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Leandro Vilar

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

As guerras do açúcar (XVI-XVIII)

Ao longo de mais de duzentos anos alguns países europeus como Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra travaram guerras pelo controle da produção açucareira e o seu comércio. Entre os séculos XV ao XVIII o açúcar era um produto tão valioso que ele era considerado o "ouro branco" de seu tempo, motivador de guerras, de atos de pirataria, corso e contrabando. Muitos ambicionavam se apoderar daquelas preciosas caixas de açúcar. Vendidas pela quantia certa, um carregamento de açúcar poderia ser bem lucrativo. Não obstante, salienta-se que a indústria açucareira da Idade Moderna era algo bastante rentável, equivaleria hoje a um negócio bilionário, por conta disso, os grandes investimentos e riscos adotados para poder arrancar uma fatia desse valioso negócio. 

O presente texto resume alguns aspectos do que eu chamei de Guerras do Açúcar, uma série de conflitos e ações internacionais, que englobaram a Europa, a África Ocidental e as Américas, mobilizando pessoas direta ou indiretamente de várias nacionalidades as quais se viram em meio a tais confrontos. 

1. Introdução: o açúcar como o ouro branco

Embora tenha tratado desse assunto em outra postagem, como é possível conferir no link no final desse texto, aqui vou fazer uma recapitulação resumida. A produção de açúcar remonta desde a Antiguidade, em que indianos e povos vizinhos já o fabricavam, por sua vez, na Idade Média os árabes e persas aprenderam a como produzir açúcar. No século XV foi quando surgiu propriamente o interesse dos europeus pelo mercado açucareiro, pois antes disso o açúcar era considerado apenas uma especiaria exótica, usada para o preparo de medicamentos e até de magia. (CIVITELLO, 2008). 

Entretanto, no século XV com o advento do apreço do açúcar para se preparar alimentos como doces, pães, bolos, biscoitos, massas, recheios, temperos etc., e até mesmo adoçar bebidas como o vinho, o chá, o suco e depois o chocolate quente e o café, o açúcar começou a ganhar maios importância, tornando-se ainda naquele século uma iguaria de luxo, não somente mais algo exótico. 

"Ora, o gosto pelo açúcar não cessava de se difundir pela Europa ocidental. Para satisfazer esse mercado nascente, as refinarias multiplicaram-se no século XV nas planícies da Sicília, reconquistada pelos normandos no século XI; foi igualmente na primeira metade do século XV que novas plantações foram criadas na Espanha, no Levante de Valência, o que permitiu ativas exportações para os países do Norte". (LEMPS, 1998, p. 612).

Países como Itália, França, Espanha e Portugal, despontaram no mercado açucareiro ainda no XV, se tornando seus principais clientes, por conta das intensas mudanças gastronômicas passadas. De fato, a doceria desses países é ainda hoje notável, e foi essencial para popularizar o consumo de açúcar, passando para outros territórios como Inglaterra, Bélgica, Holanda (Países Baixos), Alemanha, Suíça, Grécia etc. 

Em geral a maior parte do açúcar consumido na Europa era produzido pelos mouros, fosse no sul da Espanha ou na ilha da Sicília, ou importado da África e do Oriente Médio. Entretanto, os portugueses realizaram uma jogada de mestre e saíram na frente. Eles aprenderam como cultivar a cana de açúcar, a construir engenhos e fabricar o açúcar. Logo, suas colônias insulares como a Madeira, os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe se tornaram seus laboratórios de testes, para finalmente passarem a produzir açúcar em quantidade surpreendente, rivalizando com os produtores mouros e árabes, gerando desequilíbrio de oferta e procura no mercado europeu.

"Em 1440 uma arroba [de açúcar] valia, na Inglaterra, 18,30 gramas de ouro, que representam 1:120$000 [1.120 réis] em poder aquisitivo de hoje, ou seja, 75$000 o quilo. Em 1470, este preço havia baixado para 45$000, e, em 1501, valia apenas 8$500 o quilo.  A produção portuguesa, principalmente a da Ilha da Madeira, provocou a destruição das culturas do Mediterrâneo e o desequilíbrio no comércio". (SIMONSEN, 1937, p. 145).

"Em 1498, para evitar a queda dos preços do açúcar, o rei D. Manuel decidiu limitar as exportações da ilha a 120.000 arrobas (1.780 toneladas); além disso, a ordenação fixou uma quota por destino, preciosa indicação sobre os clientes do açúcar da Madeira nessa época: 40.000 arrobas para Flandres, 15.000 para Veneza, 13.000 para Gênova e 6.000 para Livorno, ou seja, um total de 34.000 para os três grandes portos redestribuidores do Mediterrâneo; Aigues-Mortes e Rouen tinham direito a 6.000 arrobas, La Rochelle a 2.000, Lisboa e Londres a 7.000; Constantinopla chegou a receber até 15.000 arrobas". (LEMPS, 1998, p. 612).

Apesar desse crescimento na produção açucareira no século XV, o açúcar ainda era mercadoria luxuosa, a maior parte de seus compradores eram das elites. Inclusive as padarias e docerias atendiam uma clientela exclusivista. 

"Antigamente um pão de açúcar (cada pão tinha pouco mais de dois quilos) era arrolado como bem precioso, nos tesouros reais. Atribuía-se ao produto da cana virtudes miraculosas para a saúde. 'Sete pães de açúcar (14 quilos), deixa a mulher de Carlos V da França, no seu testamento, entre joias preciosas. E o sucessor deste rei dá a outro soberano, como presente real, mais alguns quilos da mágica mercadoria'. À época do descobrimento do Brasil, a Europa tomava tudo com açúcar: a carne, o vinho, o peixe". (AMARAL, 1958, p. 327).

Após o início da colonização das Américas, os espanhóis e portugueses passaram a cultivar cana de açúcar. Os espanhóis largaram na frente, iniciando o cultivo no Caribe, Antilhas e arquipélagos vizinhos. Já que eles se depararam com minas de prata e ouro no continente, sob o domínio dos Astecas e Incas. Por sua vez, os portugueses começaram a cultivar os canaviais décadas depois no Brasil, no entanto, no final do XVI, já era o maior produtor de açúcar no Ocidente. 

Como o açúcar se popularizou no século XVI, tornando-se assim condimento acessível a diversos segmentos da população, inclusive havendo variedades de açúcar mais caras e mais baratas, outros países passaram a ter interesse nessa produção monopolizada por portugueses e espanhóis. Assim, franceses, holandeses e ingleses começaram a investir no mercado açucareiro nas colônias ou no refino e comércio desses pela Europa. Mas em alguns casos, optou-se por meios menos lícitos, partindo para o contrabando, o roubo e depois a guerra. 

Hoje em dia é difícil de entendermos como guerras puderam ser travadas por conta de açúcar, algo tão banal. No entanto, o valor desse produto nos séculos XV ao XVII era grande, mesmo oscilando ao longo dos anos, ainda assim, era uma indústria bilionária, e muitos queriam um pedaço dela. 

“Em 1576, Pernambuco exportava cerca de 70 mil arrobas de açúcar e em 1583 a cifra subia a 200 mil arrobas. ‘Nos princípios do século XVII, diz Carli, possuindo o Brasil 200 engenhos, a sua produção era de 25 mil a 35 mil caixas de açúcar de 35 arrobas cada uma’. É o tempo áureo do açúcar no Brasil”. (AMARAL, 1958, p. 329).

Segundo cálculos dos holandeses, a produção açucareira brasileira rendia dezenas de milhões de florins, isso sem considerar o valor envolvido no transporte, refino e depois revenda. Embora isso acarretasse novas despejas, ainda assim, aumentava os lucros, pois o açúcar refinado era bem mais caro do que o açúcar bruto produzido nos engenhos. 

Na Lista de tudo que o Brasil pode produzir anualmente, produzida por um anônimo e publicada nos Países Baixos, ela referindo-se a valores de 1623, informou que somente entre as capitanias brasileiras da Bahia, Pernambuco e Paraíba existiriam 137 engenhos de açúcar. Apenas 25% da produção deles resultaria num lucro estimado para aquele ano de 1623, em 2,6 milhões de florins. Para se ter uma ideia de como esse valor era muito alto, a WIC dispunha de um capital de 7,1 milhões de florins naquele período, sendo que a empresa foi fundada em 1621. (HEIJER, 2003). Além do mais, o documento apenas contabilizou os engenhos de três capitanias, não levando em consideração das outras capitanias brasileiras que produziam açúcar. 

Dessa forma, podemos ter uma pequena ideia de como era uma indústria manufatureira bastante lucrativa, e essa ideia ficará mais clara quando vemos as informações sobre as guerras travadas. 

2. Atos de corso

Não se sabe exatamente quando começaram os ataques de pirataria e depois corso para se roubar carregamentos de açúcar de outros navios, mas isso já ocorria no século XVI. Embora não seja possível identificar em que ano isso começou, existem registros de ataques pontuais a respeito. Em geral eles ocorriam no Mar do Caribe, na costa do Brasil e na costa ocidental africana. 

A ideia de que vemos em filmes, livros, séries e jogos, em que piratas e corsários sempre estavam atrás de ouro e prata não é bem exata. Obter esses metais preciosos na maioria das vezes era difícil, logo, esses ladrões do mar roubavam o que conseguiam pela frente, normalmente produtos de origem vegetal como açúcar, tabaco, madeiras e especiarias. Em alguns casos também se obtinha produtos de origem animal como peles, couros, presas, chifres e marfim. 

Mas geralmente quando ia-se atacar o Brasil, os principais produtos obtidos eram o açúcar e o pau-brasil, pelo menos nos séculos XVI e XVII, já que a partir do XVIII passou a ter os carregamentos de ouro. Dessa forma, muitos dos ataques em busca de açúcar eram realizados no Brasil ou interceptando-se navios portugueses. 

a) O ataque de Thomas Cavendish ao Brasil (1591)

O explorador e corsário inglês Thomas Cavendish (1560-1592) atacou diferentes localidades brasileiras como as vilas de Santos e São Vicente, a Ilha Grande (no sul do estado do Rio de Janeiro) e a Vila de Vitória do Espírito Santo. Embora tenha conseguido saquear caixas de açúcar e outros produtos, os ataques em Vitória e Ilha Grande foram difíceis, resultando na morte de vários soldados seus, levando Cavendish a abandonar a expedição de corso, vindo a morrer meses depois. No entanto, sua expedição não foi malsucedida, além de ter representado o primeiro ataque efetivo de corsários ingleses ao Brasil. 

b) O saque do Recife (1595)

No final do século XVI, a Capitania de Pernambuco era um dos maiores produtores de açúcar do Brasil. Sua capital era a Vila de Olinda, possuindo seu porto no Recife. Grande parte do açúcar produzido naquela capitania passava por aquelas vilas, por conta disso, o corsário, capitão e mercador inglês James Lancaster (c. 1544-1618) decidiu atacá-las. 

No caso, é preciso salientar que Lancaster viveu algum tempo em Portugal, atuando como comerciante, logo, ele tinha conhecimento sobre o mercado açucareiro, informação importante, por conta disso, seu alvo foi Recife, pequena vila, mais vulnerável do que se atacar Salvador, então capital da colônia. Mas além de ir atrás do açúcar pernambucano, Lancaster soube que uma nau das índias havia naufragado na costa de Pernambuco, mas seu carregamento contendo tecidos, joias e especiarias, foi resgatado e estava armazenado em Recife, aguardando um navio ir buscá-la. De posse dessa informação ele zarpou imediatamente da África para o Recife.

Chegando ali, a frota de James Lancaster, formada por mais de dez navios de diferentes tipos e tamanhos, permaneceu quase um mês atacando Recife, saqueando seus navios, armazéns e resistindo aos contra-ataques dos portugueses. Alguns piratas franceses que estavam por ali, se uniram aos ingleses para dividir parte do butim. Lancaster deixou Recife após saquear açúcar, pau-brasil, algodão, a carga da nau das índias e outros bens. (FOSTER, 1940). 

c) A expedição de Pieter van der Does (1599)

Um dos grandes atos de corso que ocorreram para que conseguir açúcar aconteceu em 1599, quando a Holanda despachou o almirante Pieter van der Does (1562-1599) no comando de 76 navios e quase 9 mil homens entre soldados e tripulantes com a missão de saquear e se possível, conquistar colônias espanholas. É preciso lembrar que naquela época a Holanda e Espanha eram inimigas devido a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), além de que os espanhóis governavam Portugal e suas colônias por conta da União Ibérica (1580-1640), por conta dessa guerra, os holandeses decidiram invadir territórios espanhóis inicialmente na África, sendo o grande alvo o arquipélago das Canárias, que foi atacado entre o final de junho e começo de julho. 

Como o exército de Does não conseguiu subjugar a Grã Canária, decidiu-se queimar parte da capital, saquear o que podia e ir embora, deixando um saldo de mais de mil mortos. Zarpando para o sul, Does ordenou que sua armada se dividisse, metade seguiu para às Américas e o restante viajou mais para o sul até o arquipélago de São Tomé e Príncipe, uma colônia portuguesa, mas que estava sob jurisdição espanhola. Embora fosse um arquipélago menor, as perdas sofridas anteriormente, a divisão das forças de ataque e um surto de malária, prejudicou a campanha. O próprio Pieter van der Does faleceu na ocasião, vítima da doença, mas sua armada conseguiu saquear aquelas ilhas. (PLANELLA, 1975)

É preciso assinalar que em ambos os ataques realizados nas Canárias e em São Tomé e Príncipe, carregamentos de açúcar foram obtidos, além de marfim, especiarias e outras mercadorias de valor. Tratava-se de uma expedição de corso, que basicamente era a pirataria legalizada. Entretanto, mesmo tendo se obtido butins ao saquear algumas dessas ilhas, a expedição corsária de Does foi um fiasco, pois perdeu-se muitos homens e alguns navios. Mas é claramente observável que se tratava de um intento de guerra, mesmo que para intuitos breves, como o saque. 

d) O ataque holandês à Bahia em 1599-1600

Por outro lado, a outra metade da armada que zarpou para as Américas, a maior parte seguiu para o Caribe, onde ficavam as colônias espanholas que produziam açúcar, tabaco, rum, mas também passavam navios carregados com prata, ouro e joias, como no caso da Frota da Prata. Entretanto, dessa armada que seguiu às Américas, sete navios liderados pelos capitães Hartman e Boers se dirigiram ao Brasil, então colônia portuguesa e maior produtora de açúcar no Ocidente. Por possuírem poucos homens, os dois capitães sabiam que não tinham condições de fazer guerra como ocorreu nas ilhas africanas, com isso, eles aportaram na baía de Todos os Santos e iniciaram uma série de ataques a engenhos, fazendas e vilas ao redor de Salvador para obter principalmente açúcar. Hartman e Boers chegaram no Natal de 1599 e permaneceram até fevereiro de 1600, tendo incendiado parte de um engenho, causado algumas mortes e saqueado carregamentos de açúcar. (BEHRENS, 2013).

e) O ataque holandês ao Brasil em 1604

Novamente uma pequena frota holandesa, dessa vez liderada pelo comandante e corsário Paulus van Caarden teve como objetivo cometer saques na Bahia, e até mesmo tentar invadir Salvador, entretanto, sua tropa não obteve sucesso após algumas tentativas, optando em se atacar fazendas pela baía de Todos os Santos, quando zarpou para o norte, em que atacou Pernambuco, mas foi rechaçado, tendo perdido dois dos sete navios que levou. Um afundou e outro foi capturado, o qual continha caixas de açúcar. Depois dessa expedição de corso, os holandeses não voltariam atacar o Brasil pelos vinte anos seguintes. (BEHRENS, 2013).

3. A Guerra do Brasil ou Guerra do Açúcar (1624-1654)

De todas as batalhas e conflitos travados entre os séculos XVI e XVIII, por conta do açúcar, o mais impactante e em maior escala foi a chamada Guerra do Brasil, como se referiu Duarte de Albuquerque Coelho, capitão donatário de Pernambuco. Ou Guerra do Açúcar como se referiu o historiador Evaldo Cabral de Mello. Ambos os nomes estão corretos, pois tratou-se de um conflito que envolveu as capitanias norte do Brasil, motivado por conta do controle da produção açucareira, o ouro branco do seu tempo. 

Essa guerra teve duas etapas, a primeira sendo curta, durou de 1624 e 1625, marcada pela guerra na Bahia. Sendo seguida por um interlúdio de quatro anos, pois um ataque de corso ocorreu em 1627 como veremos adiante. Por sua vez, a segunda etapa foi a mais longa, durando 24 anos, período no qual os exércitos da Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagine - WIC) se apossaram de Pernambuco (incluindo Alagoas e parte de Sergipe), Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. 

Por ser um período histórico longo, perfazendo 30 anos, o qual foi marcado por dezenas de batalhas, decidi apenas comentar alguns aspectos centrais, até porque existem livros que se dedicam a cobrir esses acontecimentos, alguns inclusive dedicam centenas de páginas apenas para uma das batalhas ocorridas. 

Em 9 de maio de 1624 a frota holandesa formada por 26 navios com 1.700 soldados e 1.500 tripulantes, chegou a Salvador. Ela era liderada pelo almirante Jacob Willekens (1571-1633) e pelo comandante Jan van Dorth (1586-1624). Com a capital do Brasil dispunha de poucas defesas, os holandeses em dois dias conseguiram desbaratá-las e invadir a cidade. Grande parte da população nesse meio tempo evacuou a cidade, ficando para trás o governador e sua tropa. Nos dias seguintes Salvador foi pilhada de forma bárbara, a ponto dos comandantes repreender as tropas por conta disso. Mas além da rapina efetuada na capital, as fazendas, engenhos e vilas ao redor também foram saqueados nos meses seguintes. Inclusive navios com destino a Salvador, eram roubados. Os holandeses permaneceram 11 meses ocupando a cidade, mas não conseguiram se dominar outras áreas da baía de Todos os Santos e do Recôncavo. (BEHRENS, 2013).

Mais de duas mil caixas de açúcar pelo menos foram roubadas dos carregamentos que os holandeses conseguiram se apossar, além de pau-brasil, algodão, objetos de ouro, prata, tecidos, especiarias e outros bens de valor que eles saquearam. No entanto, em resposta a esse ataque ousado, o rei Filipe III de Espanha enviou um gigantesco exército liderado pelo almirante D. Fadrique de Toledo y Osório, com 56 navios e 12.463 homens, no que ficou conhecido como a Jornada dos Vassalos, em que muitos nobres se ofereceram para libertar a capital brasileira, embora interessados nas recompensas que poderiam ganhar pelo seu esforço, nem tanto por um gesto de altruísmo. Os holandeses chegaram a lutar para manter sua ocupação, mas a desvantagem era clara, então optaram por se render e poderem ir embora. (BEHRENS, 2013).

Em 1627 o vice-almirante Piet Heyn (1557-1629) que esteve no Brasil em 1625, retornou dessa vez para roubar açúcar e outras mercadorias. Os holandeses estavam desmoralizados pela derrota em Salvador dois anos antes, poupando recursos para uma nova campanha, no caso, Heyn foi incumbido de cometer atos de corso para poder reunir fundos. Segundo o relatório fornecido a WIC, a expedição de Piet Heyn ao Brasil, saqueou 36 navios que rendeu 2.565 caixas de açúcar e outras mercadorias, um valor considerável, mas ainda longe do que a companhia holandesa ambicionava. (BOXER, 1961). 

Finalmente, três anos depois, já tendo obtido os recursos para investir numa nova invasão, isso graças ao saque que Piet Heyn fez a Frota da Prata, em Cuba, no ano de 1628, a WIC enviou um exército maior para se atacar o Brasil, sendo liderado pelo tenente-coronel Hendrick Corneliszoon Lonck (1568-1634), no comando de 67 navios e mais de 3 mil soldados. Os alvos eram múltiplos: Pernambuco, Paraíba, Bahia e Rio de Janeiro. Dessa vez, o ataque iniciou-se pela Capitania de Pernambuco, onde se subjugou facilmente as vilas de Olinda e Recife. A conquista dessas duas vilas marcou o início da longa fase de ocupação da WIC no Brasil, que perdurou por mais de vinte anos. (MELLO, 2007). 

Pernambuco, Nicolas Visscher (c. 1630). Nesse mapa o autor mostrou o cerco à Olinda e Recife ocorrido em 1630.

Por conta desse ser um período longo, como já dito, decidi resumir alguns acontecimentos bélicos aqui, para depois comentar a questão econômica. Sendo assim, vamos a eles:

  • 1630: Conquista de Olinda e Recife;
  • 1632: Conquista da ilha de Itamaracá e sua capitania;
  • 1633: Conquista da Capitania do Rio Grande do Norte;
  • 1634: Conquista da Capitania da Paraíba;
  • 1635: Conquista do Cabo de Santo Agostinho;
  • 1636: Conquista do Arraial do Bom Jesus, submissão de Pernambuco; 
  • 1637: Fracasso ao se tentar invadir a Bahia;
  • 1640: Conquista das Capitanias do Ceará e do Maranhão;
  • 1644: Maranhão foi libertado;
  • 1645: Início da Insurreição Pernambucana para expulsar os holandeses;
  • 1648: Primeira Batalha dos Guararapes;
  • 1649: Segunda Batalha dos Guararapes;
  • 1654: Saída da WIC do Brasil. 

É evidente que uma série de batalhas ocorreram durante esses anos, acontecendo dezenas delas até se efetivar a conquista dessas capitanias. E a motivação para isso foi a produção açucareira. Excetuando-se as capitanias do Ceará e do Maranhão, mais tardiamente conquistadas pela WIC, essas duas não possuíam engenhos, sendo conquistadas por outros fatores econômicos. Todavia, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte, eram capitanias do açúcar, principalmente Pernambuco, a qual concentrava mais de cem engenhos. 

Dois relatórios foram produzidos para quantificar os engenhos e sua produção. O primeiro trata-se do Breve discurso sobre o estado das quatro capitanias conquistadas de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande na parte Setentrional do Brasil (1638) e o Relatório de Adriaen van der Dussen (1639). Em ambos os documentos são arrolados mais de 160 engenhos nessas quatro capitanias, embora que nem todos estavam ativos na época, apesar disso, ambos os relatórios fornecem a média de produção computada para aqueles anos, que somadas, representavam toneladas de açúcar a ser produzido. Mas é importante ressalvar que a WIC demorou alguns anos para pode conseguir fazer dinheiro com a produção açucareira. Desde o início da guerra de conquista em 1630, somente a partir de 1637 é que a companhia começou a ter controle da produção de açúcar, antes disso obtinha-se esse produto a partir dos saques.

Sendo assim, foi no governo de Maurício de Nassau (1637-1644) que a WIC passou a controlar a produção açucareira brasileira dessas quatro capitanias, propriamente falando. No entanto, nem tudo que reluz é ouro. Embora a empresa tenha lucrado com o fabrico de açúcar, depois com sua exportação, refino e comercialização, os gastos com a guerra, com a colonização e as dívidas não pagas, foram bastante elevados, fato esse que alguns documentos como A bolsa do Brasil (1647) de caráter anônimo, publicado no Recife, denunciava a existência de corrupção na gestão da companhia na colônia brasileira, fraudes, sonegação de impostos, além de citar vários senhores de engenho, mercadores e funcionários da WIC, que eram devedores notáveis. (MELLO, 2012). 

Mesmo com esse problema econômico existente no final da década de 1640, a WIC, ainda assim, não desistiu da sua colônia no Brasil, fato esse que novas batalhas passaram a ocorrer desde 1645, mas nem por isso a empresa se rendeu ou optou em bater em retirada. Sua saída inclusive se deveu não a derrotas sofridas no campo de batalha, mas a um acordo assinado com Portugal, em que a companhia comprometeu-se em 1654 em deixar o Brasil, em troca de receber uma indenização por isso. Portugal a contragosto aceitou pagar a indenização bilionária, parcelando-a em muitos anos. 

4. A disputa das Antilhas e a produção açucareira (1624-1700)

As Antilhas é um termo genérico para se referir a um conjunto de arquipélagos que hoje compreendem vários países na região caribenha. As ilhas maiores foram chamadas de Grandes Antilhas, sendo formadas por Cuba, Haiti, República Dominicana, Jamaica e Porto Rico. Por sua vez, as Pequenas Antilhas compreendem uma quantidade maior de ilhas como Trinidad e Tobago, Barbados, Barbuda, Antigua, Martinica, Curaçao, Aruba, Granada, São Vicente etc. Além deles ainda existe o arquipélago das Bahamas e outras ilhas que compreendem um terceiro grupo das Antilhas. 

As Antilhas e a América Central. 

De início os espanhóis se apoderaram de quase todas as ilhas das Antilhas, pelo fato de terem sido os primeiros europeus a iniciarem a colonização ali, condição essa que as Grandes Antilhas se mantiveram sob seu domínio por séculos, apesar de terem sido ocupadas por franceses, holandeses e ingleses. Mas como esses três países não conseguiram conquistar permanentemente algumas das ilhas grandes, eles optaram em assegurar as Pequenas Antilhas e as Bahamas. 

Como os espanhóis estavam de início mais interessados no ouro e na prata dos Astecas, Incas e outros povos da América Central e do Sul, a produção açucareira foi uma economia secundária, assim, ela demorou para se espalhar pelas Antilhas, além de que no século XVI, os franceses, holandeses e ingleses ainda não haviam iniciado propriamente suas colônias, mas já estavam de olho naquelas ilhas, assim como, no Brasil e na África. Condição essa que corsários e piratas roubavam carregamentos de açúcar pelo Mar do Caribe. Entretanto a situação mudou no século XVII quando acirrou-se a guerra pelo açúcar. 

A Inglaterra depois da Espanha foi a primeira nação europeia a decidir investir na produção açucareira nas Antilhas, vale ressalvar que os ingleses, franceses e holandeses desde o século anterior já tinham negócios naquela região, mas a produção açucareira era predominantemente produzida pelos espanhóis, os franceses e ingleses até chegaram a montar canaviais, mas foram investimentos momentâneos, no entanto, em 1624 a Inglaterra decidiu mudar isso, o açúcar era uma indústria lucrativa, Portugal e Espanha a dominavam no Atlântico, logo, os ingleses decidiram tentar não depender tanto deles, mas diferente dos holandeses que optaram pelo lado da guerra, os ingleses decidiram apostar de início numa alternativa mais tranquila. Eles iniciaram seus canaviais em Barbados uma das Pequenas Antilhas. Plantações de tabaco também foram cultivadas. Os ingleses depois se espalharam para dominar algumas ilhas vizinhas, as quais estavam fora do controle espanhol, embora algumas delas fossem povoadas. Entretanto, eles não tiveram dificuldades para submeter os habitantes, fosse pela diplomacia ou a violência. (DUNN, 1972). 

Já os franceses haviam nos anos 1620 fundado uma colônia, mas essa fracassou. Anteriormente eles fundaram duas colônias no Brasil, mas essas foram expulsas pelos portugueses. Todavia em 1635 foi estabelecido uma colônia em Martinica com a finalidade de se cultivar açúcar. As ilhas vizinhas de Martinica foram sendo ocupadas pelos franceses e posteriormente eles passaram a disputar com os ingleses o controle de algumas das Pequenas Antilhas. (MARSHALL, 2005). 

Já os holandeses eles começaram a se apossar de algumas das Pequenas Antilhas na mesma época que os franceses, dessa forma, eles conquistaram Curaçau em 1634, expulsando os espanhóis de lá. Depois eles tomaram Aruba e algumas ilhas vizinhas. Vale lembrar que a Holanda estava em guerra com a Espanha desde 1568 por conta da Guerra dos Oitenta Anos. (GOSLINGA, 1972). 

Dessa forma, quando finda-se a década de 1630, período em que o Brasil vivenciava sua segunda invasão holandesa, a região das Antilhas passava a ser disputada pelos espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, o conflito entre esses quatro países pioraria nas décadas seguintes. Eles ambicionando conquistar mais ilhas, de preferência com mais terras férteis para se cultivar açúcar, tabaco e outros produtos, passaram a atacar um aos outros ou os espanhóis. 

Os ingleses disputaram o controle da Jamaica por alguns anos contra os espanhóis, finalmente saíram vitoriosos em 1655. Os franceses invadiram Hispaniola, após alguns conflitos um acordo com a Espanha em 1697, cedeu metade da ilha, vindo a se tornar o Haiti, enquanto a outra metade se tornou a República Dominicana.  A Holanda não conseguiu conquistar uma das Grandes Antilhas, mas invadiu o Suriname como será visto adiante. 

Além disso, salienta-se que foi ainda no XVII que uma quinta nação europeia entrou nas disputas pelas Antilhas, no caso, a Dinamarca. O Reino da Dinamarca teve pouca expressividade na colonização das Antilhas, apossando-se de ilhas desabitadas, sendo elas: São Tomás, São João e Santa Cruz, as quais fazem parte do grupo das Pequenas Antilhas. Eles usaram essas ilhas para poderem adentrar no comércio de escravos, açúcar, rum e outras mercadorias que circulavam por ali. Embora tivessem pouca influência se comparada as suas concorrentes como a Espanha, Inglaterra, França e Holanda, os dinamarqueses seguiram de forma simples, mantendo suas três ilhas até o século XX. (DEER, 1949). 

Lembrando que além desses casos citados, várias batalhas ocorreram ao longo do XVII, mas como esse texto é apenas um resumo histórico, não é possível reportar todos os conflitos ocorridos, além de que também ocorreram atos de pirataria e corso. O Caribe era uma região com alta incidência de crimes marítimos por conta disso. Um exemplo desse período foram as ações de Henry Morgan (1635-1688), capitão inglês que atuou como pirata e corsário. Morgan atuou a partir da base inglesa estabelecida na Jamaica, atacando Cuba, Panamá, Venezuela e outras localidades, empreendendo guerra contra os espanhóis. Ele chegou a governar a Jamaica também e até comprou canaviais para si. 

Ilustração espanhola do corsário e pirata Henry Morgan. 

4. A ocupação holandesa de São Tomé e Príncipe (1641-1648)

Enquanto a WIC seguia lutando na Guerra do Brasil, expedições foram enviadas para se atacar a Costa da Guiné, repercutindo em êxito em 1637, por sua vez, Angola, foi subjugada em 1641. Naquele mesmo ano, a companhia obteve sucesso em capturar o pequeno arquipélago de São Tomé e Príncipe. Os três territórios na época pertenciam a Portugal, no caso, os holandeses tinham interesse na Guiné e em Angola por conta do tráfico negreiro, a fim de controlar esse comércio, entretanto, o interesse deles para São Tomé e Príncipe se devia pelo açúcar, aquelas ilhas cultivavam o ouro branco desde o século passado, embora tivessem uma pequena produção, ainda assim, era melhor do que nada. Sem contar que seria mais fácil capturar aquelas ilhas do que o território brasileiro. 

A conquista daquele arquipélago foi liderada pelo almirante Cornelis Corneliszoon Jol (1597-1641), conhecido pela alcunha de Houtebeen (Perna de Pau). Jol foi notório pelos atos de corso, tendo assaltado vários navios portugueses, espanhóis e franceses, atuando pela costa africana e no Mar do Caribe. Jol também participou de algumas batalhas na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), devido a ser veterano de guerra, ele comandou as missões para conquistar Angola e São Tomé e Príncipe, mas acabou falecendo em 1641, por conta de malária. (RATELBAND, 1941). 

São Tomé e Príncipe permaneceria sob controle dos holandeses por alguns anos, produzindo açúcar, algodão, além de ser usada como ponto de parada no tráfico negreiro e nas navegações holandesas pela região. Em 1648 os portugueses conseguiram recuperar o controle do arquipélago e de Angola, mas não retomaram a Costa da Guiné, optando em fazer um acordo para cedê-la a WIC. 

Localização de São Tomé e Príncipe na costa ocidental da África. 

5. O Suriname: a Guiana Holandesa (1667)

O Suriname foi visitado a primeira vez por europeus em 1499, quando espanhóis passaram ao longo da sua costa. No século seguinte os espanhóis empreenderam contato com os povos indígenas ali, além de mapearem algumas regiões do que eles passaram a chamar de Guianas. Em seguida vieram os franceses, holandeses e ingleses, mas todos esses povos europeus apenas estavam de passagem. Em meados do século XVII, a Inglaterra montou uma colônia de exploração no Suriname não tendo muita dificuldade para se apossar daquelas terras. (HOEFTE, 1991). 

Os ingleses já dominavam algumas ilhas ali perto, embora estivessem em disputa com os espanhóis e franceses por conta das melhores ilhas do Caribe. De qualquer forma, no Suriname plantou-se canaviais e construiu-se engenhos, empregando mão de obra principalmente de origem africana, embora que alguns indígenas chegaram a serem escravizados. 

Somente após a retirada da WIC do Brasil em 1654, foi que os Países Baixos passou a cogitar interesse no Suriname, na época, colonizado pelos ingleses. Como os Países Baixos estavam em guerra com a Inglaterra desde 1650, pela disputa de rotas comerciais na Europa e no Caribe, o conflito para se disputar o Suriname foi apenas mais um motivo para ambas as nações se confrontarem. A disputa do Suriname ocorreu em meio a chamada Segundo Guerra Anglo-Holandesa (1665-1667), quando o almirante Abraham Crijnssen atacou a região de Torarica (atual Paramaribo), onde se situava a colônia inglesa. 

O conflito se estendeu por dois anos, então no Tratado de Breda (1667) optou-se em fazer um acordo. Os ingleses já haviam atacado algumas colônias holandesas anteriormente, sendo assim, o acordo sugeriu uma troca. A Holanda ofereceu trocar a Colônia dos Novos Países Baixos na América do Norte pela Colônia do Suriname na América do Sul. Como os ingleses já tinham interesse na colônia holandesa cuja capital era a cidade de Nova Amsterdã (atual Nova York), aceitaram o acordo. (GOSLINGA, 1979). 

Dessa forma o Suriname (ou Guiana Holandesa como era referido em outros países), passou a ser gerida inicialmente pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC), depois foi substituída pela Sociedade do Suriname, empresa privada que administrava aquela colônia. Somente no final século XVIII o Estado Holandês assumiu o controle da colônia, mantendo-o até 1975. (HOEFTE, 1991). 

O Suriname se tornou a principal colônia açucareira da Holanda, embora que ali também passou a se cultivar algodão, tabaco e índigo para a tinturaria. No século XIX com o declínio da indústria açucareira, o algodão e o café suplantaram como produtos principais, no entanto, a abolição da escravidão que foi gradativa, mas finalizada em 1863, prejudicou o sistema de plantation que imperava no Suriname e outras colônias nas Américas. (GOSLINGA, 1979). 

6. As ilhas do açúcar (1700-1800)

Já se disse que o século XVIII marcou o declínio da produção açucareira, no entanto, essa é uma afirmação incompleta, pois a pergunta certa é "onde ocorreu esse declínio da produção açucareira?". De fato, colônias como o Brasil e o Suriname observaram uma queda na produção de açúcar; no caso brasileiro o XVIII marcou o ciclo do ouro nas Minas Gerais, já no Suriname essa queda foi mais tardia, estando associada com o café e o algodão, dois produtos que também ganharam espaço no Brasil, mas no século XIX. 

Embora essas duas colônias tenham diminuído sua produção de açúcar, a demanda por esse produto doce não diminuiu, ela continuava aumentando, logo, havia a necessidade de suprir esse mercado crescente. Dessa forma, as Antilhas e a América Central se tornaram no XVIII o novo polo açucareiro no Ocidente. As colônias espanholas, inglesas, francesas e holandesas ali situadas, ganharam uma importância considerável. 

Deerr (1949) aponta que ao longo do XVIII houve um crescimento no número de engenhos tanto nas Antilhas quanto no continente americano nas regiões centrais e sul. No caso das ilhas ele destacou as seguintes localidades, as quais se tornaram as ilhas do açúcar no XVIII, embora que elas já produzissem açúcar desde o XVI em alguns casos. 

  • Colônias espanholas: Cuba, Porto Rico, República Dominicana.
  • Colônias inglesas: Jamaica, Barbados, Antigua, Trinidad, Tobago, etc.
  • Colônias francesas: Martinica, Haiti, San Martin, Guadalupe etc.
  • Colônias holandesas: Curaçau, Aruba, Bonaire, Saba. 

Mas além dessas ilhas do açúcar, Noel Deerr (1949) salientou que não se pode deixar de considerar que a produção açucareira também se expandiu pelo continente, em destaque no XVIII ainda se tinha o Suriname, colônia holandesa, todavia, outras colônias espanholas como México, Nicarágua, Guatemala, Costa Rica e Panamá passaram a ter um aumento de canaviais. Até mesmo em menor escala o Peru, a Colômbia e a Venezuela, como aponta o autor. Os ingleses e franceses também possuíam parte das GuianasMesmo assim, as ilhas eram as principais produtoras do ouro branco naquele século. 

Engenho de açúcar com moinho, em Antigua, colônia inglesa. 

Mas além desses territórios enriquecerem com a produção e comércio de açúcar, eles também produziam rum, aguardente de cana (cachaça como se chama no Brasil), e o tráfico negreiro cresceu consideravelmente também. Richard Dunn (1972) apresentou dados que mostram como o tráfico negreiro feito pela Inglaterra cresceu exponencialmente entre 1650 e 1750, durante o auge da produção açucareira nas Antilhas Inglesas. Claro que a colonização dos Estados Unidos também contribuiu para o aumento do tráfico, mas não estando restritamente ligado por conta dos canaviais. 

Por conta desse crescimento da indústria açucareira nas Antilhas e arredores, isso aumentou também as disputas, conflitos e crimes. Esse momento coincidiu com a Era de Ouro da Pirataria Caribenha (1650-1730), em que os mais famosos piratas do Caribe viveram, embora que não necessariamente eles fossem ladrões de açúcar, já que eles roubavam vários produtos, no entanto, muitos piratas desse período passaram a roubar açúcar e contrabandeá-lo também. Por conta disso, os governos espanhol, inglês e francês iniciaram uma guerra contra a pirataria que durou anos. 

Comparado ao século XVII em que as guerras pelo açúcar foram maiores e mais sangrentas, os conflitos no XVIII foram menores, já que em geral foram pequenas batalhas, em muitos casos apenas um navio contra o outro para defender seu carregamento, ou um ataque a algum porto, fazenda, cidade o fortificação. As guerras do XVIII se deram por outros fatores, o açúcar se tornou motivo secundário. 

Embora a produção açucareira seguiu crescente nos séculos XVIII e XIX, no entanto, as guerras do açúcar seguiram um caminho contrário, pois o açúcar deixou de ser mercadoria valiosa como havia sido, já sendo mais lucrativo no XIX cultivar café, algodão e até outras mercadorias como o tabaco e o cacau. Por mais que tenha aumentado a produção açucareira, esse aumento era decorrente do crescimento do consumo, não da valorização da mercadoria, por conta disso, as nações europeias e suas grandes empresas já não estavam interessadas em travar guerras por causa dessa mercadoria. O lucro não compensava como antes. 

NOTA: Pirata era o fora da lei que cometia crimes diversos como assalto, roubo, contrabando, sequestro, assassinato, sabotagem, falsificação, invasão etc. Por sua vez, o corsário fazia a mesma coisa, a diferença é que ele era autorizado a cometer tais crimes, estando protegido por uma carta de corso. Em termos simples, o corsário era o pirata legalizado. 

Referências bibliográficas:

AMARAL, Luís. História geral da agricultura brasileira no tríplice aspecto: político-social-econômico - vol. 1. 2a ed, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958.

BEHRENS, Ricardo. Salvador e a invasão holandesa de 1624-1625. Salvador, Editora Pontocom, 2013. 

BOXER, Charles Ralph. Os holandeses no Brasil: 1624-1654. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1961. (Coleção Brasiliana, vol. 312).

CIVITELLO, Linda. Cuisine and Culture: a history of food and people. 2a ed. Hoboken, John Wiley & Sons, Inc., 2008.

DEERR, Noel. The History of Sugar, vol. 1. London, Chapman and Hall, 1949. 

DUNN, Richard S. Sugar and Slaves: the rise  of the planter class in the English West Indies, 1624-1673. Chapel Hill/London, University of Carolina Press, 1972.

FOSTER, William. The voyages of Sir James Lancaster to Brazil and East Indies, 1591-1603. S.l, The Hakluty Society, 1940. 

GOSLINGA, Cornelis Ch. A short history of the Netherlands Antilles and Surinam. The Hague, Martinus Nihoff, 1979. 

HEIJER, Henk den. The Dutch West India Company, 1621-1791. In: POSTMA, Johannes; ENTHOVEN, Victor (editors). Riches form Atlantic commerce: Dutch Transatlantic Trade and Shipping, 1585-1817. Leiden/Boston: Brill, 2003. p. 77-114. (Collection The Atlantic World, vol. 1). 31v

HOEFTE, Rosemarijn. Suriname. Oxford, Clio Press, 1991. (World Bibliographical Series, vol. 117). 

MARSHALL, Bill. France and the Americas: Culture, Politics, and History. Santa Barbara, ABC-CLIO, 2005.

MELLO, Evaldo Cabral de. O bagaço da cana. São Paulo, Penguin Books, 2012.

MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 3ª ed. São Paulo, Editora 34, 2007.

LEMPS, Alain Huetz de. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. Tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme J. F. Teixeira. 4a ed. São Paulo, Estação Liberdade, 1998. p. 611-624.

PLANELLA, João José. O ataque holandês à Bahia: um episódio na luta pelo domínio Atlântico. Estudos Ibero-Americanos, v. 1, n. 1, 1975, p. 103-138. 

RATELBAND, K. De expeditie van Jol naar Angola en São Thomé. 30 Mei. 1641 - 31 Oct. 1641. New West Indian Guide, v. 24, n. 1, 1941, p. 321-344. 

SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil: 1500-1820. São Paulo, Companhia da Editora Nacional, 1937. (Série 5, vol. 100), (Capítulo V)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

200 anos da coroação de D. Pedro I do Brasil

Dando continuidade as postagens sobre o Bicentenário da Independência do Brasil (1822-2022), o texto de hoje foi mais breve por conta de abordar a coroação de D. Pedro I, que desde 1820 atuava como príncipe-regente do país. Em janeiro de 1822 após o Dia do Fico (9 de janeiro), Dom Pedro iniciou com seus aliados o processo político para desvincular o Brasil do domínio de Portugal, no que resultaria meses depois na Proclamação de Independência, simbolicamente anunciada em 7 de setembro. Entretanto, desde meados de janeiro daquele ano, Dom Pedro já era tratado por seus apoiadores como um governante de fato, mesmo que formalmente não tenha sido coroado. Porém, a Proclamação da Independência e a coroação foram adiadas por conta das revoltas que ocorreram no Rio de Janeiro e na Bahia, que culminaram na Guerra de Independência (1822-1824), a qual se estendeu para outras províncias. 

D. Pedro I em traje imperial. Jean-Baptiste Debret. 

A aclamação do imperador (12 de outubro)

Embora a guerra pela independência somente terminaria dois anos depois, mas como a independência foi proclamada em setembro de 1822, os apoiadores do novo governo acharam de bom tom que o príncipe-regente fosse coroado, mas antes disso havia uma série de preparativos a serem feitos, além de apaziguar os ânimos entre os ministros e a maçonaria, pois Dom Pedro tinha se tornado recentemente maçom. 

Em 18 de setembro o príncipe-regente deu a ordem para se providenciar os símbolos nacionais: o brasão de armas, o tope nacional, os escudos dos ministérios, a insígnia real, os selos etc. O hino nacional e a bandeira só mais tarde foram feitos. No caso do tope nacional (insígnia em formato de roseta), o monarca ouvindo seu conselho, deliberou que as cores escolhidas seriam o verde, o amarelo e o azul, as cores da sua casa real, as quais foram mantidas e aproveitadas para a bandeira nacional. (SOUSA, 2015). 

Enquanto os símbolos nacionais eram confeccionados, Dom Pedro tratava de assuntos políticos, como anistias, os planos de guerra, organização dos ministérios, desentendimento com o José Bonifácio, as tentativas de D. João VI pedindo que o filho desistisse de prosseguir com a independência, entre outros assuntos. 

Os membros do governo decidiram aclamar Dom Pedro como imperador como forma de legitimar seu governo de transição, assim como, aquilo serviria para incentivar a população brasileira a aderir a guerra que se desenrolava principalmente na Bahia. Dessa forma, a data de aclamação foi escolhida para 12 de outubro, dia do aniversário do futuro imperador, que na ocasião completou 24 anos. 

A cerimônia de aclamação foi realizada na manhã do dia 12 de outubro, no Campo de Santana, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Ali reuniu-se a 1a e 2a tropa de linha, as fortalezas fizeram uma salva de tiros e alguns navios de guerra na baía de Guanabara. Os membros do ministério e Conselho de Estado com suas esposas e alguns familiares estavam presentes. Autoridades políticas, militares e a população compareceram para ver a cerimônia. O Campo de Santana contava com um pavilhão e os brasões de armas, o tope nacional e outras insígnias, já apresentando as cores verde, amarelo e azul. (SOUSA, 2015). 

Aclamação de Dom Pedro I como imperador do Brasil. Na época, feita num palacete no Campo de Santana, no centro do Rio de Janeiro. Pintura de Jean-Baptiste Debret. 

Dom Pedro, sua esposa D. Leopoldina e a princesa Maria da Glória, com então três anos de idade, deixaram o Paço da Quinta da Boa Vista, e seguiram de carruagem até o Campo de Santana por volta das 10h da manhã. A carruagem real era conduzida pela guarda de honra, pelo caminho a população assistia e ovacionava à passagem dos futuros imperador e imperatriz do Brasil. 

“O cortejo chegou ao Campo de Santana. Descendo do carro, D. Pedro foi saudado com vivas repetidas, com estrepitosas manifestações de “amor e respeito” e logo subiu ao palacete, a cuja varanda se dirigiu. Lá estavam os ministros e altos dignitários, lá estava, com seu estandarte, o Senado da Câmara. Foi quando José Clemente Pereira leu um longo discurso, a que D. Pedro assim respondeu: ‘Aceito o título do imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil, porque, tendo ouvido o meu Conselho de Estado e de procuradores-gerais, e examinado as representações das Câmaras das diferentes províncias, estou intimamente convencido que tal a vontade geral de todas as outras, que só por falta de tempo não têm ainda chegado’”. (SOUSA, 2015, p. 424).

“Estrugiram os cento e um tiros da salva imperial, seguidos de três descargas de infantaria. Novos vivas ecoaram. Vivas à Religião, ao Imperador Constitucional do Brasil o Senhor D. Pedro I, à Augusta Imperatriz, à dinastia de Bragança, à Independência, à Assembléia Constituinte, ao povo constitucional do Brasil. Lenços brancos tremularam sacudidos por mãos de homens e mulheres em todas as casas próximas. Estava D. Pedro aclamado imperador em céu aberto, numa consagração popular como jamais se vira antes. E a tropa desfilou, colocando-se em alas desde o palacete até a Capela Imperial. A imperatriz e a princesa D. Maria da Glória retiraram-se de carruagem, mas D. Pedro I preferiu ir a pé, sem temer a chuva que ameaçava cair novamente. Seguiram-no uma guarda de cavalaria de milícias, um destacamento da guarda cívica e oficiais generais, magistrados, empregados públicos, num séquito numeroso e compacto”. (SOUSA, 2015, p. 425).

A cerimônia pública de aclamação encerrou-se após a missa solene na Capela Imperial ali perto do Campo de Santana. Cânticos foram entoados e novas salvas foram feitas, até que o imperador recém-aclamado voltou para seu palácio. As comemorações seguintes foram de ordem política e militar, reservadas a elite governamental e militar. 

Mas passado esse dia marcante em que se comemorou a aclamação de Dom Pedro e seu aniversário, as novas ordens reais começaram a serem baixadas. Agora Dom Pedro assinava os documentos oficiais como imperador do Brasil, não mais príncipe-regente e protetor do Brasil. Ao longo de outubro vários documentos administrativos foram sendo expedidos, por sua vez, novembro foi escolhido para se organizar os preparativos da coroação. 

A coroação do imperador (1 de dezembro)

O mês de novembro foi marcado por problemas políticos, que não vem ao caso aqui relatar, todavia, a coroação foi agendada para 1 de dezembro como uma homenagem a D. João IV, primeiro rei português após o término da União Ibérica (1580-1640). No caso, durante a União Ibérica, os reis espanhóis Filipe II, Filipe III e Filipe IV governaram também Portugal, o Brasil e as demais colônias portuguesas. Todavia, em 1 de dezembro de 1640, D. João IV foi aclamado rei de uma Portugal novamente independente. Sendo assim, os brasileiros optaram pelo mesmo sentido simbólico, como forma de mostrar a independência do Brasil. 

"O cerimonial da solenidade foi organizado por uma comissão composta de José Bonifácio, o barão de Santo Amaro, D. José Caetano da Silva Coutinho, bispo capelão-mor, monsenhor Fidalgo e fr. Antônio de Arrábida". (SOUSA, 2015, p. 448). 

"Às nove e meia da manhã, acompanhado pela Imperatriz, saiu D. Pedro da Quinta da Boa Vista para o paço da cidade, daí partindo em procissão até a Capela Imperial: “à guarda dos archeiros seguia a música de timbales e charamelas; vinham, após, muitas pessoas graduadas, vestidas de corte, e logo o rei de armas, arauto e passonante. Seguiam as insígnias imperiais, a espada, bastão, luvas, manto, cetro e coroa levados por diversos procuradores-gerais das províncias, acompanhados de moços fidalgos". (SOUSA, 2015, p. 448). 

Coroação de D. Pedro I. Pintura de Jean-Baptiste Debret. 

"Na Capela Imperial, a cerimônia desenrolou-se com o aparato litúrgico de tais atos. Depois do juramento sobre o Evangelho, ungido no braço direito, peito e espáduas, e tomando as vestes majestáticas – manto de veludo verde com forro amarelo, semeado de estrelas e bordado a ouro, e a murça de penas de papo de tucano –, ouviu o imperador a missa, até o penúltimo verso do gradual, no trono, de onde desceu para, ajoelhado, receber a espada – Accipe gladium – cingida pelo celebrante com as palavras – Ascingere gladio tuo, etc. Em seguida ergueu-se, “desembainhou a espada, fez com ela vários movimentos e correndo-a sobre o braço esquerdo, como quem a limpa, meteu-a na bainha e tornou a ajoelhar”. (SOUSA, 2015, p. 449). 

"À espada seguiu-se a coroa. Tirando-a do altar, ajudado pelos bispos assistentes, colocou-a o celebrante sobre a cabeça de D. Pedro, ao som de Accipe Coronam Imperii. Faltava o cetro – Accipe virgam virtutis, etc. Recebido este, voltou ao trono com todas as insígnias imperiais para o Te Deum e últimos hinos e orações. Estava coroado o primeiro imperador do Brasil".  (SOUSA, 2015, p. 450). 

Referência bibliográfica: 

SOUSA, Otávio Tarquínio de. História dos Fundadores do Brasil, vol. II: A Vida de D. Pedro I, tomo II. Brasília: Senado Federal, 2015. 3t

Links relacionados: 

200 anos do Dia do Fico (9 de janeiro de 1822)

200 anos da Independência do Brasil

Maria Quitéria e a Guerra de Independência do Brasil

As imperatrizes do Brasil

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

A Torre de Babel

No livro de Gênesis existe uma breve menção a uma alta torre situada na Ásia, a qual consistiu numa afronta a Deus, por conta disso, ele fez que a humanidade se desentendesse, passando a falar línguas distintas. Embora essa narrativa como veremos a seguir, seja diferente do que normalmente pensamos, a ponto de ela ser mais tratada como um mito do que um fato, como alguns cristãos defendem. Vale salientar que apesar de a Bíblia ser um livro sagrado, ela contém alegorias e mitos, os quais possuem um papel de instrução, pois era a forma pela qual os povos antigos faziam isso, já que a História e a Filosofia não eram saberes regulares. Sendo assim, esta postagem procurou tratar de alguns problemas e dúvidas relativos ao mito da Torre de Babel.

A Torre de Babel por Athanasius Kircher, 1619. 

O relato bíblico (Gênesis 11, 1-9)

Tradução presente na Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa: 

1. Todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras. 

2. Como os homens que emigrassem para o Oriente, encontraram um vale na terra de Sennar, e aí se estabeleceram;

3. Disseram um ao outro "Vinde! Façamos tijolos e cozamo-los ao fogo!" O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa.

4. Disseram: "Vinde! construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra".

5. Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído.

6. E Iahweh disse: "Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será irrealizável para eles. 

7. Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros.

8. Iahweh os dispersou daí por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade.

9. Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi aí que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi aí que ele os dispersou sobre toda a face da terra. 

Descrevendo a Torre em Babel

O mito da torre foi sendo nos séculos seguintes sendo ampliado e até recebendo acréscimos. Como visto na citação acima, a narrativa é bem curta. Apenas fala que um grupo de pessoas se mudou para o vale de Sennar ou Sinear, uma região incerta situada no sul da Mesopotâmia. Ali, essas pessoas construíram uma cidade e a torre, somente no final da narrativa é dito que a cidade ficou conhecida como Babel, mais tarde é informado se tratar da cidade da Babilônia

Não obstante, Deus ficou maravilhado com a façanha daqueles habitantes, e disse que aquilo era a prova que a humanidade poderia realizar grandes feitos. No entanto, diferente do que é dito, o mito não deixa explícito a indignação ou preocupação de Deus, ele somente decidiu confundir aqueles construtores, fazendo-os falar línguas distintas para que assim parassem de construir e se espalhassem pelo mundo. 

Entretanto, o relato não fala que a torre foi destruída como as vezes costumamos ler a respeito. No entanto, a narrativa informa que a torre parou de ser construída, pois sua população foi embora - pelo menos parte dela. Depois disso não temos mais informações sobre a torre: qual seria sua altura? Quando ela foi construída? quanto tempo duraram as obras? Ela foi destruída como? Quem mandou construir ela? Essas perguntas foram até respondidas em outras fontes, mas não na Bíblia. Sobre isso, vejamos o que alguns autores escreveram acerca desse mito. 

Livro dos Jubileus, obra com 50 capítulos, os quais trazem uma versão alternativa de Gênesis, tendo sido escrito por volta de 100 a.C, apresenta mais informações sobre a torre. No capítulo 10, entre os versículos 18 a 28 é informado que a cidade e a torre foram construídas por ordem do rei Reu, filho de Pelege e Lomna, sendo ele neto de Sinnar. Durante seu governo, ao longo de 43 anos, a torre foi construída como forma de que os homens pudessem alcançar o céu. O Livro dos Jubileus fornece o tamanho dessa estrutura, a qual mediria 5.433 côvados e 2 palmos de altura, sua largura seria de 203 tijolos e 13 estádios. Tais valores conotam uma estrutura gigantesca com mais de 2,4 mil metros de altitude e centenas de metros de largura. 

Após fornecer essas informações o relato seguinte é similar ao encontrado em Gênesis, em que Deus desceu do Céu para fazer os homens falarem línguas diferentes e não se entenderem. Por conta dessa confusão de idiomas a região foi chamada de Babel (que nesse caso seria sinônimo de balbúrdia). Em seguida é dito que Deus indignado com a torre enviou um poderoso vendaval que derrubou a torre, a qual ficava localizada entre Assur e a Babilônia. Aqui temos um dado curioso, pois Babel não seria a cidade, mas a região (uma referência ao império babilônico provavelmente). 

A torre de Babel em xilogravura de Gustave Doré, 1868. 

O historiador judeu Flávio Josefo (c. 37-100) em seu livro Antiguidades Hebraicas - também traduzido como História dos Hebreus -, no capítulo 4 escreveu sobre a Torre de Babel. Em sua explanação a torre foi construída pelo rei Ninrode, bisneto de Noé. Em seu governo foi ordenado a construção da tal torre como forma enaltecer a afronta de Ninrode e seu povo perante a Deus. Nesse relato, Josefo deixou claramente escrito que a torre realmente foi erigida para provocar Deus, por conta disso ele causou a confusão das línguas como uma punição, fazendo assim as pessoas se espalharem. No entanto, o relato de Flávio Josefo não informa o tamanho da torre e nem quanto tempo ela demorou para ser construída. Ele também não diz como ela foi destruída, mas que ela ficava situada na Babilônia. 

Outra obra que traz informações sobre a torre está presente no Apocalipse Grego de Baruque, um dos vários apocalipses apócrifos. Embora canonicamente as igrejas cristãs aceitem apenas o Apocalipse de João de Patmos, o qual consta como o último livro da Bíblia, entretanto, no Cristianismo Primitivo mais de setenta apocalipses foram escritos, alguns até foram reconhecidos pela Igreja Católica e a Igreja Copta na época. 

O Apocalipse Grego de Baruque teria sido escrito entre os séculos I e III, sendo atribuído sua autoria a uma profecia tida por Baruque ben Néria, o qual atuou como secretário do profeta Jeremias, durante o século VI a.C, na época do Cativeiro da Babilônia. Baruque teria escrito vários livros, um deles se tornou cânon para os católicos e ortodoxos, mas os demais foram tidos como apócrifos, incluindo as duas versões de seu apocalipse (as quais foram escritas em grego e sírio). Recorri a versão grega por essa fornecer mais detalhes sobre a Torre de Babel.

No relato desse apocalipse é dito que Baruque recebeu um anjo e esse revelou para ele visões sobre os Quatro Céus e outras localidades. Na descrição do Segundo Céu, Baruque ver um grupo de homens e mulheres com cabeças de cães e patas de cervo, espantado com aquilo, ele perguntou ao anjo o que tais pessoas fizeram. O anjo respondeu que aquelas pessoas cometeram o pecado de construir a torre, com 436 côvados de altura, tão alta, que aquelas pessoas chegaram até o Primeiro Céu e tentaram "perfurar" ele. Mas Deus vendo aquilo se enfureceu e fez aquelas pessoas falarem línguas diferentes e as expulsou dali. 

Observa-se que o relato de Baruque é bem curto e pouco informa sobre a torre, nem se quer indica que ela ficasse em Babel, mas fornece sua altura, que em valores atuais seria algo em torno dos 200 metros de altura, um valor até mais realista do que o tamanho da torre descrito no Livro de Jubileus. Vale considerar que a estrutura humana mais alta que existia naquele tempo era a Grande Pirâmide do Egito, com seus 150 metros de altura. Não obstante, o apocalipse de Baruque informa que realmente as pessoas conseguiram chegar ao Céu e usaram uma verruma (tipo de perfuradora) para tentar abrir uma passagem para esse. Aqui temos a descrição de uma ação na qual Deus pega aqueles construtores no flagrante. Todavia, o relato não informa como a torre foi destruída, ou quando ela foi erguida. 

A Torre de Babel por Lucas Van Valckenborch, 1594. 

Na Idade Média alguns relatos sobre a altura da Torre de Babel foram escritos, apresentando-se demasiadamente exagerados, pois seus valores descreviam a torre se parecendo mais como uma montanha, do que uma torre propriamente falando. No entanto, os exemplos aqui expostos são suficientes para mostrar como esse mito foi ganhando contornos e ajudando a criar uma concepção popular sobre ele. Por conta disso, não é incomum ouvir pessoas misturarem informações desses relatos e de outros para falar quem construiu a torre, quando isso aconteceu e como ela foi destruída, lembrando que tais informações não constam no relato canônico. 

Fontes para o mito da Torre de Babel

Mas se uma gigantesca torre nunca existiu, de onde poderia ter surgido essa narrativa? Atualmente os historiadores trabalham a hipótese principal de que o zigurate de Marduk, que havia na Babilônia, teria inspirado esse mito. É preciso salientar que elementos das mitologias mesopotâmicas influenciaram mitos bíblicos, então não seria improvável que ambas as hipóteses realmente tenham um grau de veracidade. Sendo assim, começarei pela questão arqueológica. 

Zigurates eram templos piramidais escalonados (ou seja, erguidos com andares, não em forma de uma pirâmide perfeita), os quais já existiam antes de 3000 a.C, tendo sido estruturas criadas pelos sumérios, um dos povos mais desenvolvidos daquele tempo. Os zigurates eram feitos de tijolos, assim como, a torre de Babel, nota-se aqui uma grande semelhança, já que em todos os relatos esse material sempre e o mesmo, pois, em momento algum é dito que pedras foram usadas para a construção da torre. 

Os zigurates além da função religiosa como templo, também exerciam uma função político-administrativa, pois representavam a autoridade monárquica e do clero, em que na sociedade sumeriana, mas também acadiana e babilônica, os sacerdotes eram também funcionários públicos. A prática de erguer zigurates perdurou ao longo de mais de dois mil anos, havendo zigurates de distintos tamanhos, mas eles não eram tão altos como normalmente se pensa, a maioria ficava entre 30 e 50 metros de altura. Entretanto, o zigurate de Marduk, construído na Babilônia foi um dos mais altos. Sua altura foi estimada em 91 metros conforme antigas análises de documentos encontrados a respeito; mas hoje acredita-se que ele possa ter tido entre 50 e 60 metros de altura. 

Representação de como teria sido o zigurate Etemenanqui da Babilônia.

Chamado de Etemenanqui (templo da fundação do Céu e da Terra), ele foi dedicado a Marduk, o deus padroeiro da Babilônia, importante divindade da religião e mitologia dos babilônios, embora fosse anteriormente cultuado pelos acadianos. Não se sabe em que época esse zigurate foi construído, havendo várias sugestões que remonta do século XIV a.C até o século IX a.C. Todavia, a estrutura sofreu com os ataques feitos a cidade, fato esse, que os historiadores e arqueólogos apontam a possibilidade de o zigurate possa ter sido parcialmente destruído no século VII a.C, durante a invasão assíria da Babilônia, em que o rei Senaqueribe relatou o sucesso de sua campanha, ao dizer que o zigurate dos babilônios foi destruído por sua ordem. 

Entretanto, o templo provavelmente foi reconstruído nos séculos seguintes, pois os reis Nabopolasar (r. 626-605 a.C) e seu filho Nabucodonosor II (r. 604-562 a.C) empreenderam grandes reformas na cidade, reconstruindo muita coisa destruída desde a invasão dos assírios, além de promover novas obras. Inclusive os gregos creditavam a Nabucodonosor II a criação dos famosos Jardins Suspensos da Babilônia. De qualquer forma, o zigurate deve ter sido reconstruído, embora não se saiba que tamanho ele passou a ter. 

Além disso, durante o Cativeiro da Babilônia (586-539 a.C), o zigurate existia, fato esse que o historiador grego Heródoto de Halicarnasso relatou no século V a.C, que essa torre teria oito andares e seria quadrangular, sendo a mais alta estrutura da cidade. Embora Heródoto nunca tenha viajado à Babilônia, mas ele chegou a viajar à Ásia Menor e o Egito, tendo obtido informações sobre essa localidade. 

Sendo assim, o zigurate Etemenanqui, ainda hoje, é um forte candidato para ter inspirado o mito da Torre de Babel pelos seguintes motivos: ele era uma torre feita de tijolos, era a mais alta construção daquela cidade; a Babilônia era uma cidade cosmopolita, e uma das maiores cidades do mundo, na época, na qual se falava muitas línguas; o zigurate era um templo dedicado a Marduk, divindade vista como um falso deus pelos hebreus; além de que os hebreus desenvolveram toda uma antipatia com os babilônios devido a invasão de seu país e a época do cativeiro; fato esse, que a Babilônia é uma cidade malvista na Bíblia, em várias passagens. 

NOTA: No Corão a Torre de Babel não é citada. Embora a cidade de Babel (Babilônia) seja mencionada algumas vezes. 

NOTA 2: O mito de Enmerkar e o Senhor de Aratta fala da construção de um zigurate e da punição do deus Enki, fazendo a humanidade falar línguas distintas. Apesar dessas semelhanças com a narrativa bíblica, esse mito é bem diferente, pois Enmerkar construiria a torre como uma oferenda a deusa Ishtar. Mas a punição de Enki se deveu a outros motivos. 

Fontes:

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002. 

LIVRO dos Jubileus. Tradução de L. F. S. Prado. 2012. Disponível em: https://www.autoresespiritasclassicos.com/Evangelhos%20Apocrifos/Apocrifos/1/O%20Livro%20dos%20Jubileus%20(Texto%20Et%C3%ADope%20-%20Completo).pdf

NATALIO, Férnandez Marcos. Apocalipsis griego de Baruc. Introducción, traducción y notas. Sefarad: revista de estudios hebraicos, sefardíes y de Oriente Próximo, a. 50, n. 1, 1986, p. 191-209. 

Referências bibliográficas: 

FARIA, Jacir de Freitas. Gn, 11-9: contramito Torre de Babel ao mito de fundação da Babilônia. Estudos Bíblicos, vol. 30, n. 120, 2013, p. 359-370. 

RYKEN, Leland; WILHOIT, James C; LONGMAN III, Tremper (eds.). Tower of Babel. In: Dictionary of Biblical Imagery. Leicester, InterVarsity Press, 1998, p. 261-265. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Ciro, o Grande: o Príncipe da Pérsia

A Pérsia originalmente era um pequeno reino situado no sul do atual Irã, fazendo fronteira com a Média, a Mesopotâmia, a Pártia e outros territórios. Mas no século VI a.C, um príncipe de vinte e poucos anos, chamado Ciro, iniciou sua ascensão como novo soberano da Pérsia, mas com a diferença de que ele estava determinado a tornar seu país num império. Neste texto contei um pouco da história de Ciro II, o Grande, o qual fundou o primeiro império persa, um dos maiores da sua época. Adianto que pouco se sabe sobre sua vida, governo e de seus antepassados. 

O Reino da Pérsia

Segundo a tradição persa e grega, os antigos persas eram um povo nômade e seminômade, os quais habitavam o sul do Irã, todavia, em algum momento do começo do século VII a.C, um chefe chamado Aquêmenes foi coroado seu primeiro rei, tendo se rebelado contra o domínio dos medos, os habitantes da Média. Nada se conhece sobre esse soberano, e ainda existe a dúvida se ele realmente tenha existido ou foi uma lenda. Seu sucessor foi o rei Teispes (675-640 a.C) de cujo reinado nada se sabe também. (BURGAN, 2009). 

Teispes foi sucedido por seus dois filhos: Ariarâmenes (676-590 a.C) e Ciro I (?-580 a.C). Não se sabe ao certo como era a relação dos dois irmãos e a forma como o reino persa estava dividido sob o governo deles. Entretanto, Ariarâmenes é pouco citado na história da época, havendo mais menções a Ciro I, que se envolveu com guerras em Elam e problemas políticos na Média e na Babilônia, na época do rei Assurbanipal (685-631 a.C). No entanto, praticamente nada se conhece do reinado de Ciro I e seu irmão. (BURGAN, 2009). 

De qualquer forma, Ciro I foi sucedido por seu filho Cambises I (?-559 a.C), que governou como único soberano da Pérsia, já não dividindo mais o trono. Em seu reinado ele procurou manter a diplomacia com os babilônios e os medas, condição essa como escreveu o historiador grego Heródoto de Halicarnasso, Cambises I casou-se com Mandane, filha do rei Astiages da Média, a fim de firmar uma aliança entre os dois reinos, anteriormente inimigos. Segundo Heródoto, esse escreveu que uma profecia tida pela madrasta de Mandane teria previsto que o filho da princesa seria um grande conquistador, subjugando o avô; se essa profecia realmente existiu ou não, ainda assim, ela estava certa, pois o filho de Mandane com Cambises I foi Ciro II. 

O Príncipe da Pérsia

Ciro II nasceu na cidade de Ansã, então capital persa, no entanto, não se sabe exatamente a data de seu nascimento. Ele teria nascido entre as décadas de 590 e 580 a.C., tendo sido o primeiro filho de Cambises I e Mandane, logo, herdeiro direto do trono persa, além de ser também um dos herdeiros do trono medo por parte de sua mãe, embora que na época isso nem fosse cogitado. De qualquer forma, praticamente nada se sabe sobre sua infância e adolescência, o mesmo vale para seus antepassados, pois essas etapas da vida costumavam serem ignoradas pelos antigos historiadores. Embora Xenofonte tenha escrito um livro sobre a vida de Ciro, hoje ele é considerado como sendo ficcional, em que Ciro II foi usado para ilustrar um ensaio filosófico moralista do autor. (WATERS, 2022). 

Como os persas no século VI a.C não tinham o costume de registrar sua história, as informações sobre o governo de seus reis são bastante escassas. O rei Cambises I morreu em 559 a.C de causas desconhecidas, estando entre os quarenta e cinquenta anos, dessa forma, Ciro II subiu ao trono entre seus vinte e trinta anos. Não se sabe como foram seus primeiros anos de governo, entretanto, em sua época a Pérsia ainda era um reino vassalo da Média, tendo que pagar tributos para os medos. Ciro II teria tentado convencer seu avô de mudar isso, mas esse se recusou, fato esse que uma rebelião contra os medos se iniciou anos depois.

Heródoto aponta que o conflito teria durado em torno de três anos, terminando com a vitória persa na Batalha de Pasárgada em 550 a.C, conflito o qual Ciro II teve o apoio do general medo Hárpago, que traiu seu rei. Inclusive Hárpago tomou a capital medo, Ecbatana, ordenando a prisão de Astiages, o qual compareceu ao seu neto Ciro II. O monarca persa poupou a vida do avô, mas declarou-se novo soberano da Média, fundido aquele reino à Pérsia, isso em 549 a.C. (WATERS, 2022). 

Tapeçaria do século XVIII mostrando o rei Astiages da Média preso diante de seu neto Ciro II (ao centro). 

Dessa forma, Ciro II por volta de seus quarenta anos, era o senhor de dois reinos. Ele já não era mais um príncipe vassalo, agora era um rei independente que subjugou seus rivais e tomou para si um reino que também lhe era de direito, embora ele não fosse o mais próximo na linha de sucessão. No entanto, sua ambição não estava próxima ao fim, mas apenas começando. Tendo obtido controle da Média, Ciro II decidiu expandir seus domínios. 

Fundando um império

A Média era um reino mais vasto do que a Pérsia, nem por isso necessariamente mais poderoso, pois os persas conseguiram conquistá-lo em três anos de conflito. Entretanto, Ciro II quando herdou o novo reino, seus domínios se estendiam para dentro do território Parto, adentrando o que hoje é o Turcomenistão e o Afeganistão, além de se estender no oeste através da Assíria, Armênia, chegando a Lídia (hoje na Turquia). Apesar da derrota do rei Astiages e a proclamação de um novo soberano, alguns nobres se recusaram a reconhecer Ciro II como monarca, iniciando resistência. (BURGAN, 2009). 

Uma das resistências mais notáveis ocorreu com os lídios, liderados pelo rei Creso (?-546 a.C), que formou uma aliança com os espartanos, babilônios e egípcios para confrontarem os persas. A aliança conseguiu manter os persas ocupados por alguns anos, pois os exércitos de Ciro conquistaram a Lídia na década de 540, embora que anteriormente a data cogitada fosse 547 a.C, hoje ela é considerada não como derradeira, mas marcando apenas a derrota do rei Creso, o qual apesar de morto, a resistência lídia não terminou. Além disso, vale mencionar que os lídios governavam sobre antigas colônias gregas, por conta disso, os gregos passaram a ter conhecimento cada vez mais regular sobre os persas, os considerando seus inimigos desde então, rivalidade que aumentaria nos séculos seguintes. (WATERS, 2022). 

Com a vitória sobre os lídios e seus aliados gregos Ciro II voltou a atenção para um de seus vizinhos, o Reino da Babilônia. No século VI a.C a Babilônia já não era um reino próspero e poderoso como outrora. Após a morte de Nabucodonosor II em 562 a.C, o reino entrou numa crise de sucessão em que os reis governaram por poucos anos, sendo traídos ou assassinados, o que fragilizou ordem política até que Nabonido foi coroado em 556 a.C, governando com o apoio de seu filho Belsazar. Embora pai e filho tenham conseguido estabilizar a crise dinástica que assolou a Babilônia, o reino perdeu suas forças e estabilidade nesse tempo, condição essa que Ciro II sabia disso e decidiu conquistar os babilônios. (BURGAN, 2009). 

Mapa do Reino da Babilônia ou Império Neobabilônico no século VI a.C. 

Se desconhece os detalhes das campanhas militares do governo de Ciro, o Grande, apenas há menções sobre algumas batalhas e conquistas, todavia, os relatos históricos do período apontam que não houve grandes problemas para subjugar os babilônios. O exército persa era o mais poderoso do Oriente Médio naquele tempo, vindo de sucessivas vitórias na Lídia, Armênia e Pártia, sua fama de implacável como os autores gregos se referiam a ele, havia se espalhado da Pérsia à Grécia e o Egito. Alguns governadores temiam enfrentar os persas, optando em negociar com eles, pois Ciro era conhecido por ser um monarca benevolente com quem se rendia. 

As Crônicas de Nabonido, registros históricos do monarca babilônio, relataram que os persas obtiveram duas grandes vitórias importantes: a Batalha de Susa, ocorrida em data incerta no ano de 540 a.C, na qual os persas conquistaram a capital do Elam, importante território fronteiriço entre a Pérsia e a Babilônia. Dali o exército persa atravessou aquelas terras rumo ao coração dos domínios babilônicos indo travar a Batalha de Ópis, uma cidade situada ao norte da Babilônia. O conflito ocorreu por volta de 12 de outubro de 539 a.C. Com essa vitória o exército persa marchou rumo a capital. Os historiadores cogitam que Ciro II tenha negociado a rendição com os generais babilônios, pois eles não apresentaram resistência. (DANDO-COLLINS, 2020). 

No dia 29 de outubro de 539 a.C, a cidade da Babilônia estava cercada pelos exércitos persas e o rei Nabonido foi forçado a declarar rendição, já que recusava aceitar a derrota. Ele foi preso junto com seu filho e familiares. Com isso, Ciro II havia subjugado mais um grande reino asiático. Como primeiras medidas tomadas, o monarca persa prometeu que manteria a paz, não iria saquear a cidade, retomaria as obras públicas, manteria os funcionários em seus cargos, desde que jurassem lealdade a ele; Ciro também mandou realizar cerimônias religiosas, principalmente a Marduk, o deus padroeiro da cidade. Ele também declarou seu filho Cambises II como governante da Babilônia e seu sucessor oficial. Essas medidas foram escritas num cilindro de argila, que felizmente foi preservado nesses milênios. 

O Cilindro de Ciro, o Grande, o qual registra suas ordens como novo rei da Babilônia. 

A conquista da Babilônia é mencionada em alguns livros bíblicos do Antigo Testamento: Isaías, Esdras, Daniel e Segunda Crônica dos Reis, citam Ciro, o Grande e celebram sua conquista, pois os hebreus que tinham sido escravizados pelos babilônios décadas antes, puderam ser libertados. Na Bíblia, embora Ciro fosse tido como um monarca pagão e conquistador, ele foi reconhecido como benevolente por colocar fim ao Cativeiro da Babilônia, embora que a Síria e a Judeia fizessem parte de seu império, agora ampliado com a anexação do reino babilônico. 

Após subjugar a Babilônia, sua última grande conquista, os historiadores gregos, babilônios e persas pouco falam do governo de Ciro nos anos seguintes, mas em dado momento ele decidiu combater os Masságetas liderados pela rainha Tômiris, que viviam nas fronteiras nortes do império no que hoje seriam o Cazaquistão e o UzbequistãoNão se sabe quando essa campanha teve início, mas Ciro mesmo idoso, tendo seus sessenta e poucos anos, viajou para o campo de batalha. Segundo Heródoto, Ciro II foi morto em batalha e sua cabeça foi cortada; a rainha Tômiris ordenou que ela fosse jogada dentro de um recipiente como sangue; já Xenofonte disse que o rei morreu dormindo. A causa da morte de Ciro II não é conclusiva, pois outros autores citaram outros fatores, no entanto, foram unânimes de que ele faleceu em 530 a.C. (DANDO-COLLINS, 2020). 

A tumba de Ciro, em Pasargada. Embora tenha sido um poderoso monarca, ele pediu que sua tumba fosse simples. 

Considerações finais

Ciro II da Pérsia ganhou a alcunha de o grande por conta de sua política expansionista e os êxitos obtidos por suas campanhas militares, algumas nas quais ele participou no comando. No entanto, suas conquistas militares se resumem em três grandes momentos: a conquista da Média, da Lídia e da Babilônia, condição essa que por volta de 538 a.C, o monarca mandou escrever a seguinte mensagem: 

"Eu sou Ciro, o Rei do Mundo, o Grande Rei, o Poderoso Rei, Rei da Babilônia, Rei da Suméria e da Acádia, Rei dos quatro cantos do mundo, Filho de Cambises, Grande Rei, Rei de Ansã, Descendente de Teispes, Grande Rei, Rei de Ansã, A Semente Perpétua da Realeza, cujo reinado Bel e Nabu Amam". (DANDO-COLLINS, 2020). 

Nesse discurso soberbo, Ciro exaltou sua conquista sobre o reino babilônico, assim como, enalteceu seu império, seu pai e avô, além de fazer uma homenagem aos deuses babilônicos Bel (epíteto para Marduk) e Nabu (deus da escrita). Seu império era o mais extenso no mundo na época, nesse sentido ele havia se tornado um príncipe, aqui no sentido de "o primeiro" imperador da Pérsia. 

O império persa sob o domínio de Ciro, o Grande (559-530 a.C). 

Com a sua morte, o trono foi devidamente passado para Cambises II, o qual em seu reinado conquistou o Egito, a Núbia e a Cirenaica. Mas diferente de seu pai que era conhecido pela complacência e a benevolência, Cambises era mais rude e temperamental, a ponto de Heródoto se referir a ele como um tirano. No entanto, Cambises como seu pai, lhe herdou o gosto pela conquista militar, tendo tentado expandir seus domínios na África, o que foi seu erro e lhe custou a vida. Após sua morte, o trono foi tomado por um impostor que se disfarçou como irmão de Cambises II, Esmérdis.

O impostor chamado Gaumata ou Bardia governou por alguns meses quando foi descoberto e executado. Como Cambises II não tinha deixado herdeiros homens, seu primo Dario assumiu o governo, tornando-se Dario I, o Grande, um governante ao nível de Ciro II, o qual tentou conquistar a Grécia sem sucesso, mas essa é outra história. 

NOTA: Segundo Heródoto, quando Astiages soube da profecia dada por sua esposa, de que seu neto nascido de Mandane iria destroná-lo, teria mandado matar o bebê, mas o general Hárpago se recusou a cumprir a ordem e trocou a criança. Todavia, essa história é tida como uma lenda, algo que encontra respaldo na própria mitologia grega, em que personagens como Perseu, Édipo e Páris foram destinados a trazer a ruína ao reino, e, por isso eles foram abandonados para morrer. 

NOTA 2: Ciro II foi casado com Cassandane, referido por ele como o grande amor de sua vida. Dessa união eles tiveram Cambises II, Esmérdis, Atossa e Roxana. No caso, Atossa acabou casando-se com Dario, o Grande, a fim de reforçar a aliança dele como sucessor oficial, condição essa que o rei Xerxes I, era neto de Ciro II. 

NOTA 3: A rainha Tômiris é retratada no jogo Prince of Persia: The Lost Crown (2024). No entanto, nessa narrativa ela governou após o reinado de Dario, o Grande (r. 522-486 a.C), não antes. 

Referências bibliográficas: 

BURGAN, Michael. Empires of Ancient Persia. New York, Chelsea House, 2009. 

DANDO-COLLINS, Stephen. Cyrus the Great: conqueror, liberator, anointed one. Nashville, Turner Publishing Company, 2020. 

WATERS, Matt. The Life of Cyrus the Great: King of the World. Oxford, Oxford University Press, 2022. 

domingo, 6 de novembro de 2022

Dragonologia: o estudo dos dragões em bestiários medievais

A Dragonologia consiste numa pseudociência fictícia, presente em obras de literatura e jogos, a qual tem como intuito estudar os dragões em seus aspectos biológicos e mágicos. No entanto, na Europa medieval, a dragonologia foi algo real, ou quase isso, pois os bestiários, livros que estudavam animais reais e fantásticos, dedicavam páginas ou capítulos para se estudar essas feras reptilianas que cuspiriam veneno ou fogo. O presente texto com base nos bestiários europeus comentou a respeito desses animais fantásticos.

Quatro diferentes representações de dragões em bestiários do século XIII. 

Introdução: a literatura dos bestiários

O bestiário foi um gênero literário medieval surgido na Europa, influenciado por livros da Antiguidade como o Da História dos Animais de Aristóteles, História Natural de Plínio, o Velho, o Fisiólogo de autoria desconhecida, entre outras obras. Os bestiários se popularizaram entre os séculos XII ao XIV, sendo livros ricamente ilustrados, cobiçados por alguns colecionadores, por serem obras caras. Eram livros que versavam sobre temas antigos, baseados nas pesquisas de estudiosos clássicos, ou em pesquisadores desconhecidos. Muitos bestiários foram produzidos na Inglaterra e França, principais países desse gênero literário. 

Os bestiários elencavam uma série de animais reais e fantásticos, mas não abordavam necessariamente monstros. A maioria das criaturas retratadas pertenciam a fauna da Europa, norte da África, Oriente Médio e Índia. As informações sobre animais reais na maior parte das vezes eram imprecisas, advindas de lendas, mitos e boatos, mas eram tidas como corretas naquelas obras. Por sua vez, dentre os animais fantásticos tínhamos unicórnios, grifos, fênices, basiliscos, e evidentemente, os dragões, que estavam entre os mais populares. 

“O Bestiário organiza-se em torno de pequenas narrativas que descrevem várias espécies animais, com propósitos morais e didácticos. Neste sentido, cada uma dessas narrativas é composta por duas partes distintas: uma parte descritiva de sentido literal (a descrição, proprietas ou naturas) e a sua moralização e interpretação teológica de sentido simbólico-alegórico (também designada como moralização, moralitas ou figuras)”. (VARANDAS, 2006, p. 1). 

"O desenvolvimento da produção de bestiários é coincidente com o desenvolvimento e crescimento das bibliotecas monásticas. Por estas razões, não podemos atribuir a estes manuscritos um autor particular, pois apresentam-se como fruto de várias mãos que, ao longo dos anos, os foram copiando e, ao mesmo tempo, traduzindo e ampliando. De entre as várias ordens religiosas que apadrinharam os bestiários contam-se os monges beneditinos e os cistercienses, embora também os franciscanos e os monges agostinhos os tenham desenvolvido". (VARANDAS, 2006, p. 19). 

O conceito de dragão 

Em geral o conceito de dragão que normalmente utilizamos é de um monstro reptiliano de grande porte, podendo ser até mesmo gigantesco, o qual voa e cospe fogo. Todavia, existem diferentes tipos de dragões, além de que o chamado dragão oriental (encontrado em países como China, Japão, Coreias, Tailândia, Camboja, Vietnã etc.) anteceda a noção de dragão europeu. Entretanto, o próprio dragão oriental possui aspectos físicos, mágicos e funções distintas dos dragões europeus. 

Como o objeto de estudo dessa análise são os dragões europeus, não vem ao caso explanar sobre os dragões asiáticos. Logo, retomando ao caso europeu, a palavra dragão advém do grego antigo drákon, palavra usada para se referir a monstros ofídicos de grande porte. Sendo assim, a origem da palavra drákon referia-se a grandes serpentes, as quais os antigos gregos diziam viver em partes da África e da Índia. De fato, realmente existem grandes cobras nessas localidades, diferente da Europa, em que a maioria das espécies ofídicas mal chegam aos dois metros de comprimento. (OGDEN, 2013). 

No entanto, o drákon dos mitos gregos não seria uma simples cobra grande, mas um monstro propriamente falando, como a serpente Píton, a Hidra de Lerna e Ládon. Esses três exemplos presentes da mitologia grega são dragões no sentido da palavra drákon. Vale ressaltar que a Hidra e Ládon eram dragões com várias cabeças, mas eles não cuspiriam fogo e nem voariam. Esses dois elementos estão ausentes nesses três mitos, sendo agregados por outros povos europeus com o tempo. (OGDEN, 2013). 

Por sua vez, os romanos traduziram a palavra drákon para draco, que originou várias versões dessa palavra nos idiomas europeus como dragão, dragon, dragón, drake, drache, drac, drago, drage, draak etc. 

Com o passar do tempo a noção de dragão foi se espalhando pela Europa e ganhando novas características, surgindo os dragões alados e cuspidores de fogo. Embora tais características sejam marcantes, elas não eram únicas. Os bestiários forneciam diferentes informações sobre essas características tidas como reais, algo que veremos no próximo tópico. 

Os dragões nos bestiários europeus

Como vimos um breve resumo histórico sobre os bestiários, passemos direto ao tema dessa análise. Os dragões nos bestiários eram representados em diferentes cores, não necessariamente sendo verdes e pretos, alguns eram vermelhos, azuis, amarelos, marrons, cinza; alguns poderiam ter mais de uma cor, e havia casos de dragões que não teriam escamas, mas conteriam pelos e penas (embora fosse um padrão mais raro de se ver). Além disso, dragões poderiam correr, pular, voar e nadar. O que revela como essa criatura estava inserida nos ambientes terrestre, aquático e celeste.

Os dragões poderiam cuspir veneno, soltar fogo pela boca, fumaça pelas narinas; alguns também exalavam um odor tão fedorento que gerava náuseas. A ideia de dragões soltando gelo e raio é algo oriundo da literatura pós-medievo.  

Michel Pastoureau (2012) também comenta que nos bestiários em geral as descrições dos dragões eram baseadas num padrão comum, repetidas por vários autores. Os quais salientavam serem criaturas que poderiam cuspir veneno ou fogo, teriam uma longa e forte cauda, que poderiam usar como chicote; conteriam presas e garras bastante afiadas; seus olhos eram negros ou vermelhos, possuindo um olhar intimidador a ponto de causar medo ou paralisia. Eles viveriam em cavernas, florestas, montanhas e desertos. 

Essas criaturas também possuíam um tamanho variado, podendo serem pequenas, ter o tamanho de um cavalo, ser grande como um elefante, ou maior do que uma casa. Em geral os bestiários não estipulavam o tamanho dos dragões, ficando a critério das narrativas que abordavam eles, determinar isso. 

Um tipo comum de dragão encontrado nos bestiários e na iconografia medieval europeia era o chamado lindworm, um dragão com corpo de cobra, mas possuindo duas patas, o qual poderia cuspir veneno. 

Um lindworm sob a árvore peridexion, em que pombos a cercam. Essa lendária árvore produziria frutos e flores cujo odor atrairia os pombos, mas repeliria os dragões. Bestiário Harley MS 3244, fol. 58, c. 1255-1265. 

Em pedras rúnicas suecas, erguidas durante o século XI, no final da Era Viking (VIII-XI), encontramos vários lindworm adornando esses monumentos. Ali podemos ver esses dragões tendo em geral pernas dianteiras, possuindo orelhas ou chifres. Essa imagem do lindworm foi preservada nos bestiários, mas com a principal mudança de que nesses livros eles eram representados geralmente tendo as pernas traseiras, o que os permitia andar como aves. 

Em seguida temos os dragões do tipo wyvern, os quais se tornaram os mais populares nos bestiários e na heráldica. Esse dragão é bem parecido com o lindworm, suas principais diferenças é o fato de ele ter asas e poder voar, e também podia cuspir fogo. O wyvern era tão popular que a maioria dos bestiários a partir do século XIII deixaram de retratar lindworm, e passaram a adotar esse tipo de dragão, o qual também aparecia na iconografia de igrejas, monumentos, outros livros e pinturas. Sua forma também inspirou os artistas renascentistas.

Um wyvern colorido e com penas no bestiário MS. Ludwig XV 3, folio 89r, c. 1270. 

Os wyvern eram dragões mais associados com o fogo, diferente dos lindworm, que em geral era dito apenas cuspirem veneno. Além disso, pelo fato dos wyvern poderem voar, as narrativas lhes concediam uma característica mais assustadora, pois essas criaturas poderiam facilmente capturar alguém com suas patas e levar as pessoas embora. No entanto, Pastoureau (2012) lembra que a capacidade de alguns dragões poderem voar os deixava vulneráveis a uma força da natureza: os raios. Pasotoureau salienta que um raio poderia matar facilmente um dragão, isso vem da questão simbólica em que dragões se tornaram seres demoníacos pelo Cristianismo, e o raio passou a ser a manifestação divina de Deus. Nesse sentido, um dragão ser atingido por um raio simbolizava Deus punindo o mal

Outros tipos de dragões encontrados em bestiários são os de quatro patas, os quais não possuem um nome específico. Esses de forma menos usual apareciam sem asas, sendo o mais comum os dragões alados quadrupedes. Esses dragões costumam ter um corpo baseado em lagartos, mas também em outras criaturas como crocodilos e leões. Na prática eles somente se diferenciavam dos wyvern pela quantidade de patas (e as vezes de asas também). Esse tipo de dragão antecede os bestiários, pois no poema Beowulf (c. 1000) já encontramos a menção de um dragão quadrupede que voa, cospe fogo e guarda uma caverna do tesouro. Elementos clássicos das lendas sobre dragões. 

Um dragão quadrupede no bestiário Harley MS 3244, fol. 59r, 1255-1265. 

O dragão, o elefante e a pantera

Um aspecto curioso a ser mencionado que está presente nos bestiários era a relação desses três animais. Autores da Antiguidade e começo do Medievo relatavam que dragões eram seres oriundos da África (em especial na Etiópia) e da Ásia (em especial da Índia), mas eles existiam na Europa, embora fosse mais raro de encontrá-los. Por tal condição, os dragões eram animais que conviviam com a fauna africana e asiática, o que incluía elefantes e panteras. 

Plínio, o Velho em sua História Natural (Livro 8, capítulos 1-13) relatou que os elefantes na Índia eram atacados por grandes serpentes, as quais conseguiam matá-los e devorá-los. Essa descrição é interessante, pois anos depois ela foi ligeiramente reformulada, pois no século VII, Isidoro de Sevilha em sua Etimologias, repetiu algumas informações ditas por Plínio, mas substituindo as serpentes por dragões (draco no original em latim usado por ele). Dessa forma, as obras da época de Isidoro e as posteriores, passaram a informar que elefantes e dragões eram inimigos naturais. 

Elefanta protegendo seu filhote do ataque de um dragão. Bibliothèque Nationale de France, lat. 6838B, folio 4v, séc. XIII. 

Os autores não entram em detalhes do porquê especificamente dragões caçarem elefantes, mas com o tempo o elefante tornou-se simbolicamente um animal que representava o bem, e, por sua vez, o dragão passou a expressar o mal. Dessa forma, eles simbolizavam opostos. 

No caso da pantera, esse é um exemplo interessante também. Muitas informações sobre esse felino são desencontradas, atribuindo a eles algumas características dos leões, leopardos e tigres. Na prática, a palavra pantera era usada para se referir aos leopardos, encontrados na África e Ásia. No século VII, Isidoro de Sevilha escrevia com base em Plínio e outros autores antigos, que as panteras eram belos animais com pelagem colorida podendo ter ou não manchas, possuindo círculos pretos ao redor dos olhos. Elas eram animais que mantinham a boa convivência com outras espécies, menos os dragões, por conta disso, as panteras eram respeitadas pelos outros bichos devido a sua influência em afugentar os dragões. Séculos depois, Alberto Magno escreveu que os dragões temiam as panteras a ponto de apenas em avistá-las ou ouvir seus rugidos, eles saíam fugindo. 

Uma pantera protege um cervo e um camelo, afugentando com seu rugido dois dragões. Royal MS 12 F XIII (Bestiário de Rochester), folio 9r, c. 1230-1240. 

Uma das interpretações para as panteras afugentarem os dragões (mesmo elas sendo pequenas se comparado a algumas dessas feras) advém de uma compreensão cristã desses animais. No Fisiólogo é dito que as panteras eram animais associados as virtudes cristãs, representando a amizade, a honra, a benevolência e a proteção, pois elas sendo corajosas, enfrentavam os perigos que ameaçavam outros animais, da mesma forma que um cristão deveria se impor contra as injustiças e zelar pelos que não podem se proteger. Assim, se recordarmos que o dragão se tornou símbolo da maldade, e a pantera era um símbolo de bondade, novamente a dicotomia Bem x Mal se encontrava presente. 

Dessa forma os leitores podem observar que a relação entre o dragão, o elefante e a pantera giravam entorno de uma interpretação religiosa cristã: em que o elefante representaria o bem oprimido pela maldade, por sua vez, a pantera simbolizaria a força do bem que triunfa sobre o mal. 

NOTA: O termo dragão oriental engloba as crenças sobre dragões presentes no Extremo Oriente, pois os dragões do Oriente Médio possuem características e funções distintas, algumas parecidas com a versão europeia. Neste caso, optei em diferenciar esses dois tipos de dragões asiáticos. 

NOTA 2: Além do Cristianismo, as religiões do Judaísmo, Islão, Zoroastrismo, entre outras, também consideram dragões como criaturas maléficas. 

NOTA 3: Alberto Magno em seu bestiário trouxe uma longa descrição sobre os elefantes, evidentemente embasada em informações lendárias e incorretas, mas que na época tidas como verdadeiras. 

NOTA 4: No Fisiólogo é dito que a pantera era um animal que simbolizava qualidades de Jesus Cristo e de Salomão. 

NOTA 5: Nomenclaturas como wyrm, lindworm, wyvern, dragon, drake etc., para distinguir dragões, advém mais da literatura contemporânea, pois nos bestiários, os outros termos não eram utilizados, e as vezes usava-se apenas a palavra draco para se referir a todos eles. 

Fontes:

ALBERT the Great. Man and the Beasts: De Animalibus (Books 22-26). Translated by James J. Scanlan. Binghamton, Medieval & Renaissance Texts & Studies, 1987. 

ISIDORE of Seville. Etymologies. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 

PHYSIOLOGUS. A medieval book of nature lore. Translated by Michael J. Curley. Chicago: University of Chicago Press, 2009. 

Referências bibliográficas:

OGDEN, Daniel. Drakon: Dragon Myth and Serpent Cult in the Ancient Greek and Roman Worlds. Oxford: Oxford University Press, 2013. 

PASTOUREAU, Michel. Bestiari del Medioevo. Traduzione de Camilla Testi. Torino: Giulia Einaudi, 2012. 

VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Medievalista, ano 2, n. 2, 2006, p. 1-53. 

Links relacionados:

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O rei das serpentes: o basilisco