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Leandro Vilar

domingo, 12 de novembro de 2023

200 anos da Noite da Agonia: a dissolução da Primeira Assembleia Constituinte Brasileira

No ano de 1823 a primeira constituição brasileira começou a ser produzida, tendo uma série de reveses até que o projeto foi recusado pelo imperador D. Pedro I, por conta disso, a constituição foi refeita e somente aprovada em 1824. No texto de hoje conheceremos alguns aspectos dessa primeira tentativa de conceder ao Império do Brasil uma constituição nacional. 

Palácio Tiradentes, no centro histórico do Rio de Janeiro. Em 1823 o local abrigou as sessões da Assembleia Constituinte. 

Antecedentes

O processo revolucionário tinha começado ainda em 1820, aproveitando a Revolução do Porto que obrigou o retorno de D. João VI para Portugal, assim, o monarca deixou seu filho Pedro de Alcântara como regente. Dessa forma, o príncipe com o apoio das elites do Rio de Janeiro e São Paulo começou a se interessar pelo projeto de independência que se desenvolveu nos dois anos seguintes, condição essa que a situação se acirrou em 1822, quando D. Pedro recusou-se novamente a ir à Portugal, iniciando assim a guerra de revolução, já que os portugueses tentaram aprisioná-lo ainda em maio daquele ano, por sua vez, a guerra estourou propriamente na Bahia, espalhando-se por algumas outras províncias. 

A guerra de independência brasileira se estenderia até 1824, apesar disso, após o 7 de setembro de 1822 (independência do Brasil) e o 1 de dezembro de 1822 (coroação de D. Pedro I), o governo revolucionário já estava formalizado a meses, mas havia a necessidade de elaborar uma constituição, uma das principais reivindicações dos apoiadores da independência e do império, assim, o recém empossado imperador encomendou para 1823 a elaboração de uma constituinte. 

Em 3 de maio de 1823 a constituinte foi iniciada no Rio de Janeiro, no prédio da Cadeia Velha (atual Palácio Tiradentes), ao lado do Paço Imperial (onde morava o imperador), sendo presidida pelo capelão-mor José Caetano da Silva Coutinho (1768-1833), um dos homens de confiança do imperador, já que ele providenciou a coroação, casamento e mais tarde o batismo dos filhos do monarca. Além de Coutinho, a assembleia contava com representantes do Conselho dos Procuradores ou Conselho do Estado, criado no ano anterior, contando com membros que representavam as 14 províncias brasileiras. 

Ao todos foram 90 membros entre fazendeiros, empresários, políticos, advogados, médicos, juristas, profissionais liberais etc. Esses membros eram divididos entre os partidários de uma constituição mais conservadora e outros que representavam a proposta de uma constituição mais liberal. 

É preciso destacar que o próprio imperador em seu discurso inaugural do início das atividades da constituinte, criticou as constituições da França, Espanha e Portugal, apontando se tratar de cartas magnas que acabaram sendo fracassos, tendo sido meramente "teóricas", não possuindo um efeito prático. Curiosamente Pedro I não citou a constituição dos Estados Unidos, a qual era eficaz, mas sobretudo, era uma constituição republicana, e o monarca não estava interessado nisso, fato esse que ele apontou que a constituição republicana da França, não havia dado certo, condição essa que o país com Napoleão voltou a ser uma monarquia. 

Em seu discurso, o imperador salientou que a constituição que estava sendo feita deveria evitar a desordem, a implementação de uma anarquia, os abusos de poder por parte dele, dos políticos, das forças armadas e do povo. As leis deveriam serem elaboradas de forma consciente, objetiva e prática para que fossem devidamente aplicáveis, não conjecturas de difícil aplicação, ponto que ele alegou haver de errado nas constituições francesa, espanhola e portuguesa. Assim, os membros da constituinte tendo esse apelo feito no dia 3 de maio, deram início as atividades. 

Retrato de D. Pedro I no ano de 1823. 

Três facções constituintes

À medida que os meses avançavam e os trabalhos da constituinte se desenvolviam, três facções surgiram entre os membros da Assembleia Constituinte, embora todos os lados defendessem a monarquia, cada um o fazia com diferenças consideráveis.

O grupo dos "bonifácios" tinha esse nome em referência a José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838), conhecido como o Patriarca da Independência, tendo papel importante no processo de 1821 e 1822, apesar de estar brigado com o imperador em 1823. Seus seguidores defendiam um governo centralizado, moderado, mas tinham em pauta a proposta de abolir a escravidão, uma reforma agrária, além de outras medidas econômicas políticas, que visivelmente não agradavam o agronegócio, que dependia do modelo escravocrata para funcionar. (LUSTOSA, 2007). 

A segunda facção era chamada de "portugueses", pois era formada por portugueses que apoiaram a independência, mas também descendentes diretos e simpatizantes. Esses "portugueses" eram a favor de uma monarquia também centralizada, mas que mantivesse a escravidão e concedesse maior autoridade ao imperador, por isso ser dito que eles era a favor do absolutismo monárquico. 

E a terceira facção era a dos "liberais" que representavam a proposta de uma monarquia constituinte federalista, em que o imperador não deteria autoridade propriamente, mas para isso seria eleito um primeiro-ministro ou chanceler. Os liberais eram inspiradores no modelo britânico, propondo maior autoridade e autonomia as províncias e o parlamento, embora eles também defendessem a manutenção do sistema escravocrata. (LIMA, 1989). 

O primeiro esboço da constituição foi apresentado pelo deputado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (1773-1845), irmão de José Bonifácio, o que o tornava membro da facção dos "bonifácios". Antônio Carlos e seus partidários se basearam no modelo das constituições da França (1791) e da Noruega (1814), da primeira eles tiraram ideais iluministas e liberais, da segunda, ideias monarquistas que permitiam o estabelecimento de um parlamento e da democracia, mas mantinha a autoridade régia. (HOLANDA, 1976). 

Embora o projeto dos "bonifácios" fosse bom, eles sofreram rejeições por parte dos "portugueses" e dos "liberais". Pontos sobre a divisão das terras, a possibilidade de alterar o sistema econômico, tributação, reorganização geopolítica das províncias etc., desagradaram os "portugueses" e os "liberais" também, ainda mais os "liberais" que discordavam da condição que o imperador teria mais autoridade do que deveria tê-lo, pois a Constituição Norueguesa daquele tempo permitia isso. 

A adoção dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário como proposto por Montesquieu em O Espírito das Leis (1748) e já adotada pelos países anteriormente citados, foi aceita no projeto brasileiro, mas com a diferença de que os "bonifácios" e "portugueses" concediam maior autoridade de intervenção ao monarca, que representava o Poder Executivo, podendo inclusive ter direito de veto na Assembleia e no Senado. Evidentemente que isso não agradou os "liberais". 

Porém, a situação era mais complexa, pois não eram apenas os "liberais" que representavam a oposição ao projeto dos "bonifácios", os "portugueses" também eram contrários a ele, não apenas pelas propostas de abolir a escravidão ou encerrar o tráfico negreiro (o encerramento do tráfico não significaria o fim da escravidão, apenas da importação de escravos), mas os "portugueses" também estavam ressentidos com o ministro José Bonifácio por conta da perseguição que ele cometeu contra os portugueses no ano anterior, retirando direitos e confiscando bens e propriedades, sob alegação de combater os inimigos do Estado. Assim, juntando esses aspectos com outras condições que foram se desenvolvendo nas sessões da assembleia, em junho de 1823, os "portugueses" e "liberais" propuseram uma aliança para derrubar os "bonifácios". (LUSTOSA, 1989). 

A aliança formada por duas das facções da constituinte levou a uma crise não apenas interna na assembleia, mas que respaldou publicamente. Os irmãos Andrada: José Bonifácio, Antônio Carlos e Martim Francisco, foram acusados de antilusitanismo, pois supostamente os jornais vinculados a eles e seus aliados divulgaram críticas e sátiras ao imperador, políticos portugueses e os próprios portugueses que viviam no Brasil. Algumas brigas ocorreram na rua, além de atos de vandalismo contra os jornais. (LUSTOSA, 1989). 

D. Pedro I nessa época estava sendo influenciado a desconfiar dos Andrada, condição essa que ele cogitava usar o exército para intervir em caso de uma revolta estourasse na capital. 

A Noite da Agonia

No mês de novembro a tensão entre o monarca e os "bonifácios" não era mais disfarçada como antes, D. Pedro I já tinha sido influenciado a tal ponto de desconfiar de seus antigos aliados, ainda mais pelo fato de que os próprios "bonifácios" mudaram de projeto durante a constituinte, se aproximando de propostas mais liberalistas como defendidas pelos "liberais", e uma delas era reduzir drasticamente a autoridade do soberano, apesar disso, não significa que os "liberais" deixaram de lado sua rixa. 

Devido a desentendimentos que atrapalharam a ocorrência da sessão do dia 12 de novembro, a assembleia solicitou estender o horário de funcionamento para a madrugada, para poder votar em pautas importantes. No entanto, pela noite o imperador autorizou a invasão da assembleia, os "bonifácios" foram presos e enquanto os demais deputados foram enviados para suas casas. A sessão foi encerrada. Por conta dessa ação inesperada aquela noite foi dita ser agonizante para os constituintes. (LIMA, 1989). 

Pintura representando uma sessão da Assembleia Constituinte. Ao centro, na mesa temos José Bonifácio. 

Consequências

No dia 13 de novembro o ministro Francisco Vilela Barbosa (1769-1846), obedecendo ordens de D. Pedro I, publicou decreto dissolvendo a Assembleia Constituinte e informando que suas atividades seriam remetidas a um novo Conselho de Estado, formado pelos atuais seis ministros e mais seis membros a serem escolhidos por ele, dentre homens justos, honrados, cultos e comprometidos com a causa da nação. O novo conselho teria o prazo de menos de um mês para concluir a elaboração do esboço da Constituição. 

Apesar dessa atitude autoritária tendo sido expressa logo no dia seguinte a dissolução da constituinte, as medidas de Pedro I não pararam por aí. O monarca também mandou fazer patrulhamento em praças, restaurantes e bares para evitar debates políticos e críticas as suas ações, com direito a voz de prisão. Os "bonifácios" mais radicais foram deportados, incluindo os três irmãos Andrada, enviados para exílio. Todavia, as ordens também incluíam que se qualquer outro ex-membro da constituinte se posicionasse publicamente contrário a decisão do soberano, seria preso ou exilado. O autoritarismo do monarca dividiu a opinião pública, entre os que apoiavam suas medidas e outros que o criticavam por agir como um tirano. (HOLANDA, 1976). 

Para justificar suas ações drásticas, D. Pedro I emitiu um manifesto no dia 16 de novembro. Neste manifesto o imperador alegou que suas medidas severas se deveram para evitar o pior para a nação, pois parte dos membros da Constituinte haviam se distanciado dos objetivos daquela assembleia, e passaram a lutar por seus próprios interesses (de fato, isso era verdade), os quais fomentavam uma traição ao soberano e ao povo, dessa forma, para evitar mazelas maiores, D. Pedro I decidiu agir imediatamente e cortar o mal pela raiz. 

No dia 11 de dezembro, menos de um mês desde a dissolução da Assembleia Constituinte, uma nova versão da constituição foi apresentada ao imperador pelo Conselho de Estado. Ele gostou do que viu, mas ordenou reajustes que foram feitos nos meses seguintes, já que essa constituição somente foi aprovada em março de 1824. 

A Constituição da Mandioca

O projeto da Constituição de 1823, que acabou nunca sendo aprovado, ganhou o apelido desdenhoso de "constituição da mandioca" por conta de que os alqueires de cultivo de mandioca foram usados como modelo para definir a riqueza dos cidadãos aptos a poderem votar e se candidatar. O problema era que o valor apresentado era demasiadamente elevado, o que acarretava que somente os ricos teriam direito ao voto e participar da vida política. 

No caso, o cultivo de mandioca não necessariamente estava atrelado ao consumo da população geral, pois as pessoas comiam trigo, milho e soja, a mandioca era cultivada principalmente para alimentar os escravos e os mais pobres, por conta disso ela ser chamada também de "pão de pobre". Dessa forma, quanto mais escravos um fazendeiro ou mercador tivesse, mas mandioca teria que plantar para alimentar seus empregados. Logo, alguém que possuísse vários alqueires de mandioca tecnicamente era uma pessoa rica por conta desse contexto do sistema escravocrata. No entanto, devido ao desentendimento dessa taxa anual de alqueires, os opositores da ideia começaram a usar o termo mandioca de forma debochada. 

Referências bibliográficas

HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. O Brasil monárquico: o processo de emancipação. 4a ed. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1976. 

LIMA, Manuel de Oliveira. O império brasileiro. São Paulo, Editora da USP, 1989. 

LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. 

Links relacionados: 

200 anos da Independência do Brasil

200 anos da coroação de D. Pedro I

LINKS: 

Manifesto da dissolução da Assembleia Constituinte - 16 de novembro de 1823

Atas do Conselho de Estado (1823-1834)

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