Nos últimos dez anos cresceu a presença de produções audiovisuais mostrando algum personagem negro no contexto escandinavo da Era Viking (VIII-XI), e isso vem ocorrendo de forma mais regular através da cultura pop, a ponto de algumas pessoas se indagarem se tal aspecto teria sido real, enquanto outros defendem veementemente que isso foi um fato histórico. O presente artigo analisou os principais argumentos a respeito.
Introdução
Em produções recentes da Vikingmania (ver nota 1), sejam de teor histórico
como Assassin’s Creed Valhalla (2020)
e Vikings Valhalla (2022-2024), ou
obras de fantasia como God of War
Ragnarök (2022) e Como treinar seu
dragão (2025), em ambos os casos, apesar do contexto real ou fantástico,
temos a presença de "vikings negros". Isso vem se repetindo em alguns filmes,
jogos de videogame e seriados, os quais mostram homens e mulheres negros
vivendo em meio a sociedade escandinava da Era Viking (VIII-XI), estando integrados
aquela cultura no norte da Europa.
Ainda assim, a quantidade de produções
sobre vikings que possuem os supostos "vikings negros" é demasiadamente escassa.
Mas isso seria algo proposital? Resultado de um racismo estrutural (ver nota 2) que torna
invisível a presença desses indivíduos em produções sobre a Era Viking, como
sugerem algumas pessoas? Ou seria reflexo das propostas de representividade e
inclusão de diversidade étnica, que aumentou nas produções culturais nos últimos
anos?
A ideia do artigo não foi ofender as
crenças e lutas sociais por uma igualdade racial, algo bastante
necessário, mas sanar essa dúvida existente, que acaba caindo num embate
ideológico, em que de um lado temos racistas que desdenham das ações de
representividade e inclusão, mas do outro lado temos apoiadores dessas ações (os quais defendem até o blackwashing), dessas tradições inventadas (ver nota 3) para justificar
suas pautas, a ponto de serem intolerantes e agressivos com os quais que
questionam a veracidade desses argumentos.
Houve vikings
negros?
Hoje é possível encontrar postagens, artigos jornalísticos, debates em fóruns, podcasts e vídeos alegando que sim, houve "vikings negros". Porém, todo esse material difundido por fãs, curiosos, influencers, podcasters, youtubers, em geral não tem nenhuma fundamentação histórica e arqueológica. Alguns que cheguei a ler, os quais não merecem serem citados aqui por conta de seus absurdos e incoerências. De qualquer forma, o principal trabalho usado pelos adeptos dos “vikings
negros” consiste no livro True Myth:
Black Vikings of the Middle Ages (2013), escrito pelo professor de inglês
Nashid Al-Amin.
Na introdução ele disse que como um negro nascido
no Harlem, em Nova York, sofreu com o racismo e mais tarde, já como
acadêmico, se sentia incomodado com a ideia de que os vikings fossem sempre
apresentados como brancos, louros e de olhos azuis (um estereótipo que vem sendo superado desde a publicação do livro dele). Decidido a desmascarar
isso, ele redigiu seu livro com a proposta de mostrar que:
"Serão apresentadas evidências demonstrando que os nórdicos
da Escandinávia eram predominantemente de pele negra durante a chamada Idade
das Trevas, Era Viking e na Idade Média - e eram frequentemente chamados de
"pagãos negros", "bárbaros negros", "demônios
negros" e mouros nas Ilhas Britânicas. Esse fato quase nunca é mencionado
em livros populares sobre os vikings, e as poucas fontes que mencionam a
negritude dos vikings o fazem fugazmente, em uma ou duas páginas, e quase nunca
depois". (AL-AMIN, 2013, paginação do Kindle 300-301, tradução e grifos meus).
Nashid Al-Amin ainda em sua introdução alega que a falta de
estudos sobre populações negras que teriam vivido na Escandinávia ou em outros
territórios nos quais os vikings estabeleceram colônias ou se fixaram, foi algo
omitido propositalmente por conta do racismo de autores europeus e
norte-americanos, os quais tratam os vikings como “semideuses” que representam
um “ideal de povo branco” ou “ariano”, por conta disso, deliberadamente
omitiram informações da presença negra na história desse povo.
Para
fundamentar sua argumentação, Al-Amin partiu de fatores sobre migração,
expansões de povos, colonização, teorias antropológicas, relatos históricos, expressões
encontradas em documentação medieval, achados arqueológicos etc. Além disso,
ele dedicou alguns capítulos a abordar a expansão dos povos africanos pela
Eurásia, o que o levou a remontar ao próprio período da Pré-história, para
depois dissertar sobre alguns reinos africanos e asiáticos (com populações
negras), que tinham contatos com os povos europeus. Neste aspecto, Al-Amin
defende que houve uma população negra grande vivendo na Europa desde a
Pré-história, mas isso foi omitido nos livros de história por conta do racismo
eurocêntrico.
No caso deste
artigo não nos interessou a parte do estudo de Al-Amin sobre povos pré-históricos
e da Antiguidade (inclusive bastante problemática a argumentação dele), mas nos centrar no que ele apresentou de argumentação sobre
terem existido “vikings negros”. Sobre isso, elenquei alguns pontos que ele destacou:
- Uma presença antiga de povos europeus
miscigenados com povos africanos, remontando desde o período pré-histórico;
- Essa miscigenação teria se expandido
por diferentes partes do continente europeu, sendo mais acentuada na bacia
mediterrânica, mas chegando mesmo no Norte, como a região da Escandinávia;
- Povos germânicos que eram referidos
como sendo “pretos” pelos romanos, isso se deveria a condição de não pintarem
seus corpos, mas serem naturalmente negros;
- Em documentos de origem anglo-saxã,
irlandesa e galesa existem termos que se referiam aos vikings como sendo
“negros”;
- O nome de algumas localidades e
divindades da Escandinávia e de outras partes da Europa, teriam sua raiz
etimológica advinda de palavras de povos africanos;
- Entre os nórdicos havia alguns homens
conhecidos pelos nomes de Halfdan, o Negro e Bjorn, o Negro;
- Na mitologia nórdica há menção a
elfos "negros" e o nome do gigante Surt significa “negro”.
- Foram encontradas algumas ossadas na
Inglaterra, Irlanda e Dinamarca, de pessoas com traços genéticos de
característica negra;
- Os vikings realizaram incursões na
região da Península Ibérica, onde viviam povos miscigenados, e até mesmo
chegaram ao norte da África, mais especificamente no território do Magreb
(atual Marrocos);
- Eles também viajaram pelo Império
Bizantino e pelo Oriente Médio, onde viviam pessoas negras;
- Houve uma postura eurocêntrica e
racista em omitir a existência de pessoas negras na Escandinávia medieval, cuja
população era numerosa.
Diante dessa lista de argumentos apresentados por Nashid
Al-Amin, nos tópicos seguintes analisei alguns dos principais deles. Entretanto, outro
livro que também é referido pelos adeptos dessa teoria trata-se da obra O Viking Negro (2018) do historiador,
escritor e poeta islandês Bergsveinn Birgisson, que apesar do título, a
proposta do livro não foi comprovar a existência de “vikings negros” como
Nashid Al-Amin tentou fazer, mas de contar a história de um homem chamado Geirmund
Hjörsson, conhecido pelo epíteto de heljarskinn
(“pele escura”).
A história de Geirmund conta que ele era filho de um
guerreiro norueguês chamado Hjör Hálfarson, o qual lutou na Bjarmanland (hoje
território no extremo norte da Finlândia e Rússia), em que ele acabou
casando-se com uma mulher nativa, a qual gerou dois filhos seus: Geirmund e
Hámund. Mais tarde Hjör voltou com seus filhos para a Noruega, onde ele se
tornou um jarl (senhor). Devido aos
dois filhos serem mestiços, ambos tinham a pele mais escura, pois sua mãe
pertenceria ao povo Nenet da etnia Samoieda, que possui descendência turco-mongol,
apresentando cabelos negros, olhos castanhos escuros, rosto largo, olhos
levemente puxados e uma pele de tonalidade parda. (BIRGISSON, 2021).
Posteriormente, já adulto os irmãos Geirmund e Hámund com a influência do pai, se tornaram comerciantes e depois migraram para a
Islândia, onde se tornaram colonos e traçaram sua reputação no século IX. Neste
ponto, Bergsveinn Birgisson (2021) diz que é descendente desses homens, e a
partir do relato contido na Geirmundar
þáttr heljarskinns (Saga curta de
Geirgmund pele-escura), Birgisson buscou trazer à tona a história desse
“viking negro” que teria sido um “herói”.
Apesar de sua investigação histórica, o livro em vários
momentos tem um tom de romance histórico, em que claramente nota-se as ações do
autor em querer destacar esse seu pretenso antepassado. De qualquer forma, citamos essa
obra por conta de ela mostrar o caso incomum de nórdicos mestiços com pele
escura, uma exceção tomada como generalizada pelos defensores de que existiram “vikings
negros”.
Miscigenação
nórdica até que ponto?
Um dos argumentos bastante usados por Al-Amin e os adeptos
de que existiram “vikings negros” recaí sobre a condição de que os nórdicos se
espalharam pela Europa e até chegado a outros continentes como Ásia, África e
América do Norte, logo, eles teriam se miscigenado com populações desses
lugares gerando indivíduos mestiços. Isso até é possível, mas é preciso ter
cautela para utilizar tal condição como argumento.
A expansão
viking ocorreu entre os séculos VIII e começo do XI, alcançando seu auge entre
os séculos IX e X. De fato, os nórdicos migraram para diferentes localidades do
continente europeu, mas os territórios preteridos para eles desenvolverem suas
colônias foram lugares cuja população era predominantemente branca como
Inglaterra, Escócia, Irlanda, França, Rússia, Polônia e Ucrânia. Sendo assim,
houve miscigenação, mas entre povos brancos com brancos, o que mudaria seria
alguns aspectos como estatura, cor dos olhos e dos cabelos, mas alterações na
cor da pele a ponto de haver um “escurecimento”, como algumas pessoas alegam,
isso seria improvável.
Al-Amin (2013)
cita ao longo de seu livro casos de achados arqueológicos de ossadas de
supostas pessoas negras, entretanto, tais afirmações são questionáveis. Mesmo
achando-se esses vestígios que são escassos, não tem como sustentar a
argumentação que houve uma população ampla de pessoas negras vivendo na
Escandinávia, na Alemanha, na França, na Inglaterra e na Irlanda, como ele
alegou. Sobre isso, cito o estudo de 2020 publicado na prestigiada revista Nature, sobre a análise dos traços
genéticos de esqueletos da Era Viking.
Nesse estudo
analisou-se amostras de DNA de 442 pessoas que viveram entre 2400 a.C. e 1600
d.C., em que todos tinham descendência escandinava. Entre os resultados foi
identificado uma maior diversidade genética de pessoas fora da Escandinávia, o
que atesta a expansão da Era Viking e a miscigenação, a qual com base nos dados
analisados, ocorreu principalmente com povos oriundos da Inglaterra, Irlanda, Polônia,
Rússia, em menor grau Ucrânia e Itália. (MARGARYAN, 2020). Lembrando que os
nórdicos passaram por outras regiões, mas aqui citou-se apenas os ossos
encontrados nesses países mencionados.
A pesquisa
também mostrou o vínculo genético entre nórdicos, sámis e povos bálticos, ainda
mais estreito do que se supunha em algumas localidades, principalmente na Suécia.
Por sua vez, em ilhas como as Faroe, a Islândia e a Groenlândia predominaram o
genoma de noruegueses, já nas ilhas Britânicas teve uma maior presença de
dinamarqueses. O estudo também demonstrou que a maioria das pessoas nórdicas
analisadas e seus descendentes tinham cabelos e olhos escuros, não sendo louros
dos olhos azuis, estereótipo antigo. Além de que indivíduos ruivos eram
minoria. (MARGARYAN, 2020).
Porém, a pesquisa não identificou nenhuma pessoa com pele
escura, o que contraria a afirmação de Al-Amin (2013) de que havia uma
predominância de pessoas negras na Escandinávia, além da hipótese de que as
expedições ao sul da Europa teriam legado um fluxo de escravos negros para as
colônias nórdicas e os reinos escandinavos. Além disso, ressalvamos que a miscigenação
dos nórdicos apesar de ampla, foi feita em territórios naturalmente de
predominância de populações brancas.
Além disso, nem
todo território para o qual os vikings passavam, eles foram com o intuito de
morar, constituir famílias e comunidades. Por exemplo, as incursões vikings à
Península Ibérica, onde habitavam estrangeiros de origem asiática e africana
devido aos domínios muçulmanos de Al-Andalus, – usado por Al-Amin como argumento
para justificar uma presença recorrente de pessoas negras nos atuais
territórios de Portugal e Espanha –, no entanto, foram lugares em que os
nórdicos não estabeleceram colônias, apenas estiveram ali de passagem em
diferentes momentos principalmente nos séculos IX e X. (HAYWOOD, 1995; PIRES,
2017). O que dificultaria qualquer processo de miscigenação com aquelas
populações.
No entanto, os
adeptos dessa teoria, defendem que os vikings teriam capturado escravos negros
em Al-Andalus ou até durante sua passagem pela costa do Magreb (atual Marrocos),
e os levados para a Escandinávia, onde tais pessoas foram assimiladas pela
sociedade escandinava. Entretanto, temos alguns problemas quanto a essas
afirmações, as quais também carecem de evidências concretas como assinalou Ann
Christys:
"A maioria dos escravos em al-Andalus, no entanto, eram
cristãos capturados por muçulmanos em campanhas de fronteira. A existência da
escravidão viking no Sul repousa precariamente em referências a cativos em
fontes narrativas e cartas. Uma fonte tardia e fragmentária da Irlanda se
referiu aos "homens negros", que os vikings trouxeram da Mauritânia
para a Irlanda; presumimos que eles eram africanos negros (Anais Fragmentários:
163; Capítulo 4). Mas a escravidão nunca foi o principal objetivo das
expedições lançadas a partir do assentamento Viking em Dublin e, embora seja
atestada no século IX, não se tornou importante até duzentos anos depois.
(CHRISTYS, 2015, p. 11, tradução minha).
O relato
mencionado por Christys com base nos Anais
Fragmentários, deve ser tomado com cautela, pois não sabemos se os escravos
levados naquela ocasião seriam todos negros, ou todos brancos, ou haveria gente
de ambas as características. A autora também aponta que a captura de escravos naquela
região estaria mais associada com o comércio local ou na prática não seriam
escravos, mas reféns. Sobre isso, Neil Price comentou acerca de um caso
ocorrido em “Mazimma no pequeno estado marroquino de Nekor foi saqueada e
ocupada por oito dias de acordo com al-Bakri. Duas das mulheres reais –
Amaar-rahaman e Kanula – foram capturadas, e um grande resgate foi pago pelo
emir de Córdoba para seu retorno”. (PRICE, 2008, p. 466, tradução minha).
Mas tirando
esse ataque em Mazimma, ocorrido em algum momento do século XI, se desconhece
acerca da atuação de incursões vikings à costa africana, sobre o que Christys
(2015) comentou haver poucos relatos a respeito e a maioria não fornecem
detalhes, apenas dizendo que durante ataques a Al-Andalus, houve ocasiões dos
vikings irem se refugiar na costa africana para evitar as tropas e frotas nos
portos ibéricos, em seguida retornavam para novos assaltos.
Assim, afirmar que durante esses ataques pela Península
Ibérica e o Marrocos, os vikings teriam capturado prisioneiros para
escraviza-los, isso pode ter ocorrido, mas da mesma forma que existe uma
possibilidade de sim, existem várias possibilidades para não, as quais
listaremos apenas algumas mais simples:
- Nem sempre as incursões vikings faziam
prisioneiros para serem vendidos como escravos, ainda mais em viagens longas,
em que os tripulantes passariam meses ou até mesmo um ou dois anos fora de
casa, pois isso demandaria a condição de que os escravos obtidos teriam que ser
alimentados durante a continuação da viagem, até poderem serem levados à
Escandinávia, ou vendidos pelo caminho;
- Outro aspecto é que manter uma
quantidade de escravos nos navios, além do gasto com comida e água, havia o
risco de revoltas, que poderiam ser fatais;
- Os navios-longos (langskip) que eram normalmente utilizados nessas expedições devido
a sua velocidade e mobilidade, costumavam serem embarcações entre 12 a 18
metros de comprimento, tendo uns 2 a 3 metros de largura, além de que não
possuíam convés e nem porão. Assim, sua capacidade de carga era reduzida, além
da falta de acomodações. (OLIVEIRA, 2023). Numa situação de haver escravos recentemente capturados a
bordo, não seria fácil mantê-los separados do restante da tripulação, o que
poderia causar discussões e brigas.
Logo, o argumento de que os vikings teriam escravizado
pessoas negras porque estiveram na Península Ibérica e no Marrocos, segue
frágil. Eram locais distantes dos seus lares. Sobre isso, Karras (1988)
sublinhou que a maior parte dos escravos feitos pelos nórdicos, eram pessoas
oriundas de territórios próximos como Inglaterra, Irlanda, a região do
Báltico e parte do leste europeu, habitado pelos povos eslavos. Além disso,
Karras assinalou que os nórdicos não desenvolveram um sistema escravocrata massivo
como os antigos romanos e gregos fizeram. Assim, a ideia de que haveria um
intenso comércio de escravos, não foi algo regular e variava com a localidade e
a época.
Não obstante, se houve algumas pessoas negras escravizadas
nos ataques vikings em Al-Andalus e no Magreb, provavelmente foram vendidas
pelo caminho, o que seria mais vantajoso devido aos problemas listados
anteriormente. Mesmo que algumas dessas pessoas possam ter sido levadas à
Escandinávia, não significaria que conseguiriam constituir comunidades ou
tiveram aceitação na sociedade. Tais pessoas chegariam na condição de
estrangeiros e escravizados, estando marginalizados e com poucas condições de
mudar de vida.
Outro aspecto ainda acerca desse argumento sobre a
miscigenação dos nórdicos advém da presença deles no Império Bizantino e em
partes do Oriente Médio. Condições destacadas por Al-Amin. Sobre isso, o
Império Bizantino (395-1453) em seu auge possuiu domínios em três continentes,
porém, ainda no século VIII seus territórios na África foram perdidos para a
expansão árabe, e havendo uma guerra entre bizantinos cristãos e árabes
muçulmanos, a qual perdurou por muito tempo, variando a gravidade dos
conflitos, isso comprometeu em distintas épocas o fluxo de africanos às terras
bizantinas e vice-versa. Outro aspecto a ser mencionado é que a maioria da
população bizantina era formada por pessoas de origem grega, dos territórios
dos Balcãs, do próprio território da Ásia Menor e de terras que hoje
correspondem a Armênia, a Síria, o Líbano e Israel, localidades com a presença
maior de pessoas de pele clara. Apesar disso, nota-se uma diversidade étnica
nos domínios bizantinos. (GIORDANI, 1992).
Apesar de ter havido indivíduos negros vivendo em terras
bizantinas, os nórdicos chegaram aquele território no século IX, época em que o
Império Bizantino já havia perdido suas terras no continente africano; segundo,
que somente a partir do século X, grupos de nórdicos passaram a se assentar nas
terras bizantinas mais regularmente, agindo como mercadores e mercenários.
(SHEPARD, 2008).
Mas poderia ter havido contato entre eles com pessoas
negras? É possível. Mas afirmar com base nessa possibilidade que foi fato de
isso ter gerado descendentes miscigenados e até mesmo a migração dessas pessoas
à Escandinávia, não tem como ter certeza. Não temos evidências que sustentem
essa argumentação. É o mesmo dizer que nos séculos XIII e XIV pela condição de
alguns europeus viajarem à China (como Marco Polo, seu pai e tio), eles teriam
sido assimilados pela sociedade chinesa e constituído comunidades ali. Até
poderia ter tido alguém que fez isso, mas alegar que foi algo comum, isso não
temos como confirmar.
Acerca dos relatos árabes sobre os vikings, o mais famoso advém do embaixador Ahmad ibn Fadlan, que no século X, conheceu vikings (ru's como ele se refere ao usar o termo comum da Europa oriental) às margens do rio Volga, atualmente em território russo. As impressões dele foram uma mistura de curiosidade e repúdio. Enquanto ele elogiou a bela aparência e consistência física daquela gente, repudiou sua falta de higiene, pudor e atos considerados bárbaros.
"Vi também os rus, que tinham vindo a comércio e acamparam à margem do rio Volga. Nunca havia visto corpos tão perfeitos quanto os deles. Altos como palmeiras, brancos e ruivos, não usam túnica ou cafetã. Em vez disso, cada um deles veste um manto que lhe cobre um lado do corpo, deixando um dos braços de fora. Cada um carrega consigo um machado, uma espada e uma faca, e nunca se separa dessas armas". (IBN FADLAN, 2018, p. 64).
Segundo Al-Amin, o qual disse que a maioria da população nórdica era de pele escura, o relato de ibn Fadlan vai de encontro a isso, já que ele viu dezenas de nórdicos em sua passagem naquela região do Volga, e todos eram brancos.
Svarti e blå: um
problema etimológico
O professor
Al-Amin (2013) menciona entre seus argumentos uma condição linguística. Ele
disse que homens como Bjorn, o Negro e Halfdan, o Negro (entre outros mais que
ele cita em dois capítulos do livro), seriam chamados dessa forma por conta da
cor de suas peles. Mas aqui temos um problema etimológico. A palavra usada para
designar o epíteto desses homens era svarti,
que é traduzida nas línguas românicas como negro e em inglês como black. Porém, é uma tradução
imprecisa, pois svarti está mais
próximo do sentido de sombrio ou dark
na língua inglesa. Por sua vez, a palavra blå
teria o sentido de preto (e até de azul). (ZÖEGA, 1910).
Por exemplo, Bjorn svarti e Halfdan svarti eram apelidados svarti (sombrios), porém, termos como Blåland (terra preta) e blåman (homem preto), são referências a África e as pessoas negras. Mas nota-se a diferença do uso dos termos, pois em momento algum Bjorn e Halfdan eram apelidados de blå.
Além desse
argumento linguístico, citamos também uma representação islandesa medieval
conhecida do rei Halfdan, a qual pode ser conferida abaixo, em que vemos o
monarca e seu filho Haroldo Cabelo Belo, ambos representados como homens
brancos e louros.
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O rei Haroldo Cabelo Belo apertando a mão de seu pai Halfdan, o Negro. Ilustração do manuscrito islandês Flateyjarbok, século XIV.
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Al-Amin (2013) frisou algumas vezes a condição de que em
crônicas anglo-saxãs, irlandesas e galesas aparecer referências aos vikings
sendo referidos como “pagãos negros" ou "bárbaros negros", mas esses termos evocariam um sentido de violência e assombro. Sobre isso, a historiadora Clare Downham (2011)
redigiu um artigo comentando essa problemática de nomenclatura no caso irlandês.
Ela mostrou que na documentação irlandesa usava-se termos como dub (preto/sombrio) e finn (branco/belo), os quais
supostamente seriam usados para se referir aos dinamarqueses (dubgaill) e aos noruegueses (finngaill).
No entanto, Downham (2011) ao analisar crônicas irlandesas e
galesas, encontrou poucas menções ao emprego desses termos (diferente de Al-Amin que alegou ser algo mais habitual). Porém, ela assinalou que a palavra dubgaill que
significaria “forasteiro sombrio”, referia-se a grupos vikings conhecidos por
serem demasiadamente violentos, o que incluiria dinamarqueses e noruegueses,
não apenas um deles como sugerido por Alfred P. Smith e David Dumville. Logo, o
uso da palavra dub seria referente a
percepção malvada desses vikings mais brutais, chamados de dubgaill, e não a condição de eles terem a pele escura como Al-Amin
disse que seria.
Também como contra-argumento a Al-Amin de que as fontes
anglo-saxãs chamariam os vikings de “negros” por conta da cor da pele deles, abaixo seguem algumas representações iconográficas medievais, mostrando os vikings como pessoas brancas. Ora, de acordo com Al-Amin havia uma população negra alta morando na Escandinávia e na Inglaterra, se isso fosse verdade, por que todas as pessoas que aparecem nas pinturas eram apenas brancas?
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Vikings representados num detalhe da Tapeçaria de Bayeux, século XI.
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Vikings representados numa ilustração do manuscrito da Miscelânea da Vida de Santo Edmundo, Inglaterra, século XII. |
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Vikings batalhando contra os ingleses na Nortúmbria, durante as campanhas do rei Haroldo III da Noruega, no século XI. Ilustração do manuscrito A Vida do rei Eduardo, o Confessor, por Mateus Paris, século XIII. |
Nashid Al-Amin citou o caso dos
“elfos negros”, os quais viviam em Svartalfheim, que ele disse significar
“reino negro”. Mas aqui nos deparamos dois problemas etimológicos. Como dito
anteriormente, as palavras svarti (sombrio)
e blå (preto/azul) não seriam
necessariamente sinônimas. Assim, a tradução de Svartalfheim é “reino dos elfos
sombrios”.
Para Al-Amin a existência desses elfos seria uma evidência
de que os nórdicos teriam tido contato com pessoas negras, mas isso é um
argumento bastante frágil. Não sabemos a
origem dos elfos, os quais eram espíritos da natureza associados com cultos a
fertilidade. Além disso, o termo svartálfar
somente aparece na Edda em Prosa, um
livro redigido no século XIII, por um escritor e poeta cristão chamado Snorri
Sturluson (1179-1241), mais de duzentos anos depois da Era Viking.
Sobre isso, Snorri classificava
os elfos em dois grupos: os elfos luminosos (ljósálfar) os quais viviam em Alfheim, um reino iluminado, e os
elfos sombrios (svartálfar) que
viveriam em Svartalfheim, um reino subterrâneo, longe da luz do sol. Inclusive
alguns autores comentam que os elfos sombrios poderiam ser uma referência aos
anões (dvergar), os quais viviam num
lugar subterrâneo nomeado Nidavellir (Campos Sombrios). A condição desses elfos
e dos anões viverem no submundo os associava com a escuridão, por conta disso o
uso da palavra “negro” numa conotação de sombrio, não de cor preta. (LINDOW,
2001; SIMEK, 2007).
Além disso, John Lindow (2001) comenta que a divisão dos
elfos em duas categorias apresentadas por Snorri, somente existe na obra dele,
em todas as outras fontes escritas da Era Viking e logo depois, não menciona tais diferenças.
Assim, alguns estudiosos ainda no século XIX, como os Irmãos Grimm, sugeriram
que Snorri possa ter representado os elfos em sua obra como uma dicotomia entre
anjos e demônios.
Acerca do gigante Surt, cujo nome significa “escuro” ou
“enegrecido” (como proposto por Lindow em referência a fuligem), aqui temos problemas de contextualização. Surt é um gigante que
vive em Muspelheim, um lugar com fogo e fumaça, e sua maior presença na
mitologia nórdica ocorre durante os eventos do Ragnarök, quando ele liderará o
exército de Muspelheim para confrontar os deuses e humanos na batalha final.
Inclusive o gigante matará o deus Freyr em combate, destruirá a ponte Bifrost e
com sua espada de fogo, incendiará o mundo. Observa-se que Surt é uma grande
calamidade. Sobre isso, alguns mitólogos interpretam ele como podendo ser uma
personificação de erupções vulcânicas, que eram comuns na Islândia. Afinal, uma
montanha negra que solta fogo, fumaça e cinzas lembra um gigante furioso. (LINDOW,
2001; SIMEK, 2007). Inclusive na Islândia seu solo por ser vulcânico, acaba sendo preto. Logo, existem vulcões pretos naquela ilha.
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Um vulcão islandês, que consiste numa montanha negra, possível inspiração para um gigante de fogo como Surt.
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Quanto a Geirmund heljarskinn, que realmente existiu, seu apelido é complicado de ser traduzido. Não
encontramos as palavras svarti e nem blå, mas heljar, que significa cova ou túmulo. Por sua vez, o nome de Hel, a
deusa dos mortos, compartilha da mesma origem etimológica. (DAVIDSON, 1968). Assim,
Geirmund seria chamado de “pele de Hel”. Mas essa associação com Hel viria de
um quesito simbólico, pois na Edda em
Prosa é dito que a deusa tinha a face de duas cores: uma normal branca e a
outra escura como de um cadáver. Dessa forma, o apelido de Geirmund era bem
ofensivo, pois o comparavam com a pele da tonalidade de um cadáver.
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Três homens do povo Nenet, fotografados em Dudinka, Rússia, no ano de 2000. Geirmund e Harmund eram nórdicos mestiços com esse povo.
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Assim, Bjorn, Halfdan, os vikings invasores da Inglaterra e
da Irlanda, os elfos e Surt, eram chamados de “negros” não por serem pessoas
pretas, mas sombrios de alguma forma. Aqui entra outro aspecto: a associação da
cor preta com algo ruim e malévolo. Esse estigma infelizmente ainda hoje
perdura nas sociedades atuais, mas na Idade Média ele também já existia. O
historiador Michel Pastoureau em seu livro Black:
the history of color (2008) mostrou como em distintos momentos da História
a cor preta foi associada com a morte, os mortos, a maldade, a escuridão, as
trevas, o sofrimento, a punição etc. No medievo o Diabo e seus demônios eram
mais associados a cor preta, do que o vermelho que normalmente encontramos nas
atuais representações dele.
Considerações
finais
Por essa breve argumentação percebe-se que alguns dos argumentos do professor Nashid Al-Amin são falhos e carecem de evidências e justificativas plausíveis. Os próprios esqueletos de supostas pessoas negras que viveriam na Escandinávia, que ele disse terem sido "omitidos", são questionáveis de terem sido de pessoas negras mesmo, e caso tenham sido, são algo incomum e ocasional, contrariando o argumento dele de que haveria uma predominância de negros vivendo nos países escandinavos na Idade Média. Acrescento o fato de que além de mencionar o estudo publicado na Nature, em que se analisou o DNA de mais de 400 ossadas, outros estudos do tipo também foram feitos, e nada constatou de uma população negra regular em território escandinavo.
No quesito etimológico, foi demonstrado que os termos apontados por Al-Amin e outros defensores da "teoria dos vikings negros", falham ao desconsiderarem a questão etimológica e simbólica. Além de que a tradução desses termos também prejudica seu entendimento. Não é apenas em português que homens como Halfdan, o Negro é chamado assim, em outros idiomas utilizam termos como black, noir, nero etc. Apesar que na língua alemã ele seja chamado Halfdan Svarte (sombrio) e não Halfdan Schwarz (negro). O mesmo vale para os idiomas escandinavos como o norueguês, o sueco, o dinamarquês e o islandês, que possuem a preocupação de distinguir os termos.
Porém, o problema é que a palavra negro no sentido utilizado nos outros idiomas citados, tem significado de sombrio, não na cor preta, o que acaba gerando confusão, já que o mais correto seria Halfdan, o Sombrio ou Halfdan the Dark. Entretanto, essa questão é curiosa, pois Al-Amin sendo professor de língua inglesa não se atentou a esse detalhe?
Além disso, essa questão etimológica se aplica a outros casos analisados por Al-Amin, por exemplo, quando ele disse que algumas tribos germânicas e pictas eram referidas como "negras" por terem a cor da pele dessa forma, mas na verdade se devia a pintura corporal deles. Outro exemplo é quando ele se referiu a algumas localidades na Europa oriental e central, cujos nomes supostamente viriam de idiomas africanos, mas na prática tais nomes estão mais próximos das línguas indo-europeias. A semelhança apontada por ele é mais um quesito semântico de haver palavras iguais em idiomas diferentes, algo até comum em várias línguas sem nenhuma conexão.
Entre alguns contra-argumentos apresentados, destaquei o uso de imagens do período medieval, datadas de entre os séculos XI e XIII, retratando os vikings como pessoas brancas. E como dito anteriormente: se houve vikings negros (e em grande quantidade como defendido por Al-Amin), por que não aparecem nas pinturas? Vai dizer que isso foi fruto do racismo? Sendo que a cultura racista daquele tempo não era igual ao que se desenvolveu na Idade Moderna, tampouco similar ao racismo estrutural no qual vivemos em alguns países. Enfatizar essa omissão por conta do racismo eurocêntrico que existiria desde os tempos antigos, soa bastante como uma teoria da conspiração, não uma argumentação histórica.
Além disso, foi demonstrado que o comércio de escravos negros seria inviável a longas distâncias, embora houve exceções como no caso da Irlanda, como comentado por Chrysts. Ainda que algumas pessoas negras tivessem sido levadas como escravas para Dinamarca, Noruega, Suécia ou Islândia, não é garantia de terem formado comunidades e terem sido aceitas de forma inclusiva naquela sociedade, como produções audiovisuais como o jogo Assassin's Creed Valhalla (2020) e o seriado Vikings Valhalla (2022-2024) mostraram.
Dessa forma, o que teríamos mais próximo de "vikings negros" foram os irmãos Geirmund e Harmund, que eram mestiços de nórdicos e nenets, sendo mais pardos do que pretos propriamente falando. Assim, não existem evidências de "vikings negros" como tendo sido algo comum, tampouco uma exceção. Logo, os ditos "vikings negros" são fruto da ficção da vikingmania contemporânea, influenciada por discursos de representividade, inclusão e diversidade étnica, usados para fins de entretenimento e mercadológicos, reflexo da indústria cultural atual.
NOTA 1: "Definimos a Vikingmania como sendo a
representação contemporânea sobre os vikings, surgido com o Romantismo do
século XIX, construído a partir das artes plásticas, música, literatura e
teatro, posteriormente sendo reformulado nos séculos XX e XXI, passando pelo
cinema, histórias em quadrinhos, seriados e videogames, os quais forneceram
concepções estereotipadas que ajudaram a construir o senso comum3 que
atualmente temos sobre os vikings4, em respeito a seu visual, cultura,
sociedade, história, costumes e crenças, desenvolvidos para intuitos estéticos,
políticos, sociais e mercadológicos. Dessa forma a Vikingmania pode ser
considerada um tipo de cultura visual, midiática e identitária". (OLIVEIRA, 2021, p. 472).
NOTA 2: O racismo estrutural em linhas gerais consiste nas práticas, ideologias, costumes, políticas, leis e crimes perpetrados numa sociedade de forma regular, sendo explícito ou velado, de maneira que se mantem atos racistas no cotidiano, nas relações familiares e de trabalho, no funcionamento de instituições, na promoção de aspectos culturais etc. (ALMEIDA, 2019).
NOTA 3: As tradições inventadas consistem em atos e ideias criados para justificar ideologias, crenças, costumes e práticas, sob alegação de serem algo "antigo", no sentido de que sua antiguidade respaldaria sua existência (e oficialização), porém, tais tradições costumam serem bem mais novas do que são. (HOBSBAWM, 2008).
Referências:
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Viking Negro – A saga esquecida de um dos maiores heróis nórdicos. Tradução
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Link relacionado:
A Saga Viking