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Leandro Vilar

sábado, 16 de novembro de 2024

H. H. Holmes: o psicopata americano

O médico H. H. Holmes ficou conhecido no final do século XIX por ter assassinado algumas pessoas em Chicago, o que lhe rendeu a fama de ser o primeiro serial-killer conhecido dos Estados Unidos. Sua história criminal virou uma sensação na época, rendendo notícias falsas em jornais e revistas e inspirando até mesmo escritores a criarem contos a respeito. Tendo matado supostamente 27 vítimas, o sensacionalismo expandiu o número de assassinatos até para 200 pessoas. Porém, a vida de serial-killer de Holmes foi bem menos empolgante do que se imagina. Ele atuou como assassino por poucos anos e cometia seus crimes na surdina, o que dificulta saber quantas pessoas realmente ele matou. Além disso, Holmes foi também cometeu crimes de estelionato, bigamia, falsidade ideológica, sequestro, vilipêndio de cadáveres, cárcere privado etc. 

Retrato de H. H. Holmes.

Introdução

Nascido Herman Webster Mudgett (1861-1896), em Gilmanton, em New Hampshire, sendo o terceiro filho de Levi Horton Mudgett e Theodate Page Price. Seu pai trabalhou como agricultor, comerciante e pintor de parede, tendo problemas com alcoolismo. Já a mãe era dona de casa. Mudgett cresceu numa família Metodista. Em dado momento da sua adolescência decidiu estudar Medicina. Conseguido ser aprovado na Universidade de Vermont em 1879, mais tarde pediu transferência em 1882 para a Universidade de Michigan, onde se formou em 1884.

Durante a universidade, Mudgett se interessou bastante por dissecações, inclusive tornou-se assistente do Laboratório de Anatomia em Michigan e até foi suspeito de cometer o crime de vilipendio de cadáveres, ou seja, roubar corpos do cemitério ou necrotério. Aqui teríamos tido o primeiro sinal criminoso de Mudgett e seu estranho interesse pelos mortos. Além disso, nesse tempo em que fazia o curso de Medicina, Mudgett casou-se com Clara Lovering, com quem teve um filho chamado Robert Lovering Mudgett (1880-1956). Ele usou o dinheiro da esposa para pagar seus estudos e demais despesas. 

Durante seus estudos, Mudgett tomou como amante uma viúva rica, a qual bancou o restante de sua formação. Após se formar em 1884, ele abandonou a esposa, o filho e a amante, e se mudou para Nova York, onde ficou o ano de 1885, sem obter segurança em sua carreira, ele foi embora para Chicago, na época uma cidade em alta, mudando-se para lá em 1886. Foi naquela ocasião que ele teria adotado sua famosa identidade falsa sob o nome Dr. Henry Howard Holmes, mais conhecido como Dr. Holmes

Chicago e o hotel

Em Chicago, Holmes passou a trabalhar numa farmácia, consultando as pessoas. Mas por ser um golpista experiente, procurou por uma jovem endinheirada, a qual acabou caindo em seus galanteios. Holmes como era mentiroso profissional, apresentou-se como um médico de respeito, recém-chegado a Chicago. A escolhida foi Myrta Belknap, com quem teve uma filha chamada Lucy Theodate Holmes (1889-1956). No caso, Holmes aproveitou para enganar a família da esposa, conseguindo pedir empréstimos. Além disso, ele teria dado um golpe financeiro na farmácia onde trabalhava.

A ponto que em 1887 ele comprou um terreno próximo a farmácia para construir um prédio de dois andares, além de ter herdado a própria farmácia, após convencer os donos fazerem um negócio de venda. Holmes usou um nome falso para isso. Em 1888, ele havia dado calote no arquiteto e na empresa de construção, sendo processado por conta disso. Todavia, Holmes conseguiu chegar a um acordo quanto a sua dívida e em 1892, o prédio ganhou um terceiro andar para funcionar como hotel, antes disso, ele funcionava como farmácia, consultório e moradia. 

O hotel ficou pronto em 1893 para atender os turistas que iriam a Chicago para a aguardada Exposição Mundial de 1893. Depois que eclodiu a notícia de que ele era um assassino, os jornais chamaram seu hotel de Castelo do Assassinato (Murder Castle), um nome chamativo, com direito de evocar todo um imaginário sombrio sobre o lugar, em que relatos falavam de câmaras de tortura, masmorras, alçapões, passagens secretas etc., um local de armadilhas, em que Holmes sadicamente brincaria com seus hóspedes. Todavia, nada disso foi achado. Embora Holmes confessou que matou algumas das vítimas que trabalharam ou se hospedaram lá.

Suposta planta do hotel de Holmes, publicada numa manchete sensacionalista do The World Pages de 11 e agosto de 1895, chamando-o de
"o castelo do Barba Azul moderno". 

Passado o ano da Exposição Mundial, o número de hóspedes caiu bastante, gerando prejuízo ao hotel de Holmes, embora no local ainda funcionasse uma farmácia, loja e consultório. Assim, ele passou a procurar outras formas de rendimento e até tentar escapar de seus credores, já que ele era conhecido por ser caloteiro. Dessa forma, no final de 1893 ele fez algumas viagens a Denver no Colorado, onde conheceu uma mulher chamada Georgiana Yoke, com quem começou a namorar e em janeiro de 1894 se casou com ela. Na época Holmes pretendia se mudar de Chicago para Denver, abandonando sua outra esposa e filha, algo que ele já tinha feito anteriormente. 

Os assassinatos

O relato dos assassinatos de H. H. Holmes é complexo de ser rastreado. Muitas invenções surgiram com os jornais e revistas da época. Ele teria confessado que matou 27 pessoas, mas suspeitas diziam que o número teria sido muito maior. Algumas obras chegaram a falar de mais de 100 vítimas outros aumentaram o valor para 200 mortes. Além disso, não dispomos dos nomes de suas vinte e sete vítimas

Mas o que se sabe sobre as pessoas que ele matou? Embora tenha dito que cometeu 27 pessoas, ele nunca deu o nome de todos. Entre as vítimas estariam: Julia Smythe, sua amante que trabalhava no seu prédio, que estava grávida de Pearl, tendo se separado do marido Laurence Connor. Em 1891, Julia e Pearl sumiram misteriosamente. Em 1892, Emeline Cigrand, que atuava como secretária no prédio e outra possível amante de Holmes, também desapareceu naquele ano. Seu esqueleto foi achado em uma das residências de Holmes. 

No ano de 1893, Holmes conheceu uma atriz chamada Wilhemina "Minnie" Williams, a qual buscava seguir a carreira artística em Chicago, mas sem sorte, Holmes lhe ofereceu emprego em seu hotel, como secretária. Ali ele a cortejou, tornando-a sua amante também. Holmes inclusive usou Williams como vítima de seus golpes de estelionato, fazendo ela assinar documentos para vender uma propriedade que tinha, para um homem chamado Alexander Bond, que era um dos nomes falsos de Holmes. Vale lembrar que desde Michigan ele já aplicava golpes usando nomes falsos. 

Mesmo estando casado com Myrtha Belknap, Holmes disse que era solteiro e passou a morar junto com Minnie Williams, tendo alugado uma casa para ela. Em junho de 1893, a irmã mais nova de Minnie, Anna, foi visitar o casal para felicitar o noivado da irmã. Semanas depois as duas não foram mais vistas com vida. Holmes as matou. Nota-se aqui que Holmes possuía preferência por matar mulheres, já que entre 1891 e 1893 ele assassinou cinco mulheres. 

No entanto, ele também matou homens. Um dos seus credores, o senhor John DeBrueil, teria sido envenenado por Holmes em 1891, em sua farmácia. Na época ele disse que DeBrueil teve um mal súbito. Outras secretárias e funcionários que trabalhavam para Holmes, além de alguns hóspedes, desapareceram também e nunca foram achados. Consideram que talvez tenham sido mortos por ele. 

No ano de 1894, os credores de Holmes voltaram a pressioná-lo, ele se mudou para Fort Worth, onde possuía uma propriedade roubada de Winnie Williams, cogitando ir depois para o Colorado, onde vivia sua terceira esposa. Porém, ele não escapou da polícia e foi preso devido a acusação de vender bens hipotecados em outra cidade. No entanto, ele passou pouco tempo preso, pagando fiança. Até então seus outros crimes de estelionato e fraude ainda não tinham sido descobertos. Fora da prisão, Holmes planejou dar um golpe numa agência de seguros planejando sua própria morte, mas o plano falhou. Então ele convocou seu parceiro do crime, Benjamin Pitezel (1856-1894), para ajudá-lo em um novo golpe. 

Holmes conheceu Pitezel anos antes, o qual inclusive já tinha passagens pela polícia. Pitezel passou a ajudar Holmes em seus golpes, possivelmente também em acobertar os assassinatos, sumindo com os corpos e as evidências. O plano era fazer uma apólice de seguro de 10 mil dólares para Pitezel, e ele fingiria a própria morte. Holmes arquitetou tudo, mas acabou traindo seu parceiro, o matando de verdade, tendo sufocado com clorofórmio e queimado seu corpo em seguida (ele confessou isso na prisão). Porém, ele obteve o dinheiro do seguro e foi falar com a esposa de Pitezel, Carrie Alice Canning

Como um frio psicopata, Holmes, mentiu para Carrie ao dizer que o marido estava escondido e o enviou para tratar do plano de mudança da família. Carrie que conhecia Holmes a algum tempo confiou em sua palavra. Assim, ele levou consigo seus três filhos Alice, Nellie e Howard. Os quatro viajaram rumo ao Canadá, por onde supostamente iriam encontrar o pai ou pegariam um navio para ir à Europa onde ele estaria vivendo em Londres. Carrie viajou posteriormente, mas não chegou a encontrar os filhos, tendo sido enviada por Holmes a outra cidade. Finalmente eles se mudaram para Toronto no Canadá, onde H. H. Holmes matou os três filhos de Pitizel. 

A captura

Ainda em 1894 a polícia já estava atrás de Holmes devido aos seus golpes e a condição de ele aparecer viajando para diferentes estados. Vale ressalvar que também havia suspeitas acerca da apólice de seguro de Benjamin Pitezel, ainda mais após Holmes ter recebido o dinheiro e ido buscar os filhos dele e sumido em seguida. A polícia considerou isso bastante suspeito. A Agência Nacional e Detetives Pinkerton, passou a investigá-lo, vindo a prendê-lo em 17 de novembro de 1894 em Boston

No ano seguinte sua casa em Toronto foi investigada e encontraram os restos mortais dos filhos de Pitizel. O hotel de Holmes em Chicago também foi investigado, mas nenhum corpo foi achado, apenas pequenos vestígios que poderiam ter sido de suas vítimas. Ele ficou preso preventivamente enquanto aguardava julgamento.

As investigações criminais começaram em novembro de 1894 e foram concluídas em 1895. Curiosamente somente se atestou quatro assassinatos, sendo de Benjamin Pitizel e de seus três filhos. Porém, enquanto estava preso, Holmes disse que matou 27 pessoas, dando os nomes de alguns, mas outros jamais ele falou a respeito. Ele disse que matou pessoas em Chicago, Indianópolis e Toronto. No entanto, jornais na época ofereceram dinheiro para ele dar uma exclusiva sobre seus crimes. Holmes aceitou, mas hoje considera-se que ele pode ter inventado algumas coisas nesses depoimentos para inflar sua fama perversa, já que ele sabia que seria condenado à morte. 

H. H. Holmes ficou preso pelos meses seguintes, sendo enforcado em 7 de maio de 1896, aos 35 anos. Ele disse que seu corpo fosse enterrado a três metros de profundidade e coberto de concreto. Os jornais alegaram que tal pedido se devia para aprisionar sua alma maldita. Holmes teria alegado que era para evitar que seu corpo fosse roubado. O que é irônico, pois ele cometeu o crime de roubo de cadáveres. No entanto, tal pedido não foi atendido. Seu corpo foi enterrado numa cova sem identificação no Cemitério Santa Cruz, em Yeadon, na Pensilvânia. Pondo fim a sua vida de crimes. 

O enforcamento de H. H. Holmes. Desenho feito por Newmar para o artigo Holmes' Own Story (1895). 

Considerações finais

H. H. Holmes se tornou uma celebridade infame ainda em vida, já que a descoberta de seus crimes de assassinato rapidamente repercutiram e viraram grande sensacionalismo. O cruel médico que matou as amantes, funcionários, hóspedes, o parceiro e crianças. 

Todavia, foi nos anos seguintes que outros crimes dele envolvendo estelionato, fraudes, falsidade ideológica, bigamia etc., foram sendo descobertos. A quantidade de mortos nunca foi conclusiva, apesar de ele ter dito que matou vinte sete pessoas. Mas alguns investigadores duvidam desse valor, cogitando poder ser menor, embora que os jornais da época diziam que era bem maior. 

O hotel de Holmes foi incendiado em 1895 de forma criminosa, mas os bombeiros conseguiram conter o fogo. O prédio foi confiscado pela justiça e vendido, mantendo-se operante por vários anos até ser demolido em 1938. Alguns dos funcionários de Holmes que atuaram em seu hotel, foram investigados, mas não depuseram contra seu antigo patrão, alegando que não sabiam de nada acerca de seus crimes (o que gera dúvidas ainda hoje). Embora familiares de alguns deles diziam que esses estavam atormentados após descobrirem as atrocidades que seu patrão cometeu. 

Holmes inspirou produções literárias, as quais criaram histórias sobre seus crimes, atribuindo inclusive mais mortes, algo que se difundiu na primeira metade do século XX. Depois disso tivemos vários livros de jornalistas e de alguns historiadores analisando o caso dele. Transformando esse psicopata americano no primeiro serial-killer dos Estados Unidos. 

NOTA: Holmes também foi acusado de fazer abortos em algumas de suas amantes e possivelmente até em outras mulheres. 

NOTA 2: Holmes foi chamado de o "Barba Azul moderno" por conta de ele ter assassinado algumas de suas amantes que teve em Chicago. Inclusive alguns autores consideram que ele poderia ser misógino. 

NOTA 3: O livro American Gothic (1974) é um romance de Robert Bloch sobre a via de crimes de Holmes. 

NOTA 4: O livro The Devil in the White City (2003) do jornalista Erik Larson, é uma das obras mais famosas que analisa o caso criminal de H. H. Holmes. Os direitos do livro foram comprados em 2010 pelo ator Leonardo DiCaprio para se tornar um filme, mas esse nunca foi produzido. Em 2019 os canais ParamountHulu anunciaram que adaptariam o projeto de DiCaprio como uma série, mas a proposta também foi cancelada.

NOTA 5: No seriado Supernatural (2005-2020) na segunda temporada, episódio 6, intitulado Sem Saída (No Exit), os irmãos Sam e Dean devem enviar o fantasma de Holmes de volta ao Inferno. Já que esse escapou e pretendia voltar a matar. 

NOTA 6: O jogo The Devil in Me (2022) é inspirado na história de Holmes. No jogo, um psicopata que é fã do médico, recria seu hotel numa ilha e convida hóspedes para lá, onde os assassina com sadismo. 

Referências bibliográficas:

CRIGHTON, J. D. Holmes' Own Story: Confessed 27 Murders – Lied Then Died. Murrieta, Aerobear Classics, 2017. 

GEARY, RickThe Beast of Chicago: An Account of the Life and Crimes of Herman W. Mudgett, Known to the World as H. H. Holmes. New York, NBM Publishing, 2003. 

domingo, 10 de novembro de 2024

As Leis de Jim Crow (1877-1964): o apartheid nos Estados Unidos

Oficialmente nos Estados Unidos nunca houve um apartheid como ocorreu na África do Sul (1948-1994), porém, o país norte-americano chegou próximo a isso em alguns momentos. As chamadas Leis de Jim Crow foram um conjunto de leis estaduais vigentes entre os séculos XIX e XX, que estabeleceram um sistema de segregação racial, reflexo do forte racismo estrutural vigente no país. Assim, valendo-se do discurso da democracia e liberdade de expressão, além de outras características do federalismo estadunidense, alguns estados conseguiram aprovar seus "pequenos apartheids" como veremos a seguir. 

A origem das leis de Jim Crow

O surgimento dessa legislação racista teve início no século XIX, um pouco mais de dez anos após o término da Guerra de Secessão (1861-1865), a qual marcou a derrota dos Confederados do Sul, mas também marcou a abolição da escravidão, mesmo que a contragosto dos confederados e outras parceladas da população. Apesar disso, os ex-escravos e seus descendentes seguiram sendo marginalizados mesmo assim, entretanto, em alguns estados já nas décadas de 1870 e 1880, houve alguns poucos negros que começaram a ascender socialmente e até a assumirem cargos públicos (algo anteriormente vetado). A sociedade racista que não aceitava o término da escravidão, para essas pessoas era uma afronta ver afro-americanos naqueles cargos. 

No ano de 1875 o Congresso aprovou o Ato dos Direitos Civis, entre suas premissas estava a qual determinava que todos os americanos seriam iguais perante a Constituição, independente de sua cor. Porém, na prática isso nunca se concretizou. Assim, nos antigos estados confederados surgiram grupos supremacistas como o Ku Klux Klan e os Red Shirts, ambos terrivelmente racistas a ponto de caçar e matar afro-americanos, indígenas e mestiços. 

Por sua vez, uma elite política representando o Partido Democrata da região confederada, marcada pelo seu conservadorismo e apoio a escravidão, decidiram mudar as leis para barrar o acesso de candidatos negros aos cargos estaduais e federais, assim, eles ficavam proibidos de poderem se candidatar, mais tarde também proibidos de votar. Essa tendência se alastrou na década de 1890 por alguns dos estados que anteriormente formaram a Confederação, sendo eles: Mississipi, Alabama, Geórgia, Luisiana, Flórida, Texas, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennesee e Arkansas, foram adotando leis para barrar a participação dos afro-americanos nas eleições estaduais e federais, as vezes até em eleições municipais quando possível. (TISCHAUSER, 2012). 

Foi na década de 1880 que alguns jornais sulistas começaram a se referir a essas leis estaduais como leis de "Jim Crow", uma referência a uma música popular chamada Jump Jim Crow (1832) criada pelo compositor Thomas D. Rice, a qual fazia piada com os escravos. Posteriormente, alguns cantores que cantavam essa música, praticavam o blackface, pintando-se de preto para representar o escravo Jim Crow da canção. (TISCHAUSER, 2012). 

Ilustração para a música Jump Jim Crow em 1832. 

No de 1881 o estado do Tennessee aprovou uma lei que designava a divisão de vagões de trem para brancos e negros. Se até então as leis procuravam barrar os direitos políticos dos afro-americanos, agora tínhamos uma lei que estipulava a segregação racial. Essa lei foi aprovada sob alegação de evitar problemas entre os passageiros, tomando como pressuposto que já existia uma divisão em primeira, segunda e terceira classe, mas agora surgia uma "quarta classe", na qual se reunia todos os negros, independente de seu poder aquisitivo. (FREMON, 2014).

Em 1883 a Suprema Corte revogou os Atos dos Direitos Civis de 1875, sob alegação de ser inconstitucional proibir as pessoas de terem opinião contrárias a indivíduos de outras "raças" e nacionalidades, pois isso era contrário ao principio da liberdade de expressão e opinião. A Suprema Corte determinou que os estados deveriam evitar essa discriminação, mas os cidadãos estavam livres para manter suas opiniões. Isso apenas contribuiu para que o racismo continuasse a ser rotineiro. (FREMON, 2014). 

No ano de 1890 o estado do Mississippi criou ou chamado Plano Mississippi, uma atualização das leis estaduais para dificultar a vida dos afro-americanos. Entre as medidas adotadas estavam: dificultar o porte e posse de armas; tornar mais difícil a candidatura de negros e até mesmo o direito ao voto, a abrir negócios, comprar imóveis etc. Essas medidas foram adotadas por outros estados fortemente racistas como Alabama e Carolina do Sul pela mesma época. (FREMON, 2014).

Em 1899 a Suprema Corte aprovou o projeto de lei que estipulava que os estados poderiam decidir como investir verbas na educação de pessoas brancas e negras. Nos estados sulistas em que a segregação era mais forte e nítida, já havia naquele tempo bairros onde a maioria dos moradores eram negros e pardos, por sua vez, nas escolas desses bairros, grande parte dos estudantes eram de pele escura. Assim, a lei aprovada designava que o governo investiria maior quantidade de dinheiro em escolas melhores, evidentemente que as escolas frequentadas por brancos tiveram privilégio. E o governo alegou que isso não era discriminação, pois naturalmente as escolas de negros eram conhecidas por seus alunos deficitários. Isso era claramente reflexo do racismo científico operante na época, o qual determinava que pessoas negras, pardas, indígenas, judias, ciganas etc., eram geneticamente menos inteligentes. (TISCHAUSER, 2012). 

A expansão da segregação racial

E a situação acabou por piorar. Na década de 1900, os ex-estados confederados aprovaram novas medidas segregacionistas, criando espaços para brancos e negros. Por essa época começou a surgir bebedouros, paradas de ônibus, vagões de trem, estações, banheiros públicos, hotéis, restaurantes etc., divididos racialmente. Em 1909 a cidade de Baltimore City no estado de Marylan aprovou uma lei para delimitar a expansão dos bairros de negros, assim como, estipular onde eles poderiam construir suas moradias. Outras cidades adotaram o procedimento. Por sua vez, em 1913, o presidente Woodrow Wilson (1913-1921) tornou essa divisão racial em lei federal aplicada as repartições públicas federais, determinando a criação de banheiros, refeitórios, bebedouros, escritórios e vagas para brancos e negros. (FREMON, 2014).

Com a aprovação as medidas raciais em 1909 e 1913, a tendência foi se espalhando por outras partes do país. Estados que nunca antes tinham cogitado adotar esse apartheid, passaram a executá-lo, pelo menos em algumas cidades. A criação de espaços para brancos e negros foi aumentando, logo, passou-se a ter diferentes tipos de comércios agora divididos. Curiosamente a Suprema Corte em 1917 considerou que a delimitação de bairros de negros era inconstitucional e proibiu os estados fazerem isso. Porém, a segregação institucional seguia normalmente. (FREMON, 2014).

O apartheid americano também passou a segregar os afro-americanos em outras estâncias. Além de serem excluídos das eleições na maioria das vezes, eles foram barrados de terem acesso às universidades, já que a maioria já eram pagas, mas as bolsas de estudo não eram ofertadas para negros; embora a saúde nos EUA seja privada, havia hospitais e clínicas que não atendiam pessoas negras. As relações de trabalho seguiam discriminatórias, em que os afro-americanos continuavam sendo menosprezados e recebendo salários inferiores e sujeitados a ofícios degradantes. O casamento inter-racial começou a ser proibido em alguns estados também. Famílias de negros eram proibidas de adotarem crianças brancas(TISCHAUSER, 2012). 

A justiça também era bastante desigual. Enquanto conflitos envolvendo negros e brancos eram recorrentes mesmo naquela época, como o caso do Massacre de Tulsa em 1921, em que todo um bairro onde viviam maioria de afro-americanos, foi atacado, sendo incendiado. O número de mortos oficial foi de 36, mas estimativas atuais apontam possívelmente mais de 600 vítimas. Além disso, vários negros que se defendiam dos agressores foram presos injustamente, passando semanas ou meses detidos. Além desse caso, em outras ocasiões era comum negros ao serem abordados pela polícia, serem rapidamente detidos e presos, e até mesmo recebendo penas mais severas, em alguns casos, até penas de morte.

Afro-americanos detidos durante o Massacre de Tulsa, em 1921. 

Durante a década de 1930 alguns estados voltaram a barrar candidatos negros para as eleições municipais e estaduais (já que federais isso já tinha sido feito), além disso, alguns cargos públicos foram também vetados, e até mesmo o acesso ao júri. Ou seja, em 1935 no estado do Alabama, passou-se a proibir jurados negros. No ano de 1938 a Suprema Corte deliberou que se existiam faculdades exclusivas para brancos, faculdades exclusivas para negros deveriam ser criadas. Nota-se que a ideia não era acabar com a segregação, mas perpetuá-la sob disfarce de democracia. Ao invés de acabar com o racismo que proibia afro-americanos de frequentarem faculdades e universidades, a alternativa foi criar faculdades apenas para negros, embora que na prática isso não deu certo. Faculdades exclusivas para negros mal foram criadas. (TISCHAUSER, 2012). 

O governo federal tentou acabar com a segregação promovida pelas leis estaduais, mesmo tomando algumas medidas como declarar que era inconstitucional proibir candidatos negros a disputarem as eleições, algo feito em 1944, e em 1946 a Suprema Corte declarou ser também inconstitucional manter estabelecimentos para brancos e para negros, na prática isso nunca foi efetivado. 

Uma cafeteria na Carolina do Sul, nos anos 1940, mostrando uma entrada para brancos e uma entrada para negros. 

Na década de 1950 a Suprema Corte exigiu que o governo do Texas acabasse com a proibição de negros de frequentar faculdades para brancos, sob alegação de que as faculdades para negros eram de baixa qualidade. Posteriormente essa exigência passou para atender as escolas de outros estados também, mas em ambos os casos, isso nunca foi efetivado. Condição essa que em 1956 a estudante Autherine Lucy (1929-2022) foi a primeira mulher negra a se matricular na Universidade do Alabama. Ela foi hostilizada quando chegou a instituição, sendo expulsa meses depois após vários protestos de estudantes, pais e professores, que consideravam imoral uma negra estudar numa universidade para brancos. (FREMON, 2014).

A luta contra a segregação racial

No ano de 1909 surgiu a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (National Association for the Advancent of Colored People), conhecido pela sigla em inglês NAACP. O movimento surgiu para combater o forte racismo que imperava nos Estados Unidos, porém, por décadas ele nunca obtive êxito, apesar das várias denúncias e manifestações. No entanto, seus membros nunca perderam a esperança. Somente na década de 1950 a NAACP conseguiu ganhar evidência internacional e se fortalecer, tornando-se inclusive referência para o movimento negro em outros países. 

No ano de 1955 ocorreu um famoso acontecimento do movimento negro estadunidense. Rosa Parks (1913-2004) estava se dirigindo ao trabalho na cidade de Montgomory, no Alabama, quando o motorista de ônibus mandou que ela e os demais negros se levantassem de um dos assentos para que um passageiro branco se sentasse. As outras pessoas obedeceram, mas Rosa se negou a ceder assento para um branco. O motorista interrompeu a viagem e chamou a polícia. Rosa Parks foi detida em 1 de dezembro de 1955 por desacatar a lei, sendo mais tarde presa e enviada ao presídio. Na época ela era ligada ao NAACP, inclusive ficou conhecida do Martin Luther King Jr, que começava a destacar-se no período. Assim, um movimento de boicote que durou de dezembro de 1955 a dezembro de 1956 foi feito em Montgomory. (BARNES, 1983). 

Rosa Parks e Martin Luther King Jr em Montgomory, Alabama, no ano de 1955. 

O movimento levou pessoas negras, pardas e brancos contrários ao racismo, a boicotarem as empresas de ônibus. Mais de cento e cinquenta manifestantes foram presos, alguns até agredidos por policiais ou a população racista. O próprio Martin Luther King Jr chegou a ser preso por duas semanas devido a participar de alguns protestos. Outros membros do movimento negro foram insultados, agredidos e tiveram suas casas atacadas com pedras e tiros. Porém, apesar das dificuldades, o movimento de boicote deu certo, pois em dezembro de 1956 a Suprema Corte anulou a lei estadual que segregava os passageiros nos ônibus. Essa foi considerada uma grande vitória na época, fortalecendo o movimento negro naquela época. (BARNES, 1983). 

Com a vitória em Montgomory, o pastor Martin Luther King Jr (1929-1968) passou a despontar localmente como liderança do movimento negro. King Jr nos anos seguintes incentivou várias manifestações pacíficas pelo Alabama e estados vizinhos contra a segregação racial, destacando-se suas ações em Albany na Geórgia em 1962 e em Birmingham no Alabama em 1963, nessa ocasião ele foi preso novamente. No entanto, em agosto daquele ano ele viajou para Washington D.C e realizou sua famosa Marcha sobre Washington, reunindo centenas de milhares de pessoas diante do Monumento a Lincoln, onde ele realizou seu famoso discurso chamado Eu tenho um Sonho (I Have a Dream). (KIRK, 2007).

O discurso de Martin Luther em Washington o tornou famoso mundialmente e o colocou na mira do FBI, que passou a espioná-lo como possível ameaça, já que o pastor havia ficado bastante popular e ativo nos últimos anos promovendo o movimento negro no Alabama e Geórgia. A repercussão do ativismo de Martin Luther King Jr foi tamanha que em 14 de outubro de 1964 ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, além de contar com o apoio do presidente Lyndon B. Johnson (1963-1969), o qual em 1964 assinou o Decreto dos Direitos Civis que as Leis Jim Crow eram ilegais e deveriam ser anuladas(KIRK, 2007).

Martin Luther King Jr discursando em Washington D.C, em 1963. 

Apesar do decreto do presidente Johnson, sua ação não repercutiu de imediato, assim, os estados continuaram a manter suas ações racistas, mesmo que legalmente tivessem suspendido essas legalmente. Aqui temos claramente um exemplo do funcionamento do racismo estrutural, pois embora ele não seja oficializado legalmente, ele ainda continua a funcionar informalmente, em que as autoridades fazem "vista grossa" as suas mazelas. Por conta disso, a luta contra o racismo se manteve ainda em alta nos anos seguintes. 

No ano de 1965, Martin Luther participou de duas das três marchas em Selma e Montgomory pedindo pelo retorno ao direito ao voto para afro-americanos e o fim da segregação racial. Inclusive as marchas também foram um protesto pelo assassinato de Jimmie Jackson, ativista negro morto poucos dias antes. Nas três marchas houve um forte aparato opressivo de tropas policiais e militares para intimidar os manifestantes. Apesar que a primeira marcha foi a mais violenta, chamada de "Domingo Sangrento", ocorrida em 7 de março de 1965, em que os 600 manifestantes foram atacados pela polícia(KIRK, 2007).

Além de defender os direitos dos negros e combater o racismo, King Jr fez campanhas em defesa dos pobres e se posicionou contrário a Guerra do Vietnã (1955-1975). Ele chegou a receber ameaças de morte e foi alvo de chantagens por parte do FBI e outras autoridades, as quais suspeitavam que ele fosse um espião comunista da URSS (eram tempos de Guerra Fria). Martin Luther King Jr acabou sendo assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis, no Tennessee. Sua morte causou grande impacto na época. 

No mesmo período que Martin Luther King Jr realizava suas ações ativistas no Alabama, outro líder ativista importante, Malcolm X (1925-1965) ganhava destaque naquela época. Nos anos 1940 Malcom acabou entrando para o mundo do crime, sendo preso em 1946 e solto em 1952. Ao sair da cadeia, Malcom X se converteu ao Islão, tornou-se missionário e aderiu ao movimento negro, passando a atuar em Detroit e Nova York. Diferente de Martin Luther, Malcom defendia protestos mais ousados e se fosse necessário até com o uso da força. (JENKINS, 2002). 

Martin Luther King Jr e Malcolm em 1964. 

Malcolm X viajou para a África três vezes, para dar palestras e até realizou a peregrinação para a Meca em 1964. Após romper com o grupo Nação do Islão (do qual era vinculado desde 1952), ele se tornou mais moderado em suas ações públicas e fundou a Organização para a Unidade Afro-Americana (OAAU) em 1964, recebendo membros de todas as cores unidos pelo ideal de enfrentar o racismo. Porém, devido aos inimigos que fez, Malcolm X foi assassinado em 1965(JENKINS, 2002).

Outro movimento negro paralelo, influenciado pelo pensamento de Malcolm X, foi o Partido dos Panteras Negras (Black Panther Party), criado em 1966 por Bobb Sealey e Huey Newton, como um grupo de viés socialista e antirracista, que defendia inclusive o uso da força e até mesmo a luta armada para encabeçar o fim da segregação racial nos Estados Unidos. Os Panteras Negras estiveram atuantes até 1982, quando o partido foi encerrado. O partido ganhou filiados em Nova York, San Francisco, Chicago, Los Angeles, Seattle, Filadélfia e em outras cidades e estados. Suas ações iam desde manifestações pacíficas a confrontos com a polícia, tendo resultado em feridos e mortos, além de que vários membros foram presos nesses anos. (ALKEBULAN, 2007). 

O radicalismo dos Panteras Negras foi marcante ainda mais devido aos assassinatos de Malcolm X e Martin Luther King Jr, fatores usados para inflar a raiva de parte de seus membros a aderirem ao combate para confrontar o racismo estrutural dos Estados Unidos. (ALKEBULAN, 2007). 

Bobb Seale e Huey Newton, fundadores do Partido dos Panteras Negras.

Considerações finais

A década 1960 foi bastante emblemática para os Estados Unidos, pois foi um período em que as Leis de Jim Crow foram formalmente anuladas a partir de 1964, ainda assim, o movimento negro estava em alta, pois a segregação racial se mantinha forte, além de que o Ku Klux Klan e outros grupos supremacistas seguiam causando seus crimes como atos de vandalismo, agressão e assassinato. Por conta disso, os Panteras Negras decidiram revidar com força, já que o Estado fazia "vista grossa" a tais crimes. 

Em 1967 a proibição do casamento antirracial foi abolida, no ano seguinte os afro-americanos recuperaram seus direitos de se elegerem e poderem votar, além de assumir outros cargos públicos. Na década de 1970 a segregação em estabelecimentos públicos e privados foi extinta, assim como, passou-se a aceitar negros indo estudar em escolas, faculdades e universidades, anteriormente proibidas para eles. O Ku Klux Klan se tornou ilegal, além de que outros grupos supremacistas violentos que caçavam negros, acabaram. 

Apesar que nos anos 1970 a segregação racial começou a se dissipar, não significou que o racismo havia chegado ao fim. Ele não era mais escancarado como antes, mas ainda se manteve e continua a existir no país. Apesar que os avanços conquistados pelo movimento negro entre as décadas de 1950 e 1980 foram bastante significativos, a ponto de contribuir para pôr fim ao apartheid americano. 

NOTA: As histórias em quadrinhos dos X-Men, foram criadas em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby, influenciadas pela segregação racial nos Estados Unidos. Em várias revistas os mutantes são alvo de racismo, além de sofrerem perseguições pelo Estado e outras organizações. 

NOTA 2: O super-herói da Marvel Comics, o Pantera Negra, foi criado por Stan Lee e Jack Kirby ainda em 1966, influenciado pelo Partido dos Panteras Negras. 

NOTA 3: Em 1968 surgiu o Partido dos Panteras Brancas, influenciado pelos Panteras Negras, mas tendo um viés mais anarquista, pois além de combater o racismo, eles também defendiam a abolição do dinheiro, a legalização das drogas, fim do recrutamento militar obrigatório, reforma do sistema judiciário, acesso livre à informação etc. O grupo ficou ativo até 1980, mas não alcançou a mesma repercussão do que os Panteras Negras, embora vários membros foram presos por conta de seu radicalismo. 

Referências bibliográficas: 

ALKEBULAN, Paul. Survival Pending Revolution: The History of the Black Panther Party. Tuscaloosa, University of Alabama Press, 2007. 

BARNES, Catherine A. Journey from Jim Crow: The Desegregation of Southern Transit. Columbia, Columbia University Press, 1983.

FREMON, David K. The Jim Crow Laws and Racism in United States History. Berkeley, Enslow Publishers, Inc, 2014. 

JENKINS, Robert L. The Malcolm X Encyclopedia. Westport, Greenwood Pres, 2002. 

KIRK, John A. Martin Luther King Jr. and the Civil Rights Movement: Controversies and Debates. [s. l], Red Globe Press, 2007. 

TISCHAUSER, Leslie V. Jim Crow Laws. Santa Barbara, Greewood, 2012. 


terça-feira, 29 de outubro de 2024

A Biblioteca Nacional do Brasil

Neste 29 de outubro é comemorado no Brasil o Dia Nacional do Livro, em referência ao decreto-real que autorizou a criação da Biblioteca Nacional do Brasil. Assim, situada no bairro da Cinelândia, no centro da cidade do Rio de Janeiro, o belo prédio da Biblioteca Nacional, guarda entre suas paredes, mais de dois séculos de fundação, mas livros e artefatos bem mais antigos. O presente texto contou um pouco da história do surgimento da maior biblioteca brasileira. 

Uma biblioteca transportada

Antes da Família Real Portuguesa se mudar para o Brasil no ano de 1808, quando se estabeleceram no Paço de São Cristóvão no centro do Rio de Janeiro, a colônia brasileira não dispunha de bibliotecas públicas, apenas privadas. Além disso, a impressão de livros, jornais e revistas era controlada na colônia. Assim, a maior parte desses itens era importada de Portugal. 

Após a corte se mudar para o Rio de Janeiro, somente nos anos seguintes decidiu-se trazer a biblioteca da realeza. Dessa forma, foi em 29 de outubro que o príncipe-regente D. João autorizou o transporte da biblioteca portuguesa, em três viagens realizadas entre 1810 e 1811, os 60 mil itens do acervo da Real Biblioteca Portuguesa, na época, foi transportado para o Rio de Janeiro. Tais itens reuniam o acervo de outras bibliotecas como a Biblioteca Pública de Lisboa, a Livraria Real, a Biblioteca do Infantado (ambas chamadas também de Biblioteca d'Ajuda). Vale ressalvar que o acervo original dessa biblioteca era maior, mas parte foi destruído durante o terremoto que assolou Lisboa em 1755, destruindo vários bairros da cidade. Uma parte do prédio da biblioteca desabou, destruindo seu acervo. De qualquer forma, o rei D. José I e o ministro Marquês de Pombal, ordenaram a recuperação da biblioteca real. (SANTOS, 2010). 

O acervo da Real Biblioteca Portuguesa foi temporariamente instalado no andar superior do Hospital Ordem Terceiro do Carmo, sendo a biblioteca aberta oficialmente em 13 de maio de 1811, em celebração ao aniversário de D. João VI. Nesses primeiros anos, a biblioteca era de uso restrito do governo, sendo permitida à consulta e pesquisa apenas por autorização régia a terceiros. A partir de 1814, o rei permitiu o acesso público, lembrando que tal acesso não era permitido a qualquer cidadão. Mulheres e pobres eram vetados, assim como, os escravos. (SANTOS, 2010). 

No ano de 1821, o estatuto da Real Biblioteca Portuguesa foi publicado contendo 32 artigos, ditando acerca de seu funcionamento, acervo, atividades, serviços, organização, princípios, acesso  etc. Inclusive alguns desses artigos são similares aos vistos em bibliotecas atuais, por serem ideias básicas. 

Surge a biblioteca nacional

No ano de 1820 teve início o processo de independência do Brasil, aproveitando-se a crise política em Portugal iniciada pela Revolução Liberal do Porto em 1820, que forçou D. João VI a retornar a Portugal. Com sua partida, o príncipe-regente D. Pedro começou a articular com a aristocracia carioca o projeto de emancipar o Brasil. Isso se desenvolveu ao longo de 1822, originando a Guerra de Independência (1822-1824), somente em 1825, Portugal reconheceu oficialmente a independência brasileira. 

No Tratado do Rio de Janeiro (1825) entre as questões debatidas sobre o acordo de reconhecimento de Portugal a independência do Brasil, estava a questão do que seria feito com a Real Biblioteca Portuguesa. Na ocasião, o imperador D. Pedro I decidiu incluir uma indenização a corte portuguesa para manter a biblioteca no Rio de Janeiro. A proposta foi aceita e a biblioteca foi renomeada para Biblioteca Imperial

Ela permaneceu instalada no prédio do hospital, um local inclusive inadequado para sua manutenção e funções. Porém, o governo decidiu não se preocupar com isso por longos anos. Fato esse, que Souza (2005) comenta que o prédio tinha problemas de infraestrutura como infiltrações e mofo, os funcionários no geral não tinham formação adequada, além de receberem péssimos salários. O atendimento ao público era problemático e até faltava espaço para poder atender a demanda de usuários. Após anos de solicitações dos diretores-gerais, D. Pedro II decidiu comprar um prédio na Rua do Passeio no Largo da Lapa e ordenar a transferência da biblioteca. Isso ocorreu em 5 de agosto de 1858.

Nas décadas seguintes a Biblioteca Imperial ou Biblioteca Nacional como as vezes era referida, seguiu funcionando nesse prédio na Rua do Passeio. Ainda assim, à medida em que o seu acervo crescia devido a doações e compras, além do aumento de usuários regularmente, começou-se a notar a falta de espaço para guardar os livros e demais itens do acervo, assim como, a falta de espaço para atender o público. Entretanto, esses problemas somente foram resolvidos no século XX. 

"A biblioteca só teve um prédio próprio e definitivo em 1910, quando mudou para a Avenida Rio Branco. Segundo Martins (2002) o novo prédio erguido graças aos esforços de alguns de seus diretores, como José Alexandre Teixeira de Melo (mandato de 1895 a 1900) e Manuel Cícero Peregrino da Silva (mandato de 1900 a 1924), foi projetado pelo engenheiro Francisco Marcelino de Sousa Aguiar e construído sob a coordenação dos engenheiros Alberto de Faria e Napoleão Moniz Freire. De um estilo eclético, combinava elementos neoclássicos e art-nouveau, contendo ornamentos de artistas como Visconti, Henrique e Rodolfo Bernardelli, Modesto Brocos e Rodolfo Amoedo". (SANTOS, 2010, p. 55). 

Atual prédio da Biblioteca Nacional, fundado em 1910. 

As obras do prédio da biblioteca iniciaram em 1905, sendo concluídas após cinco anos. Desde então a instituição manteve sua sede no mesmo endereço no bairro da Cinelândia. Apesar que devido ao crescimento do acervo nesse mais de um século, parte dele foi realocado para depósitos e a reserva técnica, no intuito de não superlotar a edificação, assim como, não ter que diminuir a área de sala de estudo. 

Em 1990 o governo federal tornou a biblioteca numa fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura, incorporando o Instituto Nacional do Livro (INL), o Escritório de Direitos Autorais (EDA), além de várias agências ligadas com a literatura, o registro de obras literárias e acadêmicas, como também possui escritórios relacionados a programas públicos de incentivo à leitura, ao livro didático etc. Tendo se tornado uma fundação, a biblioteca também expandiu seus serviços, inaugurando no século XXI seu acervo online que inclui livros, revistas, jornais, fotografias, mapas, pinturas etc. A instituição também teve um periódico, assim como, realiza exposições, eventos, concursos literários, entre outras atividades culturais e educacionais. 

NOTA: A primeira biblioteca pública do Brasil foi a Biblioteca Pública da Bahia, funda em 13 de maio de 1811, em homenagem ao rei D. João VI, mas sendo uma iniciativa particular do senhor de engenho Pedro Gomes Ferrão Castelo Branco

NOTA 2: A Revista de História da Biblioteca Nacional (RHBN) funcionou de 2005 a 2017. 

NOTA 3: No ano de 1985 foi criada a Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional (SABIN), uma sociedade civil sem fins lucrativos, que agrega voluntários, filantropos e pessoas interessadas em contribuir nas atividades da biblioteca. A SABIN foi responsável pela publicação da RHBN. Além disso, a sociedade também realiza outros tipos de atividades e eventos. 

Referências bibliográficas: 

SANTOS, Josiel Machado. Bibliotecas no Brasil: um olhar histórico. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, Nova Série, São Paulo, v.6, n.1, p. 50-61, jan./jun. 2010.

SOUZA, Clarice Muhlethaler de. Biblioteca: uma trajetória. Anais do Congresso de Biblioteconomia 3, Rio de Janeiro, 2005. 

Referência online: 

Site da Biblioteca Nacional do Brasil Digital

Fundação Biblioteca Nacional, o passado e o futuro


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

O mito de Atlântida

Embora Atlântida seja um mito bastante popular desde o século XIX, no entanto, por séculos esse mito foi desconhecido. Mesmo entre os gregos antigos, não se deu muita atenção a a narrativa desse império marítimo. Na Idade Média, o mito atlante praticamente passou despercebido, vindo a ser resgatado na Idade Moderna por conta das Grandes Navegações, depois entrou em esquecimento, retornando no XIX, impulsionado por escritores, poetas e esotéricos. 

Platão e Atlântida

Tentar identificar a origem de um mito é praticamente impossível na maior parte das vezes, pois são narrativas de origem incerta, advindas da cultura oral, que podem ser bem mais antigas do que se imagina, além de que as versões escritas, eram apenas uma entre outras existentes. No caso de Atlântida, não se sabe quando esse mito surgiu, o relato mais antigo advém dos escritos do filósofo Platão (428-348 a.C), o qual por volta de 360 a.C., escreveu dois diálogos, Timeu e Crítias, os quais apresentavam ideias em paralelo.

Em ambos os livros o político Crítias está presente e fala sobre a Atlântida. No livro de Timeu, Crítias conta um relato que teria ocorrido mais de cem anos antes dele, envolvendo o político ateniense Sólon (638-538 a.C), o qual em viagem pelo sul do Egito, conheceu um sacerdote que lhe falou sobre uma próspera e poderosa civilização muito antiga, a qual não existia mais, que estava situada numa ilha para além dos Pilares de Héracles (Estreito de Gibraltar), a qual dominava territórios mediterrânicos na Europa e África. 

Em seguida, Crítias comenta que o tal sacerdote disse a Sólon que os atlantes perderam a proteção dos deuses, e a ilha foi afundada diante de terremotos e um dilúvio, gerando um mar de lama, o qual tornava a navegação inviável naquela parte do vasto oceano. É preciso salutar que no livro Timeu, o mito de Atlântida é apenas citado duas vezes, a maior parte das informações sobre esse império mítico advém do livro de Crítias. 

Nesta segunda obra, Crítias é protagonista e tem maior espaço de fala, assim, ele fornece com base no que ouviu de seus antepassados que conheceram Sólon, os relatos sobre a gloriosa Atlântida. Nesse livro é informado que Atlântida teria afundado nove mil anos antes da época presente dele, que a ilha foi criada por Poseidon para abrigar alguns de seus filhos, destacando-se Evenor que se casou com Leucipe e teve uma filha chamada Clito. Poseidon se apaixonou pela neta e a tomou como amante, gerando gêmeos, os quais foram os primeiros reis de Atlântida, chamados Atlas e Gadiro

Atlas por ter nascido primeiro, recebeu as melhores terras e deu nome aquela ilha, que ficou conhecida como Atlântida ("ilha de Atlas" ou "terra de Atlas"). Por sua vez, os domínios de Gadiro se estenderam para a Europa, compreendendo parte da Península Ibérica. Mais tarde os irmãos tiveram filhos gêmeos e assim por diante, através de mais três gerações, que resultou na condição do império atlante ser dividido em dez reinos

Ilustração representando como seria a capital de Atlântida, segundo a descrição de Platão.

O relato também diz que Poseidon criou a capital para Clito, fazendo a ser cercada por canais circulares e muralhas. Ao centro na acrópole, foi construído um grande templo em sua homenagem. O relato de Crítias segue fazendo descrições sobre a cidade e alguns distritos, sempre destacando que tudo era imponente e belo, além de que a ilha de Atlântida era muito fértil, não havendo falta de alimentos. Soma-se a condição do comércio que se fazia com a Europa e a África. 

No entanto, é informado que Atenas chegou a entrar em guerra contra Atlântida, embora Platão não tenha dado detalhes sobre isso em seus livros, mas sabe-se que os atenienses conseguiram resistir as batalhas e depois disso Atlântida após séculos de prosperidade, foi entrando em declínio devido a corrupção e degradação dos costumes até que os deuses a abandonaram e Poseidon a afundou.

A história de Atlântida narrada por Platão através das descrições de Crítias, é considerado por filósofos, historiadores e arqueólogos como um mito apenas, não o relato histórico ou pseudo-histórico de uma civilização antiga. Alguns estudiosos da obra de Platão consideram Atlântida como uma alegoria para abordar temas políticos que Platão abordou em Timeu e Crítias, mostrando que mesmo grandes impérios poderiam chegar à ruína se a corrupção e a perda dos valores e da moral não fossem combatidos. Além disso, o fato de Atenas ter conseguido sobreviver as investidas bélicas dos atlantes, também era uma forma de exaltar a cidade-estado, mesmo que ela nem existisse nove mil anos antes da época de Platão. 

Atlântida na Antiguidade: mito ou fato? 

Aristóteles (384-322 a.C), o mais famoso dos discípulos de Platão, considerava que Atlântida era apenas uma alegoria política para fazer ensinamentos. Inclusive ele sugeriu que seu mestre teria inventado toda aquela narrativa. Por sua vez, o filósofo Crantor (c. 335 - c. 275 a.C.) considerava que Atlântida fosse realmente real. Ele redigiu alguns comentários das obras de Platão, e supostamente teria viajado também ao Egito para averiguar as informações transmitidas a Crítias. Entretanto, o trabalho de Crantor foi perdido, havendo apenas comentários sobre sua obra, logo, não se sabe se ele realmente viajou ao Egito e confirmou as informações expostas por Platão em seus livros. 

O geógrafo, filósofo e historiador Estrabão (64/63 a.C - 24 d.C) em seu livro Geografia, volume II, capítulo 3, fez menções ao trabalho do geógrafo e filósofo Posidônio (c. 135 - c. 51 a.C), citando o estudo dele sobre regiões que afundaram no mar e forçado a migração de alguns povos como os Cimbrianos. No caso, Estrabão citou Atlântida como um exemplo, mas não confirma se a tal grande ilha fosse real. Segundo o relato de Estrabão, fica subentendido que ele e Posidônio possuíam dúvidas quanto a veracidade da narrativa apresentada por Platão, podendo ser tratar de um mito político como sugerido três séculos antes por Aristóteles. 

O filósofo Fílon de Alexandria (c. 15 a.C - c. 50 d.C) comentou sobre Atlântida no livro A Eternidade do Mundo, embora não fique claro se ele considerava tal local real ou não. Os filósofos cristãos Tertuliano, Arnóbio e Cosme Indicopleustes, sugeriram que Atlântida poderia ter sido real, embora eles não tenham detalhado isso. Por sua vez, Cosme associou Atlântida como uma localidade que teria sumido durante o Dilúvio bíblico. Nesse ponto, os filósofos cristãos apresentaram algumas ligeiras interpretações ao mito de Atlântida, fundindo-o ao referencial bíblico. Todavia, após Cosme que escreveu seu livro Topografia Cristã no século VI d.C., já no começo da Idade Média, não há outros relatos medievais importantes sobre o mito atlante. Essa antiga ilha praticamente foi esquecida pelos povos europeus medievais. 

A redescoberta de Atlântida na Idade Moderna

Embora alguns filósofos cristãos e muçulmanos tenham lido as obras de Platão, eles não deram atenção ao mito de Atlântida, o qual foi esquecido por mil anos. Somente na Idade Moderna, com o advento das Grandes Navegações, o Renascimento, a Revolução Científica e o Iluminismo, é que alguns filósofos e eruditos voltaram a se interessar por Atlântida. 

O político, filósofo, advogado e diplomata Tomás Moro (1478-1535) escreveu o livro Utopia (1516), inspirado no mito atlante, mas diferente de Atlântida que era uma monarquia ostentadora, a ilha de Utopia era uma república justa, cordial, próspera, pacífica etc. Inspirado no livro A República de Platão, Moro pegou algumas ideias propostas pelo filósofo grego acerca da "república ideal", aplicando-a em Utopia, que foi inspirado na ideia de Atlântida, como sendo um país insular, próspero e culturalmente mais civilizado e desenvolvido que o restante do mundo. 

Outro autor que também se inspirou no mito atlante foi o filósofo, advogado e político inglês Francis Bacon (1561-1626), considerado o "Pai do Empirismo". O trabalho de Bacon abordou vários temas como ciência, metafísica, método científico, ética, moral, política, religião etc. Assim, ele escreveu um romance alegórico chamado Nova Atlântida (1626), cuja obra aborda um país insular fictício chamado Bensalém, era governado por um rei filósofo (aqui uma ideia baseada nos trabalhos de Platão). Neste país situado no Oceano Pacífico, havia uma universidade chamada "Casa de Salomão", a qual representava a idealização de Bacon de como as universidades europeias deveriam ser. Além disso, o povo de Bensalém era retratado de forma utópica como Moro e Platão fizeram anteriormente. 

Frontispício do livro Nova Atlântida (1626) de Francis Bacon. 

Porém, Atlântida não inspirou apenas obras filosóficas, alguns estudiosos após a "descoberta" das Américas, passaram a cogitar que Atlântida poderia se referir as ilhas caribenhas ou as Américas. O historiador espanhol Francisco López Gómora (1511-1566) considerava que Atlântida teria existido e ficaria em alguma localidade nas Américas. Embora ele não entrou em detalhes a respeito. O cartógrafo e geógrafo flamengo Abraham Ortelius (1527-1598) propôs os fundamentos do que viria a ser a teoria da deriva continental, somente comprovada no século XX, a qual demonstra que os continentes estão se movendo lentamente. Para Ortelius num passado longínquo algumas localidades do planeta estariam na superfície e podem ter submergido. Assim, ele não descartava que Atlântida talvez pudesse ter existido. 

Já o jesuíta e erudito Athanasius Kircher (1602-1680), fez um mapa situando Atlântida como uma ilha localizada entre a Europa e América do Norte. Esse mapa foi publicado no livro Mundus Subterraneus (1664), em que Kircher inspirado em Ortelius, sugeriu que mudanças no nível do mar, assim como, ondas gigantes causadas por diferentes cataclismos poderiam ter submergido ilhas ou zonas costeiras. Dessa forma, ele considerava que Atlântida pudesse ter existido. 

A grande ilha de Atlântida num mapa publicado no livro Mundus Subterraneus (1664). O mapa está invertido, com o Norte apontado para baixo. 

No século XVIII com o advento do Iluminismo, os filósofos cada vez mais centrados na valorização da razão e da lógica, começaram a renegar os mitos como sendo narrativas apenas fantásticas. Embora alguns deles ainda fizessem uso de mitologias para escreverem romances e novelas com críticas sociais, como o caso de Voltaire. De qualquer forma, Atlântida perdeu espaço nesse período, somente no século seguinte é que ela voltou a despertar a atenção de novos estudiosos. 

Atlântida entre a Ciência e a Pseudociência no século XIX

No século XIX com o advento da popularização das Ciências, assim como, o surgimento da Arqueologia, da Antropologia, da História científica e da Sociologia, alguns estudiosos retomaram o antigo debate se Atlântida seria apenas um mito ou realmente haveria alguma verdade por trás daquela narrativa. 

O pastor, arqueólogo e etnógrafo Charles Étienne Brasseur (1814-1874), era estudioso das civilizações mesoamericanas. Após vinte anos de missões na América Central, Brasseur desenvolveu a teoria de que as civilizações Maia e Asteca poderiam ter inspirado a Atlântida relatada por Platão. A teoria inclusive inspirou outros estudiosos e curiosos no século XIX e XX, pois Brasseur argumentava que esses povos possuíam conhecimentos de engenharia, matemática e astronomia avançados, equiparáveis a de povos europeus, africanos e asiáticos. 

Apesar de ser uma teoria bastante interessante, Brasseur nunca conseguiu apresentar argumentos fortes para explicar como os antigos egípcios e gregos teriam tomado conhecimento sobre os Maias? Vale ressalvar que os Maias e os Astecas não eram povos experientes na navegação marítima, logo, a ideia de que eles poderiam ter cruzado o Atlântico e chegado na Europa e na África, não se sustenta. 

Influenciado por Brasseur, o arqueólogo Edward Herbert Thompson (1857-1935) publicou o artigo científico Atlantis Not a Myth (1879). Baseado em seus estudos sobre os Maias e outros povos da América Central e do Norte, ele defendia que tais civilizações ameríndias teriam inspirado o mito atlante, por apresentarem culturas avançadas e prósperas que se encaixavam na descrição de Platão. O problema é que novamente seus argumentos careciam de evidências que comprovassem que tais povos fossem conhecidos na Europa e na África desde a Antiguidade. 

Um terceiro nome que se interessou por essa teoria foi o antiquarista e fotógrafo Augustus Le Plongeon (1825-1908), o qual viajou por alguns anos pelo México e o Peru, encantando-se com as ruínas dos Maias, Astecas e Incas. Assim, na década de 1880, influenciado pelas teorias de que as Américas seriam a Atlântida, Le Plongeon começou a publicar alguns trabalhos como Vestiges of the Mayas (1881), Sacred Mysteries Among the Mayas and the Quiches: 11,500 years ago (1886) e o artigo Queen Móo and the Egypt Sphinx (1896). 

Nesses estudos ele defendia (sem evidências científicas) de que povos ameríndios como os Maias, os Astecas e os Incas teriam inspirado o mito de Atlântida, além de que essas civilizações seriam muito mais antigas do que se supunha, porém, suas ideias mudaram com o artigo de 1896, onde ele passou a falar de um continente perdido situado no Oceano Pacífico chamado de "Terra de Mu". Para Le Plongeon, o continente de Mu teria sido a fonte de inspiração para Atlântida, inclusive seu povo migrou para colonizar as Américas num passado longínquo e até mesmo teria chegado aos outros continentes. 

A teoria de Mu inspirou escritores como James Churchward a escrever uma série de livros sobre o continente de Mu entre as décadas de 1920 e 1930 e mais tarde L. Sprague de Camp com seu livro Lost Continents (1954). Cuja obra abordava Atlântida, Mu, Lemúria e outras localidades míticas, mas tidas por ele como tendo sido reais. 

Os estudos de Brasseur, Thompson e Le Plongeon ajudaram a desenvolver o chamado Maianismo, um conjunto de teorias ocultistas, esotéricas e pseudocientíficas baseadas na cultura dos Maias, sua religião e mitologia, que acaba agregando teorias da conspiração, o mito de Atlântida, a teoria do difusionismo, profecias ocultas e até mesmo contatos com alienígenas. 

No entanto, o livro sobre Atlântida de mais sucesso no XIX foi Atlantis: The Antediluvian World (1882) do político e escritor Ignatius Donnelly (1831-1901). Publicado com pretensões de ser um trabalho científico, o livro de Donnelly na prática é um conjunto de especulações promovidas pelas teorias pseudocientíficas em voga no XIX. Mesclando várias ideias e mitologias, ele propôs que Atlântida não seriam as Américas, mas um continente real que afundou devido a um grande cataclismo ocorrido a mais de doze mil anos atrás, que teria inspirado o mito bíblico do Dilúvio

Capa do livro Atlantis: The Antediluvian World (1882). 

Donnelly também apontava que os arquipélagos dos Açores e da Madeira, ambos territórios portugueses, seriam remanescentes do continente de Atlântida, além disso, ele defendia que os atlantes possuíram um império marítimo, empreendendo viagens através do Atlântico, do Mediterrâneo e até pelo Índico, possuindo negócios que iam do interior do Rio Amazonas até a Índia. Sua teoria mirabolante ia mais além, apontando que civilizações como os egípcios, os gregos, os persas, os maias e os incas, eram descendentes dos atlantes, os quais lhe legaram uma série de conhecimentos. 

Donnelly também salientava que construções megalíticas encontradas pela Europa, como Stonehenge, seria legado das colônias de Atlântida. Várias ideias desse livro foram retomadas por ele e estendidas em seu livro Ragnarok: The Age of Fire and Gravel (1883), em que ele teorizou que o mito nórdico do Ragnarök estaria conectado com Atlântida e seria uma referência a um gigantesco cometa que passou perto da Terra, criando um grande cataclismo mundial. 

Atlântida e o Ocultismo

Ainda nas últimas décadas do século XIX, alguns autores começaram a abordar o mito atlante por um viés do ocultismo (conjunto de saberes associados a preceitos sobrenaturais, mágicos, misteriosos e secretos). A mística e escritora Helena Blavastky (1831-1891), fundadora da Teosofia em 1875, uma sociedade de mistérios que reúne várias doutrinas filosóficas, religiosas, esotéricas e ocultistas. Assim, Blavastky influenciada pela popularidade da obra de Ignatius Donnelly escreveu o livro The Secret Doctrine (1888), dividido em dois volumes. No segundo volume, em alguns de seus capítulos, a autora defendia que os Atlantes teriam sido a "quarta etapa" da evolução humana, tendo existidos entre 1 milhão e 900 mil anos atrás, não a 9 mil anos como Platão havia dito. 

Capa de The Secret Doctrine (1888), o primeiro livro a popularizar as teorias ocultistas sobre Atlântida. 

Influenciada pelas teorias do racismo científico vigentes na época, Blavastky desenvolveu uma teoria mirabolante sobre raças humanas e semi-humanas oriundas de continentes perdidos como a Lemúria e Atlântida, as quais teriam se miscigenados com raças de outros continentes, resultando em indivíduos degenerados e subdesenvolvidos. Na percepção da autora, os atlantes erraram em se misturar com raças inferiores, o que gerou a decadência de sua sociedade e cultura. Por outro lado, ela também enfatizava que os atlantes possuíram saberes científicos e místicos hoje desconhecidos para nós.

As ideias de Blavastky eram compartilhadas e apoiadas por outros teosofistas, ocultistas e esotéricos da época como William Scott-Elliot, autor dos livros The Story of the Atlantis (1896) e The Lost Lemuria (1904); e Rudolf Steiner que escreveu Atlantis and Lemuria (1911). As três obras foram produzidas por autores ocultistas que compartilhavam das ideias de Blavastky sobre a evolução huamana, existência de raças humanas, que os atlantes legaram saberes para vários povos do mundo, que eles formaram um império marítimo etc. 

As ideias desses autores influenciaram outras pessoas mesmo que sem ligação com a Teosofia, mas que se interessavam pelo ocultismo, o esotérico, os mistérios antigos, a moda dos estudos de civilizações perdidas e a teoria difusionista (a qual defende que uma cultura primordial difundiu saberes sociais, culturais e tecnológicos para vários povos do mundo). 

Assim, essas ideias de que os Atlantes teriam sido uma "raça superior" passaram a interessar alguns ocultistas alemães, os quais viram no Nazismo terreno fértil para difundir tais crenças mirabolantes. Exemplo disso é o livro The Myth of Twenty Century (1930) de Alfred Rosenberg, um oficial nazista. Nessa obra ele escreveu que a raça ariana, a qual os nazistas diziam serem os descendentes, ela, por sua vez, seria descendente dos Atlantes, os quais há milhares de anos, alguns deles migraram para a Germânia e a Escandinávia, originando os germânicos e os nórdicos. Apesar de ser uma teoria sem fundamento algum, o governo nazista chegou a empreender pesquisas para provar as origens da raça ariana e até dos atlantes. Vale ressalvar que havia sociedades ocultistas dentro do Partido Nazista.

Médiuns, videntes e espíritas também aderiram as narrativas ocultistas relacionadas com Atlântida. O suposto vidente Edgar Cayce (1877-1945), ficou famoso por dar entrevistas dizendo que Atlântida foi real e marcou uma fase da evolução humana em aspectos materiais e espirituais há milhares de anos. O trabalho de Cayce influenciou espíritas europeus e brasileiros a relatarem que Atlântida não teria sido um mito, mas uma realidade concreta mesmo. Fato esse, que ainda hoje, encontramos alguns livros espíritas e publicações na internet afirmando isso. 

Atlântida se torna um fenômeno cultural

Nos séculos XIX e XX o mito de Atlântida vai inspirar uma diversidade de escritores, poetas, roteiristas, desenhistas, produtos de jogos e filmes, cada um a sua maneira criaram suas próprias versões do mito atlante. Além de que alguns artistas apenas citaram Atlântida brevemente, enquanto outros procuraram construir toda uma franquia sobre esse mito. 

O famoso escritor de livros de aventura e ficção científica Júlio Verne (1828-1905) menciona Atlântida em seu livro 20.000 Léguas Submarinas (1870), em que o submarino do Nautilus passa ao largo das ruínas submersas da cidade. A escritora Elizabeth Birkaimer escreveu um romance intitulado Poseidon Paradise: the Romance of Atlantis (1892), mais tarde o escritor Cutcliffe Hyne redigiu The Lost Continent: The Story of Atlantis (1899). Neste caso, o livro de Hyne inspirou vários autores nas décadas seguintes para escreverem sobre o mito Atlante. 

Atlântida submersa em ilustração para o livro 20 mil léguas submarinas.

Nos Estados Unidos entre as décadas de 1900 e 1940 se popularizaram as pulp fiction, revistas que publicavam contos de fantasia, ficção científica, terror, romance, aventura e ação, estilo que se espalhou para outros países como Inglaterra. Alguns autores escreveram contos com referências a Atlântida como The Scarlet Empire (1906) de David Maclean ParryL'Atlantide (1919) de Pierre BenoitO Templo (1920) de H. P. Lovecraft, The Last Man of Atlantis (1926) de Alexander Beliaev, The Shadow Kingdom (1929) de Robert E. Howard, The Maracot Deep (1929) de Artur Conan Doyle (autor de Sherlock Holmes). 

Desses contos citados o que mais se destacou foi o trabalho de Robert E. Howard, que originou a franquia de Kull de Atlântida, um rei exilado que vive várias aventuras num mundo antigo, fantástico e violento. As histórias de Kull inspiraram Howard a criar outro personagem, chamado Conan, o Bárbaro, que ficou mundialmente famoso. As narrativas sobre Kull renderam treze contos, a maioria publicados postumamente. O personagem ganhou entre os anos 1970 e 1980 uma série de quadrinhos pela Marvel e um filme em 1997. 

Por essa época outros autores também citaram Atlântida em alguns de seus romances como The Story of the Amulet (1906) de Edith Nesbit, O Retorno de Tarzan (1913) de Edgar Burroughs Rice, em cujo romance Tarzan visita a cidade perdida de Opar, uma colônia atlante. They Found Atlantis (1936) de Dennis Wheatley. Alguns escritos renomados de fantasia como J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis também fizeram breves referências a Atlântida. 

Por sua vez, no final da década de 1930 e começo da 1941, o mito de Atlântida começou a despontar nas histórias em quadrinhos. Na Marvel Comics, o príncipe Namor (1939), é o herdeiro do trono de Atlântida, a qual é retratada como uma cidade no fundo do mar, com tecnologia mais avançada e habitada por uma outra espécie humana, a qual consegue respirar debaixo da água e possui habilidades físicas sobre-humanas. Tais características foram copiadas pela DC Comics, na criação do personagem do Aquaman (1941), o qual é o rei de Atlântida. 

Namor e Aquaman são governantes de Atlântida nos quadrinhos da Marvel e DC.

No livro The Dancer of Atlantis (1971) o escritor Poul Anderson, quis dar uma versão mais histórica a Atlântida, tomando como referência a teoria de que ela seria uma referência a Civilização Minoana que governou a partir da ilha de Creta. Já a escritora Marion Zimmer Bradley, autora das Brumas de Avalon, série literária que reimagina a Lenda do Rei Artur pelo ponto de vista das personagens femininas, escreveu o livro The Fall of Atlantis (1987), mais tarde em parceria com a escritora Diana L. Paxson, outras histórias mostrando atlantes que sobreviveram ao cataclismo da sua terra natal e migraram para a Bretanha, foram escritas. Por sua vez, em Atlantis (2005) de David Gibbons, o autor imaginou que a mítica ilha estaria situada no Mar Negro, tendo submergido devido a mudanças no nível dos mares. 

Mas para além da literatura e dos quadrinhos, Atlântida também influenciou produções audiovisuais diversas. O filme mais antigo sobre o tema é L'Atlante (1921) baseado no conto de David Maclean Parry. Depois disso tivemos outras produções esporádicas sobre Atlântida como Undersea Kingdom (1936), Siren of Atlantis (1949), Atlantis, The Lost Continent (1961), Hercules and the Conquest of Atlantis (1961), Warlords of Atlantis (1978). No geral a maior parte dos filmes sobre Atlântida são desconhecidos e produções que não fizeram sucesso. No entanto, a mais famosa se trata de um desenho animado da Walt Disney, intitulado Atlantis: O Reino Perdido (2001). 

Cartaz do filme.

O filme mostra uma expedição em 1914, a procura da mítica ilha. Nessa versão, Atlântida é retratada como uma cidade oculta no fundo do mar, possuindo tecnologia avançada que utiliza misteriosos cristais como fonte de energia. O filme ganhou um jogo em 2001 e uma continuação intitulada Atlantis: O Retorno de Milo (2003), embora que sua narrativa não foque mais em Atlântida. Recentemente tivemos o retorno de Atlântida em filmes blockbusters como Aquaman (2018), Godzilla II: O Rei dos Monstros (2019), Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (2022) e Aquaman 2: O Reino Perdido (2023)

Mas além de inspirar filmes e desenhos, Atlântida também foi tema de seriados em live-action ou animados. Temos episódios de séries como Doctor Who, Hercules: The Legendary Journeys, Jackie Chan Adventures, Transformers, Tartarugas Ninjas, Star Trek, StargateBob Esponja, Liga da Justiça etc. 

A mítica ilha também inspirou várias músicas e alguns jogos de videogame como: a franquia de jogos de computador Atlantis (1997-2006), o jogo point-and-click Indiana Jones and Fate of Atlantis (1992), em que o famoso arqueólogo tenta desvendar a localização de Atlântida, a qual é procurada pelos Nazistas. O jogo Tomb Raider (1996), o qual inaugurou a famosa franquia de ação-aventura com a arqueóloga e aventureira Lara Croft, nesse título ela procura pelas ruínas de Atlântida. O jogo ganhou um remake intitulado Tomb Raider: Anniversary (2007). Em Age of Mythology (2002) a história começa em Atlântida. O jogo God of War: Ghost of Sparta (2010), Kratos viaja até Atlântida para encontrar informações sobre seu irmão e sua mãe, que estão desaparecidos. Durante sua jornada pela ilha, ocorrerá os fatores que levarão a submersão dela. Em Assassin's Creed: Odyssey (2018) temos uma DLC intitulada O Destino de Atlântida, que nos permite visitar essa ilha. 


Capa do jogo. 

Possíveis localizações de Atlântida

Basicamente existem quatro teorias sobre a localização de Atlântida. A primeira teoria considera que se tratava de uma ilha situada no Oceano Atlântico, a algumas centenas de quilômetros da costa da Europa e da África. No mapa de Kircher datado de 1664, o autor considera essa teoria, tendo representado Atlântida como uma ilha situada entre a o Novo Mundo e o Velho Mundo. Por sua vez, no popular livro de Ignatius Donnelly, o autor também considerava que Atlântida estaria situada nessa parte do oceano, sendo as ilhas dos Açores e da Madeira, remanescentes de seu território. Além dele, outros autores como Blavastky, Scott-Elliot, Steiner, Churchward e L. Sprague de Camp, foram alguns também que defendiam Atlântida como sendo uma grande ilha ou pequeno continente. 

A segunda teoria considera que Atlântida jamais afundou, tampouco seria uma ilha ao oeste do Estreito de Gibraltar, mas na verdade se referiria a alguma localização das Américas. Essa foi uma teoria bastante popular ao longo do século XIX, defendida por Brasseur, Thompson, Le Plongeon, entre outros.

A terceira teoria sugere que Atlântida não teria sido real e nem faria referência a povos ameríndios, mas sim a povos europeus que habitariam o Mediterrâneo e o Mar Negro. Nesse sentido, arqueólogos e historiadores sugerem que a Civilização Minoica que existiu na ilha de Creta entre 3100-1100 a.C., possa ter inspirado o mito de Atlântida. Inclusive alguns desses estudiosos apontam a erupção ocorrida na ilha grega de Thera, cujo vulcão fez afundar parte do território da ilha, incluindo sua cidade. 

Além de Creta e Thera, outras ilhas mediterrânicas como Malta, Sardenha e Chipre foram cotadas como candidatas para o mito de Atlântida. Já alguns estudiosos apontam a costa da Turquia e o Mar Negro como fonte de inspiração desse mito, já que hoje sabe-se que algumas regiões de sua costa foram submergidas. 

Possíveis localizações de Atlântida no Mediterrâneo. 

A quarta teoria aponta que Atlântida poderia estar em outras localidades do mundo. Entre as hipóteses temos a costa atlântica do Marrocos e da Mauritânia, as ilhas Canárias, o arquipélago do Cabo Verde, a região de Doggerland que teria afundado por volta de 8 mil anos atrás, estando situada entre a Inglaterra e a Alemanha; o norte da Espanha, a Escandinávia, as ilhas Bermudas, o sul da Índia, a Indonésia e até mesmo a Antártida

Nota-se que por tais teorias, todas consideram que Atlântida ou teria existido ou teria sido baseada em algum lugar real. Porém, existem os estudiosos que consideram que Atlântida na verdade não seja baseado em nenhuma localidade real, e possívelmente até mesmo uma narrativa criada por Platão, não um antigo mito que ele ouviu em algum lugar e decidiu escrever a respeito. 

Considerações finais

Observa-se que o grande interesse por Atlântida é algo iniciado no século XIX, propriamente falando. Na Antiguidade Atlântida foi alvo de poucos comentários de alguns filósofos, em que alguns a consideraram uma alegoria política, enquanto outros acreditavam que fosse um lugar real. Na Idade Média o mito atlante foi ignorado. Na Idade Moderna, alguns estudiosos voltaram a se interessar pelo assunto e especular que essa ilha poderia ter existido. 

Finalmente chegando ao XIX, começamos a delinear várias teorias sobre Atlântida, ora cogitando-se que ela teria existido, sendo uma referência a povos americanos ou uma ilha perdida no Atlântico mesmo. Por outro lado, enquanto estudiosos e curiosos publicavam suas teorias mirabolantes a respeito de tentar comprovarem a origem do mito de Atlântida ou identificar sua localização, foi no XIX que surgiu também as teorias conectando os atlantes com o ocultismo e o esoterismo.

Enquanto esses livros pseudocientíficos faziam sucesso entre as décadas de 1880 e 1940, vários escritores aproveitaram para explorar a popularidade do tema, sempre adotando um posicionamento de que Atlântida era apenas um mito, retratando-a de diferentes formas fantásticas em suas obras. No entanto, a ideia de Atlântida como uma civilização superdesenvolvida é algo que começou a se delinear nas histórias em quadrinhos, influenciadas pela popularização da ficção científica da época. Dessa forma, em hqs da Marvel e da DC começamos a encontrar desenhos de Atlântida como uma cidade com aspecto futurista, possuindo veículos e até robôs (autômatos). Ideias essas aproveitadas em outras produções. 

Por sua vez, na segunda metade do século XX o interesse por Atlântida começou a decair. Os arqueólogos e historiadores estavam cada vez mais convencidos de que se tratava de um mito sem respaldo a realidade, embora escavações pelo Mediterrâneo levaram ao surgimento da teoria de que Atlântida poderia referir-se a alguma localidade daquele mar. Por sua vez, durante a década de 1970 com o movimento religioso e esotérico da Nova Era, ocultistas voltaram a valorizar Atlântida. 

Assim, percebe-se que o mito de Atlântida foi ganhando várias camadas e reinterpretações ao longo de duzentos anos, sendo encarado como lugar real, berço de uma raça perdida, civilização avançada, lugar de mistérios antigos e saberes perdidos; terra visitada por extraterrestres; ou simplesmente um mito que ganhou popularidade mundialmente, influenciando vários artistas. 

NOTA: O continente da Lemúria foi uma teoria proposta em 1864 pelo zoólogo Philip Sclater, para tentar compreender porque fósseis de lêmures, animais nativos apenas de Madagascar, foram achados na Índia. Assim, ele propôs que teria havido um continente no Índico, chamando-o de Lemúria "Terra dos Lêmures". Porém, sua ideia foi tomada por outros autores, os quais reformularam ela, tornando Lemúria a Atlântida do Oceano Índico. Todavia, hoje sabe-se que a Índia fazia parte da África, tendo se desprendido dessa há milhões de anos e colidido com a Ásia. 

NOTA 2: No jogo Bioshock (2007), a cidade submarina de Rapture, é inspirada em Atlântida, como sendo uma utopia no fundo do mar. 

NOTA 3: Atlântida também aparece na franquia literária Percy Jackson

NOTA 4: Na série literária A Saga de Arzen, os Grandes Mestres possuem pirâmides de cristal, as quais foram feitas em Atlântida. 

Fonte:

PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do grego, introdução e notas de Rodolfo Lopes. Coimbra: ECH, 2011. 

Referências bibliográficas:

CASTLEDEN, Rodney. Atlantis Destroyed. London, Routledge, 2001. 

FORSTYH, P. Y. Atlantis: The Making of Myth. Montreal, McGill-Queen's University Press, 1980.

JORDAN, P. The Atlantis Syndrome. Stroud, Sutton Publishing, 1994. 

RAMAGE, Edward S. (ed). Atlantis: Fact or Fiction?. Bloomington, Indiana University Press,1978.