Fósseis: Mito e Folclore
Antônio Carlos Sequeira Campos
Obs: As imagens aqui apresentadas, foram escolhidas por mim para ilustrar o trabalho do autor. Pois o texto original não contem imagens.
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Introdução
Os
fósseis, em sua conceituação mais moderna, compreendem os restos e vestígios de
organismos do passado geológico preservados naturalmente nas rochas. Apesar de
sua conceituação como “objetos” de origem biológica só ter sido admitida de
fato pelos estudiosos a partir dos dois últimos séculos, sua presença na
natureza sempre foi conhecida pelo homem, desde bem antes da Antiguidade
clássica. Sua utilização teve inúmeras conotações: como simples adornos, como
amuletos, como objetos de superstição ou mesmo como objetos de interesse para
propósitos medicinais. Em grande parte os fósseis são abordados na literatura
em citações isoladas de fatos curiosos relacionados a grupos específicos; mais
do que uma simples curiosidade, entretanto, o conhecimento de sua existência
pelo homem e as conotações que lhe são atribuídas trazem revelações
surpreendentes que nos permitem compreender melhor a História, em grande parte
devido a sua ligação com o comportamento e religiosidade dos povos antigos.
O
seu papel nas diversas sociedades tem se revelado principalmente nos textos de
Bassett (1982), Edwards (1967), Kennedy (1976), Kerney (1982), Mayor (2000 e
2005), Mayor & Sarjeant (2001), Oakley (1965, 1971, 1973 e 1975), Rudkin
& Barnett (1979) e Wendt (1968), onde a relação dos fósseis com as
populações pré-históricas, a mitologia na Antiguidade, as crendices religiosas,
bem como a sua utilização na medicina popular, tiveram uma abordagem destacada.
Este
texto descreve resumidamente alguns dos principais enfoques desses autores, apresentados
na conferência proferida sobre o tema durante a II Jornada Fluminense de
Paleontologia, realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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Os Fósseis entre os Povos Pré-históricos
Quem
teria sido o primeiro coletor de fósseis e que interesse ele poderia ter tido
nesse tipo de objeto? É uma pergunta de resposta difícil, apesar do conhecimento
de sua presença desde os tempos do Paleolítico inferior, conforme revelou a sua
presença entre os pertences das primeiras culturas do período. Qualquer
tentativa de resposta seria pura especulação, já que da antiga Idade da Pedra
não ficaram documentos escritos que nos permitissem respostas adequadas (Rudkin
& Barnett, 1979). Mesmo assim, sua ocorrência entre o homem paleolítico
pode lançar alguma luz sobre o comportamento de nossos ancestrais.
Uma
expressiva variedade de fósseis foi utilizada pelo homem paleolítico, embora
nunca se tenha conhecido qual o seu verdadeiro valor prático. Conchas de
gastrópodes, biválvios, amonitas e braquiópodes, carapaças de equinoides (ouriços
do mar) e dentes de tubarão eram as formas mais utilizadas no Paleolítico
superior. Seu valor poderia estar relacionado ao simples uso decorativo ou
mesmo como elementos convenientes na composição de um colar (Oakley, 1971).
O
exemplo mais antigo data de cerca de 100.000 anos atrás (Oakley, 1971)
pertencente à cultura acheulense (designação proveniente de Saint-Acheul, próximo
a Amiens, no norte da França), caracterizada pela produção de peças finamente
talhadas (Giordani, 2001). Trata-se de um raspador produzido com uma carapaça
silicificada de um equinóide cretácico (Micraster), cuidadosamente trabalhado
de modo que sua área central, onde se encontram os cinco ambulacros, permaneceu
intacta. Se o produtor da peça teve ou não preocupação com a preservação da
área referida, alertado e impressionado pelas marcas dos ambulacros, é uma
questão que permanece em dúvida.
Segundo
Oakley (1971), a presença de sílex na região onde o raspador foi encontrado,
Saint-Just-des-Marais, é bastante freqüente e as marcas enfileiradas numa das
faces do artefato não teriam necessariamente induzido o "artífice"
acheulense a escolher esta peça para produzir seu raspador. Entretanto, pode-se
admitir que o estranho padrão das marcas em sua superfície tenha provavelmente
influenciado em sua escolha.
Mas
se este exemplo deixou dúvidas quanto à possível escolha peça por parte do
homem pré-histórico, muitas outras ocorrências demonstram o seu interesse por
esses objetos naturais, seja para seu emprego como simples adorno ou mesmo pela
possível atribuição de uma interpretação mística. E, ao contrário do registro
de Saint-Just-des-Marais, muitos fósseis viajaram com seus donos por grandes
distâncias, desde seus pontos originais de coleta aos locais onde finalmente
ficaram preservados e encontrados pelos arqueólogos. Rudkin & Barnett
(1979) citaram alguns casos e a hipótese de que poderia ter ocorrido um
comércio geograficamente amplo e regular de fósseis entre as culturas
paleolíticas da Europa.
Os
habitantes das cavernas de Grimaldi (situadas próximo à localidade de Menton,
no litoral sudeste da França e nas proximidades do Principado de Mônaco), por
exemplo, praticamente se “vestiam” com conchas em certas ocasiões; em um único
sítio, arqueólogos encontraram cerca de 8.000 conchas pequenas, as quais
aparentemente teriam sido utilizadas na fabricação de colares, braceletes e
capuzes, normalmente perfuradas e enfileiras junto com outras peças como
vértebras de salmão e caninos de veados machos.
Entre
as conchas encontrava-se a de um gastrópode de idade eocênica somente conhecido
na França em rochas situadas em Cherbourg, região localizada a mais de 1.000 km
de distância das cavernas de Grimaldi. Outros exemplos são citados por Rudkin
& Barnett (1979): dois gastrópodes encontrados em Laugerie Basse, na
França, somente podem ser coletados em depósitos eocênicos da Ilha de Wight, no
litoral sul da Inglaterra; na caverna de Lascaux, situada próximo à cidade de
Montignac, a sudoeste da França, e famosa pelas suas pinturas rupestres, foi
encontrado um gastrópode da espécie Sipho menapiae, a qual é conhecida somente
das camadas pliocênicas presentes na Ilha de Man, situada no Mar da Irlanda, a
noroeste da Inglaterra, e de Wexford, no litoral sudeste da República da
Irlanda. Um dos exemplos mais impressionantes, entretanto, é o de um exemplar
do trilobita de idade siluriana Dalmanites hawley, encontrado nas camadas
magdelianas de Arcy-sur-Cure, na França, com a presença de uma perfuração
indicando sua utilização como ornamento; sua origem, entretanto, estaria em
camadas situadas na Alemanha, a mais de 2.000 km à leste da localidade
francesa.
De
qualquer forma, utilizados como ornamentos ou como símbolos místicos, a
presença de provenientes de localidades situadas a grandes
distâncias veio demonstrar uma grande utilidade dos fósseis na arqueologia, auxiliando
nos estudos das migrações ocorridas entre os povos pré-históricos.
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Gigantes e Heróis
Nos
antigos textos históricos, como os de Heródoto (c. de 430 a.C.; Heródoto,
2001), Estrabão (c. de 64 a.C.), Plínio O Velho (c. de 77 A.D.) e Pausânias (c.
de 150 A.D.), encontram-se citações sobre a ocorrência de fósseis marinhos e de
grandes restos ósseos, estes últimos com freqüência atribuídos a personagens
mitológicos (Mayor, 2000). As associações com a mitologia ocorriam por serem a
única forma de explicação para a existência desses achados extraordinários.
De
acordo com Mayor (2000) o mito grego consiste numa mistura complexa de contos
sobre a origem do mundo natural e a história de seus primeiros habitantes.
Essas associações mitológicas com o inexplicável resultaram na criação do termo
“geomitologia”, proposto por Vitaliano (1968, 1973), o qual se refere às lendas
que explicam através de metáforas poéticas e do imaginário mitológico, a
existência de eventos geológicos como terremotos e grandes atividades
vulcânicas. O termo também se aplicaria, assim, aos fósseis, e negar que estes
textos históricos possam fornecer informações de cunho geológico e
paleontológico seria um equívoco certamente a ser evitado, utilizando-o para a
interpretação do conteúdo de vários textos antigos. E é exatamente no contexto
do imaginário mitológico grego que encontramos muitas das interpretações a
respeito das ossadas encontradas em seu território.
Os
achados eram normalmente considerados pelos gregos como os ossos de dragões,
ciclopes ou centauros, mas também atribuídos a gigantes e aos esqueletos de
seus heróis, os quais os gregos imaginavam serem dotados de uma maior estatura
(Mayor, 2000). Em grande parte eram ossos de várias espécies de mamíferos
provenientes de terrenos do Neógeno, principalmente de proboscídeos como os
mastodontes do Mioceno/Plioceno e os grandes mamutes e elefantes do Pleistoceno
e do Holoceno. Quando por volta dos séculos VIII e VII a.C. começou o culto às
relíquias dos heróis, vários ossos de mamíferos foram encontrados e muitos
enterrados em grandes túmulos representando os restos mortais dos heróis, num
processo que se alongou também pelos séculos VI e V a.C. Ao longo desse
período, por todo o mundo grego as cidades-estado procuravam recuperar os
restos de seus heróis, buscando assim o glamour peculiar que lhes seria
conferido pela sua posse: a consagração religiosa e o poder político (Mayor, 2000).
É desta fase talvez a mais extraordinária história da procura dos restos de um
herói no mundo grego: a do herói Orestes, de Esparta.
Por
volta de 560 a.C. Esparta disputava com Tegéia a liderança no Peloponeso. Sem
poder vencer Tegéia pela força, não restou outra alternativa aos espartanos do
que empregar a propaganda e a diplomacia e, para atingir seu objetivo
hegemônico, procuraram descobrir e recuperar os ossos de Orestes, que se
“encontravam” em Tegéia (Cartledge, 2003). Filho de Agamenon e da espartana
Clytemnestra, e sobrinho do rei espartano Menelau, Orestes era um espartano
nato e a descoberta de seus ossos ressaltaria a importância da reivindicação de
Esparta, demonstrando sua superioridade hereditária sobre Tegéia. Para reforçar
esta interpretação, a procura dos ossos do alegado filho de Orestes, Tisamenus,
na região mais ao norte do Peloponeso, também se revelou importante, pois sua
descoberta e posterior sepultamento enfatizaria ainda mais a reivindicação dos
espartanos de governar todo o Peloponeso por direito de hereditariedade
(Cartledge, 2003).
Heródoto,
por volta de 430 a.C., relatou a descoberta, que pode ser assim resumida
(Mayor, 2000): incapazes de derrotar Tegéia em batalha, os espartanos
recorreram ao oráculo de Delfos que os aconselhou a trazer Orestes para sua
cidade. Seus restos estariam em uma ferraria, mas as diversas buscas realizadas
haviam se revelado infrutíferas. Na ocasião, Licas, um espartano que se
encontrava na região de Tegéia durante um intervalo entre as hostilidades, foi
informado por um ferreiro sobre um espantoso achado no jardim de sua ferraria,
um túmulo contendo um caixão com três metros de comprimento e que, após ter seu
interior examinado, voltou a ser enterrado.
Passando-se
por um exilado de Esparta, Licas alugou um quarto na ferraria e, secretamente,
escavou a sepultura e fugiu com os grandes ossos. Esparta então noticiou a
recuperação dos restos mortais de Orestes, sepultando-os em sua cidade com
grandes honras, obtendo, assim, a tão esperada hegemonia sobre Tegéia. É
interessante assinalar que Tegéia situa-se sobre depósitos sedimentares de
origem lacustre que contêm os restos de mamutes e outros mamíferos
pleistocênicos; face à informação de Heródoto sobre as dimensões do esquife, é
de se supor que os ossos encontrados pertencessem a um dos inúmeros mamíferos
pleistocênicos presentes na região. Infelizmente, o túmulo e os ossos de
Orestes há muito se perderam, dificultando assim a identificação do animal que,
com seus ossos, evitou a continuação de uma guerra e permitiu que Esparta,
através de propaganda e diplomacia, obtivesse a hegemonia e a condução da
conhecida Liga do Peloponeso.
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Dragões: das Lendas Chinesas ao Combate de Siegfried
Enquanto
os gregos da Antiguidade associavam os fósseis de vertebrados a heróis e
personagens mitológicos clássicos, por milhares de anos os chineses os
consideravam como os restos de dragões, sendo regularmente coletados e reunidos
para serem empregados como remédios (Wendt, 1968). Os ossos de dragões tinham
como fonte principal o distrito de Pao Te Hsien, em Shansi, no noroeste da
China, compreendendo ossos e dentes de mamíferos fósseis coletados em camadas
argilosas do Plioceno inferior, as quais eram exploradas pela população local
complementando assim o trabalho sazonal na agricultura. Como os dragões eram
considerados guardiões do imperador, os homens mais abastados utilizavam os
ossos convencidos que assim teriam a ajuda do dragão.
A
interpretação relacionada à figura do dragão também ocorreu na Europa, podendo
ainda ser observada através das inúmeras esculturas existentes em construções
do século XVI ao século XVIII. Uma das esculturas mais extraordinárias e
freqüentemente citada na literatura corresponde ao monumento Lindwurm, datada
do século XVI e exposta em Klagenfurt, cidade situada ao sul da Áustria. Wendt
(1968) descreveu brevemente sua interessante história: em 1335, em uma pedreira
situada próximo à referida cidade, foi encontrado um crânio de um rinoceronte
lanoso da Idade do Gelo. Considerado como um crânio de dragão, permaneceu em
exibição em uma loja de curiosidades. Em 1590 foi então utilizado como modelo
por um escultor, Ulrich Vogelsang, quando criou o famoso monumento do dragão
que se tornou um marco da cidade. O crânio, atualmente, se encontra no Museu de
Klagenfurt.
Em
vez de ossos, pegadas preservadas nas rochas também foram associadas aos
dragões. Kirchner (1941 apud Sarjeant, 1975) sugeriu que a observação de
pegadas triássicas de répteis em Siegfriedsburg, na Alemanha, poderia ter sido
o ponto de partida para a origem da lenda de Siegfried e o dragão, a qual ficou
imortalizada através da ópera “Canção dos Nibelungos”, de Richard Wagner
(1813-1883), famoso compositor alemão. É interessante lembrar que a existência
de dragões era uma realidade para os estudiosos dos séculos XVI e XVII na
Europa, incluindo-se mesmo a crença em batalhas sangrentas com esses grandes
lagartos (ou serpentes) alados (Wellnhofer, 1996).
Sua existência baseava-se
também nos achados de esqueletos fossilizados como os de répteis fósseis
marinhos mesozóicos. Não seria de se estranhar, portanto, a idéia de um ponto
de ligação entre as referidas pegadas e a tradicional lenda alemã.
Lessertisseur (1955 apud Sarjeant, 1975), entretanto, discordou da sugestão de
H. Kirchner, assinalando de forma sarcástica de que esta seria tão somente uma
incursão curiosa de um paleontólogo no folclore medieval, nada convincente.
Lenda e pegadas, mesmo que reais, não teriam deste modo nenhuma relação entre
elas.
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As Pegadas da Mula de Nossa Senhora
Se
a relação entre as pegadas em Siegfriedsburg e a lenda de Siegfried pode
suscitar dúvidas no imaginário popular, o mesmo não se pode dizer quanto à
presença de pegadas relacionadas a aspectos mais profundos de religiosidade regional,
como as famosas pegadas da mula de Nossa Senhora, em Portugal.
Ao
sul de Lisboa, na extremidade ocidental da serra da Arrábida e próximo à cidade
de Sesimbra, na Costa de Lisboa, ocorrem as falésias que compõem o cabo
Espichel, junto às quais encontra-se uma pequena capela, a ermida de Nossa Senhora
da Memória, construída no século XV, e o santuário de Nossa Senhora do Cabo ou
de Santa Maria da Pedra da Mua (ou da Mula). Nas lajes calcárias que se
encontram junto à baía de Lagosteiros e na laje posicionada na lateral da
falésia sob a ermida, conhecida como “Pedra da Mua”, ocorrem pistas compostas
por pegadas de dinossauros, as quais foram interpretadas pelos pescadores que
as observaram desde o século XIII como tendo sido produzidas pela mula que
levara Nossa Senhora e o Menino Jesus ao alto da colina, lenda que resultou no
nome do santuário. No rastro dessa interpretação há imagens em murais de
azulejos do século XVIII (Santos, 2000) e a veneração de Nossa Senhora da Mua
com romaria anual ao santuário (Cachão et al., 1998).
Descritas
originalmente por Antunes (1976), as pegadas, objeto de estudos e referências
mais recentes (Lockley et al., 1994; Santos, 1998, 2000; Lockley & Meyer,
2000), datam do Jurássico Superior (Portlandiano), encontrando-se em diferentes
níveis de exposição. As pegadas da “mula gigante” (Galopim de Carvalho, 1998)
foram produzidas principalmente por grande número de saurópodes e alguns
terópodes que se deslocavam lentamente na região, por vezes em manadas (Santos,
2000).
Pegadas de dinossauros na Pedra da Mua, em Portugal. |
O
interesse pelas exposições do cabo Espichel, bem como de outros registros de
pegadas de dinossauros no território português, tem se acentuado significativamente
na última década resultando na indicação da necessidade de musealização das
pistas (Galopim de Carvalho, 1998; Santos, 1998), estando associada ao forte
sentimento de preservação do patrimônio geológico do país. Critérios
específicos para a definição do patrimônio paleontológico (critérios científicos,
pedagógicos e culturais) foram propostos por Cachão et al. (1998), Cachão &
Silva (1999) e Cachão (2005). Deste modo, os jazimentos do cabo Espichel se
enquadrariam dentro dos critérios culturais como de valor espiritual, os quais
aplicam-se às jazidas relacionadas a cultos ou crenças de populações locais,
motivo da necessidade de sua preservação.
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Os Cornos de Amon e Seus Poderes
Muitos
fósseis de invertebrados também tiveram um papel importante nas tradições
folclóricas de diversas culturas, que lhes atribuíam poderes tanto mágicos como
medicinais. Entre os que mais se destacaram estão os amonitas, cefalópodes
extintos dotados de uma concha usualmente plano-espiralada que habitaram os
mares jurássicos e cretácicos e estão presentes em rochas dessas idades por
todos os continentes. No folclore popular são constantemente interpretados como
serpentes petrificadas e vários são os mitos que os envolvem.
Segundo
Basset (1982), as conchas dos amonitas são familiares ao homem desde
provavelmente antes da Grécia antiga. Aos gregos, sua forma lhes lembrava os
chifres ou cornos enrolados do carneiro, animal tratado como um símbolo sagrado
e particularmente associado ao deus Júpiter Ammon. Os exemplares de amonitas
tornaram-se então conhecidos como Cornu Ammonis (cornos de Amon) e somente
denominados como amonitas na terminologia científica, numa fase posterior. Na
China, os cefalópodes enrolados também eram comparados aos chifres e então
denominados Jiao-shih, ou “chifres de pedra”; na Inglaterra eram associados à
forma das serpentes e por isso mesmo conhecidos como “serpentes de pedra”
(snakestones).
Na
Índia, desde o século V os amonitas jurássicos da famíliaPerisphinctidae são
reverenciados como a incorporação do deus Vishnu, sendo ainda hoje
comercializados através do país como fetiches religiosos (Rudkin & Barnett,
1979). Acredita-se que um cálice de água em que estes fósseis tenham sido
colocados seja suficiente para curar os pecados, assegurando o bem-estar religioso
daqueles que a bebessem.
Mas
a mais famosa lenda envolvendo os amonitas encontra-se no leste da Inglaterra,
relacionada a uma santa cristã. Trata-se de Santa Hilda, fundadora e abadessa
da Abadia de Whitby, uma pequena cidade litorânea situada a 70 km a nordeste de
Yorkshire, no distrito de mesmo nome. Santa Hilda fundou a abadia em 658 A.D.,
a qual foi construída no alto das falésias situadas próximo à cidade; na base
da falésia junto à abadia encontram-se os depósitos argilosos da Formação
Whitby onde ocorrem restos de amonitas, belemnitas, biválvios, crinóides,
crustáceos, vegetais e inclusive répteis marinhos. Os fósseis mais comuns,
entretanto são os amonitas. Conta a lenda que a abadessa, querendo limpar o
terreno para a construção de um novo convento, transformou as serpentes em
pedra. Após uma série de orações, as serpentes se enrolaram, petrificando-se e
caindo da borda da falésia depois de terem tido suas cabeças cortadas com um
chicote.
Em
outra interpretação, Santa Hilda, ao procurar paz na floresta próxima para rezar,
foi incomodada pelas serpentes e, em sua reação, transformou-as em pedra. A
ausência de cabeça nos fósseis também é algumas vezes atribuída à maldição
lançada por São Cuthbert, outro santo do norte da Inglaterra. A lenda de Santa
Hilda e as “serpentes de pedra” é tão forte na região que os amonitas se
tornaram um marco na cidade: são vendidos em lojas que comerciam fósseis
(alguns com cabeças esculpidas), foram construídas esculturas com a sua forma,
presentes nas calçadas, e existem peças entalhadas em madeira, também dotadas
de cabeça, uma tradição na cidade. Os amonitas chegam inclusive a constar do
brasão da cidade e do emblema do time local de futebol. Os amonitas encontrados
nas camadas da Formação Whitby pertencem principalmente aos gêneros Dactylioceras
e Hildoceras, este último, seguindo a tradição, proposto em homenagem a Santa
Hilda.
Muitas outras culturas também acreditavam que os amonitas seriam serpentes petrificadas e, por associação a sua forma, os utilizavam como remédios ou amuletos contra as picadas de cobra. Os antigos gregos os utilizavam para a cura da cegueira, da impotência e da esterilidade (Rudkin & Barnett, 1979).
Brasão do time de futebol da cidade de Whitby, apresentando três amonitas no mar. |
Muitas outras culturas também acreditavam que os amonitas seriam serpentes petrificadas e, por associação a sua forma, os utilizavam como remédios ou amuletos contra as picadas de cobra. Os antigos gregos os utilizavam para a cura da cegueira, da impotência e da esterilidade (Rudkin & Barnett, 1979).
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Do Tratamento da Artrose a Acidez Estomacal
Uma
das mais curiosas associações entre forma e aplicação medicinal com os fósseis
de invertebrados foi a utilização do ostreídeo Gryphaea arcuata, muito comum em
rochas do Jurássico Inferior (Liássico) da Inglaterra e conhecido como “Unha do
Dedo do Diabo” (Devil’s Toe Nail). Na Escócia, nos séculos XVII e XVIII, por
associação a sua forma acentuadamente encurvada, era utilizado no tratamento de
dores nas juntas (artrose) (Basset, 1982). Sua importância em algumas regiões
ficou evidenciada quando, desde 1936, duas ilustrações de Griphaea passaram a
fazer parte do brasão do município de Scunthorpe, do distrito de North
Lincolnshire, no leste da Inglaterra.
Fósseis
de equinóides cretácicos também foram muito utilizados na Inglaterra com fins
medicinais. No início de 1700, por exemplo, exemplares do equinóide Echine
marinae, conhecidos como chalk-eggs, eram coletados e recomendados para o
tratamento da acidez estomacal: o fino carbonato de seu interior era
considerado como um remédio excelente. Dois outros tipos de equinóides
populares na Inglaterra, Micraster coranguinum (o equinóide com forma de
coração) e Echinocorys scutata (com forma de capacete), comuns nos depósitos
calcários, eram também utilizados com propósitos medicinais.
Fóssil de um ostreídeo Gryphaea arcuata, conhecido popularmente como "unha do dedo do Diabo". |
Destaque
notável da relação de equinóides com tradição folclórica envolvendo picadas de
cobras é a conhecida história do ovum anguinum. Segundo Basset (1982), Plínio O
Velho, em sua “História Natural” (c. 77 A.D.), considerava que vários tipos de
equinóides fósseis seriam fortes antídotos contra o veneno das cobras. De
acordo com Plínio O Velho, uma antiga tradição celta relatada pelos druidas da
Gália contava que certas pedras formavam-se inicialmente como bolas de espuma,
produzidas por numerosas serpentes que se aglomeravam por ocasião do verão.
Conhecida como ovum anguinum, a bola era lançada ao ar pelas cobras e, se
capturada com um pedaço de pano antes que tocasse o solo, reteria nela seus
poderes mágicos. O coletor, entretanto, só estaria salvo após cruzar um rio no
qual as serpentes não poderiam nadar. Além de proteger seu portador do veneno
das cobras e de outras doenças, sua posse lhe asseguraria sucesso nas batalhas
e outras disputas. É interessante notar que os poros das áreas ambulacrais dos
equinóides eram considerados como as marcas produzidas pelas picadas das
serpentes em sua superfície.
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Andorinhas de Pedra e Trilobitas Protetores
Os
braquiópodes espiriferídeos sempre chamaram a atenção pela curiosidade de sua
forma alada, particularmente entre os chineses do século IV, que os chamavam de
“andorinhas de pedra”, as quais voavam perdidas durante as tempestades. Desde
cerca de 660 A.D. que estes fósseis constavam de numerosos textos farmacêuticos
chineses e o reconhecimento de seu valor e beleza era tão grande que chegavam a
ser recolhidos como um tributo imperial. Sua principal utilização medicinal era
o tratamento de problemas dentários e outras indisposições hoje conhecidas como
decorrentes da falta de cálcio no organismo (Rudkin & Barnett, 1979), fruto
da tradicional dieta chinesa. Dissolvidos em vinagre (em decorrência da
composição carbonática das conchas e da acidez do vinagre), seriam então
“ingeridos”, provendo um suplemento adicional de cálcio para o organismo.
Na
América, do outro lado do mundo, outro fóssil de invertebrado também teve o seu
destaque mítico: os índios Pahvant Ute das regiões desérticas do oeste do
Estado de Utah utilizavam os exemplares do trilobita Elrathia kingii como
amuletos protetores (Taylor & Robison, 1976). Espécimens bem preservados
desse trilobita são encontrados em depósitos da Formação Wheeler, de idade
cambriana, que afloram nesse estado, e sua grande abundância, excelente
preservação e facilidade de coleta os tornaram bastante populares entre
paleontólogos profissionais e amadores.
Fósseis de trilobita da espécie Elrathia kingii. |
Segundo
Taylor & Robison (1976) o nome utilizado pelos índios Pahvant para os
trilobitas presentes na matriz, “timpe khanitza pachavee”, significando
“pequeno inseto aquático contido na rocha” (little water bug like stone housed
in), leva a suposição de que eles reconheciam a origem orgânica dos fósseis.
Até o início do século XX os índios Pahvant viviam da coleta de raízes e da
caça de pássaros aquáticos em antigas áreas alagadas no vale Sevier, onde
tinham a oportunidade de observar os insetos aquáticos; acredita-se que a
semelhança entre alguns dos insetos e os exemplares de Elrathia tenha levado os
índios a dar a referida denominação. Sobre o interesse dos índios pelos
trilobitas, este seria a sua utilização para protegê-los de doenças e das balas
dos homens brancos, utilizando-os em colares.
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Âmbar, um Remédio para Todas as Doenças
Entre
todos os fósseis empregados com fins medicinais, o âmbar, a resina fossilizada
de coníferas e outros vegetais, é o mais comum. Sua utilização remonta aos
tempos da Idade da Pedra e interpretações sobre sua origem envolvem uma lenda
romana com características românticas e simbólicas. Conta a lenda que o deus
Júpiter, com inveja de Phaeton, atingiu o com um raio, ferindo e lançando-o ao
rio Eridanus, onde se afogou. As Helíadas, as três irmãs de Phaeton, filhas do
sol, ficaram intensamente sentidas com a perda do irmão; choraram tanto que,
finalmente, os deuses, com pena delas, as transformaram em três pés de
carvalho. Suas lágrimas, entretanto, continuaram a fluir e, quando caíam no
rio, transformavam-se em âmbar. Em virtude da lenda, o âmbar tem sido há longo
tempo considerado um símbolo do amor fraterno.
No
campo medicinal, sempre foi muito utilizado no tratamento de doenças, sendo
ainda empregado em muitas partes do mundo. Suas propriedades permitiam grande
emprego (Rudkin & Barnett, 1979): por exemplo, segundo crendices da
Antiguidade e da Idade Média, o âmbar, quando misturado a outros remédios,
podia ser administrado às mulheres como uma prevenção ao aborto; durante o
trabalho, quando queimado, liberaria vapores que teriam propriedades calmantes
e, dissolvido em vinho, também atuaria como atenuante às depressões das
mulheres no trabalho. Além disso, poderia ser empregado em diversos
tratamentos, alguns dos quais atuariam na cura da dor de garganta, na remoção
de “resíduos” dos olhos, no desenvolvimento da dentição das crianças e na cura
da cegueira, além de interromper sangramentos no nariz. O óleo de âmbar,
produzido inicialmente no século X, era então útil no tratamento da asma e da
bronquite, do reumatismo, da tosse e, inclusive, histeria. Além disso, era
utilizado também na confecção de colares e amuletos entre os povos pré-históricos.
Uma pedra de âmbar |
10
Conclusão
Não
há dúvida de que os fósseis desempenharam um papel importante no misticismo e
no folclore de muitas culturas através dos tempos. Neste texto foi apresentada
somente uma pequena parte de suas variadas aplicações, demonstrando a
familiaridade do homem com estes objetos desde os tempos da Idade da Pedra aos
séculos recentes da Idade Contemporânea. É uma relação por vezes obscura,
recheada de crendices e superstições, trazendo à luz informações inestimáveis,
por vezes não escritas, relacionadas à história dos povos que os usavam.
Da sua utilização como ornamentos a objetos místicos, da identidade com os heróis e gigantes da Antiguidade ao reconhecimento da existência de dragões, de amuletos contra serpentes peçonhentas ao número considerável de aplicações medicinais, de uma forma ou de outra, os fósseis sempre foram reconhecidos como objetos de valor no curso da Humanidade.
Da sua utilização como ornamentos a objetos místicos, da identidade com os heróis e gigantes da Antiguidade ao reconhecimento da existência de dragões, de amuletos contra serpentes peçonhentas ao número considerável de aplicações medicinais, de uma forma ou de outra, os fósseis sempre foram reconhecidos como objetos de valor no curso da Humanidade.
Por
último, para aqueles que desejarem, aqui vai uma antiga receita chinesa:
primeiro, pulverize ossos e dentes de dragão, embalando-os em uma bolsa de
seda; em seguida, coloque a bolsa no abdômen de uma andorinha morta, ali
permanecendo por uma noite. Pela manhã, misture com outros ingredientes
pastosos e aplique ao corpo como pomada. Como foi dito anteriormente, de acordo
com o pensamento da época, os dragões eram considerados protetores dos
imperadores, e a aplicação deste “remédio” poderá ajudá-lo. Quem sabe não dá
certo?
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