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Leandro Vilar

sábado, 14 de dezembro de 2024

A Catedral de Notre-Dame de Paris

Situada no centro da cidade de Paris, ergue-se a imponente catedral de Notre-Dame, considerada a mais famosa igreja gótica do mundo. Com mais de 800 anos de idade, essa igreja foi sendo ampliada e reformada ao longo de muito tempo, além de ter sido testemunha de guerras, invasões, crises, golpes de estado e revoluções. Em 2019 a icônica igreja teve parte de seu telhado e da nave destruídos por incêndio, passando por cinco anos de uma caríssima restauração que foi concluída em 2024. 

Fachada da Catedral de Notre-Dame de Paris. 

A construção da catedral

Antes da construção da catedral na Île de la Cité (Ilha da Cidade), outras igrejas existiam nessa ilha como a Catedral de São Estêvão(Saint Étienne), um santo mártir, famoso por ter sido o primeiro mártir cristão a ser canonizado, sendo popular na França. Seu templo era o principal do complexo existente na ilha, que incluía uma igreja a Virgem Maria, a São Cristóvão e a São JoãoA igreja de São Estêvão era a mais antiga de todas e remontaria ao século IV, sendo mais tarde ampliada e convertida em catedral. Todavia, o bispo Maurício de Sully (?-1196) decidiu em 1160 que era necessário construir uma nova catedral principal de Paris, pois a de São Estêvão estava pequena e já envelhecida. O bispo também ambicionava poder e status, e ele sabia que construir grandes catedrais era um caminho para isso. (BRUZELIUS, 1987).

Assim, Maurício de Sully conseguiu convencer o então rei Luís VII (r. 1137-1180) a construir uma nova e imponente catedral no centro de Paris. O monarca concordou com o projeto do bispo, autorizando a demolição da Catedral de São Estêvão e das igrejas vizinhas. Em 25 de março de 1163 foi lançada a pedra fundamental da nova catedral, a qual seria dedicada a Nossa Senhora (Notre-Dame), numa época em que a Mariologia estava se difundindo. Entretanto, como a construção de grandes templos naquele tempo era algo muito oneroso, acabava-se demorando décadas para eles ficarem concluídos. Um dos principais fatores era que a Igreja Católica não tinha como custear todas as igrejas que eram construídas na Europa, logo, os nobres, bispos e a população deveriam angariar recursos para tal finalidade, considerada bastante honrosa e um ato de fé. (SANDRON; TALLON, 2013). 

Maquete em 3D da Catedral de São Estêvão e as igrejas adjacentes antes de serem demolidas para a construção de Notre-Dame. 

Entretanto, como as receitas dos Estados eram dispendiosas e nem sempre conseguia-se haver um equilíbrios com os gastos públicos, além de gastos com guerras, acordos e crises de abastecimento de alimentos, o financiamento dessas grandes igrejas demoravam bastante. Para se ter ideia, a igreja de Notre-Dame começou a ser construída em 1163, mas em partes. A primeira foi a capela que somente foi finalizada por volta de 1178, pelo menos sua estrutura, pois os detalhes ainda se estenderam até 1182, quando se concluiu o coro, alguns corredores e o altar-mor, que por sua vez, foi consagrado pelo bispo Maurício de Sully, podendo ocorrer a primeira missa naquela catedral, que contou com a presença do rei Felipe II (r. 1180-1223) e da rainha Isabel de Hainaut, além do restante da corte e de dignitários. (BRUZELIUS, 1987).

Com a conclusão da capela e o início de seu funcionamento a parte dois do projeto teve início que era se construir a grande nave com seus 70 metros de comprimento. Assim, as obras tiveram início ainda em 1182 se estendendo até 1206, quando a nave finalmente foi concluía. Com isso teve início a terceira parte do projeto, a construção da fachada, uma rosácea (típico da arquitetura gótica) e o restante da ornamentação com painéis em alto-relevo e estátuas. As obras se estenderam até 1220, levando o rei Felipe II inclusive dobrar os impostos em 1119 e 1120 consecutivamente para poder dar continuidade as obras da catedral que havia atrasado. (BRUZELIUS, 1987).

A partir de 1225 a construção das duas torres teve início, estendendo-se por vinte anos, sendo concluídas em 1245. Essas obras começaram durante o reinado de Luís VIII (r. 1223-1226), sendo concluídas no governo de Luís IX (r. 1226-1270). Com a conclusão das torres foram instalados os grandes sinos, mais tarde incluiu-se as famosas gárgulas. De qualquer forma, em 1245 a Catedral de Notre-Dame de Paris estava concluída, após oitenta e dois anos de construção, passando pelo governo de quatro reis. 

Maquete 3D da catedral na década de 1220, quando a fachada começou a ser construída. 

Entre os motivos da demora para além dos altos gastos, devia-se também ao transporte de pedras, os meses ociosos do inverno (em que era inviável se construir), a quantidade de trabalhadores envolvidos, além da complexidade do projeto, pois a nova catedral era construída em estilo gótico, o qual possuía uma arquitetura mais colossal e detalhada, com muitas janelas, arcos e vitrais. Além das estátuas e altos-relevos, em que a decoração demanda mais tempo e é mais cara. 

Embora a catedral tivesse sido concluída em 1245 ela passou por várias reformas nas décadas seguintes. De 1245 a 1265 as fachadas laterais que possuem entradas para a nave e mais próximas da capela, foram totalmente refeitas, o que demandou vinte longos anos para serem concluídas. Já que se acrescentou duas rosáceas em cada uma delas, além de estátuas e outros ornamentos. Por sua vez, a capela passou por reformas, acrescentando-se ornamentação e melhorias na estrutura isso se estendeu por décadas sendo finalizados por volta de 1345, o que incluiu também a construção de um pináculo no centro do telhado da nave. (BRUZELIUS, 1987).

Embora as obras de infraestrutura tenham sido concluídas em quase dois séculos, o interior da catedral seguiu recebendo obras nos séculos seguintes, com o acréscimo de ornamentação, do órgão, trocas de vitrais, entre outras reformas necessárias para manter a estrutura e suas atividades. 

Assim, por séculos a catedral funcionou para seus fins litúrgicos, realizando missas, casamentos, batismos, funerais, entre outras cerimônias religiosas, mas também políticas, como reuniões de políticos, autoridades públicas e militares, coroação de monarcas como o caso de Napoleão em 1804. A catedral também foi alvo de protestos e ataques durante a Revolução Francesa (1789-1799), quase sendo alvo de vandalismo e planos de incendiá-la. E a partir do século XIX ela começou a ser usada também para fins turísticos, algo que mantém até hoje. 

A arquitetura gótica da catedral

A Catedral de Notre-Dame de Paris é um templo imponente: possui 128 metros de comprimento, 15 metros de largura da nave, mas a fachada tem 43 metros de largura; 38 metros de altura, 69 metros de altura no topo das torres, mas alcança também os 96 metros de altitude na ponta de seu pináculo. As duas torres possuem dez sinos de bronzes, o templo possui cinco rosáceas (três grandes e duas pequenas), além de ter cinco grandes portas (três na fachada e duas nas laterais). A catedral possui 5.500 metros quadrados de área construída, sendo uma das maiores igrejas da Europa, apesar de que mundialmente seja considerada de porte médio. (BRUZELIUS, 1987).

O grande destaque arquitetônico de Notre-Dame de Paris foi a adesão ao estilo gótico que foi marcante entre os séculos XII e XIV, tendo surgido na França e chamado inicialmente de "obra francesa" ou "estilo francês". O termo gótico surgiu no século XVIII, inicialmente como forma de desdém para esse estilo artístico, associando-a a ideia de barbárie e "Idade das Trevas", a qual os filósofos renascentistas e iluministas imaginavam a Idade Média. (MARTINDALE, 1993). 

Entre as principais características arquitetônicas do gótico estão: janelas, portas e ornamentos em arcos ogivais, abóboda em cruzaria, arcobotantes no exterior para ajudar na dispersão do peso, rosáceas, vitrais estreitos e altos, sendo coloridos; pilares lisos e bastante altos, grande quantidade de estátuas no interior ou exterior; estrutura grande e elevada. Neste caso, as igrejas de estilo românico já eram compridas e até largas, a novidade foi deixá-las mais altas, algo implementado com o gótico. (MARTINDALE, 1993). 

Interior da nave com seus arcos ogivais, abóbodas em cruzaria e vitrais.  

A ideia de construir igrejas elevadas se deve a dois fatores principais: o primeiro era destacar o templo em meio as construções urbanas; segundo, era uma forma de simbolizar a grandeza da Igreja Católica e de Deus, causando forte impacto visual, gerando um misto de fascínio e assombro. Ao visitar tais igrejas as pessoas sentem uma sensação de pequenez, o que é proposital, para mostrar a insignificância do ser humano diante da "casa de Deus". Dessa forma, várias igrejas europeias mantiveram essa prática de serem bastante altas para manter essa condição simbólica. No caso de Notre-Dame, o teto da nave está a 38 metros de altura do nível do chão. Algo que ainda hoje impacta. (MARTINDALE, 1993). 

A primeira igreja gótica a se destacar foi a Basílica de Saint-Denis no norte de Paris, construída no século VII em estilo românico, mas sendo reformada para o gótico a partir de 1135, mantendo tal estilo até hoje. Porém, diferente de Notre-Dame, Saint-Denis é bem mais modesta, sendo menor em vários aspectos e tendo uma torre somente. Apesar disso é perceptível as características do estilo gótico em sua estrutura, as quais serviram de modelo para a construção de Notre-Dame e outras igrejas góticas seguintes. (SANDRON; TALLON, 2013). 

A Basílica de Saint-Denis, a qual inspirou Notre-Dame de Paris. 

Apesar do gótico hoje em dia evocar algo sombrio, mas isso advém da literatura gótica surgida no século XVIII, o que dá a falsa impressão que as igrejas góticas sejam escuras. Entretanto, a arte gótica da Idade Média era algo voltado para a luz, fosse nas grandes e várias janelas que as igrejas possuíam, além de que na pintura prezava-se por cores claras e efeitos de iluminação. No entanto, a fachada das igrejas góticas costuma serem algo "bruto" o que gera também a impressão equivocada de que seu interior seja escuro. 

Como as igrejas góticas presavam por grandes e altas estruturas, especialmente em suas naves, onde ficam os fiéis, o aumento da altitude do pé-direito permitiu se construir janelas maiores, logo, a incidência de luz aumentava. As igrejas românicas, que antecedem o estilo gótico, não tinham tantas janelas, e as vezes eram janelas pequenas, lembrando as vistas em alguns castelos. Mas as igrejas góticas passaram não apenas em fazer janelas maiores, mas também aumentar a quantidade das mesmas, permitindo maior iluminação natural no seu interior, além de adotar as rosáceas e vitrais, que apresentam vidro colorido e com pinturas, o que embeleza o recinto. (MARTINDALE, 1993). 

A grande rosácea da fachada da catedral e alguns vitrais abaixo dela. 

As várias estátuas retratam personagens bíblicos, santos, mas também reis, bispos e outras autoridades, até mesmo monstros, como o caso das gárgulas, que ficaram famosas no século XIX, na época que o turismo permitia se acessar as torres e terraços do telhado, podendo se tirar fotos ao lado das gárgulas. 

Entradas da fachada da catedral, com seus arcos ogivais e várias estátuas e figuras em alto-relevo. As estátuas acima das portas pertencem a chamada galeria dos reis. 

O incêndio de 2019

No dia 15 de abril de 2019 às 18h20 durante a missa, os alarmes de incêndio foram tocados e a missa foi suspensa. Os fiéis evacuaram o local. Minutos depois as chamas começaram a surgir. Os bombeiros foram acionados, mas o forte trânsito da hora do rush atrasou a chegada deles em vários minutos. Enquanto isso o fogo consumia o telhado de madeira e as 20h o pináculo desabou com a maior parte do telhado da nave. 

A queda do telhado danificou o interior da nave, destruiu janelas, estátuas, móveis, o piso, obras de artes, objetos ritualísticos etc. Inclusive na época a catedral estava passando por obras de restauração desde 2018, condição essa que havia andaimes de obras no telhado e nos arredores do templo, além de que algumas estátuas foram removidas para serem restauradas. 

O incêndio de 15 de abril de 2019. 

Os 400 bombeiros envolvidos, tiveram dificuldades para controlar o incêndio, levando cerca de 15 horas para conseguir fazer isso, um dos fatores para a demora se devia a condição de que devido a estrutura secular, era arriscado usar métodos mais intrusivos, como aviões, helicópteros e jatos d'água mais potentes. Porém, como a a evacuação ocorreu rápida e eficaz, não houve vítimas fatais e nem feridos por parte do público que se encontrava assistindo a missa ou trabalhando na catedral. 

O motivo do incêndio ainda hoje não foi identificado. A perícia descartou ato criminoso, apontando fator acidental, possívelmente um curto-circuito de lâmpadas ou maquinário usado nas obras de reforma do telhado. Como esse era feito de madeira antiga rapidamente foi consumido pelas chamas. 

A reforma da catedral e sua reabertura em 2024

Com a tragédia ocorrida em fins de 2019, o governo francês decidiu tratar de restaurar a icônica catedral gótica. Os gastos seriam altíssimos, assim, abriu-se um processo de doações. 340 mil doadores de vários países (a maioria da França e dos EUA) doaram um total de 840 milhões de euros ou 4,3 bilhões de reais. Sendo uma das doações mais caras já feitas na História presente. O dinheiro arrecadado pagou milhares de funcionários entre arquitetos, restauradores, pedreiros, vidraceiros, artesãos, historiadores, engenheiros, operários etc., que trabalharam por quase cinco anos nas obras de restauração.

Vale lembrar que durante 2020 e 2021 as obras ficaram meses paradas por conta da pandemia de Covid-19, voltando com tudo apenas a partir de 2022, vindo a serem concluídas em 2024, quando em 7 de dezembro ocorreu a cerimônia de reinauguração e o início das missas solenes para consagrar à catedral e homenagear os bombeiros que impediram que o incêndio se alastrasse e os trabalhadores que atuaram na restauração. O bispo de Paris, além de vários outros bispos e clérigos franceses, além de autoridades políticas e militares francesas e estrangeiras, participaram do evento de reinauguração. 

Chegada dos bispos franceses na cerimônia de reinauguração em 7 de dezembro. 

O alto investimento permitiu a reconstrução completa do telhado e sua estrutura, anteriormente de madeira, pedra e chumbo, agora adotando-se material mais resistente ao fogo. As colunas, pilares, piso e estátuas foram restaurados. Vitrais e ornamentos foram refeitos. Especialistas em várias áreas do estilo gótico foram convocados para atuar nas obras de restauração. Devido a isso, o telhado foi refeito e o pináculo também. Além disso, o dinheiro das doações será ainda usado para continuar a reforma iniciada em 2018, que irá atuar em outras alas dessa catedral com mais de 860 anos. 

NOTA: Depois da Torre Eiffel, a Catedral de Notre-Dame é o segundo ponto turístico mais visitado de Paris, mas diferente da torre, ela é gratuita. 

NOTA 2: O Corcunda de Notre-Dame (1831) é um dos mais famosos livros do escritor Victor Hugo, tratando-se de um romance histórico que se passa em 1482, em que acompanhamos o drama do corcunda Quasimodo, a cigana Esmeralda e outros personagens que se apaixonam pela cigana. Victor Hugo escreveu esse livro em parte para enaltecer sua admiração pela catedral. 

Referências bibliográficas 

BRUZELIUS, Caroline. The Construction of Notre-Dame in Paris. The Art Bulletin, v. 69, n. 4, 1987, p. 540-569. 

MARTINDALE, Andrew. Gothic Art. London: Thames and Hudson, 1993. 

SANDRON, Dany; TALLON, Andrew. Notre-Dame Cathedral: Nine Centuries of History. Pennsylvania, Pennsylvania State University Press, 2013. 

Referências da internet

Incêndio atinge a Catedral de Notre-Dame, em Paris. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/04/15/fogo-na-igreja-de-notre-dame-em-paris-e-relatado-em-redes-sociais.ghtml

Reabertura da Notre Dame: tudo sobre como ficou a histórica catedral de Paris após anos de restauração. National Geographic Brasil. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/viagem/2024/12/reabertura-da-notre-dame-tudo-sobre-como-ficou-a-historica-catedral-de-paris-apos-anos-de-restauracao

LINK:

Site oficial da catedral


sábado, 7 de dezembro de 2024

Existiram vikings negros?

Nos últimos dez anos cresceu a presença de produções audiovisuais mostrando algum personagem negro no contexto escandinavo da Era Viking (VIII-XI), e isso vem ocorrendo de forma mais regular através da cultura pop, a ponto de algumas pessoas se indagarem se tal aspecto teria sido real, enquanto outros defendem veementemente que isso foi um fato histórico. O presente artigo analisou os principais argumentos a respeito. 

Introdução

Em produções recentes da Vikingmania (ver nota 1), sejam de teor histórico como Assassin’s Creed Valhalla (2020) e Vikings Valhalla (2022-2024), ou obras de fantasia como God of War Ragnarök (2022) e Como treinar seu dragão (2025), em ambos os casos, apesar do contexto real ou fantástico, temos a presença de "vikings negros". Isso vem se repetindo em alguns filmes, jogos de videogame e seriados, os quais mostram homens e mulheres negros vivendo em meio a sociedade escandinava da Era Viking (VIII-XI), estando integrados aquela cultura no norte da Europa.

Ainda assim, a quantidade de produções sobre vikings que possuem os supostos "vikings negros" é demasiadamente escassa. Mas isso seria algo proposital? Resultado de um racismo estrutural (ver nota 2) que torna invisível a presença desses indivíduos em produções sobre a Era Viking, como sugerem algumas pessoas? Ou seria reflexo das propostas de representividade e inclusão de diversidade étnica, que aumentou nas produções culturais nos últimos anos?

A ideia do artigo não foi ofender as crenças e lutas sociais por uma igualdade racial, algo bastante necessário, mas sanar essa dúvida existente, que acaba caindo num embate ideológico, em que de um lado temos racistas que desdenham das ações de representividade e inclusão, mas do outro lado temos apoiadores dessas ações (os quais defendem até o blackwashing), dessas tradições inventadas (ver nota 3) para justificar suas pautas, a ponto de serem intolerantes e agressivos com os quais que questionam a veracidade desses argumentos.  

Houve vikings negros?

Hoje é possível encontrar postagens, artigos jornalísticos, debates em fóruns, podcasts e vídeos alegando que sim, houve "vikings negros". Porém, todo esse material difundido por fãs, curiosos, influencers, podcasters, youtubers, em geral não tem nenhuma fundamentação histórica e arqueológica. Alguns que cheguei a ler, os quais não merecem serem citados aqui por conta de seus absurdos e incoerências. De qualquer forma, o principal trabalho usado pelos adeptos dos “vikings negros” consiste no livro True Myth: Black Vikings of the Middle Ages (2013), escrito pelo professor de inglês Nashid Al-Amin

Na introdução ele disse que como um negro nascido no Harlem, em Nova York, sofreu com o racismo e mais tarde, já como acadêmico, se sentia incomodado com a ideia de que os vikings fossem sempre apresentados como brancos, louros e de olhos azuis (um estereótipo que vem sendo superado desde a publicação do livro dele). Decidido a desmascarar isso, ele redigiu seu livro com a proposta de mostrar que:  

"Serão apresentadas evidências demonstrando que os nórdicos da Escandinávia eram predominantemente de pele negra durante a chamada Idade das Trevas, Era Viking e na Idade Média - e eram frequentemente chamados de "pagãos negros", "bárbaros negros", "demônios negros" e mouros nas Ilhas Britânicas. Esse fato quase nunca é mencionado em livros populares sobre os vikings, e as poucas fontes que mencionam a negritude dos vikings o fazem fugazmente, em uma ou duas páginas, e quase nunca depois". (AL-AMIN, 2013, paginação do Kindle 300-301, tradução e grifos meus).

Nashid Al-Amin ainda em sua introdução alega que a falta de estudos sobre populações negras que teriam vivido na Escandinávia ou em outros territórios nos quais os vikings estabeleceram colônias ou se fixaram, foi algo omitido propositalmente por conta do racismo de autores europeus e norte-americanos, os quais tratam os vikings como “semideuses” que representam um “ideal de povo branco” ou “ariano”, por conta disso, deliberadamente omitiram informações da presença negra na história desse povo.

Para fundamentar sua argumentação, Al-Amin partiu de fatores sobre migração, expansões de povos, colonização, teorias antropológicas, relatos históricos, expressões encontradas em documentação medieval, achados arqueológicos etc. Além disso, ele dedicou alguns capítulos a abordar a expansão dos povos africanos pela Eurásia, o que o levou a remontar ao próprio período da Pré-história, para depois dissertar sobre alguns reinos africanos e asiáticos (com populações negras), que tinham contatos com os povos europeus. Neste aspecto, Al-Amin defende que houve uma população negra grande vivendo na Europa desde a Pré-história, mas isso foi omitido nos livros de história por conta do racismo eurocêntrico.

No caso deste artigo não nos interessou a parte do estudo de Al-Amin sobre povos pré-históricos e da Antiguidade (inclusive bastante problemática a argumentação dele), mas nos centrar no que ele apresentou de argumentação sobre terem existido “vikings negros”. Sobre isso, elenquei alguns pontos que ele destacou:

  1. Uma presença antiga de povos europeus miscigenados com povos africanos, remontando desde o período pré-histórico;
  2. Essa miscigenação teria se expandido por diferentes partes do continente europeu, sendo mais acentuada na bacia mediterrânica, mas chegando mesmo no Norte, como a região da Escandinávia;
  3. Povos germânicos que eram referidos como sendo “pretos” pelos romanos, isso se deveria a condição de não pintarem seus corpos, mas serem naturalmente negros;
  4. Em documentos de origem anglo-saxã, irlandesa e galesa existem termos que se referiam aos vikings como sendo “negros”;
  5. O nome de algumas localidades e divindades da Escandinávia e de outras partes da Europa, teriam sua raiz etimológica advinda de palavras de povos africanos;
  6.  Entre os nórdicos havia alguns homens conhecidos pelos nomes de Halfdan, o Negro e Bjorn, o Negro;
  7. Na mitologia nórdica há menção a elfos "negros" e o nome do gigante Surt significa “negro”.
  8. Foram encontradas algumas ossadas na Inglaterra, Irlanda e Dinamarca, de pessoas com traços genéticos de característica negra;
  9. Os vikings realizaram incursões na região da Península Ibérica, onde viviam povos miscigenados, e até mesmo chegaram ao norte da África, mais especificamente no território do Magreb (atual Marrocos);
  10. Eles também viajaram pelo Império Bizantino e pelo Oriente Médio, onde viviam pessoas negras;
  11. Houve uma postura eurocêntrica e racista em omitir a existência de pessoas negras na Escandinávia medieval, cuja população era numerosa.

Diante dessa lista de argumentos apresentados por Nashid Al-Amin, nos tópicos seguintes analisei alguns dos principais deles. Entretanto, outro livro que também é referido pelos adeptos dessa teoria trata-se da obra O Viking Negro (2018) do historiador, escritor e poeta islandês Bergsveinn Birgisson, que apesar do título, a proposta do livro não foi comprovar a existência de “vikings negros” como Nashid Al-Amin tentou fazer, mas de contar a história de um homem chamado Geirmund Hjörsson, conhecido pelo epíteto de heljarskinn (“pele escura”).

A história de Geirmund conta que ele era filho de um guerreiro norueguês chamado Hjör Hálfarson, o qual lutou na Bjarmanland (hoje território no extremo norte da Finlândia e Rússia), em que ele acabou casando-se com uma mulher nativa, a qual gerou dois filhos seus: Geirmund e Hámund. Mais tarde Hjör voltou com seus filhos para a Noruega, onde ele se tornou um jarl (senhor). Devido aos dois filhos serem mestiços, ambos tinham a pele mais escura, pois sua mãe pertenceria ao povo Nenet da etnia Samoieda, que possui descendência turco-mongol, apresentando cabelos negros, olhos castanhos escuros, rosto largo, olhos levemente puxados e uma pele de tonalidade parda. (BIRGISSON, 2021).

Posteriormente, já adulto os irmãos Geirmund e Hámund com a influência do pai, se tornaram comerciantes e depois migraram para a Islândia, onde se tornaram colonos e traçaram sua reputação no século IX. Neste ponto, Bergsveinn Birgisson (2021) diz que é descendente desses homens, e a partir do relato contido na Geirmundar þáttr heljarskinns (Saga curta de Geirgmund pele-escura), Birgisson buscou trazer à tona a história desse “viking negro” que teria sido um “herói”.

Apesar de sua investigação histórica, o livro em vários momentos tem um tom de romance histórico, em que claramente nota-se as ações do autor em querer destacar esse seu pretenso antepassado. De qualquer forma, citamos essa obra por conta de ela mostrar o caso incomum de nórdicos mestiços com pele escura, uma exceção tomada como generalizada pelos defensores de que existiram “vikings negros”. 

Miscigenação nórdica até que ponto?

Um dos argumentos bastante usados por Al-Amin e os adeptos de que existiram “vikings negros” recaí sobre a condição de que os nórdicos se espalharam pela Europa e até chegado a outros continentes como Ásia, África e América do Norte, logo, eles teriam se miscigenado com populações desses lugares gerando indivíduos mestiços. Isso até é possível, mas é preciso ter cautela para utilizar tal condição como argumento.

A expansão viking ocorreu entre os séculos VIII e começo do XI, alcançando seu auge entre os séculos IX e X. De fato, os nórdicos migraram para diferentes localidades do continente europeu, mas os territórios preteridos para eles desenvolverem suas colônias foram lugares cuja população era predominantemente branca como Inglaterra, Escócia, Irlanda, França, Rússia, Polônia e Ucrânia. Sendo assim, houve miscigenação, mas entre povos brancos com brancos, o que mudaria seria alguns aspectos como estatura, cor dos olhos e dos cabelos, mas alterações na cor da pele a ponto de haver um “escurecimento”, como algumas pessoas alegam, isso seria improvável.

Al-Amin (2013) cita ao longo de seu livro casos de achados arqueológicos de ossadas de supostas pessoas negras, entretanto, tais afirmações são questionáveis. Mesmo achando-se esses vestígios que são escassos, não tem como sustentar a argumentação que houve uma população ampla de pessoas negras vivendo na Escandinávia, na Alemanha, na França, na Inglaterra e na Irlanda, como ele alegou. Sobre isso, cito o estudo de 2020 publicado na prestigiada revista Nature, sobre a análise dos traços genéticos de esqueletos da Era Viking.

Nesse estudo analisou-se amostras de DNA de 442 pessoas que viveram entre 2400 a.C. e 1600 d.C., em que todos tinham descendência escandinava. Entre os resultados foi identificado uma maior diversidade genética de pessoas fora da Escandinávia, o que atesta a expansão da Era Viking e a miscigenação, a qual com base nos dados analisados, ocorreu principalmente com povos oriundos da Inglaterra, Irlanda, Polônia, Rússia, em menor grau Ucrânia e Itália. (MARGARYAN, 2020). Lembrando que os nórdicos passaram por outras regiões, mas aqui citou-se apenas os ossos encontrados nesses países mencionados.

A pesquisa também mostrou o vínculo genético entre nórdicos, sámis e povos bálticos, ainda mais estreito do que se supunha em algumas localidades, principalmente na Suécia. Por sua vez, em ilhas como as Faroe, a Islândia e a Groenlândia predominaram o genoma de noruegueses, já nas ilhas Britânicas teve uma maior presença de dinamarqueses. O estudo também demonstrou que a maioria das pessoas nórdicas analisadas e seus descendentes tinham cabelos e olhos escuros, não sendo louros dos olhos azuis, estereótipo antigo. Além de que indivíduos ruivos eram minoria. (MARGARYAN, 2020).

Porém, a pesquisa não identificou nenhuma pessoa com pele escura, o que contraria a afirmação de Al-Amin (2013) de que havia uma predominância de pessoas negras na Escandinávia, além da hipótese de que as expedições ao sul da Europa teriam legado um fluxo de escravos negros para as colônias nórdicas e os reinos escandinavos. Além disso, ressalvamos que a miscigenação dos nórdicos apesar de ampla, foi feita em territórios naturalmente de predominância de populações brancas.

Além disso, nem todo território para o qual os vikings passavam, eles foram com o intuito de morar, constituir famílias e comunidades. Por exemplo, as incursões vikings à Península Ibérica, onde habitavam estrangeiros de origem asiática e africana devido aos domínios muçulmanos de Al-Andalus, – usado por Al-Amin como argumento para justificar uma presença recorrente de pessoas negras nos atuais territórios de Portugal e Espanha –, no entanto, foram lugares em que os nórdicos não estabeleceram colônias, apenas estiveram ali de passagem em diferentes momentos principalmente nos séculos IX e X. (HAYWOOD, 1995; PIRES, 2017). O que dificultaria qualquer processo de miscigenação com aquelas populações.

No entanto, os adeptos dessa teoria, defendem que os vikings teriam capturado escravos negros em Al-Andalus ou até durante sua passagem pela costa do Magreb (atual Marrocos), e os levados para a Escandinávia, onde tais pessoas foram assimiladas pela sociedade escandinava. Entretanto, temos alguns problemas quanto a essas afirmações, as quais também carecem de evidências concretas como assinalou Ann Christys:

"A maioria dos escravos em al-Andalus, no entanto, eram cristãos capturados por muçulmanos em campanhas de fronteira. A existência da escravidão viking no Sul repousa precariamente em referências a cativos em fontes narrativas e cartas. Uma fonte tardia e fragmentária da Irlanda se referiu aos "homens negros", que os vikings trouxeram da Mauritânia para a Irlanda; presumimos que eles eram africanos negros (Anais Fragmentários: 163; Capítulo 4). Mas a escravidão nunca foi o principal objetivo das expedições lançadas a partir do assentamento Viking em Dublin e, embora seja atestada no século IX, não se tornou importante até duzentos anos depois. (CHRISTYS, 2015, p. 11, tradução minha).

O relato mencionado por Christys com base nos Anais Fragmentários, deve ser tomado com cautela, pois não sabemos se os escravos levados naquela ocasião seriam todos negros, ou todos brancos, ou haveria gente de ambas as características. A autora também aponta que a captura de escravos naquela região estaria mais associada com o comércio local ou na prática não seriam escravos, mas reféns. Sobre isso, Neil Price comentou acerca de um caso ocorrido em “Mazimma no pequeno estado marroquino de Nekor foi saqueada e ocupada por oito dias de acordo com al-Bakri. Duas das mulheres reais – Amaar-rahaman e Kanula – foram capturadas, e um grande resgate foi pago pelo emir de Córdoba para seu retorno”. (PRICE, 2008, p. 466, tradução minha).

Mas tirando esse ataque em Mazimma, ocorrido em algum momento do século XI, se desconhece acerca da atuação de incursões vikings à costa africana, sobre o que Christys (2015) comentou haver poucos relatos a respeito e a maioria não fornecem detalhes, apenas dizendo que durante ataques a Al-Andalus, houve ocasiões dos vikings irem se refugiar na costa africana para evitar as tropas e frotas nos portos ibéricos, em seguida retornavam para novos assaltos.

Assim, afirmar que durante esses ataques pela Península Ibérica e o Marrocos, os vikings teriam capturado prisioneiros para escraviza-los, isso pode ter ocorrido, mas da mesma forma que existe uma possibilidade de sim, existem várias possibilidades para não, as quais listaremos apenas algumas mais simples:

  • Nem sempre as incursões vikings faziam prisioneiros para serem vendidos como escravos, ainda mais em viagens longas, em que os tripulantes passariam meses ou até mesmo um ou dois anos fora de casa, pois isso demandaria a condição de que os escravos obtidos teriam que ser alimentados durante a continuação da viagem, até poderem serem levados à Escandinávia, ou vendidos pelo caminho;
  • Outro aspecto é que manter uma quantidade de escravos nos navios, além do gasto com comida e água, havia o risco de revoltas, que poderiam ser fatais;
  • Os navios-longos (langskip) que eram normalmente utilizados nessas expedições devido a sua velocidade e mobilidade, costumavam serem embarcações entre 12 a 18 metros de comprimento, tendo uns 2 a 3 metros de largura, além de que não possuíam convés e nem porão. Assim, sua capacidade de carga era reduzida, além da falta de acomodações. (OLIVEIRA, 2023). Numa situação de haver escravos recentemente capturados a bordo, não seria fácil mantê-los separados do restante da tripulação, o que poderia causar discussões e brigas.

Logo, o argumento de que os vikings teriam escravizado pessoas negras porque estiveram na Península Ibérica e no Marrocos, segue frágil. Eram locais distantes dos seus lares. Sobre isso, Karras (1988) sublinhou que a maior parte dos escravos feitos pelos nórdicos, eram pessoas oriundas de territórios próximos como Inglaterra, Irlanda, a região do Báltico e parte do leste europeu, habitado pelos povos eslavos. Além disso, Karras assinalou que os nórdicos não desenvolveram um sistema escravocrata massivo como os antigos romanos e gregos fizeram. Assim, a ideia de que haveria um intenso comércio de escravos, não foi algo regular e variava com a localidade e a época.

Não obstante, se houve algumas pessoas negras escravizadas nos ataques vikings em Al-Andalus e no Magreb, provavelmente foram vendidas pelo caminho, o que seria mais vantajoso devido aos problemas listados anteriormente. Mesmo que algumas dessas pessoas possam ter sido levadas à Escandinávia, não significaria que conseguiriam constituir comunidades ou tiveram aceitação na sociedade. Tais pessoas chegariam na condição de estrangeiros e escravizados, estando marginalizados e com poucas condições de mudar de vida.

Outro aspecto ainda acerca desse argumento sobre a miscigenação dos nórdicos advém da presença deles no Império Bizantino e em partes do Oriente Médio. Condições destacadas por Al-Amin. Sobre isso, o Império Bizantino (395-1453) em seu auge possuiu domínios em três continentes, porém, ainda no século VIII seus territórios na África foram perdidos para a expansão árabe, e havendo uma guerra entre bizantinos cristãos e árabes muçulmanos, a qual perdurou por muito tempo, variando a gravidade dos conflitos, isso comprometeu em distintas épocas o fluxo de africanos às terras bizantinas e vice-versa. Outro aspecto a ser mencionado é que a maioria da população bizantina era formada por pessoas de origem grega, dos territórios dos Balcãs, do próprio território da Ásia Menor e de terras que hoje correspondem a Armênia, a Síria, o Líbano e Israel, localidades com a presença maior de pessoas de pele clara. Apesar disso, nota-se uma diversidade étnica nos domínios bizantinos. (GIORDANI, 1992).

Apesar de ter havido indivíduos negros vivendo em terras bizantinas, os nórdicos chegaram aquele território no século IX, época em que o Império Bizantino já havia perdido suas terras no continente africano; segundo, que somente a partir do século X, grupos de nórdicos passaram a se assentar nas terras bizantinas mais regularmente, agindo como mercadores e mercenários. (SHEPARD, 2008).

Mas poderia ter havido contato entre eles com pessoas negras? É possível. Mas afirmar com base nessa possibilidade que foi fato de isso ter gerado descendentes miscigenados e até mesmo a migração dessas pessoas à Escandinávia, não tem como ter certeza. Não temos evidências que sustentem essa argumentação. É o mesmo dizer que nos séculos XIII e XIV pela condição de alguns europeus viajarem à China (como Marco Polo, seu pai e tio), eles teriam sido assimilados pela sociedade chinesa e constituído comunidades ali. Até poderia ter tido alguém que fez isso, mas alegar que foi algo comum, isso não temos como confirmar. 

Acerca dos relatos árabes sobre os vikings, o mais famoso advém do embaixador Ahmad ibn Fadlan, que no século X, conheceu vikings (ru's como ele se refere ao usar o termo comum da Europa oriental) às margens do rio Volga, atualmente em território russo. As impressões dele foram uma mistura de curiosidade e repúdio. Enquanto ele elogiou a bela aparência e consistência física daquela gente, repudiou sua falta de higiene, pudor e atos considerados bárbaros. 

"Vi também os rus, que tinham vindo a comércio e acamparam à margem do rio Volga. Nunca havia visto corpos tão perfeitos quanto os deles. Altos como palmeiras, brancos e ruivos, não usam túnica ou cafetã. Em vez disso, cada um deles veste um manto que lhe cobre um lado do corpo, deixando um dos braços de fora. Cada um carrega consigo um machado, uma espada e uma faca, e nunca se separa dessas armas". (IBN FADLAN, 2018, p. 64). 

Segundo Al-Amin, o qual disse que a maioria da população nórdica era de pele escura, o relato de ibn Fadlan vai de encontro a isso, já que ele viu dezenas de nórdicos em sua passagem naquela região do Volga, e todos eram brancos. 

Svarti e blå: um problema etimológico

O professor Al-Amin (2013) menciona entre seus argumentos uma condição linguística. Ele disse que homens como Bjorn, o Negro e Halfdan, o Negro (entre outros mais que ele cita em dois capítulos do livro), seriam chamados dessa forma por conta da cor de suas peles. Mas aqui temos um problema etimológico. A palavra usada para designar o epíteto desses homens era svarti, que é traduzida nas línguas românicas como negro e em inglês como black. Porém, é uma tradução imprecisa, pois svarti está mais próximo do sentido de sombrio ou dark na língua inglesa. Por sua vez, a palavra blå teria o sentido de preto (e até de azul). (ZÖEGA, 1910).

Por exemplo, Bjorn svarti e Halfdan svarti eram apelidados svarti (sombrios), porém, termos como Blåland (terra preta) e blåman (homem preto), são referências a África e as pessoas negras. Mas nota-se a diferença do uso dos termos, pois em momento algum Bjorn e Halfdan eram apelidados de blå.  

Além desse argumento linguístico, citamos também uma representação islandesa medieval conhecida do rei Halfdan, a qual pode ser conferida abaixo, em que vemos o monarca e seu filho Haroldo Cabelo Belo, ambos representados como homens brancos e louros.

O rei Haroldo Cabelo Belo apertando a mão de seu pai Halfdan, o Negro. Ilustração do manuscrito islandês Flateyjarbok, século XIV. 

Al-Amin (2013) frisou algumas vezes a condição de que em crônicas anglo-saxãs, irlandesas e galesas aparecer referências aos vikings sendo referidos como “pagãos negros" ou "bárbaros negros", mas esses termos evocariam um sentido de violência e assombro. Sobre isso, a historiadora Clare Downham (2011) redigiu um artigo comentando essa problemática de nomenclatura no caso irlandês. Ela mostrou que na documentação irlandesa usava-se termos como dub (preto/sombrio) e finn (branco/belo), os quais supostamente seriam usados para se referir aos dinamarqueses (dubgaill) e aos noruegueses (finngaill).

No entanto, Downham (2011) ao analisar crônicas irlandesas e galesas, encontrou poucas menções ao emprego desses termos (diferente de Al-Amin que alegou ser algo mais habitual). Porém, ela assinalou que a palavra dubgaill que significaria “forasteiro sombrio”, referia-se a grupos vikings conhecidos por serem demasiadamente violentos, o que incluiria dinamarqueses e noruegueses, não apenas um deles como sugerido por Alfred P. Smith e David Dumville. Logo, o uso da palavra dub seria referente a percepção malvada desses vikings mais brutais, chamados de dubgaill, e não a condição de eles terem a pele escura como Al-Amin disse que seria.

Também como contra-argumento a Al-Amin de que as fontes anglo-saxãs chamariam os vikings de “negros” por conta da cor da pele deles, abaixo seguem algumas representações iconográficas medievais, mostrando os vikings como pessoas brancas. Ora, de acordo com Al-Amin havia uma população negra alta morando na Escandinávia e na Inglaterra, se isso fosse verdade, por que todas as pessoas que aparecem nas pinturas eram apenas brancas? 

Vikings representados num detalhe da Tapeçaria de Bayeux, século XI. 

Vikings representados numa ilustração do manuscrito da Miscelânea da Vida de Santo Edmundo, Inglaterra, século XII.

Vikings batalhando contra os ingleses na Nortúmbria, durante as campanhas do rei Haroldo III da Noruega, no século XI. Ilustração do manuscrito A Vida do rei Eduardo, o Confessor, por Mateus Paris, século XIII.

Nashid Al-Amin citou o caso dos “elfos negros”, os quais viviam em Svartalfheim, que ele disse significar “reino negro”. Mas aqui nos deparamos dois problemas etimológicos. Como dito anteriormente, as palavras svarti (sombrio) e blå (preto/azul) não seriam necessariamente sinônimas. Assim, a tradução de Svartalfheim é “reino dos elfos sombrios”.

Para Al-Amin a existência desses elfos seria uma evidência de que os nórdicos teriam tido contato com pessoas negras, mas isso é um argumento bastante frágil. Não sabemos a origem dos elfos, os quais eram espíritos da natureza associados com cultos a fertilidade. Além disso, o termo svartálfar somente aparece na Edda em Prosa, um livro redigido no século XIII, por um escritor e poeta cristão chamado Snorri Sturluson (1179-1241), mais de duzentos anos depois da Era Viking.

Sobre isso, Snorri classificava os elfos em dois grupos: os elfos luminosos (ljósálfar) os quais viviam em Alfheim, um reino iluminado, e os elfos sombrios (svartálfar) que viveriam em Svartalfheim, um reino subterrâneo, longe da luz do sol. Inclusive alguns autores comentam que os elfos sombrios poderiam ser uma referência aos anões (dvergar), os quais viviam num lugar subterrâneo nomeado Nidavellir (Campos Sombrios). A condição desses elfos e dos anões viverem no submundo os associava com a escuridão, por conta disso o uso da palavra “negro” numa conotação de sombrio, não de cor preta. (LINDOW, 2001; SIMEK, 2007).

Além disso, John Lindow (2001) comenta que a divisão dos elfos em duas categorias apresentadas por Snorri, somente existe na obra dele, em todas as outras fontes escritas da Era Viking e logo depois, não menciona tais diferenças. Assim, alguns estudiosos ainda no século XIX, como os Irmãos Grimm, sugeriram que Snorri possa ter representado os elfos em sua obra como uma dicotomia entre anjos e demônios.

Acerca do gigante Surt, cujo nome significa “escuro” ou “enegrecido” (como proposto por Lindow em referência a fuligem), aqui temos problemas de contextualização. Surt é um gigante que vive em Muspelheim, um lugar com fogo e fumaça, e sua maior presença na mitologia nórdica ocorre durante os eventos do Ragnarök, quando ele liderará o exército de Muspelheim para confrontar os deuses e humanos na batalha final. Inclusive o gigante matará o deus Freyr em combate, destruirá a ponte Bifrost e com sua espada de fogo, incendiará o mundo. Observa-se que Surt é uma grande calamidade. Sobre isso, alguns mitólogos interpretam ele como podendo ser uma personificação de erupções vulcânicas, que eram comuns na Islândia. Afinal, uma montanha negra que solta fogo, fumaça e cinzas lembra um gigante furioso. (LINDOW, 2001; SIMEK, 2007). Inclusive na Islândia seu solo por ser vulcânico, acaba sendo preto. Logo, existem vulcões pretos naquela ilha. 

Um vulcão islandês, que consiste numa montanha negra, possível inspiração para um gigante de fogo como Surt. 

Quanto a Geirmund heljarskinn, que realmente existiu, seu apelido é complicado de ser traduzido. Não encontramos as palavras svarti e nem blå, mas heljar, que significa cova ou túmulo. Por sua vez, o nome de Hel, a deusa dos mortos, compartilha da mesma origem etimológica. (DAVIDSON, 1968). Assim, Geirmund seria chamado de “pele de Hel”. Mas essa associação com Hel viria de um quesito simbólico, pois na Edda em Prosa é dito que a deusa tinha a face de duas cores: uma normal branca e a outra escura como de um cadáver. Dessa forma, o apelido de Geirmund era bem ofensivo, pois o comparavam com a pele da tonalidade de um cadáver.   

Três homens do povo Nenet, fotografados em Dudinka, Rússia, no ano de 2000. Geirmund e Harmund eram nórdicos mestiços com esse povo. 

Assim, Bjorn, Halfdan, os vikings invasores da Inglaterra e da Irlanda, os elfos e Surt, eram chamados de “negros” não por serem pessoas pretas, mas sombrios de alguma forma. Aqui entra outro aspecto: a associação da cor preta com algo ruim e malévolo. Esse estigma infelizmente ainda hoje perdura nas sociedades atuais, mas na Idade Média ele também já existia. O historiador Michel Pastoureau em seu livro Black: the history of color (2008) mostrou como em distintos momentos da História a cor preta foi associada com a morte, os mortos, a maldade, a escuridão, as trevas, o sofrimento, a punição etc. No medievo o Diabo e seus demônios eram mais associados a cor preta, do que o vermelho que normalmente encontramos nas atuais representações dele.

Considerações finais

Por essa breve argumentação percebe-se que alguns dos argumentos do professor Nashid Al-Amin são falhos e carecem de evidências e justificativas plausíveis. Os próprios esqueletos de supostas pessoas negras que viveriam na Escandinávia, que ele disse terem sido "omitidos", são questionáveis de terem sido de pessoas negras mesmo, e caso tenham sido, são algo incomum e ocasional, contrariando o argumento dele de que haveria uma predominância de negros vivendo nos países escandinavos na Idade Média. Acrescento o fato de que além de mencionar o estudo publicado na Nature, em que se analisou o DNA de mais de 400 ossadas, outros estudos do tipo também foram feitos, e nada constatou de uma população negra regular em território escandinavo. 

No quesito etimológico, foi demonstrado que os termos apontados por Al-Amin e outros defensores da "teoria dos vikings negros", falham ao desconsiderarem a questão etimológica e simbólica. Além de que a tradução desses termos também prejudica seu entendimento. Não é apenas em português que homens como Halfdan, o Negro é chamado assim, em outros idiomas utilizam termos como black, noir, nero etc. Apesar que na língua alemã ele seja chamado Halfdan Svarte (sombrio) e não Halfdan Schwarz (negro). O mesmo vale para os idiomas escandinavos como o norueguês, o sueco, o dinamarquês e o islandês, que possuem a preocupação de distinguir os termos.

Porém, o problema é que a palavra negro no sentido utilizado nos outros idiomas citados, tem significado de sombrio, não na cor preta, o que acaba gerando confusão, já que o mais correto seria Halfdan, o Sombrio ou Halfdan the Dark. Entretanto, essa questão é curiosa, pois Al-Amin sendo professor de língua inglesa não se atentou a esse detalhe? 

Além disso, essa questão etimológica se aplica a outros casos analisados por Al-Amin, por exemplo, quando ele disse que algumas tribos germânicas e pictas eram referidas como "negras" por terem a cor da pele dessa forma, mas na verdade se devia a pintura corporal deles. Outro exemplo é quando ele se referiu a algumas localidades na Europa oriental e central, cujos nomes supostamente viriam de idiomas africanos, mas na prática tais nomes estão mais próximos das línguas indo-europeias. A semelhança apontada por ele é mais um quesito semântico de haver palavras iguais em idiomas diferentes, algo até comum em várias línguas sem nenhuma conexão. 

Entre alguns contra-argumentos apresentados, destaquei o uso de imagens do período medieval, datadas de entre os séculos XI e XIII, retratando os vikings como pessoas brancas. E como dito anteriormente: se houve vikings negros (e em grande quantidade como defendido por Al-Amin), por que não aparecem nas pinturas? Vai dizer que isso foi fruto do racismo? Sendo que a cultura racista daquele tempo não era igual ao que se desenvolveu na Idade Moderna, tampouco similar ao racismo estrutural no qual vivemos em alguns países. Enfatizar essa omissão por conta do racismo eurocêntrico que existiria desde os tempos antigos, soa bastante como uma teoria da conspiração, não uma argumentação histórica. 

Além disso, foi demonstrado que o comércio de escravos negros seria inviável a longas distâncias, embora houve exceções como no caso da Irlanda, como comentado por Chrysts. Ainda que algumas pessoas negras tivessem sido levadas como escravas para Dinamarca, Noruega, Suécia ou Islândia, não é garantia de terem formado comunidades e terem sido aceitas de forma inclusiva naquela sociedade, como produções audiovisuais como o jogo Assassin's Creed Valhalla (2020) e o seriado Vikings Valhalla (2022-2024) mostraram. 

Dessa forma, o que teríamos mais próximo de "vikings negros" foram os irmãos Geirmund e Harmund, que eram mestiços de nórdicos e nenets, sendo mais pardos do que pretos propriamente falando. Assim, não existem evidências de "vikings negros" como tendo sido algo comum, tampouco uma exceção. Logo, os ditos "vikings negros" são fruto da ficção da vikingmania contemporânea, influenciada por discursos de representividade, inclusão e diversidade étnica, usados para fins de entretenimento e mercadológicos, reflexo da indústria cultural atual. 

NOTA 1: "Definimos a Vikingmania como sendo a representação contemporânea sobre os vikings, surgido com o Romantismo do século XIX, construído a partir das artes plásticas, música, literatura e teatro, posteriormente sendo reformulado nos séculos XX e XXI, passando pelo cinema, histórias em quadrinhos, seriados e videogames, os quais forneceram concepções estereotipadas que ajudaram a construir o senso comum3 que atualmente temos sobre os vikings4, em respeito a seu visual, cultura, sociedade, história, costumes e crenças, desenvolvidos para intuitos estéticos, políticos, sociais e mercadológicos. Dessa forma a Vikingmania pode ser considerada um tipo de cultura visual, midiática e identitária". (OLIVEIRA, 2021, p. 472). 

NOTA 2: O racismo estrutural em linhas gerais consiste nas práticas, ideologias, costumes, políticas, leis e crimes perpetrados numa sociedade de forma regular, sendo explícito ou velado, de maneira que se mantem atos racistas no cotidiano, nas relações familiares e de trabalho, no funcionamento de instituições, na promoção de aspectos culturais etc. (ALMEIDA, 2019). 

NOTA 3: As tradições inventadas consistem em atos e ideias criados para justificar ideologias, crenças, costumes e práticas, sob alegação de serem algo "antigo", no sentido de que sua antiguidade respaldaria sua existência (e oficialização), porém, tais tradições costumam serem bem mais novas do que são. (HOBSBAWM, 2008). 

Referências:

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ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 

BIRGISSON, Bergsveinn. O Viking Negro – A saga esquecida de um dos maiores heróis nórdicos. Tradução de Guilherme da Silva Braga. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2021.

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DAVIDSON, Hilda R. E. The Road to Hel. A Study of the Conception of the Dead in Old Norse Literature. New York: Greenwood Press, 1968.

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Link relacionado: 

A Saga Viking