobre a igualdade das raças que possibilitaria a inclusão do miscigenado povo brasileiro num projeto universalista de desenvolvimento. O que estava em jogo era a prospecção de uma sociedade cujos integrantes, pelas vias da educação e da produção de um meio social saudável, poderiam se constituir como moralmente iguais e passíveis de ser influenciados por uma moralidade civilizada. Dessa forma, eram combatidas as diferenças irredutíveis, presentes apenas na dimensão físico-orgânica dos indivíduos. Tratava-se aqui da defesa do projeto de uma sociedade igualitária frente às possíveis diferenças físico-orgânicas individuais que, apesar de poderem atingir uma parcela da população, eram comprovadamente independentes do clima e da constituição racial.

NOTAS:

1. Seria interessante aprofundar os desenvolvimentos e transformações desse órgão público federal que tomava para si a responsabilidade da assistência psiquiátrica no Brasil. Conforme Engel (2001: 258) e Venancio (2003: 889), em 1930 o Sap passa a integrar o Ministério da Educação e Saúde Pública criado pelo Governo Provisório e, em 2 de abril de 1941, através do Decreto no 1.371, o Sap é substituído pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM). A reformulação do SNDM se daria em 1970, com a nova designação de Divisão Nacional de Saúde Mental, órgão do Ministério da Saúde.

2. 2. Segundo os autores citados, no caso da nascente psiquiatria francesa da primeira metade do século XIX, a clínica psiquiátrica foi edificada em conjunto com uma política assistencial asilar para os alienados, não estando nos avanços científicos e sim na problemática da assistência pública a construção de uma competência médica. No caso alemão, a ciência psiquiátrica se constituiu e se consolidou afastada de uma política de assistência, sendo exercida desde seu surgimento apenas nas clínicas universitárias. O prestígio da psiquiatria alemã florescia nos espaços universitários, para onde convergia a criação de associações e de revistas científicas e onde o ensino e a pesquisa psiquiátrica eram dominantes. Ali era menos freqüentemente importante a demonstração para os alunos de pacientes internados nos asilos, cuja preocupação com sua própria administração tornava-os, em grande medida, abrigo para casos crônicos. Para uma discussão mais estendida sobre a história da relação entre ciência psiquiátrica e política assistencial no Brasil, ver Venancio (2003).

3. Esses três hospitais psiquiátricos federais foram municipalizados a partir de 1996, e são hoje designados respectivamente como Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, Instituto Philippe Pinel e Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira.

4. Esse acervo de textos fotocopiados encontra-se à disposição para consulta no Instituto Franco Basaglia (IFB), sediado no Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

AUSTREGÉSILO, Antônio. 1933. "Juliano Moreira". Brasil-Medico, 13 de maio.

BARRETO, Lima. 1956. O cemitério dos vivos. São Paulo, Brasiliense.

CARVALHAL, Lázara. 1997. Loucura e sociedade: o pensamento de Juliano Moreira (1903-1930). Rio de Janeiro, UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Departamento de História (Monografia de Graduação).

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COLARES, Y. 1973. "Retrato de Juliano". Conferência pronunciada na Academia Nacional de Medicina por ocasião da Comemoração do Centenário de Nascimento de Ju1iano Moreira promovida pela Aperj.

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Fonte: VENANCIO, Ana Teresa A. As faces de Juliano Moreira: luzes e sombras sobre seu acervo pessoal e suas publicações. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, julho-dezembro, 2005, p. 59-73. 

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