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Leandro Vilar

sábado, 16 de agosto de 2025

Expressões brasileiras oriundas da mineração colonial

Quem é brasileiro talvez já tenha ouvido expressões como "tá de bucho cheio", "bucho vazio", "santo do pau oco", "meia tigela" entre outras. Embora essas expressões possuam significado distinto do que eram originalmente, elas se originaram a partir do Ciclo do Ouro nas Minas Gerais ao longo do século XVIII. São termos associados ao trabalho dos escravos que atuavam nas minas, locais escuros, apertados e insalubres, onde tais homens trabalhavam várias horas por dia em condições degradantes para coletar ouro e outros minérios. 

Bucho cheio e bucho vazio

A palavra bucho em português pode se referir a barriga ou estômago, logo tais expressões dizem respeito a alguém que está alimentado ou com fome. Porém, no período colonial nas minas, ambos os termos tinham outro significado. As minas brasileiras nos séculos XVIII e XIX eram fundamentalmente corredores, os quais iam sendo alargados caso os escravos encontrassem ouro, prata ou outros minérios. 

Assim, por esses corredores existiam buracos chamados de "buchos", neles os mineradores depositavam os minérios encontrados como forma de indicar que havia algum veio deles naquela seção. Vale lembrar que não havia trilhos e carrinhos de mina, esses somente chegaram ao Brasil na segunda metade do século XIX, numa época em que a mineração aurífera tinha quase sumido. 

Bucho em mina colonial. 

O supervisor percorria a mina conferindo cada "bucho" para ver o andamento do trabalho dos escravos. Numa seção onde muito minério fosse achado, o "bucho estaria cheio", por sua vez, se nada fosse encontrado, o "bucho ficaria vazio". Por sua vez, os locais com "bucho vazio" resultava em punições aos escravos. 

Meia tigela

Essa expressão hoje significa algo de baixo valor, insignificante. Inclusive pode ser usado como uma ofensa para se referir alguém sem caráter. Na época colonial e imperial o termo era empregado em referência a ração do escravos. Diariamente eles recebiam três refeições ao dia: café da manhã, almoço e jantar. Porém, dependendo do trabalho que o escravo prestasse, ele poderia ser punido, recebendo apenas metade da sua ração (meia tigela) ou até mesmo ser privado de uma das refeições, passando fome como forma de punição.

Nas minas os escravos vivenciavam essa mesma condição. Em alguns casos eles eram incentivados com uma tigela extra de comida para se empenhar em seu trabalho em encontrar ouro ou outro minério de valor. Assim, eles buscavam encher os buchos. Porém, caso não conseguissem encher os buchos, eles seriam considerados preguiçosos ou incompetentes, podendo serem punidos com meia tigela ou até ficarem com fome. Por conta disso também surgiu a expressão "negro de meia tigela" para se referir aos escravos tidos incompetentes. 


Dessa forma, pensando em conseguir comida extra ou não terem parte de sua refeição cortada pela metade, os escravos buscavam "encher o bucho", pois "bucho vazio" significava meia tigela ou nenhuma. 

Dar no couro

Hoje essa expressão é usada para se referir um bom desempenho, para algo feito com eficiência. Inclusive em algumas localidades possui uma conotação sexual também. Na época colonial dar no couro era um termo usado no ofício de mineração. Em algumas minas o ouro residual era encontrado na forma de pó, podendo ficar preso nos cabelos, barbas e pele suadas dos escravos. Assim, para que eles não o roubasse, ao saírem da mina os escravos eram esfregados com uma manta de couro não curtido, a qual os pelos estão salientes, pois ajudaria a pegar o pó de ouro e outras sujeiras dos corpos dos escravos. Depois disso, essa mantas ou tiras eram golpeadas (dar no couro) para que soltassem as partículas de ouro. 

O termo também na época da mineração poderia designar o trabalho árduo nas minas, o qual era insalubre, perigoso e desgastante. Assim, os escravos que passavam horas e horas dentro da terra, saíam esgotados de lá. Dessa forma, "dar no couro" seria uma gíria para se referir a aquele trabalho extenuante nas minas. 

Santo do pau oco

O termo é usado para se referir a uma pessoa cínica ou hipócrita, que finge ser algo que não é. A expressão advém da época da mineração, em que os escravos para cumprir suas orações diárias, levavam consigo para dentro das minas pequenas imagens de santos. Essas imagens era deixadas em oratórios improvisados pelos túneis e câmaras. 

Porém, alguns escravos decidiram usá-las para o contrabando. Assim, a estátua era feita oca, permitindo que a cabeça ou alguma parte dela fosse removida. Dessa forma, os escravos conseguiam coletar pequenas porções de ouro e esconder dentro dessas imagens, passando despercebido as olhares dos capatazes e supervisores, já que regularmente os escravos eram vistoriados para saber se não estariam escondendo ouro. 

A prática de usar santos do pau oco não se restringiu aos mineradores, outros segmentos da sociedade também para contrabandear ouro e sonegar imposto, se valia dessa artimanha. 

Imagem de Nossa Senhora dos Anjos com um compartimento nas costas, um exemplo de santo do pau oco. 

Lavar a égua

A expressão lavar a égua refere-se a uma ação oportunista, em que alguém busca alguma vantagem indevida ou desonesta. O termo também remete ao período colonial. Outra forma de tentar contrabandear ouro, era escondendo pó de ouro nos cabelos, barba, unhas e na roupa. Alguns escravos que conseguiam sair da mina sem serem vistoriados, pegavam esse pó e esfregavam nos pelos e crinas de cavalos ou éguas. Deixavam o mesmo ali, mais tarde pediam para seus supervisores para ir banhar os animais, durante o banho eles removiam o pó de ouro escondido.

Apesar da curiosidade, não consistia numa prática recorrente, pois os escravos costumavam serem vistoriados ao saírem das minas e nem sempre havia cavalos ou éguas nas proximidades. Por conta disso, a prática do santo do pau oco era mais eficiente, já que por se tratar de um artefato religioso, os capatazes deixavam os escravos seguirem com ele. 

Referência bibliográfica:

DO PRADO MENDES, Soélis Teixeira; LISBOA, Ana Luíza Barreto. Unidades fraseológicas religiosas no léxico de Ouro Preto (MG)Scripta, v. 28, n. 62, p. 284-315, 2024.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Sakamoto Ryoma, o samurai revolucionário

Durante a crise do Xogunato Tokugawa no conturbado período conhecido como Bakumatsu, uma série de revoltas, conspirações e batalhas ocorreram por mais de uma década, entre as lideranças a favor do fim do xogunato esteve o samurai Sakamoto Ryoma, tido por alguns como um herói revolucionário, para outros um rebelde traidor. O presente texto contou um pouco da história desse samurai que lutou pela Restauração Meiji e o fim do autoritarismo do Clã Tokugawa. 

Retrato de Sakamoto Ryoma. 
Introdução

O Japão passou por séculos de instabilidade política, a qual marcou boa parte de sua história medieval e moderna. No final do século XII surgiu o xogunato, um governo político-militar gerido pelo xogum ("general superior"), o qual retirava das mãos do imperador o direito de governar. o Clã Kamakura foi o primeiro a fundar um xogunato, que durou mais de cem anos, lançando as bases para esse tipo de governo no Japão, marcado por uma política armamentista, feudal e severa. Com a dissolução do Xogunato Kamakura (1185-1333), o imperador Go-Daigo tentou recuperar o poder através da chamada Restauração Kemmu (1333-1336), mas sua tentativa falhou, abrindo caminho para que o Clã Ashikaga funda-se um novo xogunato que durou mais de cem anos também. 

Todavia, o Xogunato Ashikaga (1336-1573) a partir de meados do século XV entrou em profunda crise pela disputa dos daimiôs por terras, riquezas e poder. Esses senhores feudais já não obedeciam mais o xogum, tampouco o imperador, assim decidiram expandir seus domínios, lançando o país numa terrível guerra civil cuja época foi chamada de Sengoku (1467-1573). O segundo xogunato entrou em declínio frente as investidas do daimiô Oda Nobunaga (1534-1582), o qual ambicionava reunificar o país sob seu controle. Com sua morte seus planos foram assumidos pelo seu general Toyotomi Hideyoshi (1537-1598), o qual mesmo não tendo assumido o título de xogum, governou como um. 

Após a morte de Toyotomi, cujo herdeiro era uma criança, o governo do país entrou em crise pelos anos seguintes. Antigos generais dele e de Oda passaram a disputar o poder vago, despontando Tokugawa Ieyasu (1543-1616), o qual saiu vitorioso na Batalha de Sekigahara, sendo eleito xogum em 1603, iniciando o terceiro e último xogunato do Japão. 

As primeiras décadas do Xogunato Tokugawa (1603-1868) foram severas, pois para pôr ordem e restaurar a paz, os xoguns Tokugawas foram implacáveis. Mas não foram apenas os japoneses que sofreram em suas mãos, os europeus que mantinham negócios comerciais, políticos e religiosos no país desde meados do século XVI, sofreram duramente. Tokugawa Ieyasu e seu filho proibiram o cristianismo no Japão, a presença de missionários, padres e frades, além de banir os europeus, vetando sua vinda ao país. Somente alguns holandeses foram tolerados, mas os portugueses, espanhóis e ingleses foram proibidos de viver no Japão, tampouco visitá-lo. 

Após o fechamento do país em meados do século XVII, o Japão entrou em profunda reclusão e numa política xenofóbica. Por outro lado, as guerras terminaram, havendo revoltas eventuais, no entanto, os samurais seguiam como classe dominante, assim como, o sistema feudal foi mantido. Enquanto outras nações asiáticas se modernizam politicamente, socialmente, economicamente e tecnologicamente no século XIX, o Japão devido ao seu regime militar e feudal, se manteve retrógrado e obsoleto. Porém, japoneses que conseguiam viajar para fora ou tinham contato com chineses, filipinos, americanos e ingleses passaram a nutrir ideias para modernizar o país.

A realidade sofreu uma brusca reviravolta em 1853 quando o comodoro Matthew C. Perry (1794-1858) invadiu a baía de Tóquio com sua pequena frota e coagiu o xogum Tokugawa Iesada a revogar o isolamento político do país. Iesada sob pressão política e o risco de uma guerra que não teria chance de vencer, concordou com os termos do comodoro Perry, vindo a assinar o Tratado de Kanagawa em 1854, que iniciava o acordo de amizade e paz entre Japão e Estados Unidos. Após os americanos, os ingleses e os franceses começaram a frequentar o país, levando suas culturas e ideias políticas, econômicas, sociais, além de tecnologias. 

Retrato do comodoro Matthew C. Perry. 

O Bakumatsu (1853-1867)

Sakamoto Ryoma (1836-1867) nasceu em Kochi, na Província de Tosa, ele pertencia a uma família de samurais mercantes, sendo filho de Sakamoto Yahei e Sakamoto Sachi. Ele era o segundo filho do casal, o qual teve ao todo dois homens e três mulheres. Por conta da riqueza da sua família, pôde se dedicar aos estudos e as artes marciais. Na juventude interessou-se pela cultura europeia que chegava ao país, por conta disso, ele como outros jovens eram entusiastas das novidades modernas, no quesito político estavam ideias sobre democracia, república, parlamento etc. No entanto, no governo do xogunato não havia espaço para isso.

Embora houvessem grupos favoráveis a democracia e o republicanismo, Sakamoto como outros jovens samurais, optaram em aderir ao movimento do Sonno Joi ("Reverência ao imperador, expulsão dos bárbaros"), surgido após o Tratado de Kanagawa, o qual passou a defender a restauração da monarquia, recuperando a autoridade política do imperador, assim como, freando a crescente influência estrangeira no país. Dessa forma, o Sonno Joi foi um movimento político de tendência monarquista, nacionalista e conservadora. 

Sakamoto aderiu as ideias do Sonno Joi a partir de seu mestre Takechi Hanpeita (1829-1865), líder do grupo Tosa Kin no To ("Partido monarquista de Tosa"), um dos mais influentes no país durante o Bakumatsu, termo que designa o período final de crise do xogunato Tokugawa, que levaria ao seu fim. Sakamoto passou a apoiar politicamente as ideias do partido de Tosa em defesa ao fim do xogunato e a restauração do poder monárquico. Entretanto, a situação não era simples assim.

Da mesma forma que surgiam partidos pró-imperador, o xogum também possuía seus aliados e quem defendia com unhas e dentes a manutenção do xogunato e a diminuição da presença estrangeira no país. Isso gerou conflitos entre os dois grupos, resultando em brigas, revoltas e batalhas. O então daimiô Yoshida Toyo (1816-1862) era o governador da Província de Tosa, sendo servo leal ao xogum, o que o colocou diretamente contrário ao partido de Hanpeita, havendo bastante atrito entre ambos, mas a situação piorou em 1862 quando três membros do Tosa Kin no To assassinaram Toyo numa tentativa de golpe de estado para o partido tomar o controle de Tosa. A repercussão foi severa, pois o partido foi cassado, seus membros foram considerados traidores e passaram a serem perseguidos. Hanpeita foi forçado a cometer seppuku (o suicídio honroso dos samurais). 

Sakamoto Ryoma tinha seus 28 anos na época quando teve que deixar Tosa devido a perseguição sofrida ao partido do qual ele era membro. Além disso, com a morte de seu mestre, ele se tornou um ronin. Durante sua fuga para se esconder, ele voltou para casa e chegou a se alojar no dojo de Chiba Sana, mulher por quem nutria interesse e cogitou se casar com ela. Apesar que formalmente nunca tenha se casado com ela. 

O conspirador

Como ronin e foragido da justiça, Sakamoto adotou identidades falsas para fugir da polícia, passando a usar nomes falsos como Saedani, Naonari, Naokage. Em 1864 Sakamoto seguiu para Edo (atual Tóquio), onde cogitou assassinar Katsu Kaishu (1823-1899), importante comandante da Marinha que defendia uma reforma na organização militar, além de apoiar a modernização do país. No entanto, ele era a favor do xogunato. Porém, Kaishu convenceu Sakamoto a não matá-lo, mas se unir a ele. Se desconhece os detalhes dessa conversa, mas o samurai aceitou. 

Retrato de  Katsu Kaishu. 

Assim, por alguns meses de 1864 Sakamoto atuou como assistente e espião do almirante Katsu, realizando atividades burocráticas, de supervisão e espionagem. Embora o almirante fosse um xogunista, no entanto, isso não desmerecia seu patriotismo, já que ele defendia que o Japão necessitava-se modernizar-se tecnologicamente para evitar ameaças militares de outras nações, como havia ocorrido em 1853. Sobre isso, vale ressalvar que quando o comodoro Perry chegou ao país com sua frota de navios a vela e a vapor, maiores e bem mais armados, enquanto os japoneses ainda faziam uso de navios de madeira com tecnologia que remontava o século XVII. Por conta dessa diferença, a marinha japonesa não tinha a mínima chance numa batalha. 

Todavia, ainda em 1864 o xogum Tokugawa Iemochi endureceu a perseguição aos opositores. Katsu Kaishu não foi afetado, mas seus funcionários eram visados como suspeitos, alguns inclusive apontados como infiltrados e espiões. Sakamoto para evitar problemas, partiu para o sul do país, para Kagoshima, indo refugiar-se no feudo de Satsuma, ali havia um forte núcleo de apoiadores do imperador. 

Em Kagoshima ele conseguiu emprego e proteção, supervisionando negócios para o daimiô Shimazu Tamayoshi de Satsuma, o mais notável foi seu envolvimento na fundação da empresa Kameyama Shachu em 1865, uma companhia marítima de comércio em Nagasaki, que recebeu capital de Shimazu para desenvolver uma frota mercante. Por sua vez, Sakamoto também esteve a par dos acordos políticos entre os feudos de Satsuma e Choshu, historicamente inimigos de longa data, mas que se uniram contra o xogum vindo a ocorrer a Aliança Satsuma-Choshu ou Aliança Satcho, firmada em 1866 para apoiar o imperador contra o xogum. 

Samurais da Aliança Satcho em reunião durante a Guerra Boshin (1868-1869). Fotografia de Felice Beato, 1868. 

A aliança impôs medo ao xogum Tokugawa Yoshinobu, que havia assumido o governo naquele ano de 1866, fazendo-o mobilizar o restante das tropas leais, embora outra parcela estivesse já apoiando o imperador. No caso de Sakamoto Ryoma, sua atuação no desenvolvimento da Aliança Satcho, o levou a ser convocado de volta a Tosa, para retomar os planos do antigo partido ao qual era filiado. Assim, ele decidiu voltar em fevereiro daquele ano. 

Por essa época, quando passou a morar temporariamente em Quioto, onde era noivo (ou casado) de Narasaki Ryo (Oryo), filha de um médico e de uma estalajadeira, Sakamoto estava hospedado na estalagem de sua noiva, quando em 9 de março de 1866 em Teradaya, ao sul de Quioto, assassinos invadiram o local para matar Sakamoto, mas Oryo conseguiu alertar o noivo/marido, o qual escapou. 

Retrato de Narasaki Ryo, a esposa de Sakamoto Ryoma. 

Após essa tentativa ele deixou Quioto e passou alguns meses longe dali, sendo seus caminhos incertos. Todavia, ele retornou a Quioto e estava hospedado em Omiya, com seu amigo Shintaro Nakoaka e cinco servos, incluindo um guarda-costas que era lutador de sumô. No dia 15 de novembro de 1867 uma nova tentativa de assassinato contra Sakamoto foi executada, dessa vez, ela saiu exitosa. Apesar do confronto ocorrido na hospedagem, ele, Nakoaka e os servos foram mortos na ocasião ou sucumbiram aos ferimentos nos dias seguintes. 

Membros do Shinsegumi, a polícia especial do xogum, foram acusados de matar Sakamoto e seus aliados. Porém, anos depois dois membros do Mimawarigumi, uma força-tarefa de patrulhamento que atuava em Quioto, confessaram que a ordem veio da sua entidade para executar o traidor do Sakamoto Ryoma. Os dois homens apontados como assassinos se entregaram, mas não deram o nome de quem deu a ordem para o crime. 

No mesmo ano de seu assassinado, o xogum Tokugawa Yoshinobu renunciou sob pressão da instauração de uma guerra civil, transferindo o poder para o imperador Meiji, que deu início a chamada Restauração Meiji, uma série de ações políticas para pôr fim a estrutura política do xogunato, além de reestabelecer a autoridade monárquica. Porém, enquanto isso era providenciado, apoiadores do xogum que recusavam aceitar sua renúncia, iniciaram revoltas que levaram a Guerra Boshin (1868-1869). A ala pró-xogunato acabou sendo derrotada, permitindo a consolidação do governo do imperador Meiji. 

O notável revolucionário? 

É possível encontrar sobretudo em produções ficcionais como filmes, livros, mangás e jogos, os quais exaltam a pessoa de Sakamoto Ryoma como um grande revolucionário dos tempos do Bakumatsu, cuja coragem e determinação foram cruciais para o estabelecimento da Restauração Meiji que colocou fim ao xogunato Tokugawa. Sakomoto até ganhou estátuas e memoriais por conta de seu trabalho prestado entre 1862 e 1867, mas isso realmente ocorreu? 

Historiadores japoneses questionam até onde as ações de Sakamoto Ryoma foram reais ou imaginárias, já que a literatura contribuiu bastante para torná-lo um herói da causa revolucionária do Bakumatsu e da Restauração Meiji. Retratando-o como um samurai comprometido pela causa de libertar o país da ditadura do xogunato. Inclusive é creditado a ele o documento Shin Seifu Koryo Hassaku (Programa de outros pontos para um novo governo), que apresentava ideias sobre democracia e uma monarquia parlamentarista e constitucional. 

Sakamoto Ryoma em uma fotografia de 1867, uma das últimas fotos dele. 

Além disso, a atuação de Sakamoto no Bakumatsu é dúbia. Ora ele pretendia assassinar o almirante Katsu Kaishu, mas estranhamente se aliou ao mesmo. Ainda em 1864 fugiu para Kagoshima, para evitar de ser capturado, ali ele teria sido um dos auxiliadores no acordo da Aliança Satsuma-Choshu, apesar que alguns historiadores contestam até onde sua participação realmente foi efetiva quanto a isso, se ele realmente foi um agente político ativo, um assistente, um observador, um conselheiro ou teve outra função. 

Sakamoto também é lembrado pela fundação da companhia de comércio Kameyama Shachu, inclusive alguns autores até o elogiaram como "patrono da marinha mercante", mas na prática ele foi um "testa de ferro" do daimiô de Satsuma para fundar a companhia em Nagasaki, além de ser um dos sócios envolvidos na criação da empresa, apesar de constar seu nome como "presidente" da mesma. 

Ademais, outros imbróglios se encontram na carreira revolucionária dele. Um deles diz respeito a Aliança Satsuma-Choshu, da qual Sakamoto teria atuado como "membro neutro" para coordenar a assinatura da aliança. Porém, esse acordo ocorreu em algum momento de 1866, sendo que desde o final de fevereiro daquele ano, Sakamoto estava seguindo viagem para Quioto, onde veio a ser atacado em 9 de março. 

Ora, se o acordo ainda estava em desenvolvimento, não tem como afirmar que Sakamoto foi atacado naquele dia por ter sido um mediador crucial, já que a aliança talvez nem tivesse sido ainda aprovada. Além disso, o samurai e advogado Komatsu Kiyokado (1835-1870), que trabalhava para o daimiô Shimazu, teve papel na formulação da aliança, inclusive alguns historiadores creditam a ele uma função mais significativa na elaboração dessa aliança do que o próprio Sakamoto Ryoma. 

Dessa forma, Sakamoto Ryoma embora tenha tido um papel de conspirador rebelde no período do Bakumatsu, seus supostos grandes feitos e atuação notável naquela época são frutos mais da ficção do que históricos. A documentação do período apresenta uma série de lacunas, ainda mais considerando que entre 1864 e 1867 ele viajou várias vezes e esteve escondido por certo tempo, devido a ser foragido desde 1862. Mas é fato de que seu papel no Bakumatsu foi de alguma forma relevante a ponto de irritar o grupo pró-xogunato a fim de mandar assassiná-lo, por tê-lo como uma ameaça em potencial. 

NOTA: O filme Ryoma Ansatsu (1974) centra-se nos últimos dias de vida de Sakamoto. 

NOTA 2: O mangá Jin (2000-2010) conta uma história que se passa durante o Bakumatsu, um dos personagens e Sakamoto Ryoma. O mangá recebeu uma adaptação live-action em formato de série, possuindo duas temporadas entre 2009 e 2011. 

NOTA 3: Em 2003 o aeroporto de Kochi foi renomeado para Aeroporto Kochi Ryoma. Na mesma cidade também existe o Museu Memorial Sakamoto Ryoma

NOTA 4: O seriado Ryomaden (2010) narra a jornada de Sakamoto. 

NOTA 5: A história de Sakamoto Ryoma é retratada de forma bem ficcional nos jogos Yakuza Ishin (2014) e no seu remake Like a Dragon: Ishin! (2023). Em ambas as produções ele é representado pela figura de Kazuma Kiryu, o protagonista da franquia. 

NOTA 6: Sakamoto aparece no filme televisivo Segodon (2018) exibido pela NHK. 

NOTA 7: Ele é um personagem no jogo Rise of the Ronin (2024). 

Referências bibliográficas: 

JANSEN, Marius B. Sakamoto Ryoma and the Meiji Restoration. Princeton: Princeton University Press, 1961. 

SANSOM, George. The History of Japan: 1615-1867. Tokyo, Charles E. Tuttle Company, 1963. 

Link relacionado: 

O que foram os xogunatos?

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Os mosqueteiros

Mundialmente conhecidos pelo livro Os Três Mosqueteiros (1844) do escritor Alexandre Dumas, os mosqueteiros consistiram num regimento militar multifuncional, criado pelo rei Luís XIII da França para servi-lo diretamente. Apesar de serem lembrados principalmente por conta da literatura e do cinema, como soldados usando floretes, na prática, os mosqueteiros eram especializados no combate com armas de fogo. 

Pintura de um mosqueteiro holandês. Jacob van Gheyn, 1608. 

Mosqueteiro origem do termo

Mosqueteiro é o termo que designa o soldado que combate usando um mosquete. Essa arma consiste numa espécie de rifle surgido no século XVI na Europa, como um melhoramento do arcabuz, o qual tinha como problema a falta de precisão, assim como, a falta de capacidade de penetrar armaduras a distâncias medianas e longas. Assim, o mosquete foi desenvolvido em data incerta no começo do XVI em algum lugar da Itália, ou França ou Alemanha, não se sabendo onde exatamente, tendo um cano mais fino e longo do que o do arcabuz. Alguns exemplares possuíam canos medindo de 100 cm a 150 cm, o que permitia um alcance estimado em até 300 metros de distância, além de aumentar o poder de penetração. Assim, o mosquete passou a ser classificado como um rifle de médio alcance, sem mira acoplada, tendo disparo único, sendo ativado por pólvora e pederneira. (CHASE, 2003). 

O mosquete rapidamente se popularizou entre os exércitos europeus, sendo amplamente utilizado nos séculos XVI e XVII, apesar de ainda ser fabricado até meados do XIX. Melhorias no designer da arma, especialmente deixando-a um pouco mais leve, mais precisa e melhorando o gatilho, foram desenvolvidas nesses séculos da Idade Moderna. Inclusive alguns mosquetes passaram a incluir o uso de uma baioneta para ser usado como uma espécie de lança. 

“Em meados do século XVI, como podemos verificar na legislação filipina de 1567, o arcabuz mais ligeiro consistia na principal arma de fogo do terço. Suplantava largamente, em termos quantitativos, o mosquete, mais pesado, mas também mais potente e preciso. Em finais do século esta situação já se encontrava em processo de inversão, e nas campanhas militares de meados de Seiscentos, o mosquete substituiu quase universalmente o arcabuz”. (SOUSA, 2013, p. 121).

Modelo de mosquete inglês do século XVIII.

A palavra mosquete é possívelmente de origem francesa, vindo de mousquette, termo usado para designar um tipo de falcão. Porém, outros autores sugerem uma origem italiana, advindo de moschetti, que designava a seta de uma besta. Apesar da origem incerta da palavra, em países como Portugal e Espanha, as vezes a arma era referida como espingarda. (CHASE, 2003). 

O mosquete fazia uso de balas feitas de ferro ou chumbo, diferente do arcabuz que poderia disparar pedras e pregos devido ao seu cano mais largo, o mosquete não possuía essa capacidade. 

Mosqueteiros em outros exércitos

"O exército moderno europeu no século XVII havia assumido sua forma básica, a qual manteria quase inalterada até o século XIX. A formação dos exércitos europeus era fundamentada naquele tempo em quatro categorias de combatentes: o piqueiro, ou lanceiro ou alabardeiro, os quais representavam os soldados equipados com diferentes tipos de lanças, daí a variação no nome; a segunda categoria era a da artilharia leve, formada pelos mosqueteiros e arcabuzeiros; depois vinha a artilharia pesada, formada pelos artilheiros, os quais eram responsáveis pelo transporte, montagem e manuseio dos canhões. Por fim, havia uma pequena participação da cavalaria". (OLIVEIRA, 2016, p. 184).

Tropas de um tercio espanhol. Da esquerda para direita: alferes, mosqueteiro, arcabuzeiro e piqueiro. Pintura de Serafim María de Sotto, 1861. 

Para Geoffrey Parker (1996) os principais marcos da “revolução militar” da Idade Moderna foram: a criação e desenvolvimento das fortificações com baluarte; o emprego recorrente das armas de fogo; o desenvolvimento de uma indústria da guerra; diminuição do uso da cavalaria em detrimento de uma infantaria armada com lanças e mosquetes; reformulação na organização das tropas; mudança nas táticas de batalha; surgimento de escolas militares; aumento na quantidade de soldados nos exércitos.

"No início do século XVII, à metade, grosso modo, dos soldados de infantaria deviam ser fornecidos piques de treze pés (cerca de quatro metros) e couraças; a outros deviam ser fornecidos mosquetes de mecha (com cinco pés – metro e meio – de comprimento) com as respectivas forquetas de apoio (ou arcabuzes, mais curtos e leves), e também recipientes para a pólvora, balas e mechas de combustão lenta; às tropas de cavalaria, uma meia armadura, pistolas e lanças; e a todos os soldados, elmos e espadas". (PARKER, 1994, p. 48).

Embora haja dúvidas se o mosquete surgiu na França, Itália ou Alemanha, mas foi na Holanda onde desenvolveu-se a técnica de combate em fileiras. O stadhoulder Maurício de Nassau (1567-1625) foi responsável por implementar uma série de reformas na organização militar do exército holandês, que acabaram se tornando modelo para outras nações. 

"Maurício alterou a disposição das tropas em combate. Em vez de falanges de 40 ou 50 filas frontais de lanceiros usadas nas guerras do século XVI, colocou os seus homens em 10 filas. A força de choque das suas formações, mais pequenas, provinha mais do poder de fogo do que das cargas dos lanceiros. [...]. O exército holandês aperfeiçoou sobretudo a técnica do fogo de fileira: a primeira linha descarregava simultaneamente os mosquetes sobre o inimigo, depois parava para recarregar as armas enquanto as outras nove linhas iam ocupando o seu lugar, criando assim uma cortina de fogo constante". (PARKER, 1994, p. 52).

Dessa forma, a maior parte dos países europeus da Idade Moderna adotaram o uso do mosquete com principal arma de fogo, somada ao arcabuz e a pistola. Com a colonização europeia nas Américas, África e Ásia, mosquetes foram levados para esses continentes e rapidamente incluídos na composição de seus exércitos. Assim, nas colônias americanas temos as tropas coloniais usando mosquetes, passando pelas nações islâmicas na África, chegando a Arábia, a Turquia, a Pérsia, a Índia, a China, a Coreia e o Japão. Em todos esses países nos séculos XVI e XVII já se fazia uso de mosquetes, o que revela como essa arma, apesar de pesada e lenta, ainda assim, foi bem recebida pelas forças militares de diferentes povos. 

Mosqueteiros chineses em gravura do século XVI, durante a Dinastia Ming
(1368-1644).

A Guarda dos Mosqueteiros na França

Apesar de que na Europa quase todo exército possuísse regimentos de mosqueteiros, no entanto, os mosqueteiros mais famosos surgiram na França durante o reinado de Luís XIII (1601-1643), o qual governou por trinta anos. No ano de 1622, época na qual o monarca engajou-se em suas campanhas militares, Luís XIII reformulou a guarda real criada pelo seu pai Henrique IV, permitindo a contratação de plebeus e estipulando que os mesmos passassem a usar armas de fogo, no caso, especialmente o mosquete. Assim, surgiu a Guarda dos Mosqueteiros, também referidos como "mosqueteiros do rei". (DURIEUX, 1928). 

Embora no romance Os Três Mosqueteiros (1844), consequentemente nos filmes e no imaginário desenvolvido com base no sucesso do livro, vemos os mosqueteiros principalmente usado espadas do tipo florete, na prática, a espada era uma arma secundária, porém, Dumas influenciado pelo Romantismo, descreveu seus mosqueteiros como habilidosos espadachins, não atiradores. De qualquer forma, no campo de batalha os mosqueteiros lutavam com mosquetes como arma principal, por isso o nome da tropa. 

A guarda dos mosqueteiros possuía três funções principais: proteger o rei e a família real, logo, ficavam de guarda nos palácios e locais onde o monarca e seus familiares estivessem; escoltar o rei, a rainha, nobres e ministros; em terceiro, ser despachado para a guerra, fosse para acompanhar o rei caso ele fosse ao campo de batalha ou iriam como tropa de reforço. (DURIEUX, 1928). 

A sede da guarda ficava em Paris, tendo quartel próprio gerido por seu comandante. Por ser um regimento diretamente à serviço do rei da França e do primeiro-ministro, ela era prestigiada e recebia muitos recursos. Pela condição de Luís XIII permitir que plebeus se alistassem para guarda dos mosqueteiros, muitos jovens viajavam através da França com o sonho de entrar na guarda. Vale lembrar que no livro de Alexandre Dumas, o personagem D'Artagnan é um jovem de 18 anos, filho de agricultores da Gasconha, que tem o sonho de se tornar um mosqueteiro. Ao longo do livro ele atua como cadete, pleiteando uma vaga na guarda, algo obtido no final da narrativa. 

Para se tornar mosqueteiro do rei havia algumas condições: ser nobre, ser indicado ou tentar uma vaga como cadete, servindo em outras guarnições ou tropas para ganhar experiência e reputação, para em seguida se apresentar aos mosqueteiros e tentar o ingresso. Devido ao prestígio gerado ao ser membro da guarda, era comum os cargos mais altos serem dados a nobreza. Nos próprios livros de Dumas, alguns de seus mosqueteiros se tornaram nobres ou burgueses. 

A guarda dos mosqueteiros seguiu vigorando após a morte de Luís XIII, servindo o Cardeal Richelieu, o Cardeal Mazarino, ambos atuaram como primeiros-ministros, os reinados de Luís XIV, Luís XV Luís XVI. Embora que a guarda não existiu de forma regular continuamente tendo sido suspensa por Luís XVI (1774-1792) em 1776, reativada brevemente por Napoleão Bonaparte (1804-1815) em 1814, sendo extinta definitivamente em 1816

Trajes dos mosqueteiros franceses da guarda real, entre 1660 e 1814. 

Por conta de ter existido por quase duzentos anos, a guarda sofreu várias reformulações no seu contingente, trajes e organização. No caso dos livros de Alexandre Dumas, a guarda que vemos referem-se aos governos de Luís XIII e Luís XIV, o período áureo desse regimento militar. 

NOTA: Embora Os Três Mosqueteiros seja uma das obras mais famosas de Alexandre Dumas, ele forma uma trilogia composta por Vinte Anos Depois (1845) e o Visconde de Bragelonne (1847-1850). 

NOTA 2: Ambrósio Richshoffer (1612-?) foi um soldado estraburguês que serviu por quatro anos no Brasil pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) da Holanda. Ele escreveu um diário de viagem, dizendo que após 1632, quando voltou para a França, viajou a Paris e se alistou na guarda dos mosqueteiros, servindo ali por alguns anos até alcançar a patente de capitão. Mas por motivos não informados por ele, o mesmo teve que deixar seu cargo e voltou para Estrasburgo. 

NOTA 3: Luís XVI suspendeu a guarda dos mosqueteiros para conter gastos, porém, quando cogitou retomá-la, o contexto a Revolução Francesa (1789-1799) o impediu. O monarca foi decapitado em 1793. Por sua vez, Napoleão recriou a guarda para buscar apoio da nobreza e dos militares, após sua fuga da ilha de Elba e a tentativa e retomar o trono. 

Referências bibliográficas

CHASE, Kenneth. Firearms: A Global History to 1700. Cambridge, Cambridge University Press, 2003. 

DURIEUX, Joseph. Le Périgord militaire. Mousquetaires du Roi au XVIIIe siècle. Bulletin de la Société historique et archéologique du Périgord, v. 55,‎ p. 167-180. 

OLIVEIRA, Leandro Vilar. Guerras luso-holandesas na Capitania da Paraíba (1631-1634): um estudo documental e historiográfico. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2016. 

PARKER, Geoffrey. The Military Revolution: military innovation and the rise of the West, 1500-1800. 2a ed. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

PARKER, Geoffrey. O Soldado. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa, Editoria Presença, 1994.

SOUSA, Luís Filipe Guerreiro Costa e. Escrita e Prática de Guerra em Portugal: 1573-1612. Tese (Doutorado em História dos Descobrimentos e Expansão) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2013.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Gigantopithecus: o verdadeiro King Kong

Na Pré-história existiu um primata digno de ser comparado ao icônico gorila gigante do cinema, King Kong. Evidentemente que esse primata não era tão gigantesco quanto sua contraparte ficcional, ainda assim, era um animal que pertencia a chamada megafauna, espécies que possuíam um tamanho maior do que as espécies atuais. A fim de comparação, o primata mais próximo do Gigantopithecus em proporção é o gorila, sendo que o Gigantopithecus teria o dobro de seu tamanho. Pode não parecer muito, mas para os humanos daquele tempo, eles estariam diante de um "macaco gigante". 

Introdução

King Kong é o personagem título de um filme de aventura lançado em 1933, na época ainda preto e branco. Na trama do filme uma expedição viaja até a distante e misteriosa Ilha da Caveira, uma ilha tropical nas proximidades da Indonésia, onde dizem existir uma civilização perdida e animais nunca antes vistos. De fato, para além do gorila gigante na ilha existem insetos gigantes e dinossauros, além de um povo que cultua Kong como uma divindade, fazendo sacrifícios humanos a ele. 

O filme seguia o roteiro básico da literatura de fantasia de mundo perdido, ainda em popularidade naquela época, por conta disso a existência da tal ilha contendo um povo com resquícios pré-históricos e a presença de dinossauros, dois elementos comuns das narrativas de mundo perdido. Assim, King Kong foi um sucesso ao ser lançado, virando nos anos seguintes um clássico cult, gerando toda uma franquia de filmes, desenhos, jogos e outros produtos. 

Mas qual seria a relação dele com o gigantopithecus? De imediato nenhuma, pois o filme foi lançado em 1933 e o primeiro fóssil identificado do gigantophitecus foi descoberto em 1939, além disso, como será visto a seguir, nem sempre esse primata foi tido como um "macaco", mas chegou-se a considerá-lo uma suposta raça de humanos gigantes. De qualquer forma, à medida que as pesquisas sobre o gigantophitecus se desenvolviam, King Kong iam ficando mais famoso no cinema e há quem defendesse que a trama do filme não seria tão ridícula assim, afinal, houve um tempo pré-histórico em que humanos conviveram com macacos gigantes. 

O "macaco" gigante

O Gigantophitecus blacki foi uma espécie de primata que viveu entre 2 milhões e 200 mil anos atrás, habitando os atuais territórios da China, Tailândia e norte do Vietnã. Apesar de seu tamanho ser comparado ao dos atuais gorilas, essa espécie pertenciam ao subgênero Ponginae, a qual pertence os orangotangos. Dessa forma, em termos fisionômicos, o gigantophitecus seria mais parecido com um orangotango gigante do que com um gorila. 

Ilustração de como poderia ter sido a aparência dos gigantophitecus. 

Devido ao seu grande tamanho, estimado entre 2,5 e 3 metros de altura quando ficava de pé e pesando em média 300 kg, é a maior espécie de primata já descoberta até então. Por conta de seu peso e tamanho, isso tornava inviável que escalasse árvores, mas teria força bruta para derrubar árvores finas. Por conta de ter habitado a China pré-histórica, naquele tempo já abundavam bambuzais, que provavelmente teriam sido uma de suas principais fontes de alimentação. Vale ressalvar que gorilas e orangotangos apesar do porte grande, são primatas herbívoros. Dessa forma, o gigantophitecus provavelmente teria uma dieta alimentar parecida com a dos pandas, alimentando-se principalmente de bambu e outras plantas similares. 

Poucas informações existem sobre os gigantophitecus, já que os fósseis encontrados a maior parte foram de dentes. A primeira menção registrada paleologicamente dessa espécie advém de 1935, feita pelo antropólogo alemão-holandês Gustav R. H. von Koeningswald (1902-1982) ao analisar dois dentes molares de tamanho curioso, obtidos numa farmácia popular chinesa. A medicina popular chinesa costuma ainda hoje vender dentes, ossos e fósseis como parte dos ingredientes para diversas receitas de tratamento de saúde. Os chamados "ossos de dragão" eram em muitos casos fósseis, já que a China é um dos países com grande extensão de fósseis no mundo. 

Reconstituição de uma mandíbula de gigantopithecus. 

Assim, ao analisar esses molares, Koeningswald constatou serem similares ao de primatas, mas pertenceria a um primata de tamanho maior do que o comum, por conta disso ele chamou a espécie desconhecida de gigantophitecus ("macaco gigante"). Isso originou algumas teorias por parte de outros estudiosos. O paleontólogo sul-africano Robert Broom em 1939 lançou a teoria de que o gigantopithecus seria uma subespécie de Austrolopitecus que habitava aquela parte a Ásia. Baseado na sua teoria, o antropólogo judeu alemão Franz Weidenreich em 1946 atualizou a ideia de Broom, ao invés daqueles dentes pertencerem a uma variedade de Austrolopitecus, poderiam ter pertencido a uma raça hominídea desconhecida. Weidenreich influenciado pela crença de que houve gigantes reais, cogitou que o tal gigantophitecus seria uma evidência paleontológica da existência de gigantes, ou seja, para ele aquele molar não pertenceria a um macaco, mas a um ser humano gigante. 

As duas teorias propostas ainda permearam a Paleontologia e Antropologia por algumas décadas, o próprio Koeningswald mais tarde comprou a teoria de Weidenreich de que o gigantopithecus poderia ter sido uma espécie de humanos gigantes, essa ideia inclusive gerou cisão no meio acadêmico. Uns consideravam se tratar de um primata outros de um humanos primitivos, essa disputa perdurou até o começo dos anos 1980 quando estabeleceu-se que se tratava de um primata da subespécie Ponginae, mas até isso acontecer o gigantophitecus chegou a ser incluído em outras famílias de primatas e hominídeas e até supostas subespécies teriam sido identificadas na Índia e na Indonésia. 

O problema de classificação do gigantophitecus durou quase cinquenta anos devido a escassez de fósseis desse primata. A maior parte dos fósseis encontrados até hoje são dentes, porém, diversas escavações na China encontraram mandíbulas e outros ossos, mas nunca um esqueleto completo. Apesar disso, tais achados permitiram chegar a conclusão de que não se tratava de uma espécie de hominídeo gigante como se considerava, mas de um primata de grande dimensão, sendo aparentado dos atuais orangotangos. Além disso, todos os fósseis descobertos apontam para a mesma espécie, ou seja, até hoje só mente se identificou uma espécie de gigantophitecus. 

O gigantophitecus teria desaparecido entre 250 e 200 mil anos atrás, época que o Homo sapiens ainda não tinha saído da África, logo, os hominídeos que tiveram contato com ele pertenciam a espécie de Homo erectus e suas subspécies. Assim, tais espécies possuíam entre 1,40 e 1,70 metro de altura, comparadas ao giganthopitecus que passavam facilmente dos 2 metros de altura, realmente seriam tomados por aqueles pequenos hominídeos como "macacos gigantes". 

Representação do contato do Homo erectus com gigantophitecus. 

Mas teriam esses hominídeos caçados esses enormes primatas? É possível, já que em outros lugares do mundo o Homo erectus, o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens caçaram animais bem maiores. Mas essa caça teria levado a extinção da espécie? Essa é uma pergunta sem uma resposta concreta. Mas no geral os paleontólogos consideram que as mudanças climáticas ocorridas entre 250 e 150 mil anos atrás foram fatores mais determinantes para reduzir a população de gigantophitecus, além da condição de que possivelmente eles tinham poucos filhotes anualmente como visto com o caso dos orangotangos e gorilas, os quais geralmente dão à luz a um filhote por ano. 

Assim, somando-se a condição biológica de baixa natalidade, mudanças ambientais que afetaram o hábitat natural desses primatas comprometendo sua fonte de alimento, ainda mais sendo eles animais que necessitavam de grande quantidade de alimento diária; sua incapacidade de escapar de um grupo de humanos armados com lanças e arcos, a pouca população nativa, isso tudo contribuiu para a gradativa extinção da espécie. Dessa forma, quando indivíduos do Homo sapiens sapiens chegaram à China, o gigantopithecus já estava extinto a milhares de anos. 

NOTA: No filme Mogli: O menino lobo (2016) o Rei Louie é retratado como um gigantophitecus. 

NOTA 2: Já se considerou que o Abominável homem das neves poderia ser uma subspécie de gigantopithecus, o problema é que esses primatas não viviam em regiões montanhosas como o Tibete e o Himalaia. Para ser uma subsespécie, ela teria que ter trocado o hábitat de florestas tropicais pelo o frio das montanhas, não apenas passando a resistir as baixas temperaturas, mas mudar seu comportamento alimentar e outras necessidades. 

NOTA 3: A espécie Gigantopithecus giganteus habituou um território entre China e Índia, mas sendo de porte menor, possívelmente equiparável ao dos atuais gorilas africanos. Já a espécie Gigantopithecus bilaspurensis, suposta ancestral dos demais, foi descartada por se tratar da espécie Indopithecus giganteus, um possível parente. 

NOTA 4: No jogo Ark: Survival Evolved (2015) o gigantopithecus é retratado como se fosse um Pé-grande. 

Referências bibliográficas

LOPATIN, A. V; MASCHENKO, E. N; DAC, Le Xuan. Gigantophitecus blacki (Primates, Ponginae) from the Lang Trang Cave (Norther Vietnam): The Latest Gigantophitecus in the Late Pleistocene? Doklady Biological Sciences, v. 502, n. 1, 2022, p. 6-10. 

ZHAO, L. X; ZHANG, L. Z. New fossil evidence and diet analysis of Gigantophitecus blacki and its distribution and extinction in South China. Quaternay International, n. 286, 2013, p. 69-74. 

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Francesco Matarazzo: o fundador de fábricas

Italiano de origem, vendeu tudo que tinha para tentar uma vida como empreendedor no Brasil, porém, teve um começo bastante difícil, já que seus investimentos afundaram. Apesar disso, Matarazzo não desistiu e empenhou-se em alternativas para se recuperar do prejuízo. Anos depois começou a despontar como um empreendedor nato e industrial, tendo fundado mais de uma centena de fábricas pelo país, o que lhe rendeu a alcunha de o "fundador de fábricas" ou "fabricante de fábricas", tornando-o o homem mais rico do Brasil por algum tempo. O presente texto contou um pouco da história de sua carreira como comerciante, empreendedor e industrial. 

Introdução

Nascido Francesco Antonio Maria Matarazzo (1854-1937) na comuna de Castellabate, na província de Salerno, era o filho mais velho de Costabile Matarazzo (1830-1873) e Mariangela Jovane (1835-1925). Seu pai era advogado e proprietário de alguns lotes de terra, já sua mãe era dona de casa. O casal teve nove filhos. Devido as condições financeiras da família, Francesco foi enviado para estudar fora da sua cidade. Adulto, casou-se com Filomena Sansivieri, com quem teve treze filhos. (COUTO, 2004). 

Retrato de Francesco Matarazzo em 1920. 

Na década de 1870 a economia do sul da Itália começou a declinar devido a política-econômica que favorecia mais as províncias nortenhas. Enquanto o norte desenvolvia fábricas e indústrias, o sul era predominantemente agrário. As mudanças nos tributos, impostos, investimentos etc., comprometeram o desenvolvimento econômico do sul do país, gerando falência e desemprego. Por essa época, o pai de Francesco tinha falecido desde 1873, levando-o até que cuidar dos negócios da família. Como não concluiu a universidade, ele não possuía uma profissão que demandasse diploma, diferente do seu pai que foi advogado. Assim, Francesco tratou de administrar as poucas propriedades da família, herança de seu pai e avós. (COUTO, 2004). 

Mas com o aumento da crise, tendo dois filhos pequenos para cuidar, além do seus outros irmãos que eram menor de idade, Francesco após alguns anos, considerou que deveria mudar de país. Naquele tempo a política migratória para o Brasil seguia em alta. O governo brasileiro vendia a imagem de que o café era um grande investimento, e a mão de obra italiana conseguia trabalho facilmente. Entre meias verdades, realmente o governo brasileiro investiu pesado na propaganda migratória para italianos e alemães, como parte de substituir a mão de obra escrava que começa a ser gradativamente libertada, mas também como medida para embranquecer a sociedade brasileira, visto que a mestiçagem era considerada um problema crônico do Brasil, tendo gerado um povo "degenerado". 

Assim, Francesco iniciou seus contatos com italianos que tinham parentes que migraram para o Brasil, além de empresas que prestavam serviços por lá. Uma das mercadorias que lhe chamou atenção era o comércio de venda de banha de porco. Naquele tempo no Brasil, pouco se usava manteiga, o azeite era luxo importado, óleos vegetais eram vistos como inapropriados e nem havia fábricas para produzi-lo em escala. Assim, a banha era o principal ingrediente culinário. Tendo isso em mente, Francesco vendeu parte de suas propriedades, deixando de direito aos irmãos, então reuniu sua esposa e filhos, comprou um carregamento de banha e partiu para o Brasil, a fim de tentar vida nova. (MARTINS, 1973). 

Todavia, o navio que transportava sua carga de banha, ao atracar no porto de Santos, enquanto era descarregado, houve um acidente e o carregamento caiu no mar, dando perda total. Os investimentos de Matarazzo literalmente foram por água abaixo. Mas sem entrar em desespero, ele recorreu ao Consulado Italiano, pedindo empréstimos para comprar nova carga, depois disso mudou-se para Sorocaba no interior da província de São Paulo. (COUTO, 2004). 

O vendedor de banha

Embora seja lembrado como um grande industrial, Matarazzo teve um começo bem pequeno, já que era vendedor ambulante (mascate) de banha em Sorocaba, uma pequena cidade em desenvolvimento no interior de São Paulo, rodeada por fazendas de café, contando com o aumento de imigrantes italianos, além de rede de tropeiros. Pode parecer estranho que ele tenha escolhido esse local para ir viver e trabalhar, mas a escolha foi bem pensada. (COUTO, 2004). 

Sorocaba na década de 1880 era uma cidade que se industrializava e crescia rapidamente. Possuía malha ferroviária graças aos barões do café, tinha fábricas de tecidos e fundição. Concentrava uma população de italianos que chegavam anualmente. Pensando na colaboração de seus compatriotas, Matarazzo enxergou a possibilidade de vender banha para as famílias italianas que viviam em Sorocaba, depois para os próprios brasileiros. Além disso, a concorrência desse mercado não era grande. Somando-se a essa perspicácia e o trabalho árduo, pois Matarazzo passava várias horas do dia indo de casa em casa vender seu produto, somente meses depois ganhou parceiros comerciais em armazéns. (COUTO, 2004). 

O resultado de seu trabalho duro repercutiu em 1882, quando ele comprou um armazém, tornando-se dona de sua própria loja, sem necessidade de ter que atuar como mascate. Embora à venda de banha fosse sua principal mercadoria, ele passou a comercializar outros bens também. Mas passados alguns meses, percebendo que a demanda seguia em alta, mas o preço da banha que ele comprava para revender era um empecilho para ampliar seus lucros, decidiu por ele mesmo produzir sua própria banha. Assim, ele comprou um imóvel ao lado de seu armazém e o tornou numa rudimentar fábrica de banha, passando a comprar dos produtores locais carne de porco para produzir banha. Embora tenha empregado inicialmente sua família e depois empregados, no entanto, ao romper a necessidade de ter que importar banha para revender, o lucro aumentou, levando-o a trazer sua mãe e irmãos da Itália. (MARTINS, 1973). 

Fotografia do armazém e frigorífico do Matarazzo, em Sorocaba.

Posteriormente, ele abriu uma pequena fábrica de banha em Capão Bonito, distante 130 km, no entanto, ali por estar mais próxima de fazendas de criação de porcos, favorecia o acesso ao produto. Além disso, Matarazzo também passou a atuar como açougueiro, vendendo carne suína. Graças a linha férrea, o transporte não era um problema. Dessa forma, em 1885, Matarazzo era dono de um armazém e de duas pequenas fábricas de banha, mas havia outro detalhe a ser resolvido: o armazenamento. A banha era vendida em latas, mas essas eram importadas. Assim, pensando em contornar essa dependência, ele abriu uma pequena fábrica de produção de latas, valendo-se da existência de fundições em Sorocaba, as quais forneciam a matéria-prima necessária. (MARTINS, 1973). 

Mudança para São Paulo

Em oito anos vivendo em Sorocaba, Francesco Matarazzo foi de um simples mascate a empresário possuindo um negócio de banha e enlatados, que lhe rendeu capital suficiente para levá-lo a mirar em novos projetos. Assim, ele se uniu a três de seus cinco irmãos para montar uma empresa em São Paulo, nomeada Matarazzo e Irmãos. No entanto, o projeto acabou não dando certo por desentendimento dele com os irmãos, assim, depois de um ano a empresa foi dissolvida. Porém, Matarazzo usando seu capital de giro e contatos que tinha desenvolvido nos últimos anos, fundou a Companhia Matarazzo S.A, vendo ações delas para vários acionistas que implantaram capital no projeto. (COUTO, 2004). 

A nova empresa gestava as fábricas em Sorocaba e em Porto Alegre, essas fundadas pelo seu irmão Giuseppe, além disso, Matarazzo abriu armazéns e entrou no circuito de importação e revenda. Ele passou a negociar trigo e arroz, dois cereais em alta na época. Dessa forma, a década de 1890 foi promissora para Matarazzo, fazendo-o acumular uma fortuna rapidamente graças a sua visão de negócio e o apoio de alguns irmãos e dos acionistas. O resultado disso culminaria em seu grande projeto de fundar um moinho. 

Em 1900 diante da crise de importação de trigo, Matarazzo pediu empréstimo ao Banco London and Brazilian para construir um enorme moinho no bairro do Brás. O investimento apesar de elevado, trouxe o retorno esperado. Seu enorme moinho se tornou um prédio icônico no Brás. Para maximizar a produção e manutenção, Matarazzo também abriu uma oficina de reparos na fábrica e depois uma fábrica de sacos de farinha, mais tarde fundou uma fábrica têxtil de algodão. Dessa forma, ele conseguia produzir farinha e os sacos, posteriormente foi adquirindo uma frota de caminhões. No ano de 1902 transformou sua oficina de reparos numa metalúrgica, o que ajudou a potencializar seus negócios, já que o crescimento industrial de São Paulo demandava grandes quantidades de metal regularmente. (MARTINS, 1973). 

Moinho de Matarazzo no bairro do Brás, em São Paulo. 

O moinho potencializou o lucro da empresa de Matarazzo, permitindo-o comprar fábricas e empresas para consolidar seu sistema de produção. Matarazzo defendia uma visão de investimentos na qual ele pudesse controlar vários aspectos da sua linha de produção, o que incluía o fornecimento de embalagens, matéria-prima e transporte. Dessa forma, ele ampliou sua frota de caminhões, chegou a comprar navios de carga mais tarde, adquiriu fábricas de tecidos, de óleo, de enlatados, entre outros produtos. 

Assim, Matarazzo na década seguinte ampliou seus negócios por São Paulo e até em outros estados. Dessa forma, em 1911 ele fundou as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo (IRFM), o primeiro conglomerado industrial e empresarial do Brasil, o maior do país e até da América Latina no começo do século XX. Em seu auge, Matarazzo contou com pelo menos 30 mil funcionários e mais de 200 fábricas pelo Brasil. (MARTINS, 1973). 

O milionário bem quisto

No começo do século XX, Francesco Matarazzo já era milionário, um dos homens mais ricos do Brasil, que consequentemente se tornaria o mais rico. Ele vivia com sua família na chamada Mansão Matarazzo, uma suntuosa residência na Avenida Paulista, conhecida por sua beleza arquitetônica e requinte. Matarazzo não mediu fundos para construir sua mansão e decorá-la. Sua imponente residência se tornou símbolo do glamour da sua família e do seu conglomerado industrial. (MARTINS, 1973). 

Por essa época, Matarazzo estava cada vez mais próximo da imprensa, dos políticos e da população. Em distintos momentos ele recebeu convites para entrar na política, a fim de se candidatar a vereador e deputado, mas recusou todos eles. Diferente do Barão de Mauá, industrial da época imperial que foi deputado federal, Matarazzo decidiu jamais assumir cargos políticos, mas não significou que não tivesse contato com a política. Ele conseguiu vários acordos econômicos com a prefeitura e o governo do estado de São Paulo, além de ter contato com presidentes, senadores e políticos de outros estados. Em sua mansão era regular almoços e jantares com empresários, industriais, políticos, embaixadores etc. 

Mansão Matarazzo durante a década de 1910. 

Mas além desse contato com a elite paulista, Matarazzo também tinha o hábito de visitar regularmente suas empresas e fábricas, além de fazer aparições públicas em eventos. O mesmo também gostava de conversar com seus funcionários quando possível e eventualmente dar entrevistas. Por conta disso, ele se tornou um milionário bem quisto socialmente, tanto por ajudar no desenvolvimento industrial do país, financiar vários projetos, assim como, empregar uma grande quantidade de trabalhadores. Ele também se mostrou benfeitor, ajudando em projetos e caridade e assistencialismo. Um dos seus feitos foi a construção do Hospital Matarazzo - Umberto I em 1904

Enquanto a riqueza de Matarazzo deslanchava de vento em popa, a Europa entrou numa profunda crise com a eclosão a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A Itália, sua terra natal, foi um dos países que entrou no mortífero conflito, saindo desse em 1917, após uma campanha desastrosa que repercutiu em mais condições negativas do que positivas. Enquanto o mundo via o desenrolar da sangrenta guerra que vitimou mais de 10 milhões de pessoas, Matarazzo doou dinheiro ao governo italiano para ajudar as vítimas e na reconstrução do país. (MARTINS, 1973). 

No ano de 1917 em reconhecimento ao apoio financeiro prestado ao país, o rei Vittorio Emanuele III concedeu o título de conde a Matarazzo, o qual viajou a Itália com a família para receber a grande honraria. De um plebeu filho de advogado e dona de casa, passando por industrial milionário no Brasil, agora aos 63 anos ele conquistou um título de nobreza, o qual inclusive foi herdado por seus filhos. Aproveitando o renome como novo conde, Matarazzo tratou de casar suas filhas e filhos com nobres italianos. Além disso, ele passou a morar no país até 1919(MARTINS, 1973). 

Retornando ao Brasil em 1919, Matarazzo comprou uma transportadora naval para exportar suas mercadorias para a Europa e os Estados Unidos, comprou fazendas, adquiriu uma fábrica de bebidas anteriormente pertencente a Antártica, fundou fábricas de produtos químicos, abriu novos frigoríficos e até comprou os direitos de distribuição de filmes americanos no Brasil, já que o cinema começava a se espalhar timidamente pelo país. 

Na década de 1920 a Itália já estava sob governo da ditadura fascista (1922-1945) de Benito Mussolini, o qual veio a se tornar aliado de Adolf Hitler, auxiliando a Alemanha nos primeiros anos da vindoura Segunda Guerra (1939-1945). Mas enquanto tal nova guerra mundial não acontecia, Matarazzo para garantir suas conexões políticas e econômicas com a Itália, passou a apoiar a ditadura de Mussolini, mesmo que nunca tenha se declarado fascista. Para Matarazzo, a nobreza e a elite italiana, o governo de Mussolini, apesar de autoritário, se mostrava patriótico, nacionalista e preocupado em reestruturar o país. De fato, houve melhorias, mas a custa de uma série de problemas. Apesar disso, seu apoio a ditadura fascista foi uma das marcas negativas de seu governo. Embora que Matarazzo não viveu para ver a eclosão da Segunda Guerra. (MARTINS, 1973). 

Mas não foi apenas o apoio do ditador fascista que Matarazzo conquistou. Ele também trouxe para si o apoio dos presidentes Washington Luís e Getúlio Vargas. Oficialmente Matarazzo não declarou apoio a Getúlio durante a Revolução de 1930, tampouco aderiu a Revolução de 1932, promovida por setores paulistas revoltados com o golpe promovido por Vargas e a Aliança Liberal. Em ambas as ocasiões Matarazzo optou por neutralidade. Mas passado esses momentos de efervescência, sua conexão com Vargas manteve-se até o fim da vida. (MARTINS, 1973). 

Considerações finais

Apesar de idoso, Matarazzo manteve-se à frente de seus negócios até onde a saúde lhe permitiu, vindo a falecer a 10 de fevereiro de 1937, aos 82 anos, meses antes do golpe de Getúlio Vargas para criar o Estado Novo (1937-1945). Como Matarazzo teve 13 filhos com Filomena, mulher com que se manteve casado até o fim da vida, ele decidiu escolher entre eles para ser seu sucessor. Seu primogênito era Giuseppe, depois dele vinha Andrea e Ermelino. Dos três filhos mais velhos, Matarazzo considerou Ermelino o mais responsável por dirigir os negócios, inclusive o mesmo fez isso entre 1917 e 1919, quando esteve à frente da IRFM durante a estada do pai na Itália. (COUTO, 2004). 

No entanto, Ermelino morreu num acidente de carro na Itália, em 1920, chocando profundamente a família. Com a morte de seu herdeiro predileto para assumir os negócios, Matarazzo adiou tais planos. Seus outros filhos já tinham suas empresas e agiam como sócios também do conglomerado do pai, porém, o novo herdeiro foi Francesco Matarazzo Júnior (1900-1977), seu décimo segundo filho, o qual ficou popularmente conhecido como Conde Chiquinho por ter herdado o título do pai. (COUTO, 2004). 

Chiquinho Matarazzo ainda conseguiu manter os negócios da família até sua morte, dirigindo as empresas e fábricas por quatro décadas, porém, sua gestão bem distinta da do pai, testemunhou o gradativo encolhimento da fortuna e negócios da família. Apesar disso, o legado de seu pai como maior industrial do Brasil entre 1900 e 1937 não foi apagado. No auge de sua carreira de negócios, Francesco Matarazzo tinha se tornado bilionário e senhor de mais de 250 empresas e fábricas. 

NOTA: A Mansão Matarazzo existiu de 1896 a 1996, quando devido a falência da família, o imóvel foi confiscado pelo governo para saudar dívidas. Em 1989 houve o projeto de torná-lo um museu custeado pela prefeitura, mas a família foi contrária e entrou na justiça. Passados alguns anos, o governo desistiu de fazer um projeto e a mansão foi a leilão, vindo a ser demolida em 1996 para dar espaço ao Shopping Cidade São Paulo. 
NOTA 2: O Hospital Matarazzo - Umberto I foi desativado em 1993, sendo vendido e abrigando galeria de arte, casa de eventos e exposições. Atualmente seu complexo compreende a Cidade Matarazzo, que incluirá hotéis de luxo. 
NOTA 3: Todos os treze filhos de Matarazzo se casaram com indivíduos de famílias ricas, alguns oriundos da nobreza italiana. 
NOTA 4: A IRFM faliu na década de 1990, pondo fim a quase cem anos de atividades. 
NOTA 5: Quando Matarazzo começou a montar seus negócios de banha em Sorocaba, o Barão de Mauá, famoso industrial brasileiro ainda era vivo, apesar que naquele tempo tinha entrado em falência, perdendo suas fábricas e empresas. 

Referências bibliográficas
COUTO, Ronaldo Costa. Matarazzo: O colosso brasileiro. São Paulo, Editora Planeta, 2004. 
MARTINS, José de Souza. Conde Matarazzo, o empresário e a empresa: estudo de sociologia do desenvolvimento. São Paulo, Hucitec, 1973. 

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