Pesquisar neste blog

Comunicado

Comunico a todos que tiverem interesse de compartilhar meus artigos, textos, ensaios, monografias, etc., por favor, coloquem as devidas referências e a fonte de origem do material usado. Caso contrário, você estará cometendo plágio ou uso não autorizado de produção científica, o que consiste em crime de acordo com a Lei 9.610/98.

Desde já deixo esse alerta, pois embora o meu blog seja de acesso livre e gratuito, o material aqui postado pode ser compartilhado, copiado, impresso, etc., mas desde que seja devidamente dentro da lei.

Atenciosamente
Leandro Vilar

segunda-feira, 23 de março de 2020

Fósseis: Mito e Folclore


Fósseis: Mito e Folclore


Antônio Carlos Sequeira Campos


Obs: As imagens aqui apresentadas, foram escolhidas por mim para ilustrar o  trabalho do autor. Pois o texto original não contem imagens. 

1 Introdução

Os fósseis, em sua conceituação mais moderna, compreendem os restos e vestígios de organismos do passado geológico preservados naturalmente nas rochas. Apesar de sua conceituação como “objetos” de origem biológica só ter sido admitida de fato pelos estudiosos a partir dos dois últimos séculos, sua presença na natureza sempre foi conhecida pelo homem, desde bem antes da Antiguidade clássica. Sua utilização teve inúmeras conotações: como simples adornos, como amuletos, como objetos de superstição ou mesmo como objetos de interesse para propósitos medicinais. Em grande parte os fósseis são abordados na literatura em citações isoladas de fatos curiosos relacionados a grupos específicos; mais do que uma simples curiosidade, entretanto, o conhecimento de sua existência pelo homem e as conotações que lhe são atribuídas trazem revelações surpreendentes que nos permitem compreender melhor a História, em grande parte devido a sua ligação com o comportamento e religiosidade dos povos antigos.

O seu papel nas diversas sociedades tem se revelado principalmente nos textos de Bassett (1982), Edwards (1967), Kennedy (1976), Kerney (1982), Mayor (2000 e 2005), Mayor & Sarjeant (2001), Oakley (1965, 1971, 1973 e 1975), Rudkin & Barnett (1979) e Wendt (1968), onde a relação dos fósseis com as populações pré-históricas, a mitologia na Antiguidade, as crendices religiosas, bem como a sua utilização na medicina popular, tiveram uma abordagem destacada.

Este texto descreve resumidamente alguns dos principais enfoques desses autores, apresentados na conferência proferida sobre o tema durante a II Jornada Fluminense de Paleontologia, realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

2 Os Fósseis entre os Povos Pré-históricos

Quem teria sido o primeiro coletor de fósseis e que interesse ele poderia ter tido nesse tipo de objeto? É uma pergunta de resposta difícil, apesar do conhecimento de sua presença desde os tempos do Paleolítico inferior, conforme revelou a sua presença entre os pertences das primeiras culturas do período. Qualquer tentativa de resposta seria pura especulação, já que da antiga Idade da Pedra não ficaram documentos escritos que nos permitissem respostas adequadas (Rudkin & Barnett, 1979). Mesmo assim, sua ocorrência entre o homem paleolítico pode lançar alguma luz sobre o comportamento de nossos ancestrais.

Uma expressiva variedade de fósseis foi utilizada pelo homem paleolítico, embora nunca se tenha conhecido qual o seu verdadeiro valor prático. Conchas de gastrópodes, biválvios, amonitas e braquiópodes, carapaças de equinoides (ouriços do mar) e dentes de tubarão eram as formas mais utilizadas no Paleolítico superior. Seu valor poderia estar relacionado ao simples uso decorativo ou mesmo como elementos convenientes na composição de um colar (Oakley, 1971).

O exemplo mais antigo data de cerca de 100.000 anos atrás (Oakley, 1971) pertencente à cultura acheulense (designação proveniente de Saint-Acheul, próximo a Amiens, no norte da França), caracterizada pela produção de peças finamente talhadas (Giordani, 2001). Trata-se de um raspador produzido com uma carapaça silicificada de um equinóide cretácico (Micraster), cuidadosamente trabalhado de modo que sua área central, onde se encontram os cinco ambulacros, permaneceu intacta. Se o produtor da peça teve ou não preocupação com a preservação da área referida, alertado e impressionado pelas marcas dos ambulacros, é uma questão que permanece em dúvida.

Segundo Oakley (1971), a presença de sílex na região onde o raspador foi encontrado, Saint-Just-des-Marais, é bastante freqüente e as marcas enfileiradas numa das faces do artefato não teriam necessariamente induzido o "artífice" acheulense a escolher esta peça para produzir seu raspador. Entretanto, pode-se admitir que o estranho padrão das marcas em sua superfície tenha provavelmente influenciado em sua escolha.

Mas se este exemplo deixou dúvidas quanto à possível escolha peça por parte do homem pré-histórico, muitas outras ocorrências demonstram o seu interesse por esses objetos naturais, seja para seu emprego como simples adorno ou mesmo pela possível atribuição de uma interpretação mística. E, ao contrário do registro de Saint-Just-des-Marais, muitos fósseis viajaram com seus donos por grandes distâncias, desde seus pontos originais de coleta aos locais onde finalmente ficaram preservados e encontrados pelos arqueólogos. Rudkin & Barnett (1979) citaram alguns casos e a hipótese de que poderia ter ocorrido um comércio geograficamente amplo e regular de fósseis entre as culturas paleolíticas da Europa.

Os habitantes das cavernas de Grimaldi (situadas próximo à localidade de Menton, no litoral sudeste da França e nas proximidades do Principado de Mônaco), por exemplo, praticamente se “vestiam” com conchas em certas ocasiões; em um único sítio, arqueólogos encontraram cerca de 8.000 conchas pequenas, as quais aparentemente teriam sido utilizadas na fabricação de colares, braceletes e capuzes, normalmente perfuradas e enfileiras junto com outras peças como vértebras de salmão e caninos de veados machos.

Entre as conchas encontrava-se a de um gastrópode de idade eocênica somente conhecido na França em rochas situadas em Cherbourg, região localizada a mais de 1.000 km de distância das cavernas de Grimaldi. Outros exemplos são citados por Rudkin & Barnett (1979): dois gastrópodes encontrados em Laugerie Basse, na França, somente podem ser coletados em depósitos eocênicos da Ilha de Wight, no litoral sul da Inglaterra; na caverna de Lascaux, situada próximo à cidade de Montignac, a sudoeste da França, e famosa pelas suas pinturas rupestres, foi encontrado um gastrópode da espécie Sipho menapiae, a qual é conhecida somente das camadas pliocênicas presentes na Ilha de Man, situada no Mar da Irlanda, a noroeste da Inglaterra, e de Wexford, no litoral sudeste da República da Irlanda. Um dos exemplos mais impressionantes, entretanto, é o de um exemplar do trilobita de idade siluriana Dalmanites hawley, encontrado nas camadas magdelianas de Arcy-sur-Cure, na França, com a presença de uma perfuração indicando sua utilização como ornamento; sua origem, entretanto, estaria em camadas situadas na Alemanha, a mais de 2.000 km à leste da localidade francesa.

De qualquer forma, utilizados como ornamentos ou como símbolos místicos, a presença de   provenientes de localidades situadas a grandes distâncias veio demonstrar uma grande utilidade dos fósseis na arqueologia, auxiliando nos estudos das migrações ocorridas entre os povos pré-históricos.

3 Gigantes e Heróis

Nos antigos textos históricos, como os de Heródoto (c. de 430 a.C.; Heródoto, 2001), Estrabão (c. de 64 a.C.), Plínio O Velho (c. de 77 A.D.) e Pausânias (c. de 150 A.D.), encontram-se citações sobre a ocorrência de fósseis marinhos e de grandes restos ósseos, estes últimos com freqüência atribuídos a personagens mitológicos (Mayor, 2000). As associações com a mitologia ocorriam por serem a única forma de explicação para a existência desses achados extraordinários.

De acordo com Mayor (2000) o mito grego consiste numa mistura complexa de contos sobre a origem do mundo natural e a história de seus primeiros habitantes. Essas associações mitológicas com o inexplicável resultaram na criação do termo “geomitologia”, proposto por Vitaliano (1968, 1973), o qual se refere às lendas que explicam através de metáforas poéticas e do imaginário mitológico, a existência de eventos geológicos como terremotos e grandes atividades vulcânicas. O termo também se aplicaria, assim, aos fósseis, e negar que estes textos históricos possam fornecer informações de cunho geológico e paleontológico seria um equívoco certamente a ser evitado, utilizando-o para a interpretação do conteúdo de vários textos antigos. E é exatamente no contexto do imaginário mitológico grego que encontramos muitas das interpretações a respeito das ossadas encontradas em seu território.

Os achados eram normalmente considerados pelos gregos como os ossos de dragões, ciclopes ou centauros, mas também atribuídos a gigantes e aos esqueletos de seus heróis, os quais os gregos imaginavam serem dotados de uma maior estatura (Mayor, 2000). Em grande parte eram ossos de várias espécies de mamíferos provenientes de terrenos do Neógeno, principalmente de proboscídeos como os mastodontes do Mioceno/Plioceno e os grandes mamutes e elefantes do Pleistoceno e do Holoceno. Quando por volta dos séculos VIII e VII a.C. começou o culto às relíquias dos heróis, vários ossos de mamíferos foram encontrados e muitos enterrados em grandes túmulos representando os restos mortais dos heróis, num processo que se alongou também pelos séculos VI e V a.C. Ao longo desse período, por todo o mundo grego as cidades-estado procuravam recuperar os restos de seus heróis, buscando assim o glamour peculiar que lhes seria conferido pela sua posse: a consagração religiosa e o poder político (Mayor, 2000). É desta fase talvez a mais extraordinária história da procura dos restos de um herói no mundo grego: a do herói Orestes, de Esparta.

Por volta de 560 a.C. Esparta disputava com Tegéia a liderança no Peloponeso. Sem poder vencer Tegéia pela força, não restou outra alternativa aos espartanos do que empregar a propaganda e a diplomacia e, para atingir seu objetivo hegemônico, procuraram descobrir e recuperar os ossos de Orestes, que se “encontravam” em Tegéia (Cartledge, 2003). Filho de Agamenon e da espartana Clytemnestra, e sobrinho do rei espartano Menelau, Orestes era um espartano nato e a descoberta de seus ossos ressaltaria a importância da reivindicação de Esparta, demonstrando sua superioridade hereditária sobre Tegéia. Para reforçar esta interpretação, a procura dos ossos do alegado filho de Orestes, Tisamenus, na região mais ao norte do Peloponeso, também se revelou importante, pois sua descoberta e posterior sepultamento enfatizaria ainda mais a reivindicação dos espartanos de governar todo o Peloponeso por direito de hereditariedade (Cartledge, 2003).

Heródoto, por volta de 430 a.C., relatou a descoberta, que pode ser assim resumida (Mayor, 2000): incapazes de derrotar Tegéia em batalha, os espartanos recorreram ao oráculo de Delfos que os aconselhou a trazer Orestes para sua cidade. Seus restos estariam em uma ferraria, mas as diversas buscas realizadas haviam se revelado infrutíferas. Na ocasião, Licas, um espartano que se encontrava na região de Tegéia durante um intervalo entre as hostilidades, foi informado por um ferreiro sobre um espantoso achado no jardim de sua ferraria, um túmulo contendo um caixão com três metros de comprimento e que, após ter seu interior examinado, voltou a ser enterrado.

Passando-se por um exilado de Esparta, Licas alugou um quarto na ferraria e, secretamente, escavou a sepultura e fugiu com os grandes ossos. Esparta então noticiou a recuperação dos restos mortais de Orestes, sepultando-os em sua cidade com grandes honras, obtendo, assim, a tão esperada hegemonia sobre Tegéia. É interessante assinalar que Tegéia situa-se sobre depósitos sedimentares de origem lacustre que contêm os restos de mamutes e outros mamíferos pleistocênicos; face à informação de Heródoto sobre as dimensões do esquife, é de se supor que os ossos encontrados pertencessem a um dos inúmeros mamíferos pleistocênicos presentes na região. Infelizmente, o túmulo e os ossos de Orestes há muito se perderam, dificultando assim a identificação do animal que, com seus ossos, evitou a continuação de uma guerra e permitiu que Esparta, através de propaganda e diplomacia, obtivesse a hegemonia e a condução da conhecida Liga do Peloponeso.

4 Dragões: das Lendas Chinesas ao Combate de Siegfried

Enquanto os gregos da Antiguidade associavam os fósseis de vertebrados a heróis e personagens mitológicos clássicos, por milhares de anos os chineses os consideravam como os restos de dragões, sendo regularmente coletados e reunidos para serem empregados como remédios (Wendt, 1968). Os ossos de dragões tinham como fonte principal o distrito de Pao Te Hsien, em Shansi, no noroeste da China, compreendendo ossos e dentes de mamíferos fósseis coletados em camadas argilosas do Plioceno inferior, as quais eram exploradas pela população local complementando assim o trabalho sazonal na agricultura. Como os dragões eram considerados guardiões do imperador, os homens mais abastados utilizavam os ossos convencidos que assim teriam a ajuda do dragão.

A interpretação relacionada à figura do dragão também ocorreu na Europa, podendo ainda ser observada através das inúmeras esculturas existentes em construções do século XVI ao século XVIII. Uma das esculturas mais extraordinárias e freqüentemente citada na literatura corresponde ao monumento Lindwurm, datada do século XVI e exposta em Klagenfurt, cidade situada ao sul da Áustria. Wendt (1968) descreveu brevemente sua interessante história: em 1335, em uma pedreira situada próximo à referida cidade, foi encontrado um crânio de um rinoceronte lanoso da Idade do Gelo. Considerado como um crânio de dragão, permaneceu em exibição em uma loja de curiosidades. Em 1590 foi então utilizado como modelo por um escultor, Ulrich Vogelsang, quando criou o famoso monumento do dragão que se tornou um marco da cidade. O crânio, atualmente, se encontra no Museu de Klagenfurt.

Em vez de ossos, pegadas preservadas nas rochas também foram associadas aos dragões. Kirchner (1941 apud Sarjeant, 1975) sugeriu que a observação de pegadas triássicas de répteis em Siegfriedsburg, na Alemanha, poderia ter sido o ponto de partida para a origem da lenda de Siegfried e o dragão, a qual ficou imortalizada através da ópera “Canção dos Nibelungos”, de Richard Wagner (1813-1883), famoso compositor alemão. É interessante lembrar que a existência de dragões era uma realidade para os estudiosos dos séculos XVI e XVII na Europa, incluindo-se mesmo a crença em batalhas sangrentas com esses grandes lagartos (ou serpentes) alados (Wellnhofer, 1996). 

Sua existência baseava-se também nos achados de esqueletos fossilizados como os de répteis fósseis marinhos mesozóicos. Não seria de se estranhar, portanto, a idéia de um ponto de ligação entre as referidas pegadas e a tradicional lenda alemã. Lessertisseur (1955 apud Sarjeant, 1975), entretanto, discordou da sugestão de H. Kirchner, assinalando de forma sarcástica de que esta seria tão somente uma incursão curiosa de um paleontólogo no folclore medieval, nada convincente. Lenda e pegadas, mesmo que reais, não teriam deste modo nenhuma relação entre elas.

5 As Pegadas da Mula de Nossa Senhora

Se a relação entre as pegadas em Siegfriedsburg e a lenda de Siegfried pode suscitar dúvidas no imaginário popular, o mesmo não se pode dizer quanto à presença de pegadas relacionadas a aspectos mais profundos de religiosidade regional, como as famosas pegadas da mula de Nossa Senhora, em Portugal.

Ao sul de Lisboa, na extremidade ocidental da serra da Arrábida e próximo à cidade de Sesimbra, na Costa de Lisboa, ocorrem as falésias que compõem o cabo Espichel, junto às quais encontra-se uma pequena capela, a ermida de Nossa Senhora da Memória, construída no século XV, e o santuário de Nossa Senhora do Cabo ou de Santa Maria da Pedra da Mua (ou da Mula). Nas lajes calcárias que se encontram junto à baía de Lagosteiros e na laje posicionada na lateral da falésia sob a ermida, conhecida como “Pedra da Mua”, ocorrem pistas compostas por pegadas de dinossauros, as quais foram interpretadas pelos pescadores que as observaram desde o século XIII como tendo sido produzidas pela mula que levara Nossa Senhora e o Menino Jesus ao alto da colina, lenda que resultou no nome do santuário. No rastro dessa interpretação há imagens em murais de azulejos do século XVIII (Santos, 2000) e a veneração de Nossa Senhora da Mua com romaria anual ao santuário (Cachão et al., 1998).

Pegadas de dinossauros na Pedra da Mua, em Portugal. 
Descritas originalmente por Antunes (1976), as pegadas, objeto de estudos e referências mais recentes (Lockley et al., 1994; Santos, 1998, 2000; Lockley & Meyer, 2000), datam do Jurássico Superior (Portlandiano), encontrando-se em diferentes níveis de exposição. As pegadas da “mula gigante” (Galopim de Carvalho, 1998) foram produzidas principalmente por grande número de saurópodes e alguns terópodes que se deslocavam lentamente na região, por vezes em manadas (Santos, 2000).

O interesse pelas exposições do cabo Espichel, bem como de outros registros de pegadas de dinossauros no território português, tem se acentuado significativamente na última década resultando na indicação da necessidade de musealização das pistas (Galopim de Carvalho, 1998; Santos, 1998), estando associada ao forte sentimento de preservação do patrimônio geológico do país. Critérios específicos para a definição do patrimônio paleontológico (critérios científicos, pedagógicos e culturais) foram propostos por Cachão et al. (1998), Cachão & Silva (1999) e Cachão (2005). Deste modo, os jazimentos do cabo Espichel se enquadrariam dentro dos critérios culturais como de valor espiritual, os quais aplicam-se às jazidas relacionadas a cultos ou crenças de populações locais, motivo da necessidade de sua preservação.

6 Os Cornos de Amon e Seus Poderes

Muitos fósseis de invertebrados também tiveram um papel importante nas tradições folclóricas de diversas culturas, que lhes atribuíam poderes tanto mágicos como medicinais. Entre os que mais se destacaram estão os amonitas, cefalópodes extintos dotados de uma concha usualmente plano-espiralada que habitaram os mares jurássicos e cretácicos e estão presentes em rochas dessas idades por todos os continentes. No folclore popular são constantemente interpretados como serpentes petrificadas e vários são os mitos que os envolvem.

Segundo Basset (1982), as conchas dos amonitas são familiares ao homem desde provavelmente antes da Grécia antiga. Aos gregos, sua forma lhes lembrava os chifres ou cornos enrolados do carneiro, animal tratado como um símbolo sagrado e particularmente associado ao deus Júpiter Ammon. Os exemplares de amonitas tornaram-se então conhecidos como Cornu Ammonis (cornos de Amon) e somente denominados como amonitas na terminologia científica, numa fase posterior. Na China, os cefalópodes enrolados também eram comparados aos chifres e então denominados Jiao-shih, ou “chifres de pedra”; na Inglaterra eram associados à forma das serpentes e por isso mesmo conhecidos como “serpentes de pedra” (snakestones).

Na Índia, desde o século V os amonitas jurássicos da famíliaPerisphinctidae são reverenciados como a incorporação do deus Vishnu, sendo ainda hoje comercializados através do país como fetiches religiosos (Rudkin & Barnett, 1979). Acredita-se que um cálice de água em que estes fósseis tenham sido colocados seja suficiente para curar os pecados, assegurando o bem-estar religioso daqueles que a bebessem.

Mas a mais famosa lenda envolvendo os amonitas encontra-se no leste da Inglaterra, relacionada a uma santa cristã. Trata-se de Santa Hilda, fundadora e abadessa da Abadia de Whitby, uma pequena cidade litorânea situada a 70 km a nordeste de Yorkshire, no distrito de mesmo nome. Santa Hilda fundou a abadia em 658 A.D., a qual foi construída no alto das falésias situadas próximo à cidade; na base da falésia junto à abadia encontram-se os depósitos argilosos da Formação Whitby onde ocorrem restos de amonitas, belemnitas, biválvios, crinóides, crustáceos, vegetais e inclusive répteis marinhos. Os fósseis mais comuns, entretanto são os amonitas. Conta a lenda que a abadessa, querendo limpar o terreno para a construção de um novo convento, transformou as serpentes em pedra. Após uma série de orações, as serpentes se enrolaram, petrificando-se e caindo da borda da falésia depois de terem tido suas cabeças cortadas com um chicote.

Em outra interpretação, Santa Hilda, ao procurar paz na floresta próxima para rezar, foi incomodada pelas serpentes e, em sua reação, transformou-as em pedra. A ausência de cabeça nos fósseis também é algumas vezes atribuída à maldição lançada por São Cuthbert, outro santo do norte da Inglaterra. A lenda de Santa Hilda e as “serpentes de pedra” é tão forte na região que os amonitas se tornaram um marco na cidade: são vendidos em lojas que comerciam fósseis (alguns com cabeças esculpidas), foram construídas esculturas com a sua forma, presentes nas calçadas, e existem peças entalhadas em madeira, também dotadas de cabeça, uma tradição na cidade. Os amonitas chegam inclusive a constar do brasão da cidade e do emblema do time local de futebol. Os amonitas encontrados nas camadas da Formação Whitby pertencem principalmente aos gêneros Dactylioceras e Hildoceras, este último, seguindo a tradição, proposto em homenagem a Santa Hilda.

Brasão do time de futebol da cidade de Whitby, apresentando três amonitas no mar. 

Muitas outras culturas também acreditavam que os amonitas seriam serpentes petrificadas e, por associação a sua forma, os utilizavam como remédios ou amuletos contra as picadas de cobra. Os antigos gregos os utilizavam para a cura da cegueira, da impotência e da esterilidade (Rudkin & Barnett, 1979).

7 Do Tratamento da Artrose a Acidez Estomacal

Uma das mais curiosas associações entre forma e aplicação medicinal com os fósseis de invertebrados foi a utilização do ostreídeo Gryphaea arcuata, muito comum em rochas do Jurássico Inferior (Liássico) da Inglaterra e conhecido como “Unha do Dedo do Diabo” (Devil’s Toe Nail). Na Escócia, nos séculos XVII e XVIII, por associação a sua forma acentuadamente encurvada, era utilizado no tratamento de dores nas juntas (artrose) (Basset, 1982). Sua importância em algumas regiões ficou evidenciada quando, desde 1936, duas ilustrações de Griphaea passaram a fazer parte do brasão do município de Scunthorpe, do distrito de North Lincolnshire, no leste da Inglaterra.

Fóssil de um ostreídeo Gryphaea arcuata, conhecido popularmente como "unha do dedo do Diabo". 
Fósseis de equinóides cretácicos também foram muito utilizados na Inglaterra com fins medicinais. No início de 1700, por exemplo, exemplares do equinóide Echine marinae, conhecidos como chalk-eggs, eram coletados e recomendados para o tratamento da acidez estomacal: o fino carbonato de seu interior era considerado como um remédio excelente. Dois outros tipos de equinóides populares na Inglaterra, Micraster coranguinum (o equinóide com forma de coração) e Echinocorys scutata (com forma de capacete), comuns nos depósitos calcários, eram também utilizados com propósitos medicinais.

Destaque notável da relação de equinóides com tradição folclórica envolvendo picadas de cobras é a conhecida história do ovum anguinum. Segundo Basset (1982), Plínio O Velho, em sua “História Natural” (c. 77 A.D.), considerava que vários tipos de equinóides fósseis seriam fortes antídotos contra o veneno das cobras. De acordo com Plínio O Velho, uma antiga tradição celta relatada pelos druidas da Gália contava que certas pedras formavam-se inicialmente como bolas de espuma, produzidas por numerosas serpentes que se aglomeravam por ocasião do verão. Conhecida como ovum anguinum, a bola era lançada ao ar pelas cobras e, se capturada com um pedaço de pano antes que tocasse o solo, reteria nela seus poderes mágicos. O coletor, entretanto, só estaria salvo após cruzar um rio no qual as serpentes não poderiam nadar. Além de proteger seu portador do veneno das cobras e de outras doenças, sua posse lhe asseguraria sucesso nas batalhas e outras disputas. É interessante notar que os poros das áreas ambulacrais dos equinóides eram considerados como as marcas produzidas pelas picadas das serpentes em sua superfície.

8 Andorinhas de Pedra e Trilobitas Protetores

Os braquiópodes espiriferídeos sempre chamaram a atenção pela curiosidade de sua forma alada, particularmente entre os chineses do século IV, que os chamavam de “andorinhas de pedra”, as quais voavam perdidas durante as tempestades. Desde cerca de 660 A.D. que estes fósseis constavam de numerosos textos farmacêuticos chineses e o reconhecimento de seu valor e beleza era tão grande que chegavam a ser recolhidos como um tributo imperial. Sua principal utilização medicinal era o tratamento de problemas dentários e outras indisposições hoje conhecidas como decorrentes da falta de cálcio no organismo (Rudkin & Barnett, 1979), fruto da tradicional dieta chinesa. Dissolvidos em vinagre (em decorrência da composição carbonática das conchas e da acidez do vinagre), seriam então “ingeridos”, provendo um suplemento adicional de cálcio para o organismo.

Na América, do outro lado do mundo, outro fóssil de invertebrado também teve o seu destaque mítico: os índios Pahvant Ute das regiões desérticas do oeste do Estado de Utah utilizavam os exemplares do trilobita Elrathia kingii como amuletos protetores (Taylor & Robison, 1976). Espécimens bem preservados desse trilobita são encontrados em depósitos da Formação Wheeler, de idade cambriana, que afloram nesse estado, e sua grande abundância, excelente preservação e facilidade de coleta os tornaram bastante populares entre paleontólogos profissionais e amadores.

Fósseis de trilobita da espécie Elrathia kingii. 
Segundo Taylor & Robison (1976) o nome utilizado pelos índios Pahvant para os trilobitas presentes na matriz, “timpe khanitza pachavee”, significando “pequeno inseto aquático contido na rocha” (little water bug like stone housed in), leva a suposição de que eles reconheciam a origem orgânica dos fósseis. Até o início do século XX os índios Pahvant viviam da coleta de raízes e da caça de pássaros aquáticos em antigas áreas alagadas no vale Sevier, onde tinham a oportunidade de observar os insetos aquáticos; acredita-se que a semelhança entre alguns dos insetos e os exemplares de Elrathia tenha levado os índios a dar a referida denominação. Sobre o interesse dos índios pelos trilobitas, este seria a sua utilização para protegê-los de doenças e das balas dos homens brancos, utilizando-os em colares.


9 Âmbar, um Remédio para Todas as Doenças

Entre todos os fósseis empregados com fins medicinais, o âmbar, a resina fossilizada de coníferas e outros vegetais, é o mais comum. Sua utilização remonta aos tempos da Idade da Pedra e interpretações sobre sua origem envolvem uma lenda romana com características românticas e simbólicas. Conta a lenda que o deus Júpiter, com inveja de Phaeton, atingiu o com um raio, ferindo e lançando-o ao rio Eridanus, onde se afogou. As Helíadas, as três irmãs de Phaeton, filhas do sol, ficaram intensamente sentidas com a perda do irmão; choraram tanto que, finalmente, os deuses, com pena delas, as transformaram em três pés de carvalho. Suas lágrimas, entretanto, continuaram a fluir e, quando caíam no rio, transformavam-se em âmbar. Em virtude da lenda, o âmbar tem sido há longo tempo considerado um símbolo do amor fraterno.

Uma pedra de âmbar
No campo medicinal, sempre foi muito utilizado no tratamento de doenças, sendo ainda empregado em muitas partes do mundo. Suas propriedades permitiam grande emprego (Rudkin & Barnett, 1979): por exemplo, segundo crendices da Antiguidade e da Idade Média, o âmbar, quando misturado a outros remédios, podia ser administrado às mulheres como uma prevenção ao aborto; durante o trabalho, quando queimado, liberaria vapores que teriam propriedades calmantes e, dissolvido em vinho, também atuaria como atenuante às depressões das mulheres no trabalho. Além disso, poderia ser empregado em diversos tratamentos, alguns dos quais atuariam na cura da dor de garganta, na remoção de “resíduos” dos olhos, no desenvolvimento da dentição das crianças e na cura da cegueira, além de interromper sangramentos no nariz. O óleo de âmbar, produzido inicialmente no século X, era então útil no tratamento da asma e da bronquite, do reumatismo, da tosse e, inclusive, histeria. Além disso, era utilizado também na confecção de colares e amuletos entre os povos pré-históricos.

10 Conclusão

Não há dúvida de que os fósseis desempenharam um papel importante no misticismo e no folclore de muitas culturas através dos tempos. Neste texto foi apresentada somente uma pequena parte de suas variadas aplicações, demonstrando a familiaridade do homem com estes objetos desde os tempos da Idade da Pedra aos séculos recentes da Idade Contemporânea. É uma relação por vezes obscura, recheada de crendices e superstições, trazendo à luz informações inestimáveis, por vezes não escritas, relacionadas à história dos povos que os usavam. 

Da sua utilização como ornamentos a objetos místicos, da identidade com os heróis e gigantes da Antiguidade ao reconhecimento da existência de dragões, de amuletos contra serpentes peçonhentas ao número considerável de aplicações medicinais, de uma forma ou de outra, os fósseis sempre foram reconhecidos como objetos de valor no curso da Humanidade.

Por último, para aqueles que desejarem, aqui vai uma antiga receita chinesa: primeiro, pulverize ossos e dentes de dragão, embalando-os em uma bolsa de seda; em seguida, coloque a bolsa no abdômen de uma andorinha morta, ali permanecendo por uma noite. Pela manhã, misture com outros ingredientes pastosos e aplique ao corpo como pomada. Como foi dito anteriormente, de acordo com o pensamento da época, os dragões eram considerados protetores dos imperadores, e a aplicação deste “remédio” poderá ajudá-lo. Quem sabe não dá certo?

Referências
Antunes, M. T. 1976. Dinossáurios Eocretácicos de Lagosteiros. Ciências da Terra (Universidade Nova de Lisboa), 1: 1-35.
Bassett, M. G. 1982. Formed Stones, folklore and fossils. Cardiff, National Museum of Wales, Geological Series no 1. 32 p.
Cachão, M. 2005. Património Paleontológico em Portugal: exemplos, critérios e desafios. In: ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE PATRIMÓNIO PALEONTOLÓGICO, GEOCONSERVAÇÃO E GEOTURISMO, 1, 2005. Actas, Idanha-a-Nova, Centro Cultural Raiano e Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, p. 12-16.
Cachão, M. & Silva, C. M. 1999. Patrimônio paleontológico: entidade autônoma, multidimensional e pluricientífica. In: SEMINÁRIO SOBRE O PATRIMÓNIO GEOLÓGICO PORTUGUÊS, 1, Alfragide. 9p.Comunicações.
Cachão, M.; Silva, C. M.; Santos, A.; Santos, V. F. & Carvalho, A. M. G. 1998. Património Paleontológico Português: critérios para a sua definição. Comunicações do Instituto Geológico e Mineiro, Lisboa, 84 (2): G22-G25.
Cartledge, P. 2003. The Spartans: the world of the warrior-heroes of Ancient Greece. Woodstock, Overlook Press. 304 p.
Edwards, W. N. 1967. The Early History of Paleontology. London, Trusteesof the British Museum (Natural History). 58 p.
Galopim de Carvalho, A. M. 1998. Musealização das jazidas portuguesas compegadas de dinossáurios. Certezas e perspectivas. In: ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE PALEOBIOLOGIA DOS DINOSSÁURIOS (INTERNATIONAL MEETING ON DINOSAUR PALEOBIOLOGY), 1, 1998. Anais, Lisboa, Museu Nacional de História Natural, Universidade de Lisboa, p. 123-143.
Giordani, M. C. 2001. História da Antiguidade Oriental. Petrópolis, Editora Vozes. 362 p.
Heródoto. 2001. História. 2a ed., São Paulo, Ediouro. 1.072 p.
Kennedy, C. B. 1976. A Fossil for what ails you: the remarkable history of fossil medicine. Fossils Magazine, 1 (1): 42-57.
Kerney, M. 1982. Ammonites in architecture. The Geological Curator, 3: 232-233.
Lockley, M. & Meyer, C. 2000. Dinosaur tracks and other fossil footprints of Europe. New York, Columbia University Press. 323 p.
Lockley, M.; Novikov, V.; Santos, V. F.; Nessov, L. A. & Forney, G. 1994. “Pegadas de Mula”: an explanation for the ocurrence of Mesozoic traces that resemble mule tracks. Ichnos, 3: 125-133.
Mayor, A. 2000. The first fossil hunters. Paleontology in greek and roman times. Princeton, Princeton University Press. 361 p.
Mayor, A. 2005. Fossil legends of the first Americans. Princeton, Princeton University Press.
Mayor, A. & Sarjeant, W. A. S. 2001. The folklore of footprints in stone: from classical Antiquity to the Present. Ichnos, 8 (2): 143-163.
Oakley, K. P. 1965. Folklore of fossils, Parts I and II. Antiquity, 39: 9-17, 117-125.
Oakley, K. P. 1971. Fossils collected by the early paleolithic men. In: Mélanges de préhistoire, d’archéocivilisation et d’ethnologie offerts à André Varagne. Paris: p. 581-584.
Oakley, K. P. 1973. Fossil shell observed by Acheulian man. Antiquity, 47: 59-60.
Oakley, K. P. 1975. Decorative and symbolic uses of vertebrate fossils. Oxford, Pitt Rivers Museum, University of Oxford (Occasional Papers on Technology 12). 60 p.
Rudkin, D. & Barnett, R. 1979. Magic and Myth. Fossils in Folklore. Rotunda, 12 (2): 13-18.
Santos, V. F. 1998. Dinosaur tracksites in Portugal: the Jurassic-Cretaceous Record. In: ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE PALEOBIOLOGIA DOS DINOSSÁURIOS (INTERNATIONAL MEETING ON DINOSAUR PALEOBIOLOGY), 1, 1998. Anais, Lisboa, Museu Nacional de História Natural, Universidade de Lisboa, p. 7-16.
Santos, V. F. 2000. Cabo Espichel (Sesimbra, Setúbal). In: SANZ, J. S. (ed.) Dinosaurios. Ediciones Martínez Roca, p. 268-270.
Sarjeant, W. A. 1975. Fossil tracks and impressions of vertebrates. In: FREY, R. W. (ed.), The Study of Trace Fossils. Springer-Verlag, p. 283-324.
Taylor, M. E. & Robison, R. A. 1976. Trilobites in Utah folklore. Brigham Young University Geology Studies, 23 (2): 1-5.
Vitaliano, D. 1968. Geomythology: the impact of geologic events on history and legend, with special reference to Atlantics. Journal of the Folklore Institute (Indiana University), 5: 5-30.
Vitaliano, D. 1973. Legends of the Earth: their geologic origins. Bloomington, Indiana University Press. 305 p.
Wellnhofer, P. 1996. The Illustrated Encyclopedia of Prehistoric Flying Reptils. New York, Barnes & Noble Books. 192 p.
Wendt, H. 1968. Before the Deluge. Garden City, Doubleday & Company. 

Fonte: FERNANDES, Antonio Carlos Sequeira. Fósseis: Mito e Folclore. Anuário do Instituto de Geociências, vol. 28, n. 1, 2005, p. 101-115. 

domingo, 15 de março de 2020

Nísia Floresta e a questão da emancipação feminina pelo viés educacional

Nísia Floresta e a questão da emancipação feminina pelo viés 
educacional


Dra. Mônica Karawejczyk


Obs: as imagens presentes no texto foram escolhidas por mim para ilustrar o trabalho da autora. 


Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia de Faria Rocha nasceu em Papary, interior do Rio Grande do Norte, em 1810. Foi uma figura singular na sua época. Residiu em diversas cidades, entre elas, Olinda, Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro antes de se mudar para a Europa e residir na França, na Itália e em Portugal, até falecer em Rouen (França), em 1885. Segundo Constância Duarte,1 a escolha do pseudônimo

“revela a personalidade e as opções existenciais da autora. Nísia, de Dionísia; Floresta, para te consigo lembranças da infância passada no sítio Floresta; Brasileira, como uma afirmação de seu sentimento nativista; e Augusta, numa provável homenagem de afeto e fidelidade ao companheiro Manuel Augusto”. (1995, p. 24).

Retrato de Nísia Floresta
Nísia foi uma grande educadora preocupada com a educação da mulher, chegando a fundar e a dirigir um

“colégio para moças no Rio de Janeiro, e escrevia livros e mais livros para defender os direitos não só das mulheres, como também dos índios e dos escravos. [...] O fato de estar à frente do seu tempo vai lhe custar o não-reconhecimento do seu talento, por isso seu nome não consta na história da Literatura Brasileira, como escritora romântica, e muito menos na história das mulheres, ou da educação feminina, como educadora. [...] Teve quinze títulos publicados, entre poemas, romances, relatos de viagens e ensaios – em português, francês e italiano”. (DUARTE, 2005, p. 14-16).

Tal como aponta a pesquisadora Constância Duarte, desde 1830, Nísia já era conhecida no Brasil e causava polêmica por onde passava. Além disso, Duarte também aponta que Nísia

“deve ter sido uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada grande imprensa. [...] Sua presença constante na imprensa, desde 1830, comentando questões polêmicas de sua época”. (DUARTE, 2005, p. 14-15).

Essa era uma situação não muito usual às mulheres ocidentais na época em questão.

No ano de 1832, Nísia foi a responsável pela divulgação da versão do livro intitulado Vindications of the rights of woman da inglesa Mary Wollstonecraft.2 A versão escrita por Nísia recebeu o título de Direitos das mulheres e injustiça dos homens e não era uma “simples tradução do texto”, mas uma adaptação do mesmo à realidade nacional.3 Raquel Araújo chega a denominar tal obra como uma “antropofagia literária” que consiste na apropriação de um texto não para produzir uma réplica, mas para transformá-lo com elementos da cultura local.4 Tal façanha literária conferiu a Nísia o epíteto de “precursora do feminismo”, não somente no Brasil, como também na América Latina.5

Capa de uma edição do livro Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, escrito por Nísia Floresta e publicado originalmente em 1832. 
As diferenças gritantes entre a obra original e a sua tradução são assinaladas tanto por Constância Duarte quanto por Raquel Araújo que tem se dedicado a pesquisar tais obras atualmente. Tanto Mary Wollstonecraft quanto Nísia Floresta procuraram acentuar a importância da mulher na sociedade e o papel secundário relegado a elas, mas, enquanto o objetivo final de Wollstonecraft parece ter sido o de exigir uma educação de igual qualidade para homens e mulheres, para Nísia a educação seria um meio para aperfeiçoar as virtudes da alma feminina e, assim, provar a sua própria superioridade sobre os homens.

Curiosamente, uma das vindicações6 mais importantes assinaladas por Mary em sua obra é omitida na versão de Nísia Floresta. Essa se refere a uma maior participação política das mulheres feita pela autora inglesa. Contudo, esse ponto deve ser entendido pela diferença dos contextos históricos vividos pelas autoras. Enquanto Mary Wollstonecraft escreve seu manifesto na Inglaterra, durante a vigência da Revolução Francesa e, após ter, provavelmente, assistido às manifestações ocorridas na França por uma maior participação política e quem sabe ainda tenha buscado inspiração na leitura dos Direitos da mulher e da cidadã, da francesa Olympe de Gouges,7 Nísia Floresta se vê num Brasil recém liberto da sua situação de Colônia, um lugar onde tudo estava por fazer, e as instituições ainda não estavam consolidadas. Poucos eram os que participavam (ou mesmo que se interessavam em participar) do mundo político no começo da vida política do Brasil imperial. A própria Constituição de 1824 restringiu, e muito, os personagens que poderiam fazer parte do mundo político e definiu a baixa participação popular.8

Assim, uma das principais vindicações de Nísia Floresta, nessa obra, foi por uma valorização da mulher pela educação. Aliás, esta foi a sua principal bandeira por toda a vida: a busca pela igualdade de oportunidades no campo educacional para as mulheres.9 A falta de uma educação formal era vista por Nísia como a fonte dos males e a grande responsável pela discriminação da mulher, uma vez que, somente em 1827, a primeira legislação, que tocava no assunto da educação feminina, havia sido promulgada.10 (HANHER, 2003, p. 78). Constância Duarte é uma das autoras que acentua esse ponto na sua análise das obras de Nísia Floresta. Segundo Duarte, a própria Nísia delimitou com clareza o seu próprio papel de educadora, buscando combater a ignorância a que a mulher se via imersa nos idos de 1800. Duarte assim resume o papel atribuído, pela própria Nísia Floresta, ao seu trabalho e aos escritos:

“A tarefa a que se atribuía não incluía ainda a promoção da mulher enquanto cidadã nem a conquista de direitos sociais, de modo a alterar, aí, a posição da mulher na sociedade. A preocupação em 1832 parece ter sido mais a de contribuir para desfazer os preconceitos e o mito de incapacidade intelectual feminina existentes na época”. (1995, p. 175-176).

O combate da ignorância a que a mulher era submetida também foi o mote de luta de outra mulher, Maria Lacerda de Moura, quase um século depois, nas décadas iniciais do século XX. Moura foi também uma “educadora, convencida de que a educação é uma força revolucionária e de que sua missão seria exercê-la”. (LEITE, 2005, p. 15). Contudo, o pioneirismo de Maria de Moura foi na área de estudos sobre a condição feminina, divulgando a luta empreendida pela extensão do direito à cidadania, mas principalmente,

"a necessidade de resistência ao papel exclusivo para a mulher de procriadora e o esclarecimento de seu direito ao amor e ao casamento de livre escolha, a necessidade de uma maternidade consciente e aos problemas da solteirona e da prostituta, provocados pela família burguesa". (LEITE, 2005, p. 17).

A escritora e professora feminista Maria Lacerda de Moura, foi influenciada pela obra e trabalho de Nísia Floresta.
Maria Lacerda de Moura tomou parte dos primeiros movimentos organizados em prol do sufrágio feminino ao lado de Bertha Lutz, em 1919, mas logo se desvinculou desse movimento porque “seu objetivo era outro: queria conscientizar as mulheres de sua condição de servidão à família e conduzi-las à participação social”. (LEITE, 2005, p. 17).

A conquista da educação foi encarada como uma das maneiras de se conseguir a emancipação feminina. Um claro exemplo da importância desse ato pode ser conferido na análise feita por Mariana Coelho, na década de 30 (séc. XX), pois, segundo suas palavras,

“o edifício das conquistas político-sociais, que a mulher vem construindo – principalmente desde a guerra mundial, com uma celeridade pasmosa, está bem firme e bem assente porque o seu principal alicerce, já hoje bastante sólido, foi cimentado na igualdade da instrução difundida entre os dois sexos”. (2002, p. 111).11

Assim, parece se destacar, na questão da emancipação da mulher, a tomada de consciência da situação de inferioridade feminina em relação ao homem, ocorrida pela via da igualdade da educação entre os gêneros, que tem sido vista como uma das, senão a principal, conquista das mulheres.

Branca Moreira Alves é outra autora que aborda esse ponto ao salientar que Nísia Floresta pregava a emancipação feminina através da educação. Todavia, para essa estudiosa o feminismo de Nísia Floresta “mesclava-se à visão romântica da mulher dedicada ao amor, ao lar, ao marido e filhos”. (1980, p. 88). No entanto, como esperar um posicionamento díspar da sua época? Como exigir que Nísia Floresta, apesar do seu pioneirismo e ousadia, tivesse uma visão de mundo tão diferente daquela por ela vivenciada e apreendida? Um aparte, aqui, se faz necessário para se compreender tal ponto.

O sociólogo alemão Norbert Elias, no seu livro dedicado ao músico Wolfang Amadeus Mozart, alerta que “não devemos nos iludir julgando o significado, ou falta de significado, da vida de alguém segundo o padrão que aplicamos à nossa própria vida”. (1995, p. 10). Elias procura demonstrar que não se pode compreender uma pessoa e os atos por ela tomados, senão no contexto em que eles aconteceram. Nada é desvinculado do todo. Se uma dada manifestação ocorreu foi somente porque havia condições para que ela ocorresse naquele exato momento e naquela época determinada. Sem tirar a genialidade ou o pioneirismo de ninguém, o que se quer aqui assinalar é como o conflito de padrões, a que se refere o autor, deve ser levado em conta quando fazemos nossa análise do passado.

Elias também chama a atenção que não se deve utilizar, ou ainda, cristalizar, conceitos estáticos para se compreender o passado ou as pessoas que ali viveram. Não se deve esperar encontrar posicionamentos e visões de mundo de nossa época em outra tão diferente, pois isso pode impedir “nossa compreensão do significado que, num tempo passado, o curso dos eventos tinha para os próprios seres humanos que os viviam”. (ELIAS, 1995, p. 16).

Apesar de Elias estar se debruçando, em específico, sobre a vida individual de uma pessoa (no caso Mozart), creio ser correto extrapolar as suas considerações para o caso aqui analisado. Quero enfatizar que ideias, tais como: discriminação ou ainda a percepção da diferença de tratamento entre os sexos, estavam de alguma forma circulando em terras brasileiras desde muito antes do que se pensa. Uma figura como Nísia Floresta não poderia surgir sem que houvesse as condições necessárias para acolher as suas ideias, mesmo que essas a tivessem levado a buscar um tipo de “exílio voluntário” na Europa em busca de “outros ares”.12

Creio que não se poderia esperar outra atitude, que não a exaltação do papel da mulher como mãe e educadora para a época em questão, ou seja, o começo do século XIX. Tal como adverte June Hahner, no seu estudo sobre as mulheres brasileiras,

“o passado das mulheres não pode ser estudado num vácuo. As mulheres foram uma parte da sociedade em que viveram e cujos valores absorveram. Devemos esforçar-nos em aprender como sua experiência distinta afetou essa absorção, não as isolando de seu cenário histórico”. (1981, p. 17).

Ao dar ênfase à diferença de tratamento entre os sexos e ao querer assegurar uma suposta superioridade feminina sobre os homens, Nísia Floresta deixa entrever muito da sua época e de seus ideais. Ao enfatizar e mesmo ao exaltar o papel da mulher, ela não poderia, de modo algum, o desvincular do seu papel tradicional de provedora. Provedora do lar, dos filhos e do marido. Como esgarçar e mesmo romper o tecido social que fora já, há muito tempo, tramado? Como esperar outra atitude que não a primeira de todas? Duarte também se pergunta: “Como pleitear emancipação política se as mulheres ainda precisavam ser alfabetizadas?” (1995, p. 175).

De modo que o papel desempenhado por Nísia Floresta nessa trama da emancipação feminina deve ser entendido no seu contexto. A questão que aqui se apreende é: tal tomada de consciência da diferença de tratamento entre homens e mulheres e a sua subsequente reivindicação por igualdade, pelo menos no quesito educacional, poderia levar, mais tarde, a outras tomadas de posição e contestações? Como bem relembra Roderick Barman, no século XIX,

“o casamento era o destino da maioria das mulheres ocidentais [...]. A missão de vida da mulher consistia em prestar apoio, conforto e lealdade ao marido e em gerar e criar seus filhos. As mães educavam as filhas não só para contar com esse destino, mas também para aceitá-lo de bom grado. [...] Aos olhos da sociedade, o casamento conferia status e certa influência à mulher”. (2005, p. 78).

Como se percebe da leitura do excerto acima, o casamento e os filhos eram uma das preocupações mais constantes na vida das mulheres e não só no início do século XIX. Esse fato (apesar de poder ser considerado como uma obviedade para muitos) ainda era citado no fim do século como um dos mais básicos objetivos a serem alcançados pela mulher, tal como se pode constatar no artigo intitulado “Ser mãe”, publicado no jornal A Família, de autoria de Julia L. de Almeida:

Ser mãe é:
Renunciar a todos os prazeres mundanos, aos requintes do luxo e da elegância, aos espetáculos em que se ri ou em que se chora, mas em que o espírito se deleita e se abre avidamente, com a sofreguidão dos sequiosos; é deixar de aparecer em bailes, de valsar, de ir a piqueniques sem temer o sol, o vento, a chuva, uma independência feliz; é passar as noites num cuidado incessante, em sonos curtos, leves como o pensamento sempre preso à mesma criaturinha rósea, pequena, macia, que lhe magoa os braços, que a enfraquece, que a enche de susto, de trabalhos e prevenções, mas que a faz abençoar a ignota providência de a ter feito mulher para ser mãe. (Apud BERNARDES, 1998, p. 170).

A maternidade, exaltada e execrada no excerto acima, era extremamente valorizada, e isso se deve não só à doutrina cristã, mas também ao papel que a mulher tradicionalmente ocupou na sociedade. E não só no Brasil, também na Europa, esse era o papel mais “desempenhado” pela mulher, tal como se pode constatar neste trecho que descreve a participação das mulheres na sociedade, até as primeiras décadas do século XX, na parte ocidental da Europa:

"O que caracterizava sua vida [das mulheres] era a impossibilidade de separar as funções familiares e o trabalho. Estas eram levadas a efeito num único ambiente, no qual a maior parte dos homens e mulheres realizavam suas tarefas sexualmente diferenciadas – tanto naquilo que hoje consideremos “casa” como na “produção”. Os agricultores precisavam das esposas para o trabalho da fazenda, bem como para cozinhar e criar os filhos; e os mestres-artesãos e pequenos lojistas necessitavam delas para conduzir seu comércio. Se existiam ocupações que reuniam homens sem mulheres, durante longos períodos [...] não existiam ocupações puramente femininas [...] que não fossem, normalmente, levadas a efeito a maior parte do tempo, dentro de uma casa. [...] Na medida em que o grosso das mulheres do mundo continuavam a viver desse modo, agrilhoadas pelo duplo trabalho e pela sua inferioridade em relação ao homem, pouco há que dizer sobre elas que não se dissesse igualmente nos tempos de Confúcio, Maomé ou do Velho Testamento". (HOBSBAWM, 2009, p. 276-277).

Observa-se, nessa descrição de Hobsbawm, que o trabalho de cuidar da casa e ser mãe – dentro do ambiente doméstico – parece ter influenciado de forma contumaz na vida das mulheres, até mesmo nas suas reivindicações políticas, tal como veremos nos próximos capítulos. O ritmo de vida13 das mulheres europeias e brasileiras bem mostra a interdependência dos vários papéis impostos a ela, com ênfase especial ao papel de mãe-educadora.

Como bem lembra Maria Lygia Quartim de Moraes sobre o tema da maternidade, “ser mãe, no entanto, é uma noção culturalmente construída, que envolve muito mais do que o simples ato biológico da reprodução”. (2003, p. 500). De modo que não me parece demasiado supor que a primeira reivindicação feminina tenha sido pela igualdade de educação, almejando, quem sabe, uma vida melhor para suas próprias filhas. Um ponto que vale a pena ser relembrado é que a ideia tradicional “que a maternidade não exigia aprendizado” foi, ao longo do século XIX, sendo cada vez mais posta em dúvida, tal como explicita June Hahner. Essa autora acentua a relação que aconteceu, ao longo de todo o século, entre o fato de se instruir as mulheres para que elas modelassem os homens de amanhã. Assim, “aliando maternidade a progresso e patriotismo, os brasileiros partidários da modernização ofereciam às mulheres um papel mais significativo na vida da nação, desde que elas o desempenhassem em seus lares”. (HAHNER, 2003, p. 124-125). Esse papel de educadora dos homens de amanhã também era acentuado pela doutrina positivista que tanto influenciou no coração e na mente dos homens brasileiros durante boa parte do século XIX.

Voltando ao tema participação política, quero ressaltar que, no ano em que Nísia Floresta publica sua versão do livro de Mary Wollstonecraft (1832), a ideia do sufrágio universal estava ainda distante e não só nas terras brasileiras. Essa discussão ainda não tinha muita força no mundo ocidental de modo geral. Foi somente com as revoluções que ocorreram em 1848 (que convulsionaram o continente europeu) que a busca por uma maior participação na vida política se firmou como uma das reivindicações básicas do novo mundo que se descortinava. Em terras brasileiras, também ocorreram muitas revoltas e contestações de Norte a Sul e que abalaram o império, entre as décadas de 30 e 40 (séc. XIX), tais como a Guerra dos Farrapos, a Sabinada e a Balaiada.

O exemplo de Nísia Floresta foi aqui apresentado para que se pudesse perceber que o tema emancipação feminina já estava presente desde o início do século XIX, mesmo que, num primeiro momento, a questão da participação da mulher no mundo político ainda não fosse mencionada. Nesse primeiro momento de reivindicações femininas no Brasil, não se refletia seriamente sobre o afastamento do mundo político, que alijava grande parte da população do seu meio e não só as mulheres.

Outro ponto destacado na trajetória de Nísia Floresta foi a sua aproximação com Auguste Comte. Essa se deu em meados de 1850, quando ela já se encontrava na França. Constância Duarte informa que foi na segunda viagem de Nísia Floresta à França (1856) que a autora estreitou relações com Auguste Comte. Inclusive, as célebres correspondências trocadas entre Comte e ela são datadas entre os anos de 1856 e 1867. As cartas que Comte escreveu a Nísia Floresta estão sob a guarda do Apostolado Positivista do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, e as respostas dela, na Maison d’Auguste Comte, em Paris, segundo Duarte: “Esta correspondência [...] resume-se a cartas de cortesia, contendo agradecimentos pela remessa de um retrato ou de um livro, pêsames pelo aniversário de morte de Clotilde de Vaux e alusões a doenças e tratamentos.” (1995, p. 46). Ainda sobre essa temática, Duarte afirma que primeiro houve o contato da brasileira com as teorias positivistas; só mais tarde conhecerá pessoalmente o filósofo. Em 1851, ela era uma das pessoas interessadas que afluíam ao auditório Palais Cardinal, para as conferências do Curso de História Geral da Humanidade que Comte ministrava divulgando seu pensamento. E só em 1856 se aproxima do filósofo, quando, então, confessa ter se impressionado muito com a filosofia positivista. (1995, p. 38).14

Augusto Comte, filósofo francês e fundador do Positivismo. Comte se correspondeu com Nísia por alguns anos. Sua filosofia positivista influenciou o trabalho de Nísia. 
Tal aproximação pode ter se dado pelo destacado papel tanto da educação quanto da mulher proposto pelo positivismo, assuntos muito caros para Nísia Floresta. Duarte conjectura que as propostas de Nísia Floresta para a educação feminina (que foram divulgadas nas suas obras) “poderiam se resumir no desempenho satisfatório dos tradicionais papéis femininos”. (1995, p. 176). A doutrina positivista também reforçava o papel tradicional da mulher, de dona de casa e mãe de família, apesar de valorizá-lo e de o enaltecer, o que talvez explique a admiração de Nísia Floresta pelos ensinamentos de Comte.

Assim, a contribuição de Nísia Floresta deve ser exaltada nesta, que foi a primeira das reivindicações femininas: a educação igualitária entre homens e mulheres. Apesar de sua conquista ainda ter demorado algumas décadas para acontecer no Brasil, considero que foi através de seu embate que a questão da emancipação feminina pode ser cada vez mais debatida, compreendida e apreendida pelas brasileiras. Levando a novas reivindicações, tais como o direito de participar de forma ativa da vida pública do País e até o direito de votar.

NOTAS:
1 Constância Duarte é a responsável pela redescoberta da obra de Nísia Floresta. Atualmente, é professora de Literatura Brasileira na UFMG. Desde 1980, quando da feitura de sua Tese de Doutoramento em Literatura Brasileira, na USP (defendida em 1991), tem se dedicado a publicar livros sobre Nísia, entre os quais destaco: Nísia Floresta: vida e obra, 1995; Literatura feminina do Rio Grande do Norte: de Nísia Floresta a Zila Mamede, 2001; Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil, 2005. Também organizou e publicou os seguintes livros da escritora potiguar: Direitos das mulheres e injustiças dos homens, 1989; A lágrimade um caeté, 1997; Cintilações de uma alma brasileira, 1997; Itinerário de uma viagem à Alemanha, 1998, e Cartas: Nísia Floresta & Auguste Comte, 2002. Recebeu o título de Cidadã Norte-Rio- Grandense, em agosto de 2010, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande doNorte em reconhecimento ao seu empenho.
2 Nos dias atuais é considerada como uma das obras fundadoras do feminismo mundial.
3 Direitos das mulheres e injustiça dos homens mais do que uma tradução é considerada a primeira obra da autora. Além disso, é importante assinalar que o alcance da obra parece ter sido grande na época em que foi publicada, uma vez que foi citada no romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, escrita no ano de 1844. Como aponta Raquel Martins Borges Carvalho Araújo, na sua pesquisa realizada para o Grupo de Pesquisa “Vozes Femininas”, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB), o manifesto de Wollstonecraft até hoje não foi traduzido para o português, tendo somente recebido a “tradução livre” feita por Nísia Floresta Brasileira Augusta em 1831, 40 anos depois de ter sido publicado na Inglaterra. Raquel Araújo fez uma análise comparativa das duas obras apontando suas diferenças e similitudes em artigo publicado no site do grupo na internet com o título “Mary Wollstonecraft e Nísia Floresta: diálogos feministas”. O resultado de sua pesquisa também foi apresentado no Simpósio Temático Direitos Humanos e Gênero, no dia 26 de agosto de 2010, no Congresso Internacional Fazendo Gênero 9, na cidade de Florianópolis. O livro de Nísia Floresta também recebeu várias reimpressões sendo uma delas feita enquanto residia em Porto Alegre, em 1833 e outra em 1839, no Rio de Janeiro.
4 Raquel Araújo parece fazer um trocadilho com uma expressão utilizada por Constância Duarte: “antropofagia libertária”. Ver mais em DUARTE, Constância Lima. Posfácio: nos primórdios do feminismo brasileiro. In: FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiças dos homens. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1989. p. 107. A expressão também é utilizada em DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Florianópolis: Mulheres, 2005. p. 18.
5 Constância Duarte faz uma ressalva que deve ser levada em consideração sobre essa questão ao comentar sobre a precocidade da atuação de Nísia: “Pode até ser que as reivindicações femininas não tenham começado em 1832 com essa publicação. Preferimos mesmo acreditar na capacidade de resistência da brasileira e achar provável que tenham existido outras manifestações cujos registros se perderam ao longo dos séculos.” (DUARTE, Nísia Floresta: vida e obra..., p. 166).
6 Segundo a definição do dicionário online Priberam da Língua Portuguesa, vindicação é o ato de vindicar, ou seja, de reclamar uma coisa que nos pertence e que está entre as mãos de outrem, ou ainda, de exigir o reconhecimento ou a legalização de uma coisa, ou ainda, tem o significado de recuperar, reivindicar, justificar e defender. Disponível em: <http://www.priberam.pt>.
<http://www.priberam.pt>.
7 Olympe de Gouges é o pseudônimo da francesa Marie Gouze (1748-1793). Em 1791, publicou o manifesto “Les Droits de la Femme et de La Citoyenne” como uma forma de contestação da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, de 1789. Nele ela conclamou as mulheres à luta e reivindicou os mesmos direitos que os homens. Na fase conhecida como “Reinado do Terror” da Revolução Francesa, foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793, por ser considerada “perigosa”, principalmente por suas ideias de igualdade de tratamento para as mulheres. Sua sentença acusava-a de “ter querido ser homem de Estado e ter esquecido as virtudes próprias do seu sexo”. (ALVES, Branca M.; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo? São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 34). Quanto à
inspiração de Mary Wollstonecraft para o seu manifesto, lanço apenas conjecturas, uma vez que, segundo Constância Duarte, não foi encontrada nenhuma referência ao texto de Olympe de Gouges nem em sua obra nem em suas correspondências.
8 Aliás, em todo período imperial, a participação política foi muito baixa, os únicos dados existentes sobre o comparecimento eleitoral na época imperial são as das eleições de 1886, e esses mostram que o comparecimento era de menos de 1% da população. (NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2004. p. 24).
9 Ainda que esse não fosse tão amplo como exigia Mary Wollstonecraft na Inglaterra. A educação formal das meninas no Brasil baseava seus programas em ensinamentos de língua estrangeira (quase sempre o francês), corte e costura, música, prendas domésticas e alguma coisa de aritmética. Existia uma grande diferença entre os currículos das escolas primárias femininas e masculinas e não era admitida a coeducação. Ver mais em (SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. p. 187-204). Já LOURO, Guacira L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. p. 447, aponta que somente no fim do século XIX é que a educação da mulher foi vinculada “à modernização da sociedade, à higienização da família, à construção da cidadania dos jovens”.
10 A lei de 1827 admitia que as meninas cursassem somente a escola elementar. Somente em 1879 é que seriam admitidas mulheres no Ensino Superior no Brasil.
11 Correspondências trocadas entre Mariana Coelho e Bertha Lutz (presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF)) encontradas no fundo da FBPF (Arquivo Nacional – RJ) atestam a constante troca de ideias e sugestões entre essas mulheres na feitura desse livro, publicado, originalmente, em 1933.
12 Constância Lima Duarte, ao comentar esse exílio de Nísia Floresta em 1849, também faz conjecturas sobre as razões do mesmo, levantando algumas hipóteses, tais como: a necessidade de “uma mudança de ares” para a filha que estava em tratamento médico, ou ainda, pela campanha difamatória que estava sofrendo no Brasil, depois de ter publicado um livro em que elogiava uma revolução contrária aos interesses do Imperador ou mesmo uma mistura dos dois. Segundo Duarte, “a mãe preocupada era também a escritora polêmica, e a ideia de tal viagem pode ter sido vista como conveniente para todos”. (DUARTE, C. L. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: Ed. da UFRN, 1995. p. 36-37).
13 Expressão utilizada por ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 207. O autor assim define ritmo de vida: “Uma manifestação do grande número de cadeias entrelaçadas de interdependência, abrangendo todas as funções sociais que os indivíduos têm que desempenhar e da pressão competitiva que satura essa rede densamente povoada e que afeta, direta ou indiretamente, cada ato isolado da pessoa.”
14 A aproximação de Comte e Nísia Floresta também é comentada por SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: AGE; Ed. da UFRGS, 1998. p. 88-90.

Referências:
ALVES, Branca M.; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.
BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil: gênero e poder no século XIX. São Paulo: Edunesp, 2005.
BERNARDES, Maria T. C. C. Mulheres de ontem?: Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Queiroz, 1988.
COELHO, Mariana. A evolução do feminismo: subsídios para a sua história. 2. ed. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2002.
DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Florianópolis: Mulheres, 2005.
DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: Ed. da UFRN, 1995.
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. v. 2.
HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil: 1850-1940. Florianópolis: Mulheres, 2003.
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
LEITE, Miriam L. Moreira. Maria Lacerda de Moura: uma feminista utópica. Florianópolis: Mulheres, 2005.
LOURO, Guacira L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
MORAES, Maria Lygia Quartim de. Brasileiras: cidadania no feminino. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla B. (Org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.
NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2004.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidadePetrópolis: Vozes, 1976.
SOARES, Mozart Pereira. O positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: AGE; Ed. da UFRGS, 1998.

Fonte: KARAWEJCZYK, Mônica. Nísia Floresta e a questão da emancipação feminina pelo viés educacional. Métis: história e cultura, v. 9, n. 18, 2010, p. 113-126.