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Leandro Vilar

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Olímpia e os Jogos Olímpicos

Há mais de 2700 anos na Grécia Antiga, em Olímpia a cada quatro anos eram realizados os Jogos Olímpicos, hoje conhecidos mais como Olimpíadas; jogos realizados em honra ao rei dos deuses gregos, Zeus. Embora os Jogos Olímpicos não tenham sido nem o primeiro e último evento esportivo da Grécia Antiga, acabaram com o tempo se tornando o mais famoso, reunindo atletas de toda a Grécia, do "mundo helênico" e até do Império Romano. Por mais de mil anos, atletas competiram no estádio de Olímpia, não por medalhas, mas por glória, riqueza e fama. Entretanto Olímpia foi muito mais do que a capital do esporte, foi um local bem movimentado entre os bastidores desse grande espetáculo. 

Nesse texto falarei um pouco a respeito da cidade de Olímpia, o seu papel como capital dos Jogos Olímpicos, e toda a trama social que se desenvolvia pela cidade durante esse evento, o que atraía pessoas de vários cantos do Mediterrâneo: advindas da Europa, África e Ásia. Onde pelos bastidores, corriam questões políticas, econômicas e sociais, e ao mesmo tempo, mostrarei um lado pouco conhecido da cidade, o seu lado mais cultural e artístico. Por fim, completarei esse trabalho falando acerca da origem dos jogos, sua estrutura organizatória, quem eram os atletas, como eram as modalidades disputadas, as vitórias, as trapaças, os hábitos e costumes da vida de um atleta da Grécia Antiga.

Olímpia: de santuário a capital do esporte

Quando se fala em Olímpia (Ολυμπία) embora chamemos de cidade, na realidade, a mesma era um santuário, pois praticamente ninguém habitava a localidade, as pessoas que ali viviam, moravam em vilas e cidades vizinhas, já que no começo, não havia edificações em Olímpia. No início ela era apenas um santuário, localizado em um lugar sagrado, em meio ao bosque Áltis, diante do Monte Cronos, entre as confluências dos rios Alfeu e Cladeu. Segundo a mitologia, foi neste lugar que Zeus derrotou o seu pai Cronos, daí o nome do monte ter sido batizado em homenagem ao titã, e Olímpia ser uma referência ao Olimpo e ao próprio Zeus, também conhecido pelo epíteto de Olímpico. 

Olímpia fica situada na região da Élide, na península do Peloponeso, e por vários anos foi um importante santuário local, tal fato atesta-se pela descoberta de alguns vestígios arqueológicos que indicam a peregrinação de fiéis à região a fim de deixarem suas oferendas. Alguns desses vestígios são datados do século X a.C, no entanto foram encontrados vestígios nas redondezas, que indicam a ocupação da área bem anterior a essa data, remetendo em alguns casos a pelo menos 2800 a.C. Porém os historiadores também acreditam que por volta do século X a.C já houvesse a prática de esportes no local, pois era comum entre os gregos a realização de competições atléticas em celebrações religiosas, especialmente para as divindades masculinas as quais estavam associadas ao esporte.

Localização de Olímpia e outras cidades gregas.

Olímpia só passou a ter maior destaque na história grega a partir do ano de 776 a.C, quando foi realizada a primeira edição dos Jogos Olímpicos, que na época durou apenas um dia e contou com uma única modalidade, a corrida. Porém, a Grécia do século VIII a.C era bem diferente do que comumente vemos nos livros e nos filmes; o século VIII a.C compreendeu o início do ressurgimento da civilização grega, saída do seu período decadente chamado por alguns historiadores como "idade das trevas gregas" ou "medievo grego", ou mais corretamente falando, a "época dos oikos". Para que o leitor entenda como era a Grécia na época do estabelecimento dos jogos, farei uma breve retrospectiva temporal.

A região que compreende hoje a Grécia e suas ilhas, já eram habitadas há milhares de anos por vários povos que acabaram se misturando com povos estrangeiros, que por fim originaram os gregos. Nesse caso, na ilha de Creta entre os anos de 3000 a.C e 1400 a.C floresceu a chamada Civilização Minoica, um povo relativamente avançado para seu período e para região. Na mesma época dos minoicos, já no continente, a cidade de Micenas se fortaleceu e se tornou uma potência militar e política que chegou a controlar um pequeno império na região, a Civilização Micênica floresceu de 1600 a.C a 1200 a.C, mas foi por volta do ano de 1200 a.C, que chegou o povo Dório, os quais vindo da Ásia, atravessaram os Bálcãs (a nordeste da Grécia); e os chamados Povos do Mar, como os gregos se referiam a eles, também vindos da Ásia. 

Tais povos invadiram a Grécia, guerrearam, saquearam e destruíram (embora que os dórios chegaram a se estabelecer na península, especialmente no Peloponeso), isso levou ao fim do controle micênico sobre as penínsulas e as ilhas, e ao mesmo tempo levou ao surgimento de uma nova ordem política e econômica na Grécia. As cidades que eram poucas na época, ou foram destruídas, ou foram quase que praticamente abandonadas, pois a população começou a fugir para o interior a fim de fugirem dos ataques dos Povos do Mar, que visavam a região costeira. No interior, essas populações passaram a se unirem a comunidades rurais que passaram a serem denominadas de oikos.

oikos consistia na casa do senhor ou em uma propriedade rural. Nessa propriedade, havia uma população local livre, a qual poderia permanecer nas terras sob o comando do senhor do oikos ou rei como alguns historiadores apontam também; mas a população era livre para ir e vir, menos os escravos. O senhor, possuía outros súditos que o ajudavam na administração da propriedade: fiscalizando, coletando e cuidando de questões militares (já que nesta época era comum se haver muitos confrontos entre outros oikos).

"O desaparecimento dos centros urbanos e a ausência de estruturas estatais favoreceram um modelo social baseado no ghénos, uma espécie de clã familiar aristocrático, surgido graças à audácia, ao exercício da força na apropriação das terras e riquezas e à posse permanente de bens materiais e armas: no ritual funerário, a cremação, com sua qualidade 'heroica', substituiu a inumação". (DURANDO, 2005, p. 28).

A arte grega mudou substancialmente, perdendo sua vivacidade dos séculos anteriores, a população em toda a Grécia diminuiu devido as guerras, fome e pragas; o comércio com outras nações foi substancialmente interrompido, as pessoas passaram a ficar mais atentas e vigilantes, devido ao fato de que os recursos escassearam, e guerras se tornaram constantes. Tudo isso levou alguns historiadores a compararem tal período com a Idade Média. Entretanto, quando os Jogos Olímpicos surgiram, a Grécia já começava a mudar, se encontrava no início do período que ficou conhecido como Arcaico, o início do "renascimento" da cultura grega. 

No Período Arcaico (800-500 a.C) a população voltou a crescer, o comércio com outras nações foi revigorado, as cidades voltaram a florescer, vindo a se tornarem a pólis (cidade-Estado). A arte deixou seu lado geométrico típico do período anterior e começou a ganhar influência da arte oriental; a arquitetura e a escrita também mudaram, e nesse período começaram a surgir as primeiras colônias, as quais deram origem a chamada Magna Grécia (Megále Hélade). Entretanto no caso de Olímpia, essa continuou a ser um simples santuário, e mesmo após a criação das Olimpíadas em 776 a.C, quase nada mudou na localidade até o século seguinte.


No final do século VIII a.C, os pesatos, habitantes de Pisa, também na Élide, passaram a controlar o santuário, nesse caso nenhuma obra propriamente foi feita. Sabe-se que as pistas de corrida foram limpas e niveladas, e possivelmente deu-se início a construção de algum piso para servir de altar ou demarcação do santuário. Entretanto, no final do século VII a.C, foi inaugurado o Templo de Hera, a qual era esposa-irmã de Zeus, logo a rainha dos deuses.

Entretanto, embora tenha decorrido quase duzentos anos desde o início dos jogos, Olímpia era quase um campo vazio, a não ser pelo Templo de Hera, e algumas estruturas dedicadas a Zeus, predecessoras do grande templo que seria erguido no século seguinte. Por volta de 576 a.C, os eleatas passaram a controlar Olímpia, e sob seu governo o santuário começou a se desenvolver. 

Já no final do século VI a.C, encontrava-se o estádio reformado, agora possuindo arquibancadas nas laterais, algo que não havia antes; os Tesouros (thesóuros), salas que serviam como depósito para guardar-se presentes doados por reis, autoridades ou ricos senhores; outras estruturas que serviam como altar, colunas e o Buleutério (local onde se reuniam conselheiros e oficiais de Estado), tudo isso foi erguido em Olímpia.

Ma foi no século V a.C, no Período Clássico (500-338 a.C), que a Grécia atingiu seu apogeu, dando início aos seus "anos dourados". Por volta dessa época, a fama dos Jogos Olímpicos já havia se espalhado por toda a Grécia e chegado até mesmo as colônias, logo o espetáculo havia ficado maior em várias proporções. Muitas pessoas vindas de longe iam para Olímpia assistir os jogos, que no início duravam apenas um dia, depois dois e três, agora passaram a durar cinco dias. 

Não obstante, foi acertado entre as póleis um pacto de não agressão durante a celebração dos jogos, logo, durante o mês que ocorria o evento, as guerras deveriam ser suspensas, e uma trégua ser estabelecida. Muitas cidades concordaram com isso, e isso transformou Olímpia em uma "capital da paz" a cada quatro anos. Os jogos eram feitos em honra de Zeus, mas também era uma forma de manter viva a rivalidade entre as cidades-estados. 

Não obstante, a confluência de pessoas que ali chegavam: reis, nobres, ricos mercadores, generais, artistas, filósofos, etc., começou a elevar o prestígio social e político do santuário, a ponto de o mesmo receber cada vez mais presentes e doações para melhorar a estrutura do local.

Nessa reconstituição retratando Olímpia no Período Clássico, pode se ver ao centro o grande Templo de Zeus, o estádio a direita, o ginásio no lado esquerdo, além de outro prédios.

O Templo de Zeus Olímpico, foi a grande obra-prima a ser construída em Olímpia. As obras se iniciaram por volta de 470 a.C, tendo durado quase trinta anos para ficar pronto. Era o maior templo a ser construído no complexo, representando o ápice da arquitetura de estilo dórico do período artístico severo. O templo foi projetado pelo arquiteto Líbon de Elis, e possuía seis colunas na fachada e treze de cada lado. 

O telhado possuía uma abertura que iluminava o interior da nave, onde viria a ser construída a famosa estátua de Zeus, esculpida pelo famoso escultor Fídias. Nas métopas (espaço entre o telhado e as colunas, também conhecidos como tríglifos), foram esculpidas e depois pintadas cenas que retravam o herói Pélops em uma corrida de quadriga, e os Doze Trabalhos de Héracles. Além disso, foram esculpidas outras estátuas que adornavam os arredores do templo, além do acabamento decorativo interno feito por um desconhecido artista chamado de "mestre de Olímpia".


Reconstituição do Templo de Zeus, onde se pode ter uma noção de sua dimensão e das estátuas que adornavam os seus arredores. 

Para completar a estrutura do Templo de Zeus, nada que mais digno do que erguer uma estátua a altura do rei dos deuses. Tal honroso serviço foi dado ao famoso escultor ateniense Fídias (490-430 a.C), o qual antes de se mudar para trabalhar em Olímpia, foi o responsável pela decoração do Pártenon e do restante do complexo da acrópole de Atenas. Não se sabe ao certo quanto tempo Fídias demorou para esculpir a grande estátua de Zeus, a qual  deveria ter entre 10 e 15 metros de altura, e retratava o senhor do universo, sentando majestosamente em seu trono de ouro. De fato, além do mármore usado para fazer a estátua, Fídias, usou marfim, ébano, ouro e outros tipos de joias. A riqueza de detalhes era tamanha que a estátua foi considerada uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo

Ilustração hipotética da estátua de Zeus, concebida por Fídias. Considerada uma das antigas Sete Maravilhas do Mundo.

Mas, por outro lado, Olímpia não ganhou bela estruturas apenas no seu lado religioso, pois no período clássico foi construído as duas stoa (tipo de pórtico, lembrando um corredor com várias colunas), a chamada Stoa Eco que levava ao estádio, a Stoa de Héstia e a Stoa Sul. Além de algumas outras construções menores como o Pritareu, o Pelopion e o Metroon, entretanto dessas construções, a mais imponente depois do templo em si, era o Leonídio (Leonidaion), uma espécie de alojamento ou hotel, construído para abrigar visitantes ricos e ilustres. Acredita-se que os quartos deveriam ser bem decorados, com pinturas ou mosaicos, que haviam jardins no centro do recinto, pois a planta, era quadrangular, havendo uma abertura no centro; e que deveria ter pelo menos uns dois andares.

No final do período clássico a Grécia foi conquistada pelos macedônios liderados pelo rei Filipe II, pai de Alexandre, o Grande. Filipe era um admirador dos jogos, então ordenou a construção de um pequeno templo o qual foi batizado de Filipeu (Phillipion), para celebrar sua vitória em Queronéia em 338 a.C, vitória decisiva para que Filipe II subjugasse a Grécia ao seu controle. Entretanto o rei acabou morrendo em 336 a.C antes de ver seu projeto inaugurado, o qual foi concluído sob o governo de Alexandre. Alexandre não deu interesse a Grécia, pois sua atenção se voltava para a Ásia, e seu sonho de conquistar o mundo, se assim pode-se falar. 

No entanto, a partir do Período Helenístico (336-146 a.C), nome dado ao período da história grega que compreende o reinado de Alexandre, o Grande até a data que a Grécia foi conquistada pelos romanos, compreendeu a difusão da cultura grega ou helênica como também é chamada, pelo mundo mediterrânico. Sendo assim, foi nesse período que construiu-se um ginásio (gymnásion), a palestra (área aberta onde os atletas treinavam e se exercitavam, geralmente ficava localizada ao lado do ginásio), as casas de banho, a ampliação da oficina de Fídias, a qual passou a ser utilizada por outros artistas, etc.

E finalmente quando chegamos ao período governado pelos romanos, estes construíram novas casas de banho, termas, hospedarias para abrigar as pessoas de menor status social, além do complexo chamado de Vila de Nero, pois o imperador Nero era fã dos jogos, e até mesmo chegou a participar de algumas competições (e evidentemente deram-lhe a vitória). Alguns outros imperadores romanos ainda continuaram a realizar outras construções no complexo, e a manter a manutenção do mesmo, entretanto no "mundo romano", os jogos de gladiadores eram mais famosos do que as Olimpíadas. 


Reconstituição de Olímpia no período romano, onde se pode ver muitas de suas estruturas dentre as quais: Ginásio (1); Palestra (2); Banhos (3 e 4), oficina de Fídias (5 e 6); Hospedaria (7); Leonídio (8); Filipeu (10); Templo de Hera (11); (teatro) Ninfeu de Hérodes Atticus (12); Pelopion (14); Templo de Zeus (15); Altar de Zeus (16); Banhos do Sul (17); Stoa Sul (18); Buleutério (19); Metroon (20); Stoa Eco (21); Tesouros (22); "Edifício Helenístico" (24); Stoa de Héstia (26); Hipódromo (28) e o Estádio (29).

A origem das Olimpíadas

A origem das Olimpíadas é mitológica, existem alguns mitos que falam de como tais jogos teriam surgido. Nesse caso falarei aqui de três mitos, os quais envolvem as figuras de Zeus, Pélops e Héracles.


Como já fou dito anteriormente, Olímpia foi fundada num lugar sagrado, onde acreditava-se que foi palco da batalha final entre Zeus e seu pai Cronos, durante a Gigantomaquia, nome dado ao período do confronto entre os deuses e os titãs pelo controle do universo. Nesse caso, Zeus derrotou seu pai e o aprisionou junto com seus irmãos e aliados no Tártaro, a parte mais profunda do Inferno (Hades). 


Em comemoração pela vitória dos deuses sobre os titãs, Zeus organizou alguns jogos, onde os deuses participaram. Segundo a história, Apolo teria vencido a competição. A partir desses jogos realizados por Zeus, os homens teriam em 776 a.C honrado esse episódio, e celebrado novos jogos, os quais passaram a serem chamados de Olimpíadas.

O segundo mito diz respeito ao herói Pélops, filho de Tântalo e Dione, o qual segundo a história teria sido assassinado pelo seu pai e servido em um jantar em honra dos deuses, porém os mesmos descobriram o crime, então Zeus ressuscitou Pélops e matou Tântalo, o condenando ao Tártaro. A Pélops foi dada uma espádua de marfim (espádua é um osso localizado nas costas na altura dos ombros), pois teria sido osso que lhe foi devorado por engano pela deusa Deméter


Pélops teria deixado sua casa e partido em viagem, chegando a Élide, lá ele conheceu a bela princesa Hipodâmia, filha do rei Enomau e da rainha Evarete. Enomau era descrito como um rei arrogante, egoísta e déspota. Era muito ligado a filha e nesse caso, qualquer pretendente que quisesse se casar com Hipodâmia teria que vencer o rei em uma corrida de cavalos. Porém dizia-se que o rei possuía os melhores cavalos da região e o melhor auriga (condutor), chamado Mirtilo. Mas, isso não desencorajou Pélops, então ele aceitou o desafio.



Pintura retratando Pélops e Hipodâmia.

Como Pélops era protegido dos deuses, Poseidon interviu ao seu favor, fazendo que Eunomau perdesse a corrida. Mirtilo foi subornado por Pélops, então sabotou a carroça, uma das rodas acabou se partindo e a carroça virou, matando o rei na queda, mas Mirtilo se salvou (embora que ele foi morto posteriormente por Pélops, por ter tentado estuprar Hipodâmia). Assim Pélops pôde se casar com Hipodâmia, e se tornou o novo rei da Élide. E de acordo com o mito, ele realizou jogos para celebrar sua vitória e tais jogos teriam dado origem as Olimpíadas.

Quanto ao terceiro mito, esse diz que o idealizador das Olimpíadas foi Héracles (Hércules), o qual baseado em um de seus Doze Trabalhos, reuniu alguns atletas em Olímpia e propôs uma competição. 


Um dos mitos de fundação das Olimpíadas, 
atribui a Héracles a criação desses jogos.

Segundo o mito, não existia um estádio onde os atletas pudessem realizar a competição de corrida, então Héracles teria escolhido um terreno relativamente reto e descampado, e mediu a distância que deveriam correr. De acordo com a história, o tamanho do estádio que equivale a 192,27m equivalia a 600 pés de Héracles, logo isso significa que seus pés teriam por volta de 32 cm de comprimento, o que indica em termos atuais, um homem que calce tamanho 46, e se tomando as devidas proporções, Héracles teria mais de 2 m de altura, algo que corresponde a descrição que lhe davam, já que se referiam a ele como sendo um homem bem alto. No entanto, dependendo da pessoa a proporção pode variar.

Vista atual da pista do estádio de Olímpia. Segundo o mito o comprimento do estádio que é de 192,27m teria sido calculado pelo tamanho dos pés de Héracles, o qual equivale a 600 pés enfileirados do mesmo

Na ocasião Héracles evidentemente venceu as competições, e foi decretado pelos participantes que a cada quatro anos tais jogos seriam realizados novamente. Não obstante, Héracles é considerado o ideal do atleta grego, pois ele representava várias qualidades admiradas pelos antigos gregos: força, coragem, determinação, audácia, virilidade, beleza, heroísmo. Tal fato é tão evidente, que os atletas quando venciam eram comparados aos heróis gregos, e ao mesmo tempo, no Templo de Zeus, como já foi dito, existiam pinturas em alto-relevo representado os Doze Trabalhos do herói.

Os atletas

A palavra atleta surgiu na Grécia Antiga, tendo origem da palavra athlete, a qual era utilizada para designar os praticantes de esportes. No entanto, o atleta grego antigo não era tão diferente dos atletas de hoje; já que hoje, alguns atletas são verdadeiras celebridades contemporâneas, naquela época também. Os atletas vitoriosos eram as celebridades da época, e em alguns casos eram até mesmo mais exaltados do que vemos nos dias de hoje.

O esporte estava profundamente associado a cultura grega, vestígios arqueológicos apontam que a pelo menos quatro mil anos, os "gregos" já vinham praticando esportes. Todo jovem garoto ia para os ginásios em suas cidades para treinar, pois isso também era visto não apenas como um "dever" na juventude, mas como um processo na formação do jovem para a vida adulta. 

Através do esporte ele conquistaria força, resistência e disciplina, valores bem quistos entre os gregos. Não obstante, a prática de esportes era tão comum, que cada cidade e colônia grega, possuíam ginásios, palestras, pistas, etc. Os gregos também consideravam tal prática uma das formas de se diferenciar-se dos demais povos, vistos por eles como bárbaros, pois o esporte instruía a disciplina, algo que eles consideravam que os bárbaros não possuíam. 


Pintura em um vaso retratando três atletas correndo, talvez estivessem treinando ou em uma competição.

Os atletas na Grécia Antiga eram apenas os homens, pois o esporte era algo considerado ligado a natureza masculina, embora que em algumas cidades como Esparta, as mulheres praticassem exercícios, mas não chegavam a participar dos jogos. 

Quanto a questão do esporte ser associado ao masculino, esse estava também associado a questão da guerra, pois por vários séculos os gregos se confrontaram entre si e contra inimigos estrangeiros, logo a guerra era algo comum em sua sociedade, para alguns mais e para outros menos. Assim, o esporte surgiu a partir do treinamento militar, e como na maioria das vezes são os homens que vão para a guerra, logo, desde cedo o esporte estava associado a imagem masculina. Mas além dessa questão, havia a ideia de que o esporte enfatizava a força, a velocidade, a bravura, a virilidade e a competição, características consideradas próprias dos homens, em oposição a delicadeza, a "fraqueza" e o feminilidade das mulheres.

Outro fator que salientava a masculinidade nos esportes, era o fato de que os atletas treinavam e competiam nus, pois para os gregos antigos, o corpo humano em uma boa forma física, era uma "obra de arte". Se hoje falamos em nu artístico, tal concepção já existia entre os gregos há vários séculos. Porém, havia uma relativa diferença: naquela época era se dado maior ênfase ao nu masculino, e tal fato é tão evidente que praticamente toda estátua, pintura, ilustração, etc., que representava-se deuses, heróis ou homens comuns, os mesmos se encontravam despidos. Tal fato estava ligado a questão da masculinidade associada ao esporte e ao desenvolvimento físico, já que eram os homens que se exercitavam, treinavam e lutavam, então era mais comum retratá-los nessas condições do que as mulheres. 


Estátua retratando um atleta se preparando para arremessar um disco. O gregos antigos já possuíam a noção de nu artístico e valorizavam a boa forma física, logo davam ênfase ao retratar a musculatura dos corpos, especialmente o corpo masculino.

Outro fator que concebia o fato de que apenas os homens poderiam ser atletas, treinassem e competissem nus, era devido ao forte machismo da sociedade grega, e ao fato de que o bissexualismo e a homossexualidade, não eram tabus. Com isso, os amantes ou admiradores poderiam contemplar seus amados ou interesses românticos ou sexuais. 

Todavia, existia um caso em que as mulheres poderiam participar de práticas esportistas, tratava-se da Heraia, uma competição de corrida a pé, celebrada também em Olímpia, dedicada a Hera e reservada apenas as mulheres. Era o único campeonato oficial na cidade, em que mulheres podiam competir, mesmo que fosse apenas corrida. Todavia, essa competição era restrita as mulheres, as quais também corriam nuas ou vestidas em algumas épocas. A distância da pista era reduzida dos 192 metros para 160 metros. 

Não obstante, além dos jovens e adultos se exercitarem nas palestras e ginásios, os mesmos em alguns casos recebiam outros tipos de instrução, como aulas de filosofia, história, geografia, retórica, arte, etc. Pois o estudo a partir de certa época, passou a ser associado na formação do homem grego (as mulheres, não chegavam a terem esses estudos, a não ser artes), assim estudar e se exercitar, algo que vemos nas escolas de hoje em dia, já era aplicado há mais de dois mil anos pelos gregos, e até mesmo por outros povos como os chineses, indianos e japoneses.


Quem eram os homens que competiam nas Olimpíadas?

Até aqui vimos que apenas aos homens era dado o direito de competirem nos mais variados jogos, fossem nas Olimpíadas, nos Jogos Píticos, realizados em Delfos, em homenagem a Apolo; nos Jogos Ístimicos, realizados  perto de Corinto, em homenagem a Poseidon e até os próprios Jogos Pan-ateneus, realizados em Atenas, em homenagem a deusa Atena; apenas os homens participavam, estando as mulheres restritas ao Hereia. Entretanto, não era todo o homem que possuía o direito de participar dos jogos, evidentemente que primeiro ele deveria ser um atleta regular, ou que treinasse apenas para os jogos, porém ao longo da história das Olimpíadas houve certas prerrogativas que delimitavam aqueles que poderiam participar.

No início, apenas os habitantes da Élide participavam, depois passou-se a participar as demais cidades do Peloponeso, depois o restante da Grécia e finalmente chegou as colônias na Magna Grécia, no entanto, entre todos esses candidatos que participavam, apenas os cidadãos é que detinham esse direito. 

Antes de prosseguir devo salientar que a concepção de cidadania na Grécia Antiga era bem diferente dos dias atuais, embora que em dados momentos da história foi similar. Pois naquele época, as mulheres, os escravos e os estrangeiros, não eram considerados cidadãos. Para ser um cidadão, o homem teria que ser filho de pai e mãe conterrâneos a cidade onde nascera, caso contrário seria considerado um estrangeiro. Por exemplo, se seus pais fossem atenienses, mas o mesmo tivesse nascido em Tebas, seria considerado um estrangeiro para ambas as cidades-Estados.


Pintura em um vaso retratando atletas disputando uma corrida. Por longos anos apenas os cidadãos tinham o direito de competir nos jogos, depois foram se abrindo exceções para que homens de terras estrangeiras pudessem participar do evento.

Não obstante, o reconhecimento a cidadania só era dado aos homens adultos, embora que os jovens "filhos natos" de suas cidades, detivessem o direito de participar dos jogos. Em cada cidade, variava-se a idade na qual o homem passava a possuir direitos de cidadania: como o direito de votar, participar de reuniões, assembleias, exercer cargos públicos, etc. Tal ideia foi transmitida aos atletas. 

No entanto, por volta do período Helenístico, algumas exceções começaram a serem abertas, passou-se a permitir que qualquer homem que não fosse escravo, mas que soubesse falar grego, pudesse competir nas Olimpíadas, e durante o domínio dos romanos, tal permissão foi ampliada para as províncias que detinham o direito a cidadania romana, algo que nem toda província e cidade possuía. Neste caso, os atletas poderiam ser tanto homens pobres, quanto ricos. 


O treinamento e o preparo físico

Se os atletas daquela época já eram considerados celebridades, assim como visto hoje, outras semelhanças que eles possuíam com os atletas de hoje, é que naquela época já havia a noção de preparo físico específico, logo, já se faziam exercícios diferenciados para aqueles que iam competir em corridas, ou em luta, salto ou arremesso. Sabe-se que através de relatos escritos, que os gregos já praticavam exercícios bem comuns dos tempos atuais, como abdominais, flexões, levantamento de peso.

Assim, não apenas os exercícios eram diferentes, mas também a alimentação, pois os gregos possuíam um relativo conhecimento da importância de uma alimentação saudável e específica para o treinamento físico. Sabe-se que os atletas consumiam alimentos ricos em carboidratos para dar energia, e proteínas para ajudar na manutenção e recuperação dos músculos e no crescimento dos mesmos. 

Não obstante, já existia uma certa noção do atleta profissional, como vemos atualmente, pois naquele tempo, sabe-se que já haviam homens que viviam quase que exclusivamente para treinar e competir, e começavam isso ainda cedo, durante sua adolescência. Os atletas possuíam seus treinadores (ou tutores ou professores), e até mesmo patrocinadores, pois poderiam representar não apenas a sua cidade, mas também particulares. 

Outras características importantes era o preparo antes da competição, e os cuidados com a higiene. Atualmente tal costume nos pareceria um tanto estranho, mas naquela época era comum e obrigatório. Antes de competir e alguns casos até mesmo durante o próprio treinamento, era comum os atletas terem os corpos ungidos como óleos perfumados ou azeite; tais substâncias eram armazenadas em um aríbalo (aryballos), o qual era um utensílio comum ligado ao ato de tomar banho, pois os gregos, costumavam tomar banho todos os dias, mesmo que fosse apenas uma vez. 


Um aríbalo, ilustrado com a imagem de hoplitas. O aríbalo era um utensílio comum utilizado no ato de tomar banho e se perfumar, pois guardava óleos perfumados. Os atletas costumavam usá-lo, fosse feito de cerâmica ou de couro, para untar seus corpos com esses óleos antes de competirem.

O óleo perfumado servia para esconder os maus odores dos atletas, assim como fazemos quando usamos perfumes, mas ao mesmo tempo, o corpo untando com óleo, exaltava a musculatura, tal prática ainda é feita nos dias atuais, nas competições de halterofilismo. Não obstante, por um lado, o corpo untado também dificultava na hora do combate, pois se hoje os atletas seguram nas vestes do adversário, naquela época, os mesmos lutavam nus, e ainda com a pele escorregando devido ao óleo. 

Após terminarem o treinamento ou a competição, os atletas antes de irem tomar banho, tinham que raspar a poeira, o óleo e o suor do corpo, para isso eles usavam um utensílio chamado estrígila ou estrígil, o qual também foi usada pelos romanos, já que era um utensílio comum utilizado por homens e mulheres para removerem a sujeira do corpo, pois até então se desconhecia o uso do sabão. 

Uma estrígila ou estrígil de bronze. A estrígila era uma espécie de raspador utilizado pelos antigos gregos e romanos para retirar o grosso da sujeira de seus corpos. Era um utensílio comum de banho.

O culto a boa forma física e a beleza corporal, levavam os gregos a cuidarem do corpo e da boa aparência, especialmente na juventude. Assim, o óleo teoricamente serviria para proteger o corpo da sujeira, e a estrígila serviria para remover essa sujeira, vista como perniciosa para a beleza e a higiene. Também se levarmos em consideração que Hipócrates (460-370 a.C) deixou escrito em seus tratados, a importância de manter o corpo limpo para se ter boa saúde.

As modalidades olímpicas

Basicamente os Jogos Olímpicos se dividiam em três categorias esportivas: corrida, luta e o pentatlo, o qual era formado por cinco esportes. Dentro dessas categorias, havia as modalidades que se dividiam entre os jovens e os adultos, e outras regras. 

1) Corrida: A corrida se dividia em duas subcategorias: as corridas a pé e as corridas a cavalo. De início as corridas pedestres predominavam nos jogos, já que de fato na realização da primeira Olimpíada a única modalidade que foi disputada, foi a corrida de estádio, que diferente do que pensamos hoje, não seria a corrida dos 100 metros, pois essa é exclusiva dos jogos modernos; a corrida de estádio equivaleria a corrida dos atuais 200 metros. Com o passar do tempo novas modalidades de corridas pedestres foram sendo inseridas nos jogos. E em todas as provas os atletas corriam descalços. 
  • Corrida de estádio: equivalia a correr 192,27 metros, o comprimento de um estádio. 
  • Diaulos: O diaulos foi introduzido por volta de 724 a.C, e equivalia a dar duas voltas no estádio, algo em torno de 384 metros.
  • Dolichos: O dolichos eram as corridas de maior extensão pois variavam de 4 a 24 estádios de distância. Foram introduzidas por volta de 720 a.C. Sendo que os 24 estádios, o que equivale a uns 4.000 metros, seria a prova mais extensa realizada. 
  • Hoplitodromos: Introduzida aos jogos por volta de 520 a.C, era uma corrida um tanto inusitada, pois, além dos atletas correrem habitualmente nus, nessa modalidade usavam um elmo, e carregavam um escudo e uma lança, pois simbolizavam o armamento de um hoplita, um tipo padrão de infantaria pesada entre os gregos.
Atletas participando de uma hoplitodromos. Possivelmente o homem diante deles fosse um dos árbitros ou um treinador.

Quanto as corridas equinas, essas no início tinham uma diferença bem marcante, pois apenas a elite competia nessa modalidade, já que na prática, não apenas o atleta teria que ter destreza e habilidade no controle dos cavalos, mas também teria que ter recursos para comprar boas carroças ou bigas, comprar bons cavalos de corrida, e manter escravos para cuidar dos animais. Logo, apenas os ricos é que tinham esses recursos e assim o direito de participar dessas corridas. Entretanto, com o surgimento do patrocínio, alguns atletas mais pobres, ganharam o apoio de ricos patrocinadores para poderem competir nessas modalidades. As corridas equestres eram realizadas no hipódromo, uma pista mais larga e mais comprida
  • Tethrippon: eram as corridas de quadriga, sendo introduzida aos jogos em 680 a.C, e consistia numa corrida onde quatro cavalos puxavam uma biga. Era considerada a mais difícil das corridas equinas, pois cobrava uma grande habilidade por parte do auriga (condutor) para controlar os quatro animais.
  • Corrida de cavalos: Introduzida por volta de 648 a.C, a corrida de cavalos se compara as corridas atuais vistas nos hipódromos, onde os cavaleiros montavam seus cavalos e tinham que dá uma volta na pista. 
  • Apene: era uma corrida de biga, mas ao invés de se usarem cavalos se usavam mulas. Foi acrescentada aos jogos por volta do ano 500 a.C, mas 14 edições depois dos jogos, foi abandonada.
  • Calpe: se assemelhava a corrida de cavalos, o diferencial era que se usavam éguas na competição. Foi acrescentada em 496 a.C, mas assim como a apene, também foi abandonada na mesma edição, por volta do ano de 444 a.C. 
  • Synoris: passou a compor os jogos em 408 a.C, e consistia numa corrida de carroça ou biga, onde se usava dois cavalos ao invés dos quatro cavalos da quadriga. 
Pintura em um vaso retratando uma corrida de quadrigas entre dois atletas. A presença de um cachorro no canto da imagem, sugere que talvez não se trata-se de uma competição oficial, ou se trata-se de uma cena de caça.

Hoje o hipismo nas Olimpíadas é formado por três modalidades: o adestramento, a prova de salto e o concurso completo de equitação (o qual envolve as duas provas anteriores e uma terceira, a corrida "cross-country", embora seja realizada de forma individual). Nesse caso, hoje não se realizam corridas equinas como antigamente.

Outra questão acerca das corridas é que diferente do que algumas pessoas pensam, a maratona não era uma modalidade de corrida dos Jogos Olímpicos e de nenhum dos outros jogos, pois não existia a sua concepção. A maratona passou a fazer parte dos Jogos Olímpicos na modernidade, já que foi na primeira edição dos Jogos Olímpicos Modernos em 1896, que a maratona foi apresentada e incluída no programa olímpico. Atualmente é a prova mais extensa das Olimpíadas, consistindo num percurso de 42,195 km

2) Luta: Havia três tipos de lutas nos Jogos Olímpicos: a palé (hoje equivale a chamada luta greco-romana), o pugilato (equivale hoje ao boxe) e o pancrácio (o qual alguns historiadores o associam com o "vale-tudo" ou wresting). No entanto, havia algumas peculiaridades nas lutas: em todas as três modalidades, não havia limite de tempo, rounds ou intervalo técnico, os atletas tinham que lutar até se cansarem totalmente ou derrotar o seu oponente; um segundo ponto era o fato que proibia-se a realização de golpes contra a genitália, mordidas ou ataques desferidos diretamente contra os olhos, no entanto, não se proibia os lutadores em fraturar dedos, braços ou pernas; um terceiro aspecto, também não havia a divisão dos atletas por peso ou categoria, logo, o adversário poderia lutar contra um oponente bem mais alto e pesado do que ele. Por fim, havia a divisão de combates entre adultos e jovens.
  • Palé: Foi a primeira modalidade de combate a fazer parte do programa dos jogos, sendo introduzida por volta de 708 a.C, e se assemelha em alguns aspectos a a atual luta greco-romana. Nesse caso, para ser declarado vencedor, o atleta teria que derrubar seu oponente três vezes no chão, só que apenas se validava a queda, desde que o adversário caísse de costas ou de barriga. Nessa luta se usava a força pura, pois não se desferia golpes, apenas tinha que se agarrar o oponente e jogá-lo ao chão. Outro fator para se declarar o vencedor era em caso de um dos oponentes desistisse ou fosse nocauteado.
  • Pugilato: O antepassado do boxe foi introduzido em 688 a.C, e assim como hoje, apenas se pode usar os punhos para o combate. Naquela época, os atletas usavam uma tira de couro cru para enrolar as mãos, como forma de protegê-las, mas ao mesmo tempo, a tira dura de couro aumentava a força do golpe. No pugilato, diferente do boxe olímpico onde se usa protetor de cabeça, eles não usavam proteção nenhuma e nem existia proteção para os dentes, logo, era comum atletas que disputavam essa modalidade terem dentes faltando. A vitória era dada quando um dos lutadores nocauteava o outro ou se um dos mesmos desistisse. 
  • Pancrácio: Segundo a tradição, o pancrácio (pankration) foi desenvolvido a partir das técnicas de luta de dois famosos heróis, Héracles e Teseu. Segundo a história, os gregos se basearam nas lutas que Héracles teve que travar contra os monstros em seus Doze Trabalhos, e na luta de Teseu contra o Minotauro. Em suma, o pancrácio era quase que uma modalidade de luta que "valia quase tudo", pois proibia-se como já dito, golpes na genitália, morder e ataques diretos aos olhos, e matar o oponente, já que de todas as lutas, o pancrácio era a mais violenta. Pois de acordo com os relatos houve atletas que tiveram dedos, braços ou pernas fraturados. O pancrácio necessitava que o atleta tivesse não apenas força e resistência, mas deveria ter técnica. Pois alguns desenvolviam golpes próprios para derrotar mais rápido o inimigo. A vitória era dada quando um dos adversários fosse nocauteado ou que um desses desistisse. 
Pintura em um vaso retratando atletas em combate. Entretanto não se sabe se era um combate de palé ou pancrácio. 

Em 632 a.C foi inaugurada a luta para os rapazes, em 616 a.C foi a vez do pugilato, e o pancrácio para rapazes foi apenas realizado a partir de 200 a.C. Sabe-se que o primeiro campeão de pancrácio foi Lygdamis de Siracusa, descrito como sendo um homem alto e bastante forte, alguns o chamavam de "gigante".


Pentatlo: O pentatlo antigo era composto por cinco modalidades: arremesso de disco, arremesso de dardo, corrida de estádio, salto em distância e a palé. Retirando a corrida e a palé que eram modalidades também a parte do pentatlo, as outras três só eram realizadas dentro dessa competição. O pentatlo foi introduzido nos jogos em 708 a.C, na décima sétima edição dos jogos.



Um disco de bronze com inscrições. Tal disco era utilizado na prova de arremesso de disco.
  • Corrida de Estádio: Corria-se o cumprimento de um estádio, o que equivalia a 192,27 m.
  • Palé: Luta onde se usava força e técnica e dever-se-ia derrubar o oponente três vezes ao chão, equivale a atual luta greco-romana. 
  • Arremesso de disco: Consistia em se arremessar um disco o mais longe possível. O disco poderia ser feito de bronze, pedra ou madeira, e geralmente pesava entre dois e três quilos. 
  • Arremesso de dardo: Tal prova vinha diretamente do campo de batalha, pois o dardo era uma arma propriamente. O dardo consistia em uma lança menor e mais leve para facilitar o seu arremesso. Nesse caso, o dardo usado era similar a arma, sendo feito de madeira e tendo entre 1,50 m e 2 m. 
  • Salto em distância: A prova é bem similar a atual versão, mas a grande diferença era que nos jogos antigos os atletas durante a corrida para ganhar velocidade, eles seguravam halteres (pesos) um e cada uma das mãos, e antes de chegar a marca de salto, eles largavam os pesos e a energia acumulada era liberada para ajudá-los no impulso. Vencia aquele que salta-se mais longe. 
Taça de duas asas com a imagem de um atleta segurando halteres (pesos) na prova para o salto em distância. Diferente do salto atual, naquela época, os atletas usavam dois pesos para ajudar no impulso, pois isso acumulava energia para o salto.

O pentatlo moderno realizado nas atuais Olimpíadas, é composto pelas seguintes modalidades: esgrima, natação (200m livres), hipismo (prova de saltos), tiro desportivo combinado com corrida corta-mato. Nesse caso, o atleta tem que acertar o alvo para depois correr até a linha de chegada. 

Os árbitros, a vitória e a trapaça

Em todos os jogos gregos haviam árbitros que fiscalizavam as provas para se evitar trapaças e fraudes, de forma que os jogos ocorressem de forma justa. No caso dos árbitros ou juízes dos Jogos Olímpicos, esses eram chamados de helanocídes ("juiz dos helenos"), os quais eram escolhidos através de sorteio entre as famílias nobres da Élide. Os árbitros não apenas fiscalizavam as competições e coroavam os campeões, mas também eram incumbidos de manter a ordem e a paz durante o evento, evitando que brigas e confusões acontecessem, além de também supervisionar o complexo religioso e esportivo para a realização dos jogos. 

Os helanocídes assim como os atletas, antes de iniciarem os jogos, estes se dirigiam ao buleutério para realizarem um juramento perante a estátua de Zeus Korkios (Zeus dos Juramentos), no qual juravam agir de forma honesta e honrosa, pois a trapaça era algo não apenas mal visto, mas também uma desonra para o indivíduo e até mesmo para a cidade que ele representava, pois o mesmo estava representado o seu povo. 

Somando-se a isso, havia também o fato de que os gregos entendiam que quando um atleta trapaceava, ou um treinador trapaceava de alguma forma para favorecer seu atleta, isso significava um atestado de incompetência por parte dos dois. E no caso do atleta significava que o mesmo não era forte e nem rápido o suficiente para vencer, logo ele seria considerado um fraco, e a fraqueza em uma sociedade bélica, especialmente Esparta, era algo intolerável. Mesmo assim há relatos de que houve algumas trapaças e subornos. 

Mas quanto a vitória, diferente de hoje onde os vencedores recebem medalhas de ouro, prata e bronze, nos jogos antigos o campeão recebia uma coroa de louros ou uma coroa de folhas de oliveira, e uma fita vermelha. Pois ambas as árvores eram sagradas para os antigos gregos. O loureiro era associado ao deus Apolo e a oliveira a deusa Atena. Além disso, também era comum os reis gregos usarem coroas de folhas de ouro, algo que os reis e imperadores romanos adotaram. Entretanto, havia um diferencial: se hoje o segundo e terceiro lugar são condecorados pelos seus feitos, na Antiguidade isso não acontecia, apenas o campeão era o condecorado com a coroa e posteriormente com outros prêmios.


Atleta sendo condecorado com a coroa de louros e uma fita vermelha.

A medida que os jogos foram se tornando mais famosos, os atletas não apenas passaram a ganhar a coroa de louros e a fita vermelha, mas também passaram a receber uma pensão vitalícia dada por suas cidades. Nesse caso o legislador ateniense Sólon em seu ofício, aprovou uma lei na qual concedia a cada atleta ateniense vitorioso nas Olimpíadas, uma pensão vitalícia de 5 dracmas. 

Outras cidades também fizeram o mesmo, além de receberem essa pensão em dinheiro, os atletas passaram a receber outros tipos de presentes, como também de serem homenageados com estátuas e pinturas suas, e até mesmo poetas escreviam versos sobre sua pessoa. Os atletas campeões eram comparados aos heróis e algumas vezes até mesmo a semideuses. De fato, as estátuas que vemos de atletas e algumas pinturas também, retratam alguns atletas que foram campeões. 

O culto aos atletas campeões era algo tão comum e marcante na sociedade grega, que o filósofo Sócrates (469-399 a.C) quando foi julgado por ter sido acusado por crimes de espionagem, conspiração, desvirtuação dos jovens, heresia, etc., foi chamado a júri, e um dos juízes questionou-lhe que tipo de sentença ele gostaria de receber; Sócrates ironicamente respondeu que gostaria de receber uma pensão que os campeões recebiam. Mas no fim foi sentenciado a morte.

A organização dos jogos 

Como foi falado anteriormente, no início os jogos só duravam um dia, pois só havia uma competição, a corrida de estádio. Apenas em 708 a.C, na décima sétima edição dos jogos é que a competição passou a ter dois dias, pois passaram a realizar a palé e o pentatlo. A medida que novas modalidades foram sendo acrescentadas por volta dos séculos VI a.C ou V a.C, os jogos já duravam cinco dias. 

Os atletas, os treinadores, as delegações em si, chegavam com vários dias de antecedência, as vezes até mesmo um mês antes do início dos jogos, tal período era usado para o treinamento e o preparo. No primeiro dia dos jogos, os atletas e os árbitros logo cedo realizavam seu juramento no buleutério, e a tocha olímpica era acesa diante do Templo de Zeus ou de Hera, dependendo da época pois o templo de Zeus é bem posterior ao início dos jogos. O fogo era sagrado e estava comumente associado a religião grega, praticamente todo templo possuía uma tocha acesa em seu interior.


Pintura em um vaso retratando dois atletas carregando tochas olímpicas.

Realizado a cerimônia de abertura e o juramento, dava-se início aos jogos pelo restante da manhã. A ordem em que as modalidades ocorriam variou ao longo dos anos. Na noite do segundo dia, realizavam-se as primeiras celebrações aos vitoriosos, onde um banquete e uma cerimônia em homenagem a Pélops eram realizadas. No dia seguinte pela manhã, o tradicional sacrifício de 100 touros diante do altar de Zeus ocorria, contando com a presença de todos. Os animais sacrificados teriam partes suas oferecidas como oferendas, e o restante seria preparado para um banquete à noite, uma espécie de grande churrasco.

No quarto dia, os últimos jogos eram realizados, e no quinto dia, todos os vencedores recebiam suas coroas de louro e fitas vermelhas no Templo de Zeus. Depois disso dava-se início aos festejos e banquetes para celebrar os campeões e o encerramento dos jogos. A partir do dia seguinte as delegações e os visitantes começavam a ir embora. 


Cerimônia de acendimento da tocha olímpica para a Olimpíada de Londres em 2012. Se no passado as mulheres não participavam dos jogos, hoje elas não apenas competem mas presidem a cerimônia de acendimento da tocha, a qual ainda continua a ocorrer em Olímpia.

Os bastidores e o local da mulher nos jogos:

Sabe-se que no século V a.C, durante o horário vago e as festividades, poetas, cantores, dançarinos, filósofos, historiadores, políticos, etc., realizavam palestras e se apresentavam ao visitantes e espectadores. Isso não era um fato estranho, pois em outros jogos como os Jogos Píticos, havia apresentações e até mesmo competições de canto, música, poesia e talvez pintura, pois Apolo era também o deus das artes. 

Também nesse meio tempo ocorriam reuniões entre governantes e oficiais, os quais procuravam tratar de questões sobre guerra, política, comércio, paz, alianças, etc. A celebração dos jogos era importante a tal ponto que facilitava o encontro de autoridades das pólies, pois cada cidade enviava seus representantes oficiais para assistir e marcar presença, logo ao invés de ter que se viajar para cada cidade, podia-se encontrar esses embaixadores e representantes em Olímpia durante os jogos. Os reis macedônicos Filipe II e Alexandre, o Grande ordenaram a construção de estátuas suas em Olímpia, como forma de simbolizar sua vitória sobre os gregos, e ao mesmo tempo mostrar para eles quem eram seus soberanos. 

Não obstante, era nos bastidores que se encontravam as mulheres, pois as mesmas além de não poderem participar das competições, eram proibidas de assistirem. Entretanto haviam mulheres em Olímpia. Havia as escravas que cuidavam do preparo das refeições, da faxina, da arrumação, além de haver escravos encarregados de outras tarefas.

Havia cantoras, dançarinas e poetisas, as quais eram contratadas ou levadas nas delegações ou por particulares. Alguns dos visitantes levavam suas esposas ou amantes para lhe fazer companhia durante o evento, e acredita-se também que pudessem haver prostitutas que se estabeleciam em Olímpia durante a celebração dos jogos. 



O lugar das mulheres nos Jogos Olímpicos antigos era nos bastidores, trabalhando e comparecendo as festas.

O fim das Olimpíadas Antigas:

Os romanos não chegaram a se interessar muito pelos jogos a não ser poucos governantes e imperadores que mostraram interesse com o evento, pois os jogos de gladiadores eram o grande espetáculo no "mundo romano". Sendo assim, no século IV d.C o então imperador Teodósio I, o Grande (347-395) já influenciado pelo cristianismo, que crescia no império desde a época do imperador Constantino, o Grande, o primeiro imperador romano a se tornar cristão ainda no século IV; Teodósio como forma de limpar a influência pagã de seu império, decretou uma lei que proibia celebrações pagãs.


Moeda do imperador romano Teodósio I, o Grande. Em 393 o mesmo proibiu cultos pagãos no império o que incluiu o fim das Olimpíadas.

Pelo fato das Olimpíadas e de vários dos outros jogos pan-helênicos serem realizados em honra de algum deus, Teodósio os considerou como pagãos, e ao mesmo tempo, também a condição de se competir nu, era vista como insolente para os costumes romanos e a nascente conduta e moral cristã. Assim, a partir de 394 estava estritamente proibido a prática dessas celebrações e mesmo com a morte de Teodósio, os demais imperadores mantiveram a lei a qual pôs fim definitivamente as Olimpíadas.


Sabe-se que no século V uma inundação do rio Alfeu alagou parte de Olímpia e ainda no mesmo século, um incêndio danificou a Estátua de Zeus e a estrutura de seu templo. Os restos da estátua acabaram sendo levados para Constantinopla, de onde se perderam na História. Com a proibição dos jogos, as pessoas começaram a deixar de irem para Olímpia e o santuário começou a ficar largado as intempéries. 

Posteriormente os gregos começaram a serem cristianizados, e então deixaram de adorar seus antigos deuses, e isso levou também a realização dos Jogos Olímpicos e de outros jogos a se encerrarem. Assim, a partir do século IV em diante, as Olimpíadas e Olímpia ficaram esquecidas no tempo, tendo pondo-se fim a 298 edições dos Jogos Olímpicos em 1169 anos de história.

Até que no século XIX arqueólogos encontraram as ruínas de Olímpia e reviveram a história dos antigos jogos, para que finalmente graças as iniciativas do Barão Pierre de Coubertin, o qual fundou em 1894 o Comitê Olímpico Internacional (COI) e finalmente em 1896 realizou na cidade de Atenas, a primeira edição dos Jogos Olímpicos Modernos
NOTA: Os romanos herdaram o gosto dos gregos pelo esporte, mas diferente deles, os mesmos não se exercitavam, treinavam ou competiam nus. E também era dado a mulher o direito de se exercitar e jogar. Algo que era quase inexistente entre as mulheres gregas.
NOTA 2: A corrida de maratona surgiu a partir da lenda de Filipedes o qual foi um soldado ateniense que teria sido enviado para Esparta para pedir a ajuda dos mesmos para a Batalha de Maratona, onde os gregos combatiam os persas no ano de 490 a.C. Quando retornou no dia seguinte a Maratona, os gregos haviam vencido os persas que fugiram em seus navios, então Filipedes foi incumbido de dar a notícia da vitória, em Atenas, exausto da corrida feita até Esparta, Filipedes mesmo assim, correu 42 km até Atenas, quando chegou, suas últimas palavras teriam sido: "nós vencemos" então caiu morto no chão. 
NOTA 3: Existe uma lenda que diz que no início, os jogos eram jogados com os homens todos vestidos, porém ainda era proibido para as mulheres, entretanto a mãe de um dos atletas se disfarçou como homem para ver seu filho competir, e quando o mesmo venceu ela correu para abraçá-lo. Assim, foi decidido para que nenhuma outra mulher fizesse o mesmo, os atletas e treinadores deveriam ficar nus.
NOTA 4: A mãe de Alexandre, o Grande se chamava Olímpia do Épiro (376-316 a.C), uma referência a cidade. 
NOTA 5: Baseado em alguns cálculos e suposições, alguns arqueólogos e historiadores acreditam que o estádio de Olímpia pudesse comportar entre 35 a 45 mil espectadores. 
NOTA 6: Nem todos os jogos pan-helênicos (nome dado aos jogos realizados no mundo grego) ocorriam a cada quatro anos, os Jogos Ístmicos e os Jogos Nemeus (realizados em Neméia) eram bienais.
NOTA 7: Os Jogos Píticos que eram realizados em Delfos, em homenagem a Apolo, possui esse nome devido a história da luta entre Apolo e a gigantesca serpente Píton, que guardava Delfos. Apolo matou a cobra e em comemoração inaugurou os Jogos Píticos. 
NOTA 8: Na história em quadrinhos Asterix nos Jogos Olímpicos (1968) consiste numa paródia das Olimpíadas durante o governo romano. Na história Asterix e seus amigos ficam sabendo a respeito da realização dos jogos, porém apenas os romanos e gregos podiam participar, porém Asterix tem a ideia de que, se os romanos controlam a Gália (França), logo eles também eram gauleses-romanos, assim Asterix, Obelix, Panoramix (druida) e Ideiafix (cachorro de Obelix) partem para Olímpia afim de competir nos jogos. Essa história rendeu uma adaptação para o cinema em 2008.
NOTA 9: O jogo Assassin's Creed Odyssey (2018) retrata a cidade de Olímpia, e até permitir participar de uma competição de pancrácio. Todavia, o jogo comete alguns erros como permitir que mulheres assistissem aos jogos e pudessem participar deles. 

Referências Bibliográficas:
DURANDO, Furio. A Grécia Antiga. Tradução de Carlos Nougué, Barcelona, Ediciones Folio, S.A, 2005. (Coleção Grandes civilizações do passado).
FINLEY, Moses. I. Grécia Primitiva: Idade do Bronze e Idade Arcaica. São Paulo, Martins Fontes, 1981.
GRANDE Enciclopédia Larousse Cultural, v. 18. São Paulo, Nova Cultural, 1998.

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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Raízes do Brasil - uma síntese

Esse texto foi escrito por mim ainda no início do Curso de História há alguns anos, hoje após reencontrá-lo em meus arquivos digitais, chego a conclusão que merece por parte de mim a releitura dessa obra. Mas espero que essa simples síntese, feita por um historiador no início de seus estudos, seja útil ao ponto de despertar o leitor brasileiro ou estrangeiro a conhecer melhor essa obra, considerada hoje um dos cânones da historiografia brasileira.

APRESENTAÇÃO

Sérgio Buarque de Holanda
Raízes do Brasil fora publicado em 1936 pelo historiador, jornalista e critico literário brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), consistindo numa espécie de ensaio sobre alguns pontos pertinentes da colonização brasileira e sua cultura. Influenciado em parte pela historiografia francesa da "Escola dos Annales", reforçada pela presença notória do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985) nos anos que viveu em São Paulo como professor de história na Universidade de São Paulo (USP), entre 1935 a 1937; e pelo lançamento do volumoso e hoje clássico Casa Grande & Senzala do historiador, sociólogo, antropólogo e escritor brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) em 1933, o qual trouxe um vasto e detalhado relado sobre a relação entre os distintos níveis da sociedade brasileira na época colonial, revelando uma profunda mestiçagem étnica e cultural; Sérgio procurou explorar nessa sua obra questões culturais, sociais e comportamentais, que marcaram a formação do povo brasileiro.

A primeira vista o livro pode parecer estranho pois não trata de forma convencional a história do Brasil, seguindo as divisões tradicionais entre colônia, império e república, ou narrando sobre os acontecimentos notórios de cada período, o tão pouco se prendendo a deixar marcado datas, fatos e nomes. O livro em si, consiste numa obra para aqueles que já possuam uma noção pelo menos básica da história brasileira.

A obra se divide em sete capítulos:
  • Fronteiras da Europa
  • Trabalho e Aventura
  • Herança Rural
  • O Semeador e O Ladrilhador
  • O Homem Cordial
  • Novos Tempos
  • Nossa Revolução
CAPÍTULO UM: Fronteiras da Europa

Neste primeiro capítulo, Sérgio Buarque pretendeu fazer uma dissertação sobre os antecedentes da colonização portuguesa no Brasil, nesse caso, falando acerca da conjectura política e social da Ibéria recém saída do medievo, mas ainda impregnada pelas tradições medievais. Aqui, Sérgio dá inicial atenção a Portugal e Espanha, antes de adentrar a falar do Brasil. Mas antes que alguém questione o porque de falar sobre Espanha, a mesma durante o período da União Ibérica (1580-1640) governou Portugal e toda suas colônias. 

Portugal e Espanha, só iriam ganhar destaque e fama na história européia durante o período das Grandes Navegações (séc. XV ao XVIII), no qual estes dois pequenos países localizados mais próximos da África do que do norte da Europa, se tornariam grandes potencias marítimas e coloniais em poucas décadas. Contudo o autor fala que Portugal e Espanha, tinham a fama de serem países que possuíam um governo e uma hierarquia frágeis, como ele aponta nessa frase: 

“À frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e o Brasil”. Pág. 33. 

Neste relato o autor pretende mostrar como era para os outros paises verem Espanha e Portugal, como promissores colonizadores, se nem ao menos conseguiam ordenar sua própria nação.

Parte desta falta de regularidade hierárquica, Sérgio atribui a questões do período medieval, no qual todo mundo aprendia desde cedo qual era a sua posição naquela cidade. E tal fato era visto na própria Igreja, com as hierarquizações desde simples frade ao Papa. Na própria religião cristã, os anjos eram divididos por categorias. Tal fato leva a condição de que o mundo europeu era comandado pela Igreja Católica, a qual comandava o que devia e não se devia fazer em vida para se ter a salvação do Senhor.

"E a verdade é que, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas idéias revolucionárias, portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade especifica, a injustiça social de certos privilégios, sobretudo de privilégios hereditários". Pág. 35.

Tal relato reflete a falta de consistência de uma nobreza hispânica e sua hierarquização hereditária. O que acabou por levar certos homens a se tornarem navegadores a procura de prestigio social e riquezas. A contra partida deste fato é a questão de haver pessoas que descendiam de linhagens nobres, mas as quais viviam como pobres e até em certos casos miseráveis. O próprio autor fala que alguns dos costumes da nobreza eram os mesmos das pessoas comuns, e nos próprios palácios os seus filhos conviviam com os filhos dos serviçais.  

Para se transpor tais dificuldades, os portugueses e espanhóis, procuraram reviver o fator do mérito pessoal como forma de ser reconhecido pelos seus feitos, e não pelo o que herdou. Porém tal prática encontrou obstáculos perante a própria Igreja, e a sociedade impregnada de velhos valores. 

“Nunca eles se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento”. Pág. 37.

A Igreja criticava o chamado “lucro torpe”, a procura de enriquecimento desleal, mesmo tal fato esse fora praticado por muito tempo pela própria Igreja durante o período medieval. Por outro lado se tinha a desvalorização do esforço trabalhista, os nobres preferiam o ócio ao trabalho, e para completar havia a questão da autoridade e da obediência, fato este que o autor indica os jesuítas da Companhia de Jesus, como os melhores representantes.

CAPÍTULO DOIS: Trabalho e Aventura

Neste capítulo dois o autor inicia sua explanação sobre a colonização do Brasil. Inicialmente ele fala que a colonização se deu de forma desleixada, e não com entusiasmo, pelos portugueses. Tal fato se deve que Portugal estava mais interessada no comércio com as Índias, na recém descoberta de uma rota marítima por Vasco da Gama, o qual trouxe grandes quantidades de mercadorias que abarrotaram os cofres de dinheiro, quando as mesmas fora vendidas. Assim, pelo fato de o Brasil só possuir até então o pau-brasil como produto mais rendoso, os portugueses, levaram três décadas para de fato iniciar a colonização da Terra de Santa Cruz como era chamado o Brasil antigamente. 

“Essa exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez-se antes com desleixo e certo abandono”. Pág. 43. 

Mesmo com essa falta de uma preocupação direta, os portugueses souberam agir de forma a facilitar e a rapidamente a se adaptar a estas novas terras, de uma forma nunca vista antes entre os europeus. Para tal fato, Sérgio Buarque fala que para estas condições se realizarem, ocorreu uma junção entre o tipo aventureiro e o tipo trabalhador, que ambos os motivos, foram propulsores para iniciar-se o processo colonização.

Tais características foram marcantes, no ponto de vista que os portugueses e espanhóis se dedicavam mais ao trabalho e ao chamado espírito aventureiro do que os ingleses, os franceses e os alemães. Os primeiros colonos, logo aprenderam a comerem farinha de mandioca, e a dormirem em redes, a caçarem e pescarem como os índios, e a se utilizarem de outras práticas, a exemplo de se queimar a floresta para se plantar (coivara). E em poucas décadas, os portugueses deram inicio as plantações de cana, transformando as terras do Brasil em grandes latifúndios, monocultores e escravistas, tal fato este devido a condição de inicialmente não terem descobertos riquezas minerais, e posteriormente notando que o clima era favorável ao cultivo da cana de açúcar, produto este que se tornou muito valorizado na Europa.

A questão dos latifúndios acabou por se tornar de acordo com o autor um fator para o motivo da presença da escravidão do negro, já que as tentativas de se obrigar os indígenas a trabalharem nas plantações foram frustradas. E por outro lado, o negro se adaptava melhor ao árduo trabalho das plantações de cana, e acabou por se tornar peça importante neste papel econômico e colonizador do Brasil. Os portugueses já haviam praticando o cultivo da cana de açúcar a algumas décadas, nos arquipélagos de Cabo Verde e Açores, e já empregavam a mão-de-obra escrava negra, logo como viram que o negro aprendia mais rápido que o indígena, e era mais "favorável" a ser escravizado, passaram em meados do século XVII a trazerem africanos para trabalhar na província. 

Mas no caso das plantações de cana, o autor fala que o modo de se cultivar, praticamente não se modificou o se modernizou ao longo dessas várias décadas de inicio da colônia. Que as técnicas agrícolas eram já bem inferiores e até mesmo rústicas, fato este corroborado pela falta ou o quase desuso do arado no cultivo da terra. Fato este explicado pelo autor devido às condições de o solo ser pobre, e escasso de recursos orgânicos que se encontravam próximos da superfície, e o arado, acabaria por desgastar o solo e reduzir esses recursos orgânicos.

Mas para frente o autor começa a falar sobre a introdução dos negros no Brasil e em Portugal. Algumas personalidades da época comentam o número cada vez maior de negros entrado em Portugal e no Brasil, que este número crescia a cada ano, e muito da população começava a se misturar com os negros, gerando os "mestiços". Os negros logo se tornaram uma mercadoria cara e cobiçada. 

“A gente mais rica tinha escravos de ambos os sexos, e não faltava quem tirasse bons lucros da venda dos filhos de escravos”. Pág. 54.

Mas em meio a toda essa miscigenação, os mestiços, filhos tantos de escravos com brancos, e índios com brancos, os chamados mulatos, acabaram por de certo modo sofrerem preconceitos e ofensas, devido a sua cor e origem. Exemplo disso era o fato de que determinado cargos políticos, públicos, e de outros setores, não poderia ser assumido por um mulato.

"E preciso convir em que tais liberalidades não consistiam lei geral; de qualquer modo, o exclusivismo “racista”, como se diria hoje, nunca chegou a ser, aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos". Pág. 55.

Tal condição se daria tanto pela descriminação da cor, da raça, e até mesmo pelo fato de que os europeus consideravam o intelecto do índio e do negro insuficiente para realizar determinadas atividades. Porém a parti de 1755 o governo reconheceu alguns direitos aos mulatos, permitido estes a ter acesso a determinadas áreas e a exercer determinadas atividades, mas enquanto aos negros e seus descendentes, tudo isso fora relegado. Contudo mesmo com estes empecilhos ao acesso a determinados cargos, os mulatos, negros e índios, assumiam o serviço dos mais variados trabalhos ditos artesanais. Eles eram sapateiros, oleiros, ferreiros, "manteiros", taberneiros, e até mesmo cirurgiões (nessa época o cirurgião não era propriamente um médico, mas sim um homem que realizava "cirurgias comuns", como costurar ferimentos e arrancar dentes) e barbeiros.

Ainda continuando a falar sobre o trabalho colonial, um aspecto importante lembrado pelo autor é a questão da cooperação entre os trabalhadores na realização de determinados trabalhos, desde o roçado até a construção civil. O que o historiador chama de "mutirão", a união de várias pessoas, e até mesmo voluntariamente, contudo estas uniões não implicavam em um trabalho ordenado ou constante, consistia em mais uma forma de se dar apoio e ajuda, a amigos, parentes e vizinhos. Tal característica fora bem vista entre pessoas da classe baixa.

Por fim o último assunto a ser tratado neste capitulo é basicamente sobre a tentativa dos holandeses de formarem em Pernambuco uma colônia holandesa propriamente dita. O autor não nega, que durante o governo holandês (1630-1654), Pernambuco passou por muitas transformações, e muitas delas positivas, contudo, ele se preocupa em mostrar porque essa tentativa acabou fracassando.

A primeira condição fora a adaptação dos holandeses ao clima quente do Brasil, por serem povos do norte europeu, como ingleses, franceses e alemães, tinham uma maior dificuldade de se acostumar com um clima mais quente. O segundo ponto era o fato, que o governo holandês pretendia enviar para o Brasil, centenas de famílias de colonos, porém o próprio povo não via a vinda para o Brasil como um bom negócio, e outros desaprovavam a ideia. Havia também a questão da religião, que para os índios e negros e os próprios portugueses, não se davam muito bem em aceitar o calvinismo holandês, e para completar vinha a questão do idioma. O autor fala que era muito difícil para as pessoas aprenderem o idioma holandês, e por outro lado os índios e escravos já estavam familiarizados com o português. Sobre esta questão o autor chega a ironizar quando diz, que os escravos velhos, eram incapazes de aprenderem o holandês. Devido a essas e outras dificuldades os holandeses acabaram por não resistirem as barreiras culturais impostas pelos portugueses há vários anos no Brasil.

CAPÍTULO TRÊS: Herança Rural

No capitulo três, Sérgio Buarque aborda a questão a qual ele chama de nossa herança cultural. Ele faz um breve comentário sobre a forma de como a sociedade e a política se organizava no Brasil colonial e imperial, e sua relação com o tráfico de escravos, e a relação entre campo e cidade.

Desde o começo da colonização até 1888, data da abolição da escravidão no Brasil, as cidades brasileiras não tinham muita importância, já que grande parte da população e da riqueza do país advinham do campo, do meio. Fato este defendido pelo autor, quando ele fala que a política e os grandes cargos, todos eram monopolizados pelas ricas famílias rurais, as quais levavam seus filhos para estudarem fora do país, para que quando retornassem pudessem trabalhar em altos cargos, ou em profissões valorizadas. Não obstante, tal fato também se devia pela condição que no Brasil não existia ensino superior até o século XIX, depois da criação das faculdades de Direito, Medicina, Belas-Artes, Engenharia, etc., a elite começou a se formar no país mesmo, embora que um ou outro viaja-se para a Europa ou Estados Unidos para aperfeiçoar seus estudos.

"Na Monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas e eram filhos de fazendeiros, educados nas profissões liberais, que monopolizava a política, elegendo-se ou fazendo eleger seus candidatos, dominando os parlamentos, os ministérios, em geral todas as posições de mando, e fundando a estabilidade das instituições nesse incontestado domínio". Pág. 73. 

A primeira vista pode parecer que os fazendeiros detinham grandes influência no governo e na sociedade colonial brasileira, contudo, mas a frente será dada mais detalhes destas influências que os ricos fazendeiros tinham na sociedade brasileira.

Passando deste breve relato introdutório, Sérgio Buarque, passa para os anos de 1850, o qual fora uma década que ocorreu várias mudanças no Brasil imperial. Em 1851 é inaugurado o segundo Banco do Brasil, em 1852, se inaugura a primeira linha telegráfica do Rio de Janeiro, em 1853 é fundado o Banco e Hipotecário, em 1854 se inaugura a primeira linha férrea do país ligando o porto de Mauá a estação do Fragoso, e em 1855 dar-se a construção da segunda linha férrea, a qual ligaria a Corte à capital da província de São Paulo.

Tais feitos permitiram que o país cresce-se economicamente, politicamente e socialmente, pois passou a atrair o interesse de investidores estrangeiros, e também a mobilizar mudanças sociais no campo e na cidade, como o gradativo fim da escravidão.

Os bancos tinham novos investidores, a estrada de férreo permitia uma maior velocidade no escoamento das produções. Aos poucos o progresso chegava ao Brasil, em novas formas de renda e de vida iam surgindo. Neste ponto o autor fala que aos poucos o Brasil perdia sua velha herança rural e colonial, baseada no trabalho escravo, o qual se veria abalado com a proibição do tráfico negreiro.

A Lei Eusébio de Queirós (1850) fora um duro golpe para a aristocracia fundiária, pois passou a proibir o tráfico negreiro no Atlântico (embora que por alguns anos ainda se manteve um tráfico ilegal). Fato este o qual nasceu em meios a cobranças externas, a um amor patriótico, e a outros vários interesses. Contudo para alguns, tal lei fora vista, como algo que poderia abalara a economia do país futuramente. Para se evitar possível crise, foram criadas formas de se enganar a fiscalização dos portos. No que acabou por levar ao suborno de muitos funcionários e dos próprios jornais, os quais abafavam o caso.

Sérgio Buarque expõe alguns dos métodos utilizados para se conseguir a entrada de escravos no Brasil, métodos estes que vão desde o suborno da policia, de oficiais e até mesmo a falsificação de documentos. Mas mesmo assim com o tempo a lei começou a mostrar resultados, em 1851 fora registrado a entrada de 3.287 negros, se comparando com 1848 que foram 60 mil.

"Essa extinção de um comércio que constituíra a origem de algumas das maiores e mais sólidas fortunas brasileiras do tempo deveria forçosamente deixar em disponibilidade os capitais até então comprometidos na importação de negros". Pág. 76.

Mesmo com o fim do tráfico negreiro, a economia não fora abalada como muitos acharam, quem mais perdeu foram aqueles que dependiam do tráfico para seu lucro, contudo, a economia sofreu um rever-se quando os bancos começaram a fazer a proposta de empréstimo credencial, para tanto ajudar os que estavam em falência, como também para incentivar pequenos produtores e empresários, abrindo oportunidade para um crescimento econômico. 

“A ânsia de enriquecimento, favorecida pelas excessivas facilidades de crédito, contaminou logo todas as classes e foi uma das características notáveis desse período de “prosperidade’”. Pág. 77.

Contudo tal “prosperidade” não duraria muito, e logo o Brasil se viria em sua primeira grande crise econômica em 1864. Neste período era exposto para a sociedade o caso do Barão de Mauá, o qual fora o criador da ideia de se dá crédito aos futuros produtores e comerciantes. Além disso, Mauá era um dos que defendia o fim do tráfico negreiro, ele se mostrava como sendo um homem do povo, mas posteriormente, alguns de seus esquemas foram descobertos, revelando ideias ilícitas, nas quais haviam questões políticas em jogo. Sérgio fala, que Mauá quisera dá inicio a uma evolução, em se criar um progresso para o Brasil, mas seus ideais, encontraram a força de certas tradições e costumes, que desde o começo da colônia perduravam pelo Brasil.

Deste ponto, o autor retoma a respeito sobre a autoridade e a influência dos engenhos no período colonial e imperial. Sérgio Buarque se referia aos engenhos como sendo como quase verdadeiras "repúblicas", no sentido de formarem um "pequeno Estado" e não na questão política. As fazendas com engenhos, possuíam igrejas, escolas, oficinas, mercados, alojamentos, senzalas, praticamente boa parte do que eles usavam no dia a dia vinha da própria terra. Mas outra questão a ser citada, era a autoridade dos senhores de engenho, os quais muitos se faziam ser a própria lei em seus domínios, autoridade essa que em certas ocasiões ia de encontro com a própria justiça brasileira. Outro ponto a ser abordado em relação a este período é a questão da escravidão, a qual fora estudada pelo futuro Visconde de Cairu, o qual queria mostrar que a riqueza não dependia somente da quantidade de mão-de-obra, mas sim da inteligência, como se valer da astúcia e de boas ideias para criar empreendimentos lucrativos. Porém tal argumento não fora fácil de ser aceito, já que muitos defendiam a velha frase de: 

“Terem os homens a maior riqueza possível com o menor trabalho possível”. Pág. 84.

E para tal condição existe a escravidão. Sérgio também compara essa questão com os exemplos modernos do Taylorismo e do Fordismo, ambas as práticas que exploravam de forma inteligente a mão-de-obra, lhe proporcionando um grande lucro, em seu tempo.

Mas o que Sérgio quis passar neste capitulo, é como a dependência dos escravos era muito grande para a sociedade da época, como a vida girava em torno das fazendas, como as cidades dependiam destas, e como o próprio governo e a sociedade, eram influenciados pela chamada herança rural.

CAPÍTULO QUATRO: O Semeador e O Ladrilhador

No capitulo quatro, Sérgio aborda à questão sobre a formação de cidades tanto na América Espanhola e Portuguesa, ele explora as diferentes formas de como estes dois povos colonizaram a América. Sérgio Buarque inicia o capitulo fazendo uma rápida explanação sobre a importância da fundação de cidades desde a Antiguidade, dando como exemplo Roma e as cidades-estados gregas, onde tais povos se preocupavam primeiramente em se fundar uma cidade do que estabelecer uma vila de agricultores.

Condição essa que será analisada neste capitulo, no qual se compara o método espanhol e o português. Os espanhóis tinham a preocupação de acentuar e mostrar a importância e a influência da Metrópole espanhola sobre as terras recém conquistadas, e para isso eles logo se dispuseram a criarem cidades, as quais passariam a ser prolongamentos da própria Espanha no novo mundo. Fato este que é reforçado quando se ver a fundação de universidades nas principais cidades da América Espanhola. Algo que só veria ocorrer no Brasil somente a parti do século XX.

Enquanto os espanhóis não tinham problemas para colonizarem o interior de suas terras, por outro lado os portugueses tinham a maior cautela em se colonizar os sertões, motivos estes dos mais variados. Isso acabou por deixar a colonização portuguesa voltada praticamente para a zona litorânea, na qual se concentrava os portos, as vilas e as poucas cidades existentes e a maioria das fazendas. O autor fala que a preocupação portuguesa fora mas por assegurar que sua colônia dependesse da Metrópole portuguesa, e que está pudesse lhe garantir recursos, daí a proximidade com o oceano, única via de acesso e contato com a Metrópole. Visão está que perdurou por longos anos, o que acabou por atrasar o processo de urbanização no Brasil.

Outro ponto importante citado por Sérgio é a questão de que na colonização espanhola estes tiveram mais sorte de terem encontrado povos ditos mais avançados, os quais possuíam muito ouro e prata, os quais foram totalmente saqueados pelos espanhóis. No caso do Brasil, a febre do ouro só viria acontecer com a descoberta das Minas Gerais no final do século XVII, quase duzentos anos depois da "descoberta do Brasil". Com a descoberta das minas de ouro, isso contribuiu para intensificar a colonização do interior brasileiro. Colonização essa a qual aconteceu com forte fiscalização do governo, que na época proibiu a ida de estrangeiros para a região das minas, e também a entrada de estrangeiros no próprio Brasil, com exceção dos ingleses e dos holandeses.

“A partir de 1771, os moradores do distrito ficaram sujeitos à mais estrita fiscalização. Quem não pudesse exibir provas de identidade e idoneidade julgadas satisfatórias devia abandonar imediatamente a região”. Pág. 103. Para o autor tal condição levou a Portugal colocar mais ordem no Brasil. Mas mesmo com a descoberta das minas, a colonização ainda continuou fortemente na região litorânea. Condição está favorecida pelo fato de que grande parte das tribos indígenas falava praticamente a mesma língua de norte a sul. “Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização”. Pág. 107.

Mas mesmo sobre tais medidas, a colonização portuguesa fora mais liberal do que a espanhola, fato este devido a grande aceitabilidade portuguesa com os indígenas. Característica esta não vista muito entre os espanhóis. Condição esta que leva o autor a remeter ao que ele chamou de a “nobreza nova dos Quinhentos”, época esta marcada pelas Grande viagens de descobertas portuguesas, pela ascensão da burguesia em Portugal e pela descoberta do Brasil. Neste ponto o autor passa a glorificar a literatura e os feitos dos portugueses, citando Luís de Camões (1524?-1580) como o grande responsável por retratar a glória portuguesa. Condição essa a qual ele lembra que os portugueses eram conhecidos por serem muito soberbos e vangloriosos.

O último grande ponto a ser comparado entre espanhóis e os portugueses fora a questão religiosa, na qual teve um maior impacto e peso na América Portuguesa. Para alguns autores a Igreja tinha mais poder sobre a colônia portuguesa do que o próprio rei. Por fim o autor procura neste rápido esboço de suas pesquisas revelar um pouco das diferenças entre Espanha e Portugal no processo de colonização. Daí o título da capítulo ser o "semeador", em referência aos portugueses que se preocuparam mais com a organização rural, e o "ladrilhador", em referência aos espanhóis que deram mais atenção a zona urbana e a exploração massiva dos indígenas, em detrimento da escravidão negra. 

CAPÍTULO CINCO: O Homem Cordial

Neste quinto capitulo o autor passa abordar a questão da formação das pessoas no seio familiar brasileiro, e como essa criação acabou por um lado, sendo positiva e por outro negativa. Um ponto interessante que achei esse capitulo mais complicado do que os outros. Acho que ele não conseguiu expor e forma clara como ele pretendia expor suas ideias e opiniões. Contudo ele quis mostrar que há uma grande diferença entre a família e o Estado, enquanto vivemos com nossas famílias crescemos em um mundo regido por suas regras, as pessoas que temos mais contato são nossos pais e irmãos. Contudo, é necessidade dos homens terem que uma hora abandonar o lar e seguir por contra própria. Nessa questão, o individuo estaria a mercê das leis do Estado, ele teria que aprender a se comportar e a viver perante a um novo grupo de pessoas.

Para se explicar tal fato, Sérgio usou o exemplo da questão industrial. Antes da Revolução Industrial (iniciada na metade do século XVIII na Inglaterra), tudo era produzido de forma artesanal, cada artesão conhecia seu produto do inicio ao fim de sua elaboração. E essas pequenas fábricas eram organizadas pelas próprias famílias, mas com a chegada da revolução, os operários agora passaram a ter seu trabalho especializado em determinada atividade, e o que antes era algo de família, passou a ser um verdadeiro "governo" de pessoas. Em uma fábrica agora passou-se a ter vários patamares, do mais baixo que era o operário até o mais alto, que era o dono ou os donos, toda uma hierarquia funcionária fora criada. A sociedade agora passou a se ver cada vez mais distante daqueles que comandavam. Condição essa que Sérgio atribuiu à questão da individualidade, algo que aprendemos a conviver cada vez mais nesta sociedade progressiva. Por outro lado ele defende essa idéia, quando diz que a criança desde cedo deve aprender a fazer suas próprias escolhas, se libertando do domínio da mãe e do pai.

Fato esse que era visto claramente no período colonial, imperial e até hoje. Sérgio Buarque cita como exemplo, de como os pais mandavam os filhos irem estudar fora do país, para voltarem formados como doutores. Muitos pais queriam que seus filhos fossem médicos ou advogados. Filhos estes que quando voltavam, retornavam influenciados pelas novas ideias européias, e com uma nova visão do mundo. Retornavam maduros, pois passariam a conviver longe do núcleo familiar, e tendo que realizar suas próprias decisões

O último ponto a ser tratado neste capitulo é a questão religiosa, na qual, o autor fala que ao mesmo tempo a sociedade tinha muita fé, como também não parecia ter nenhuma. Enquanto ele fala que em muitas casas de antigamente, as pessoas preferiam ter uma capela em sua própria casa, como forma de estarem mais próximas de Deus, mesmo assim muitas ainda não mostravam total devoção. Questão essa relatada por alguns estrangeiros os quais relatam o descaso e até falta de respeito por muitos brasileiros, a determinadas festividades religiosas. 

“Os homens mais distintos delas participam apenas por hábito, e o povo comparece como se fosse a um folguedo”. Pág. 151. 

Tal condição era defendida, por alguns devido ao fato do clima levar as pessoas a se excitarem mais, ou ficarem mais fervorosas, fato esse no qual algumas festas religiosas, acabavam tomando um cunho mais folclórico e comemorativo, do que ser uma questão de fé. 

“No Brasil é precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza”. Pág. 149.

CAPÍTULO SEIS: Novos Tempos

No capitulo seis o autor inicia abordando a questão a respeito do bacharelado, algo que antigamente no Brasil era sinônimo de status e respeito, contudo o intrigante é que ele fala que muitos bacharéis não seguiam a carreira para que se formaram, apenas possuíam o diploma como forma de terem status. O autor fala que muitos destes homens procuravam uma forma de conseguir se engajarem em outra profissão, ou até mesmo trabalharem em vários empregos ao mesmo tempo.

“Ocupar cinco ou seis cargos ao mesmo tempo e não exercer nenhum é coisa nada rara”. Pág. 156.

Questão essa que Sérgio Buarque fala que muitos dos bacharéis recém formados procuravam emprego como funcionários públicos, ou procuravam empregos nas profissões liberais, cargos estes muitos almejados. Tal fato reforça a ideia de quando ele fala que o bacharelado era mais como um status do que um indicio de uma carreira propriamente dita. Condição essa, na qual vale ressaltar que grande parte da população era analfabeta, e somente eram os poucos que tinham a condição de se formarem nas universidades estrangeiras.

Ou outro assunto a ser abordado é a questão do Positivismo no Brasil, prática esta que acabou sendo bem aceita entre os políticos e a aristocracia, os quais viam no positivismo uma forma de colocarem todas as ideias apoiadas na proclamação da República. Contudo a questão da república era algo de difícil compreensão. Para o autor a república fora um mal entendido.

"Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam as condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam".  Pág. 160.

A formação de uma nação democrática e republicana fora concebida, nos ideais positivistas, dos quais muitos não tiveram a preocupação de se realmente tudo isso iria funcionar. Até então o país nunca havia tido um governo oficialmente democrata. Todo o planejamento de uma reforma política chegou ao Brasil através dos intelectuais e bacharéis que viam da Europa para o Brasil, os quais muitos estavam influenciados pelas ideias liberais e democráticas. 

“Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa”. Pág. 160. 

Mas tais mudanças não foram só vistas no meio político, no próprio meio social e educacional, se via a influência de tais valores. Como já fora dito, os responsáveis por tal feito, consistiam num pequeno grupo, em meio a uma massa de analfabetos, realidade essa que procurou ser combatida pelo governo. Contudo o autor ressalta que muitos dos escritores da época, a maioria era de famílias ricas, e muitos destes estavam mais próximos da realidade que envolvia o governo e a vida do país. Mas a exceção destes, Sérgio Buarque cita Machado de Assis, como sendo um dos grandes responsáveis por tratar de questões que envolviam a sociedade antes e depois da república, ele criara mundos, os quais fugiam da realidade da época, uma fase de intensa transição de valores e conceitos. 

A exemplo destes conceitos, o autor cita o “amor bizantino” pelos livros, algo que teve como ilustre representante D. Pedro II, o qual seu amor pela literatura, fora um dos símbolos da intelectualidade oficial do país. Mas essa questão ressalta a condição que posteriormente muitos buscaram nos livros uma forma de fugirem da realidade. O autor fala que o Brasil durante o período da república tinha vergonha de sua fase imperial, e via na república uma forma de conseguirem alcançar suas metas sem dependerem de um único líder, mais sim através de seus direitos e da democracia.

Neste capitulo Sérgio Buarque revela um pouco da conturbada situação que o país vivia, na transição de duas épocas, e o impacto disto na sociedade. No próximo capitulo, ele revelará quais foram tais mudanças. 

CAPÍTULO SETE: Nossa Revolução

Para Sérgio o ano de 1888, ano da abolição da escravatura no Brasil, é uma data a qual marca a divisão de dois períodos no Brasil, da passagem do império para a república. 

“A grande revolução brasileira não é o fato que se registrasse em um instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de século”. Pág. 171.

A sociedade e a política do país transgrediram das zonas rurais para as zonas urbanas. As cidades voltaram a desempenharem um novo papel, agora se sobressaindo da sombra das fazendas e dos antigos engenhos.

O Brasil entrava em um novo contexto social, em uma época que muitos dos países vizinhos que já haviam se tornado independentes e aderidos a governos republicanos. O Brasil, agora era o primeiro país de colonização portuguesa a se tornar uma república. As demais colônias portuguesas na África e Ásia, só ganharam suas independências no século XX. País este cercado pelas influências dos outros países de colonização espanhola, e pelo próprio Estados Unidos. O autor fala que nessa época a cultura do país ainda era largamente influenciada pela cultura ibérica, e o “americanismo” não havia conseguido influenciar essa nova nação republicana.

Outra questão que Sérgio Buarque aborda é a substituição da cultura da cana de açúcar pelo café, atividade essa que se revelou muito lucrativa, e que teve seus altos e baixos. Os antigos senhores de engenho agora se tornavam os barões do café, os velhos engenhos eram substituídos pelas modernas usinas, a aristocracia rural agora disputava lugar com a aristocracia comercial e industrial. A sociedade e a política passavam por grandes transformações e os velhos hábitos iam desaparecendo.

Condição essa que os demais países latinoamericanos também estavam passando. Sérgio Buarque também fala que tanto o Brasil quanto os demais países tiveram a base nos ideais da Revolução Francesa.

"As palavras mágicas liberdade, igualdade e fraternidade sofreram a interpretação que pareceu ajustar-se melhor aos nossos velhos padrões patriarcais e coloniais, e as mudanças que inspiraram foram antes de aparato do que de substância". Pág. 179.

Baseados nestas ideias os líderes da revolução buscaram criar um novo país, tendo a sociedade baseada nos novos costumes e nas novas influências. Porém tomando oposição a essas ideias, o “caudilhismo” surge como forma de se criticar o liberalismo promovido pelos ideais da Revolução Francesa, como também por outros núcleos. O autor fala que para se superar a doutrina democrática, a qual se ver dividida em liberalismo e caudilhismo (organização de poder centralizada na figura de um caudilho (chefe), sendo comum nas ex-colônias espanholas), deve ser primeiro se vencer estas duas antíteses, as quais marcaram o cenário político e social da época.

"O mundo está farto de tais movimentos. O ideal seria uma boa e honesta revolução, uma revolução vertical e que trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos incapazes". Pág. 181.

Com este confronto entre ideais, o governo se ver dividido no controle das velhas oligarquias rurais, as quais disputam lugar com a recém chegada democracia liberal, a qual também disputa autonomia contra a ditadura de alguns caudilhos. Ditaduras essa vista em países vizinhos e depois no próprio Brasil. No fim o autor fala que os preceitos políticos e sociais, baseados no liberalismo, se veem de forma inútil e onerosa de superfetação, e que para isso, devemos buscar novos meios e perspectivas para mudar nossa realidade, a qual se ver em uma harmonia falsa. O autor busca criticar a forma de como a política brasileira evoluíra do período imperial para o republicano, e como este, como ele já havia dito não passara de um mal entendido. 

Para mim Sérgio Buarque, esse último capítulo representa uma crítica de Sérgio ao governo brasileiro, primeiramente a chamada "república do café com leite", onde as oligarquias paulistas e mineiras controlavam o país; daí passamos para o Golpe de 1930, quando Getúlio Vargas assumiu a presidência e ali arquitetou para permanecer. Se tomarmos em consideração que o livro fora publicado durante o governo de Vargas, o qual havia iniciado em 30, um governo provisório mais acabou ficando 15 anos no poder, dá para se entender porque o Sérgio fala a respeito de caudilhismo e ditadura, pois em 1937, um ano depois do lançamento do livro, Vargas deu início ao que ficou conhecido como Estado Novo, legitimando-se antidemocraticamente na presidência até 1945. 

Embora Raízes do Brasil tenha sido lançado a mais de 70 anos, os assuntos tratados por Sérgio Buarque de Holanda se tornaram profundamente marcantes para se entender um pouco do desenvolvimento cultural e social do povo brasileiro e do país.

NOTA: Sérgio Buarque teve nove filhos sendo um dos mais conhecidos o cantor, músico e compositor Francisco "Chico" Buarque de Holanda
NOTA 2: Sérgio era primo em primeiro grau do famoso crítico literário, lexicógrafo, professor, tradutor, filósofo e ensaísta brasileiro Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989) conhecido principalmente no Brasil por ter sido um dos idealizadores do Dicionário Aurélio
NOTA 3: A influência do Positivismo fora tão marcante nos fins do império e começo da república, que influenciou a frase que se encontra na bandeira nacional brasileira "Ordem e Progresso" adveio de uma frase de Augusto Comte, idealizador do Positivismo que dizia: "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim".
NOTA 4: Em 2004 o cineasta brasileiro Nelson Pereira dos Santos lançou o documentário Raízes do Brasil, falando a respeito da vida e carreira de Sérgio Buarque, da produção de seu livro e a influência da obra hoje no século XXI.

Referência Bibliográfica: 
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.