Pesquisar neste blog

Comunicado

Comunico a todos que tiverem interesse de compartilhar meus artigos, textos, ensaios, monografias, etc., por favor, coloquem as devidas referências e a fonte de origem do material usado. Caso contrário, você estará cometendo plágio ou uso não autorizado de produção científica, o que consiste em crime de acordo com a Lei 9.610/98.

Desde já deixo esse alerta, pois embora o meu blog seja de acesso livre e gratuito, o material aqui postado pode ser compartilhado, copiado, impresso, etc., mas desde que seja devidamente dentro da lei.

Atenciosamente
Leandro Vilar

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

100 anos da proclamação da República da Turquia

No ano de 1922 o Império Otomano chegou ao fim, após anos de crise, acentuada por conta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a renúncia do último sultão, um governo interino foi eleito até que a república foi efetivamente proclamada em 1923. Pondo fim a séculos de monarquia e suas regalias. O presente texto apresenta alguns aspectos centrais desse processo de transição política na história turca, que foi extenso, demorado e marcado por guerras e crises. 

Introdução

O Império Otomano (1299-1922) vigorou por séculos, sendo o Estado mais poderoso e rico entre os séculos XVI e XVII, considerado sua era de ouro. Os otomanos eram uma dinastia de origem turca que entraram em destaque na história em meados do século XV, quando o sultão Mehmed II conquistou Constantinopla em 1453, após quase três meses de cerco. As imponentes muralhas da cidade bizantina se renderam diante dos poderosos canhões turcos. Com tal façanha, Constantinopla foi renomeada para Istambul, tornando-se a nova capital dos otomanos pelos séculos seguintes, passando a sediar sua imponente e requintada corte, iniciando a ascensão desse império.

No entanto, no final do século XIX, os dias de glória eram lembranças distantes. Os tempos modernos contestavam os padrões de vida e preceitos socioculturais da dinastia otomana, ainda conservadora em vários aspectos diante do "século do progresso". Soma-se a isso as constantes derrotas militares e diplomáticas para as potências europeias como Inglaterra, França, Rússia e Áustria. Se em seu auge o império possuía domínios sobre o Oriente Médio, norte da África e leste Europeu, no final do XIX, seus domínios se restringiam a parte do Oriente Médio. Isso foi um duro golpe para as finanças do Estado, as quais dependiam da tributação dos estados vassalos, assim como, de zonas rurais, portos e cidades mercantis. (ZÜRCHER, 1992, p. 62-66). 

Outro aspecto a ser comentado diz respeito as críticas a monarquia e seu luxo excessivo e autoridade ainda aos moldes absolutistas. Em meados do XIX surgiu um movimento político chamado de Jovens Otomanos (Yeni Osmanlilar), formado por intelectuais provenientes das universidades, fortemente influenciados por ideários iluministas como a democracia, o liberalismo, o republicano e a laicidade. Essas ideias foram defendidas mesmo após o declínio do movimento ainda na década de 1870, que coincidiu com o final do Tanzimat (1830-1870), nome dado ao período reformista do império, que buscou modernizar a nação em vários aspectos como reformulação do código penal, do sistema tributário, abolição de impostos sobre não-muçulmanos, mudanças no alistamento militar, criação de universidades, construção de estradas e ferrovias, mudanças fiscais etc. (HOWARD, 2016, p. 70-73). 

O governo de Abdul Hamide II (1876-1909)

O sultão Abdul Hamide II (1842-1918) tentou assegurar o controle do país em meio a crise daquele período, aprovando uma constituição monarquista, além de adotar outras propostas sugeridas, como a criação de um parlamento. Isso contribuiu para sua boa aceitação, pelo menos, nos anos iniciais, pois decisões erradas acerca da política externa, revoltas nos estados vassalos, surtos de fome, adesão a guerras que foram fiascos, isso tudo foram gradativamente minando a ordem do império, contribuindo para a constante perda de territórios e o aumento de movimentos políticos cobrando a abolição da monarquia e aprovação de uma república e de uma constituição melhor. 

Retrato do sultão Abdul Hamide II

Diante dos problemas enfrentados no final da década de 1870 e começo de 1880, Abdul Hamide II suspendeu a constituição e o parlamento, e governou com despotismo pelos quase trinta anos seguintes. Apesar de seu autoritarismo, o processo de modernização tecnológica do país continuou com a construção de estradas, ferroviais, portos, adoção de energia elétrica e telefonia, por outro lado, massacres contra as comunidades de minorias, a recusa de aceitar a emancipação de estados vassalos, altos gastos com obras públicas, escândalos de corrupção, aumento da inflação, contribuiu para enfraquecer a popularidade do sultão, levando a eclodir uma revolta em 1908. (ZÜRCHER, 1992, p. 80-85). 

A Revolução dos Jovens Turcos (1908-1913)

O movimento chamado Jovens Turcos era influenciado pelos Jovens Otomanos da década de 1870, embora contasse com a adesão de outras alas insatisfeitas com o governo do sultão Abdul Hamide II. Muitos dos idealizadores do movimento estudaram em universidades europeias, especialmente as francesas, sendo influenciados pelo legado político daquele país. Assim, o movimento pretendia promover uma revolução política na Turquia, restaurando o parlamento que foi banido desde 1878, assim como, pedindo a abdicação do sultão e convocação para uma assembleia constituinte. (HOWARD, 2016, p. 77).

A Revolução dos Jovens Turcos ambicionava derrubar a monarquia, implementar uma república e uma nova constituição, para depois começar a resolver os outros vários problemas que afetavam o país. O sultão aceitou restaurar o parlamento, retomar a constituição de 1876 e libertar parte dos presos políticos e iniciar uma negociação para deliberar sua possível abdicação. Porém, meses depois de tais medidas, ele realizou em 13 de abril de 1909 um contragolpe para derrubar os revolucionários, apelando para os monarquistas e conservadores, mas parte do exército havia aderido a causa revolucionária, resultando em massacres de inocentes durante os conflitos entre ambos os lados, como o Massacre de Adana. Após essa tentativa fracassada de contragolpe, Abdul Hamide II aceitou abdicar o trono, passando-o para seu irmão Mehmed V. (ZÜRCHER, 1992, p. 95-96). 

Litogravura mostrando os revolucionários libertando Lady Liberdade de suas correntes. A mulher é uma alegoria para a Turquia. Propaganda política de 1908.
 
No entanto, com a retomada do parlamento, esse mudou o nome para Assembleia Nacional, sendo formada por sua maioria de representantes monarquistas nacionalistas representados pelo Comitê de União e Progresso (Ittihad ve Terakki Cemiyeti), conhecido pela sigla CUP. O qual defendia a manutenção da monarquia parlamentarista, tornando Mehmed V em um governante simbólico. No entanto, a política turca estava dividida em outros setores também. Tínhamos uma parcela de monarquistas conservadores os quais defendiam o retorno da autoridade do sultão, liberais que eram a favor da república, e uma parcela bem menor de socialistas e anarquistas. Porém, como os monarquistas no governo eram maioria, assim, a monarquia parlamentarista foi mantida nesta revolução. 

Os nacionalistas como ficaram mais conhecidos, detinham grande número de assentos no parlamento e na câmara federal, além do apoio das forças armadas e de políticos das províncias. Sublinha-se que o governo nacionalista ainda defendia a ideia de manter os territórios vassalos sob seu controle, o que incluía terras na Bósnia, Sérvia, Bulgária, Armênia, Síria, Palestina, Arábia Saudita e parte do Iraque. A ideia era defender um pan-turquismo, alegando que embora esses povos falassem outras línguas e tivessem suas culturas, mas eles faziam parte do Império Otomano, que buscava se modernizar para o século XX. No entanto, a Rússia tinha interesse na Armênia e incentivou revoltas ali para esses se emanciparem da Turquia, em retaliação os nacionalistas assinaram um pacto secreto com a Alemanha, para solicitar ajuda contra o Império Russo. 

Além dessa questão política externa, o governo turco passou por problemas internos também. Em 1911 ano de eleições para o parlamento, a câmara, províncias e prefeituras houve desentendimentos entre os partidos políticos, especialmente entre os membros da CUP, em que o coronel Sadik Bey, desgostoso com os rumos que o partido havia tomado, deixou a CUP, levando vários partidários consigo, vindo a fundar naquele ano o Partido do Progresso, de vertente nacionalista-liberal. Naquele mesmo ano ocorreram as eleições e vários candidatos do novo partido foram eleitos, chocando a CUP, a qual controlava o país desde 1908. Todavia, a CUP realizou um pequeno golpe de Estado, dissolvendo o parlamento, alegando fraude eleitoral e convocou eleições para 1912, as quais foram efetivamente fraudadas, lhe dando a vitória esmagadora. (HOWARD, 2016, p. 79). 

No entanto, 1912 também foi um ano ruim para a Turquia, o país sofreu um contra-ataque de países europeus do Bálcãs. A Turquia estava em guerra contra a Itália na chamada Guerra ítalo-turca (1911-1912) pela disputa do controle da colônia da Líbia, enquanto parte do exército e da marinha otomanos estavam ocupados na África, os sérvios formaram a Liga Balcânica composta pela Sérvia, Bulgária, Grécia e Montenegro, com a missão de expulsar os turcos dos Bálcãs, isso iniciou a Guerra Balcânica (1912-1913). É válido lembrar que desde o século XV os turcos detinham territórios naquela região europeia no auge de seu império, os países balcânicos faziam parte de seus domínios, agora era chegada a hora dos oprimidos revidarem. 

“Depois que os turcos se envolveram na Guerra Ítalo-Turca (1911-1912), esses quatro países formaram a Liga Balcânica e se mobilizaram para a guerra. Em outubro de 1912, quando os turcos fizeram as pazes com os italianos, abrindo mão da Líbia, a Liga declarou guerra ao Império Otomano, iniciando, assim, a primeira Guerra dos Bálcãs. Entre as grandes potências, a Rússia apoiou a Liga e a Áustria-Hungria, os otomanos, e as tensões entre os dois impérios ficaram sérias a ponto de cada um mobilizar parcialmente seus exércitos. Quando a guerra chegou ao fim, em maio de 1913, as grandes potências permitiram que a Sérvia ficasse com Kosovo e a Grécia, com Épiro, mas determinaram que o restante do território albanês fosse cedido para um novo país independente. A Grécia também recebeu Creta e dividiu com a Sérvia a Macedônia, limitando à Trácia os ganhos da Bulgária. Incitados por uma violenta indignação pública por conta do magro espólio, apenas um mês depois os búlgaros declararam guerra à Sérvia e à Grécia, na esperança de assegurar parte da Macedônia. Na breve segunda Guerra dos Bálcãs, os turcos retomaram as hostilidades contra os búlgaros, e Montenegro também interveio, mas a entrada da Romênia (que se mantivera neutra na primeira Guerra dos Bálcãs) se mostrou decisiva, o que levou a Bulgária a abandonar parte de suas conquistas anteriores na Trácia, de modo a se defender contra uma invasão romena desde o norte. No acordo que deu fim ao conflito em agosto de 1913, a Bulgária recuperou a Trácia ocidental e uma rota de saída para o mar Egeu, mas devolveu a Trácia oriental ao Império Otomano e cedeu Dobruja à Romênia. As Guerras dos Bálcãs deixaram a região mais volátil do que nunca”. (SANDHAUS, 2013, p. 34-35). 

Interlúdio: A Primeira Guerra (1914-1918)

A Primeira Guerra Mundial teve início em 1914 após o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Fernando (1863-1914) durante o trajeto de carro até a prefeitura de Saravejo, quando um terrorista de nome Gavrilo Princip (1894-1918) o assassinou no caminho. Fernando era herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, sua morte foi considerada um crime contra o Estado. Nesta época os sérvios reivindicavam sua independência da Áustria-Hungria, sendo assim, Princip num ato inconsequente cometeu esse assassinato que mudou a História. 

Naquele ano a Áustria-Hungria era aliada da Alemanha e da Itália, tendo formalizado há vários anos o pacto da tríplice aliança que basicamente ditava que em caso de uma guerra contra qualquer dos aliados, os outros deveriam ajudá-los. Sendo assim, após a morte do arquiduque Fernando em 28 de junho de 1914, o governo austro-húngaro iniciou uma série de investigações nas províncias da Sérvia e da Bósnia, procurando os responsáveis por planejarem a morte do nobre, havia suspeitas de que os russos estivessem envolvidos, pois eles apoiavam a independência dos sérvios. No dia 31 de julho os russos mobilizaram seus exércitos para as fronteiras antevendo um possível conflito, todavia, os austro-húngaros e alemães consideraram aquilo como um atestado de culpa, então o kaiser Guilherme II da Alemanha declarou guerra ao czar Nicolau II da Rússia

A notícia da declaração de guerra se espalhou rapidamente, fato esse que a França que era aliada da Rússia, e disse que se os alemães os atacassem, eles seriam invadidos. O kaiser Guilherme II aceitou a provocação e mandou no dia 2 de agosto invadir Luxemburgo e no dia seguinte as tropas adentraram a Bélgica. A guerra havia começado. A Itália que era aliada da Alemanha e da Áustria-Hungria manteve-se de início de fora do conflito. O assassinato do arquiduque Fernando em Saravejo foi apenas um pretexto para a guerra começar, pois as tensões já eram grandes a vários anos; as potências europeias só queriam uma desculpa para começar uma guerra para se atacarem e disputarem o controle de colônias, territórios, estradas, ferroviais, portos, recursos naturais etc. Eram tempos de imperialismo ainda. 

Como a Turquia havia assinado um acordo militar secreto com a Alemanha poucos anos antes, com a eclosão da guerra, os alemães fizeram valer o acordo, exigindo o suporte dos turcos. O governo da CUP encarou isso como uma grande oportunidade, pois ambicionavam o estado de guerra para recuperar territórios perdidos nos Bálcãs que resultou na Guerra Balcânica (1912-1913), a disputa da Líbia com os italianos, além de problemas na Armênia, Chipre, Síria, Palestina etc. Significava que para os nacionalistas da CUP havia chance de manter tais territórios e talvez até conquistar outros. O sultão Mehmed V chegou a fazer uma declaração pública para toda a nação anunciando a entrada do país na Grande Guerra. (SHAW; SHAW, 1977, p. 310-311).

Mapa do Império Otomano em 1914. Os gregos, italianos, franceses e ingleses começaram a atacar tais territórios durante a guerra. 

As tropas turcas basicamente ficaram restritas aos territórios vizinhos, lutando sobretudo nos Bálcãs, Mar Negro, Síria, Palestina, Arábia, Iraque e Egito. Por sua vez, a Armênia sofreu um duro golpe nesse período da guerra, pois suas tentativas de se rebelar ao domínio otomano eram rechaçadas com profunda truculência que durou anos, resultando no chamado Genocídio Armênio (1915-1923), que teria vitimando algo entre 800 mil a 1,8 milhão de armênios. Além desse grande número de mortos, soma-se mais de 400 mil soldados otomanos vitimados durante a guerra e outros milhares de civis que morreram no conflito. (SHAW; SHAW, 1977, p. 317-327).

A participação na Grande Guerra foi desastrosa para a Turquia em vários aspectos. Milhares de mortos, destruição em várias cidades, altos gastos, perca de territórios, aumento do endividamento do país, aumento do custo de vida, cerco das nações europeias ao império. Frustração generalizada com a CUP e os apoiadores da campanha militar, desilusão quanto aos ideários nacionalistas e pan-turcos. Exército fragmentado em vários territórios que foram sendo perdidos. O sonho de reerguer a glória do Império Otomano havia ruído mais uma vez. E para concluir 1918, o último ano da guerra, o sultão Mehmed V faleceu de velhice, sendo sucedido por seu irmão Mehmed VI, que se tornou o último sultão do Império Otomano. 

Em 30 de outubro de 1918 foi assinado o Armistício de Mudros que punha fim aos conflitos entre os trucos e as nações europeias que os atacavam. O armistício foi aprovado após semanas de negociações, no entanto, a Turquia não saiu vencendo com isso, pelo menos não da forma que esperava. Os território invadidos foram mantidos sobre o controle dos exércitos europeus, importantes cidades como Damasco, Israel, Adana, Tarso, as ilhas de Chipre e Rodes, e a própria capital do império, Istambul, foram ocupadas por tropas francesas e britânicas ainda em novembro daquele ano. A CUP a contragosto concordou com o armistício, embora parte de seus membros consideravam isso sinal de fraqueza. O império estava desmoralizado, invadido e a mercê de inimigos. (SHAW; SHAW, 1977, p. 329).

A guerra de independência (1919-1923)

Com o fiasco da participação da Turquia na Grande Guerra, a situação do país que estava ruim, ficou pior. Várias regiões estavam ocupadas por tropas gregas, italianas, francesas e britânicas, enquanto o genocídio armênio ainda continuava. Os liberais viram a oportunidade de crescer nesse período, culpando os nacionalistas da CUP pelas mazelas do país por terem aceitado entrar numa guerra malfadada. Entre os liberais-nacionalistas que se destacaram naquele momento estava o marechal Mustafa Kemal (1881-1938), que ganhou fama e respeito das forças armadas por suas campanhas durante a guerra. Kemal era o típico homem que defendia preceitos nacionalistas, fato esse que ele foi um dos idealizadores do Movimento Nacional Turco surgido em 1919 para defender a soberania do país frente a intervenção estrangeira. Por ser um liberal também, ele era a favor de pôr fim a monarquia parlamentarista, instaurar o republicanismo, assim como, instituir o laicidade do Estado. O marechal Mustafa Kemal ficaria mais tarde conhecido como o "Pai da República Turca". (SHAW; SHAW, 1977, p. 340-342).

Mustafa Kemal, o líder que comandou a guerra de independência e o estabelecimento da república.

O marechal Kemal deu início aos planos de expulsar os estrangeiros a partir de maio de 1919, iniciando a guerra de independência. Para isso, ele passou a negociar com os russos, cedendo territórios da Armênia em troca de armas e veículos de guerra. Sendo assim, o armistício de Mudros durou menos de um ano, pois sete meses depois de sua aprovação a guerra havia reiniciado. Kemal tratou de focar em inimigos situados no território da Turquia, que incluía os franceses, gregos e italianos, já que os britânicos ocupavam territórios no Oriente Médio. Ainda em setembro daquele ano foi convocada eleições parlamentares e os vitoriosos a maioria apoiavam a política liberal-nacionalista de Mustafa Kemal, que apresentava o objetivo de recuperar o controle do país. (KAYALI, 2008, p, 125-128).

Com a realização das eleições entre 1919 e 1920, Kemal foi eleito vizir (primeiro-ministro), lembrando que o sultão Mehmed VI vivia em Istambul, mas sob tutela do governo britânico. Porém, ele era apenas um fantoche nas mãos dos inimigos. Estando de posse do novo cargo, Kemal tratou de mudar a sede do governo, transferindo-o de Istambul para Ankara, onde foi estabelecido o novo parlamento. Além disso, desde então a cidade se tornou oficialmente a capital da Turquia até hoje. 

Em 10 de agosto de 1920 foi proposto o Tratado de Sevres, organizado entre os países europeus que ocupavam a Turquia. A ideia era pôr fim a guerra de independência, forçando o governo turco a reconhecer sua derrota, assim como, autorizando a emancipação da Armênia e a criação do estado autônomo do Curdistão. O tratado também reforçava a posse de Esmirna e de algumas ilhas para ficarem sob domínio grego. O sul da região da Anatólia e o oeste da Cilícia passariam para o controle italiano; os franceses controlariam o leste da Cilícia e o território sírio. Já os britânico abocanhavam parte do hoje é o Iraque, Israel e a Palestina. (KAYALI, 2008, p, 130).

Mapa do Tratado de Sevres apresentando os territórios ocupados pelos exércitos europeus, a Armênia e o Curdistão ao sul dessa. 

Parte da população do império aceitava se submeter ao governo estrangeiro, o que incluía sírios, iraquianos, palestinos e árabes. Os armênios e curdos também defendiam o tratado, pois assim assegurariam sua autonomia e esperavam que isso poria fim aos massacres perpetrados pelos turcos ali. Porém, havia turcos que não gostavam de se sujeitar ao domínio grego e italiano devido a guerra contra eles que durava oito anos. Por sua vez, os nacionalistas mais fervorosos eram totalmente contrários as propostas desse tratado. Evidentemente que a CUP, o Partido do Progresso e o Partido Nacional Turco (ao qual pertencia Kemal), eram contrários a essa proposta, por conta disso, a guerra foi mantida.

A campanha contra os gregos e italianos estiveram entre as mais duras, pois o exército grego ao longo de 1921 avançou rumo a Ankara, com o objetivo de capturar a capital e forçar o parlamento a aceitar o Tratado de Sevres, se isso tivesse ocorrido, teria sido uma grande derrota para as forças de resistência, no entanto, as tropas turcas conseguiram resistir e frearam o avançar grego vencendo a Batalha de Inonu (11 de janeiro de 1921) e na Batalha de Sacaria (23 de agosto a 13 de setembro de 1921), a qual foi travada nos arredores da capital. A vitória em Sacaria foi fundamental para evitar a captura de Ankara pelo exército grego, forçando a recuar até a região de Esmirna. (KAYALI, 2008, p, 137-138).

Litogravura grega mostrando uma cena da Batalha de Sacaria. O documento enfatizava a superioridade do exército grego, alegando que a vitória estaria próxima. 

Dentre as nações europeias que ocupavam a Turquia, os gregos apresentaram-se como a maior ameaça, pois eles tentaram conquistar a capital Ankara, mas não significa que não tenha havido conflitos contra os italianos e franceses. Somente os britânicos é que mantiveram-se mais longe de grandes batalhas. O Tratado de Ankara (1921) encerrou os conflitos contra os franceses, cedendo os territórios sírios em troca da Cilícia. Já os conflitos com os italianos também foram se encerrando em 1921, por sua vez, os britânicos propuseram novos acordos para manter o controle dos territórios no Oriente Médio, em troca de remover suas tropas gradativamente de Istambul e outras terras ocupadas pela Turquia. 

Em 1922 a situação da guerra estava se resolvendo já que o governo havia negociado alguns acordos com quase todos seus invasores, faltava resolver o problema com os gregos. Dessa forma, naquele ano ocorreu a "grande ofensiva" do exército turco, cuja missão era empurrar os gregos de volta ao Mar Egeu e forçar a saída desses da Anatólia. Entre janeiro e fevereiro as campanhas turcas iam minando as conquistas gregas, forçando esses a recuarem, no entanto, o governo grego relutava em abandonar aquela guerra, assim, por intermédio dos britânicos, foi proposto em março uma mesa de negociações. (ZURCHER, 1992, p. 155-156). 

Os gregos ainda assim não acataram a proposta de se retirar, postergando a guerra até setembro daquele ano, vindo a sofrer pesadas derrotas como a Batalha de Dumlupinar (26-30 de agosto de 1922) que marcou a derrota do exército grego. Pois em setembro o exército turco adentrou Esmirna, cidade sob domínio grego, e que funcionava como sua base de operações na Anatólia. 

Pintura representando a chegada triunfal do exército turco em Esmirna, ocupada pelos gregos nos últimos anos. 

No mês de setembro ocorreu a retirada das tropas gregas e se sucedeu um período de trégua, a qual foi reforçada com o Armistício de Mudanya, proposto em 12 de outubro. Itália, França e Reino Unido aceitaram a proposta, mas a Grécia somente concordou com os termos dois dias depois. O armistício permitiu que populações gregas na Turquia pudessem migrar para a Grécia, Macedônia ou Bulgária, por outro lado, encerrava a perseguição aos muçulmanos na região, como ditava também a retirada de tropas e navios do território turco. A guerra contra a Grécia havia chegado ao fim. O vizir Kemal aproveitou também o momento para anunciar no mês de novembro sobre a dissolução da monarquia, destituindo o sultão Mehmed VI de seu título, mas permitindo partir para o exílio. O monarca se exilou na Itália. (HOWARD, 2016, p. 90-91). 

A monarquia otomana chegava ao fim após seis séculos, tendo o último sultão sido deposto e enviado ao exílio. No dia 23 de novembro de 1922 teve início na Suíça, país neutro, a realização da Conferência de Lausanne, a qual duraria alguns meses. A conferência tinha como proposta chegar a um acordo de paz entre Turquia, Grécia, Itália, França e Reino Unido, além de questões territoriais e indenizatórias. Mas enquanto esse acordo ainda não era concluído, em Ankara, Mustafa Kemal Paxá mobilizava a transição do governo para a república. (ZURCHER, 1992, p. 161-162). 

Viva a república (1923)

No ano de 1923 a guerra de independência havia chegado ao fim. Os conflitos ocorridos eram pequenos, oriundos de protestos espalhados pelo país, além da reação dos armênios e curdos contra a opressão que viam sofrendo a anos. Em 24 de julho foi assinado o Tratado de Lausanne após meses de negociações. O tratado estabeleceu uma série de exigências, mas algumas das principais foi encerrar a guerra entre os cinco países. A Grécia e a Itália foram os mais prejudicados, tendo perdido a maior parte do território que haviam conquistado, sobrando algumas ilhas para eles. Por sua vez, a França conseguiu ficar com a Síria, o Reino Unido levou para si parte do Iraque e da Palestina (o Estado de Israel ainda não existia). A Armênia conseguiu colocar fim ao genocídio, a custa de muitas vidas perdidas, e se separou da Turquia, embora tenha perdido parte de seu território e estava sob tutela da Rússia. Já o Curdistão foi novamente negada sua criação, e seu território permanece até hoje como parte da Turquia. Os turcos ainda conseguiram manter terras na Europa, disputada pelos gregos e búlgaros. (KAYALI, 2008, p. 140-142). 

Mapa da Turquia proposto em 1923 durante o Tratado de Lausanne. 

Com a aprovação do tratado em julho, o governo interino iniciou os preparativos para a transição para a república, sendo essa oficialmente proclamada em 29 de outubro de 1923, em que o marechal Mustafa Kemal Paxá foi eleito o primeiro presidente do país. Na prática ele já governava a Turquia desde 1919. Kemal iniciou assim uma política de reconstrução da nação que se estendeu até 1938, quando terminou seu longo mandato, devido a sua morte. Por conta das reformas empreendidas, Kemal recebeu o epíteto de Atatürk ("pai dos turcos"). 

O presidente Mustafa Kemal Atatürk discursando para o povo em 1924. 

O processo para efetivação da república na Turquia foi demorado e marcado por guerras. Se levarmos em consideração que os planos para uma república tiveram início lá na década de 1870 pelo menos, isso somente se concretizou mais de cinco décadas depois, sendo que desse período, de 1911 a 1922, foi uma década de guerras contínuas, as quais ceifaram as vidas de milhões de pessoas entre turcos, armênios, curdos, sírios, palestinos, iraquianos, britânicos, gregos, italianos, franceses, russos e outros povos envolvidos na Primeira Guerra e demais conflitos. Não obstante, o estabelecimento da república em 1923 foi o primeiro passo apenas, fato esse que durante o mandato de Kemal Atatürk (1923-1938) ocorreu a efetivação da república e sua nova constituição. 

NOTA: No quadrinho A casa dourada de Samarcanda (1980-1985), o protagonista Corto Maltese passa pela Turquia e a Armênia durante o período da guerra de independência. Alguns armênios que ele conhece, falam do conflito contra os turcos e citam até o marechal Mustafa Kemal como sendo seu inimigo. 
NOTA 2: Mustafa Kemal foi por algum tempo chamado de Paxá, título honorífico da dinastia otomana, dado para governantes e ministros. O título foi abolido em 1934.
NOTA 3: Em 1924 o presidente Mustafa Kemal aprovou o fim do califado otomano, última instituição ligada a monarquia, a qual associava o sultão como um líder religioso. Tal decisão abriu caminho para a laicidade do Estado. 
NOTA 4: O sultão Mehmed VI passou o restante da vida em exílio na Itália. 
NOTA 5: A república turca por vários anos não teve um período delimitado para o mandato dos presidentes, fato esse que Kemal Atatürk governou por 15 anos, seu sucessor, o presidente Ismet Inönü, governou por 12 anos, outros presidentes governaram por 6 a 8 anos. O tempo de mandato para a presidência somente foi regulamentado a partir de 2014 para um período de 5 anos. 

Referências bibliográficas

HOWARD, Douglas A. The History of Turkey. 2a ed. Santa Barbara, ABC-Clio, 2016. 

KAYALI, Hasan. The struggle for independence. In: KASABA, Resat (ed.). The Cambridge History of Turkey, volume 4: The Turkey in the Modern World. Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 112-146. 

SHAW, Stanford J; SHAW, Ezel Kural. History of the Ottoman Empire and Modern TurkeyVolume II: Reform, Revolution, and Republic: The Rise of Modern Turkey, 1808-1975. 7a reprinted (2002). Cambridge, Cambridge University Press, 1977. 

SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo, Contexto, 2013. 

ZÜRCHER, Erik J. Turkey: A Modern History. 3a ed. Istambul, I.B. Tauris, 1992. 

Links relacionados:

100 anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)

O bombardeio de Constantinopla: a Queda do Império Bizantino


Nenhum comentário: