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Leandro Vilar

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

São Leandro de Sevilha

Hoje, dia 27 de fevereiro é a data litúrgica ortodoxa de São Leandro, um santo pouco conhecido, apesar de fazer parte de uma família ilustre, na qual contou com quatro santos. No caso, Leandro era irmão de São Fulgêncio (?-630), Santa Florentina (?-612) e São Isidoro (c. 560-636), sendo que o último é o mais famoso dos quatro devido a ser um doutor da igreja, tendo escrito várias obras importantes. Todavia, a proposta desse breve texto é contar um pouco da história desse santo que foi bispo de Sevilha, além de ter ajudado na "reconversão" dos Visigodos ao credo católico, já que na época eles eram seguidores do arianismo

Origem: 

Pouco se sabe sobre a origem de Leandro e de seus irmãos. Embora ele seja chamado de Sevilha, no entanto, isso se refere ao fato de ele ter sido bispo naquela cidade. No caso, Leandro nasceu em Cartagena, cidade no sudoeste da atual Espanha, na província da Múrcia. No passado Cartagena foi fundada pelos cartagineses e depois ocupada pelos romanos, condição essa que se diz que a família de Leandro era de origem romana. Seu pai era Severino e a mãe chamava-se Teodora, sendo de origem visigótica. Se desconhece o sobrenome dos mesmos, mas aponta-se que Severino advinha de uma família hispano-românica rica e Teodora teria ligação com a nobreza local. (SUAU, 1910)

Leandro foi o primeiro filho do casal, tendo nascido em 534, em data incerta. Ainda criança, a família mudou-se para a "nova" Cartago, já que a antiga foi destruída pelos romanos, séculos antes. Ali seu pai assumiu um cargo político por vários anos. Por volta de 554 a família mudou-se para Sevilha, embora não se saiba exatamente por quais motivos ocorreu. Suspeita-se que eles tenham fugido da invasão bizantina ocorrido à cidade. Os hagiógrafos não sabem informar se nesse tempo que a família mudou-se para Sevilha, todos os quatro filhos já haviam nascido, até porque se desconhecem as datas de nascimento de Fulgêncio e Florentina, e Isidoro supostamente nasceu por volta de 560, o que o colocaria como tendo nascido em Sevilha. (SUAU, 1910). 

A vida em Sevilha:

Desconhece-se por quais motivos Leandro decidiu ingressar na vida religiosa, se teria sido uma escolha própria, uma vocação ou por influência de seus pais. Seja qual tenha sido o motivo, seus irmãos seguiram pelo mesmo caminho. No caso de Leandro, em data incerta, ele ingressou na Ordem dos Beneditinos. Nesse ponto se desconhece como foi sua trajetória até se tornar bispo. Porém, existem indicativos que Leandro tenha se tornado padre e professor nos seminários sevilhanos, e talvez tenha sido até mesmo professor de seus irmãos Fulgêncio e Isidoro, já que Florentina entrou para um convento na época. 

No ano de 579, com seus 45 anos, Leandro foi eleito ao Bispado de Sevilha, cargo muito importante na época. Data desse período o início da sua atividade em converter nobres visigodos ao catolicismo. E no caso, neste mesmo ano Leandro com a ajuda da princesa Ingunda, converteu o marido dela, Hermenegildo (c. 564-585). A conversão de Hermenegildo foi problemática na época, não pela dificuldade em si, até porque o príncipe já era cristão, mas pelo fato de que quando ele decidiu tornar-se católico, isso enfureceu seu pai, o rei Leovigildo (?-586), que era ariano. O rei indignado com a conversão do filho e acreditando que isso tratava-se de um complô político para os católicos se apossarem de seu governo, entrou em guerra contra o próprio filho. O conflito se alastrou por anos e acabou gerando problemas para Leandro, o qual foi ameaçado pelo rei Leovigildo, mas o monarca visigodo para não matar o bispo, enviou para exílio em Bizâncio(VOLTÁ, 1977, p. 41). 

São Leandro com o traje bispal, imaginado segundo uma pintura do século XVII. 
Essa parte da história de Leandro também é pouco compreendida, pois não se sabe exatamente quando ele foi enviado para exílio e por quanto tempo permaneceu exilado. Os autores apontam que ele teria voltado em 582, ou 584 ou 586, e durante o exílio ele teria conhecido o papa Gregório Magno. Todavia, Hermengildo tentou ir também para Bizâncio, mas não tendo conseguido, enviou sua esposa e filho, mas Ingunda acabou falecendo na viagem. Hermenegildo que mantinha controle de Sevilha desde 581 pelo menos, teve que abandonar a cidade em 583. O príncipe foi encurralado em Córdoba no ano seguinte, sendo preso e executado em 585(VOLTÁ, 1977, p. 42). 

O protetor do bispo Leandro estava morto, e naquele momento provavelmente ele deve ter temido por sua vida novamente, pois era bem capaz que o rei iria atrás dele novamente. No entanto, no ano de 586, Leovigildo faleceu de causas desconhecidas. Sendo sucedido por seu filho Recaredo (550-601). Assim como seu irmão Hermenegildo, Recaredo apresentou interesse pelo credo católico, e através das conversas com o bispo Leandro aceitou converte-se novamente, algo que ocorreu em data incerta no ano de 587. A partir desse ponto, Leandro com o apoio do novo rei, deu início a campanha evangelista para reconverter os visigodos e suevos ao credo católico. (VOLTÁ, 1977, p. 45). 

Pintura do século XIX imaginando a aparência do rei Recaredo I dos visigodos e suevos. 
O III Concílio de Toledo (589)

No século VI a pequena cidade de Toledo, hoje próxima a Madrid, acerca de 1h de trem, era naquela época capital do reino desde Leovigildo, e no caso, seu filho Recaredo manteve Toledo como capital. Na ocasião de 8 de maio de 589, o rei com o apoio do bispo Leandro de Sevilha realizaram um concílio regional cujo tema era tratar da conversão oficial do Reino Visigodo ao catolicismo, já que até então ele era adepto do arianismo, considerado uma doutrina herética. 

O concílio daquele ano convocado pelo rei e o bispo foi inclusive incentivado e apoiado pelo papa Gregório Magno (540-601), um dos mais famosos papas do período. O concílio foi presidido pelo próprio Leandro, contando com a presença do rei, de setenta dois bispos - incluindo os bispos arianos -,  os quais propuseram 23 cânones que explicavam porque o Arianismo era uma heresia, porque deveria ser combatido, além de sugerir novas regras monásticas e ações a serem tomadas para a reconversão da população. (THE SAINTS COLLECTION, 2015, p. 997). 

Terceiro Concílio de Toledo. José Martí y Monsó, 1862. Ao centro ver-se o rei Recaredo e do lado esquerdo, em pé, apontando para ele, o bispo Leandro. 
As decisões propostas no concílio foram acatadas e Recaredo no mesmo ano decretou o Reino Visigótico como pertencente a cristandade oficial. Ele também despachou uma carta ao papa Gregório comunicando sobre a decisão. Após o concílio o rei teve que tratar de alguns problemas políticos e militares, mas conseguiu solucioná-los. Os bispos arianos mantiveram suas dioceses e títulos, tal decisão evitou que revoltas fossem geradas pelas famílias dos bispos ou por eles mesmo. Isso foi importante naquele período de transição não apenas religiosa, mas também política, pois Recaredo somente estava há dois anos e alguns meses no poder, além de que pela frente tinha que cuidar de problemas oriundos do governo de seu pai. (VOLTÁ, 1977, p. 45). 

Os últimos anos:

Se desconhece como foram os últimos anos de Leandro, embora sabe-se que ele manteve-se no cargo de bispo até morrer. Ao todo, Leandro permaneceu trinta anos como bispo de Sevilha, tendo presidido alguns pequenos sínodos, mas seus grandes feitos foram as conversões de Hermenegildo e de Recaredo, e a vitória no III Concílio de Toledo. No ano de 599, para celebrar os dez anos do concílio, Leandro recebeu o pálio, capa comemorativa inicialmente reservada aos papas, depois concedidas aos bispos e arcebispos que agiram em prol da ordem e união da Igreja e da cristandade. Leandro faleceu em 13 de março de 600 ou 601, aos 66 ou 67 anos, de causas não definidas. Ele foi sucedido na diocese por seu irmão Isidoro de Sevilha, o qual manteve a política de assegurar que o arianismo não retornasse. Não se sabe exatamente onde seus restos mortais foram sepultados. (SUAU, 1910). 

Pintura na Catedral de Sevilha imaginando o encontro dos irmãos São Leandro (esquerda) e São Isidoro. Ambos trajam vestes de bispo e usam o báculo bispal. 
NOTA 1: O rei Leovigildo governou entre 572 e 586. 
NOTA 2: O príncipe Hermenegildo foi no século XVI canonizado, tornando-se São Hermenegildo, o padroeiro dos convertidos. 
NOTA 3: O Arianismo foi desenvolvido pelo presbítero Ario da Líbia (256-336), o qual passou a defender uma doutrina antitrinitária, negando alguns preceitos da Trindade, assim como, negava que Jesus fosse Deus encarnado. Apesar que em vida Ario foi criticado e perseguido pelos bispos, ainda assim, suas ideias encontraram apoiadores entre o clero e foram difundidas nos séculos seguintes. 
NOTA 4: Dentre os escritos conhecidos de São Leandro, dois deles se destacam: De institutione virginum et contemptu mundi, que versa sobre regras monásticas para freiras e dedicado a sua irmã Florentina. Homilia de triumpho ecclesiae ob conversionem Gothorum, que consiste num comentário sobre o êxito do III Concílio de Toledo. 
NOTA 5: Algumas fontes apresentam a data de nascimento de Leandro, erroneamente voltada para 520 ou 550. 
NOTA 6: Leandro e seus irmãos são conhecidos como os Quatro Santos de Cartagena. Mesmo que haja dúvidas se todos os quatro nasceram ou não naquela cidade. 
NOTA 7: São Fulgêncio de Cartagena se tornou bispo de Ástigis, atualmente Écija
NOTA 8: São Leandro foi canonizado em data incerta, sendo considerado santo devido não a milagres realizados ou martírio, mas por ter dedicado a vida a causa cristã. O que é chamado de culto imemorial. 
NOTA 9: San Leandro é uma cidade na Califórnia, Estados Unidos. Surgida como uma fazenda espanhola no final do século XVIII, tornou-se uma vila e em 1872 foi reconhecida como cidade.  
NOTA 10: São Leandro possui dois dias litúrgicos: 27 de fevereiro e 13 de março.

Referências bibliográficas: 
MANZARES, César Vidal. Dicionário histórico do Cristianismo
VOLTÁ, Gabriel García. El mundo perdido de los visigodos. Barcelona, Editorial Bruguera, S. A, 1977. 
THE Saints Collection. St. Leander, Bishop of Seville, Confessor. New York, Catholic Way Publishing, 2015, p. 996-998. 
SUAU, Pierre. St. Leander of Seville. In: The Catholic Encyclopedia, vol. 9. New York, Robert Appleton Company, 1910. Disponível em: http://www.newadvent.org/cathen/09102a.htm


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Máscaras: Eu te conheço, Carnaval!


Máscaras: Eu te conheço, Carnaval!


Ma. Perny M. Mônica
Dra. Denise M. Mello


1.  INTRODUÇÃO

O carnaval surgiu na Antiguidade, a partir dos cultos religiosos e agrários. Tinham como características a ludicidade com danças e cânticos, logo incorporando máscaras e adereços, os festejos eram dedicados aos deuses para a proteção do plantio e da colheita. As festividades eram marcadas pelos excessos de vinho e orgias, que muitas vezes levavam o indivíduo à morte. Comemorando a entrada da primavera e a prosperidade da comunidade, essa prática difundiu-se pelo Mediterrâneo no mundo Antigo, atravessou a Europa na Idade Média. Na Idade Moderna, o carnaval passou a ser representado como inversão de valores da vida cotidiana. Chegou ao Brasil como manifestação cultural dinâmica com características plurais, repletas de ritos, mitos, símbolos, muitos dos quais não resistiram ao tempo.

2 - SÍNTESE HISTÓRICA DO CARNAVAL

Assim como a origem do Carnaval, as raízes do termo também têm se constituído em objeto de discussão. Segundo José Carlos Sebe (1986, p.31), o vocábulo advém da expressão latina "carrum Novalis" (carro naval), uma espécie de carro alegórico em forma de barco, com o qual os romanos inauguravam suas comemorações. Apesar de ser foneticamente aceitável, a expressão é refutada por diversos pesquisadores, sob a alegação de que esta não possui fundamento histórico.

Para muitos autores, a palavra seria derivada da expressão do latim "carnem levare", modificada depois para "carne, vale!" (adeus, carne!), palavra originada entre os séculos XI e XII que designava a quarta-feira de cinzas e anunciava a supressão da carne devido à Quaresma, 40 dias de penitência e de jejum criado pela Igreja Católica na Idade Média. A relação do carnaval com a Igreja Católica é evidente, visto que, sem Quaresma não haveria carnaval, já que este significa os três dias precedentes à quarta-feira de cinzas, que são dedicados à liberdade, diversões e folias. Provavelmente vem também daí a denominação "Dias Gordos", onde a ordem é transgredida e os abusos tolerados, em contraposição ao jejum e à abstenção total do período vindouro (Dias Magros da Quaresma). No dialeto milanês tem Carnevale, do baixo latim carnelevamen, de “Caro”, carne, e “levamen”, ação de tirar, assim, pois, tempo em que se tira o uso da carne, pois Carnaval é propriamente a noite antes da quarta-feira de cinzas (Sebe, 1986; Ferreira, 2004).

A história do carnaval começa na Pré-História, entre os homens que habitavam as cavernas, e viviam rudimentarmente da caça e pesca. Os milênios passam e ao chegar à Idade da Pedra Polida ou Neolítica, depois de atravessar o Mesolítico, transição entre o lascar e polir a pedra, o homem que aprendera a desenhar e pintar, continua desenhando e pintando, como também a ritmar os sons, os movimentos e palavras, criando música, dança e canto.

Do ponto de vista histórico, o Carnaval teria se iniciado com o paganismo, como as festas promovidas no antigo Egito, relacionadas aos culto a Ísis, uma jovem deusa, protetora da natureza. Em homenagem a ela, os mortais se reuniriam, ciclicamente, para render graças à vida. Esta cerimônia ocorria sempre no período dos plantios (ou das colheitas), abrindo uma nova era no ciclo anual. Segundo remotas tradições, os mortais deveriam dançar, brincar e festejar muito para que as sementes crescessem e os frutos fossem bons. Conta a lenda que, para o renascimento da natureza, Ísis tornava-se mais provocante e sedutora. Osíris, seu parceiro, teria o direito de gozar, temporariamente, todos os prazeres presumíveis. Depois de saciado no mais íntimo de seus desejos, Ísis sacrificaria seu amante para que cessasse a turbulência dos dias de prazer. Todo o ano a mesma história deveria se repetir, segundo o ritmo da natureza. É fácil identificar a ideia do ciclo anual da celebração com a época das plantações, e aliar a concepção de um deus que morre, depois de prazeres desmedidos, com o longo período de rotina que deve seguir a fase de germinação das sementes plantadas (Sebe,1986).

As antigas festas babilônicas, como por exemplo, as chamadas sacéias, que remontam ao século III antes de Cristo, possuíam muitas dessas características “carnavalescas”; marcadas pelas exageradas comemorações e trocas de papéis entre o rei e um mendigo. Ferreira (2004, p.17), afirma que as primeiras manifestações festivas “carnavalizadas”, foram marcadas pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas. As primeiras festividades com estas características, encontradas na literatura pesquisada, ocorreram nas antigas civilizações, como a greco-romana e a mesopotâmia.

Alguns autores, entre eles Bulfinch (2005, p.94) e Sebe (1986, p.15) discorrem que em Roma, as raízes dos festejos carnavalescos estão ligadas às danças em homenagem ao deus , que usa uma guirlanda de folhas de pinheiro em torno da cabeça, (Fauno para os romanos), deus dos campos, dos pastores e protetor dos rebanhos. Essas festas, chamadas Lupercais, eram celebradas em 15 de fevereiro, data em que os Lupercos (sacerdotes de Pã) saíam nus dos templos banhados em sangue de cabra e, depois de lavados com leite, eram cobertos com capas de pele de bode e corriam atrás das pessoas. Quando alcançadas, as virgens acreditavam tornarem-se férteis e as grávidas de livrarem-se das dores do parto.

O enredo da lupercais consistia na existência de dois reis ou sacerdotes chamados flâmines e lupercos; um simbolizava a ordem, a harmonia e a paz, e o outro representava a desordem, a depravação e o tumulto. Segundo a tradição, o primeiro sobreviveria e o outro seria morto em meio a grandes festas. Ao fim de um ano a dramatização coletiva era recriada e a efervescência do festejo permitia renascer a festa. Além da majestosa procissão, dos êxtases coletivos, das danças rituais e das orquestras musicais, muitas dessas festas também incluíam concursos dramáticos, com poetas trágicos e dramas satíricos, concursos de coros e sacrifícios humanos.

Em 370 a.C., foram as Bacanais romanas que marcaram época, data em que o culto a Dionísio chegava com o nome de Baco à Roma. As Bacantes, ou Mênades (mulheres tomadas de paixão por Dionísio e entregues a seu culto com tamanho fervor, que por vezes chegavam ao delírio e à morte) por ocasião das orgias em homenagem a Evan, alcunha de Baco, cometeram tantos excessos que as Bacanais foram proibidas em 186 a.C. pelo Senado Romano. Como a proibição não vingou por muito tempo, as Bacanais voltaram com mais vigor ainda no tempo do Império. (Chevalier; Gheerbrant, 2003, p.112).

Alguns ritos nessa época já incluíam pessoas mascaradas e fantasiadas. Um deles era realizado como comemoração à iniciação de jovens na integração da vida adulta. Nestas festividades eram comuns atividades em que brincadeiras, que aparentemente, não cumpriam com a ordem vigente serviam para reafirmar a ordem dos grupos sociais. (Ferreira, 2004, p.18).

Em Esparta, os meninos eram treinados para serem soldados, pois o pensamento nesta época era que só através dos ensinamentos militares seria possível a formar cidadãos. Ao término da formação realizava-se numa grande mascarada onde, por algumas horas, o comportamento era o oposto daquele que deveriam adotar na vida adulta: fantasiados de mulher, velho ou sátiro, os rapazes realizavam encenações obscenas ou humorísticas, com muita bebedeira e cantorias. (Ferreira, 2004, 18).

Por ocasião da vindima, celebrava-se, a cada ano, em Atenas e por toda a Ática, a festa do vinho novo, em que os participantes, como outrora os companheiros de Baco, se embriagavam e começavam a cantar e dançar ao som dos címbalos, até caírem desfalecidos. (Brandão, 1980, p.113).

Em Atenas celebrava-se o culto a Dionísio. Eram celebradas quatro grandes festas em honra do deus do vinho: Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias.

As Dionísias Rurais são as mais antigas festas áticas de Dionísio, eram celebradas na segunda metade do mês de dezembro. A cerimônia central consistia numa alegre e barulhenta procissão de danças e cantos, em que se escoltava um enorme falo. Os participantes dessa ruidosa faloforia cobriam o rosto com máscaras ou disfarçavam-se em animais, como uma forma de sortilégio para promover a fertilidade dos campos e dos lares. A partir do século V a.C., estas festas foram enriquecidas com concursos de tragédias e comédias. (Brandão, 1980, p.97).

As Lenéias, descritas por Brandão (1980, p.27) eram celebradas no inverno, correspondente aos fins de janeiro e início de fevereiro. O nome Lenéias é uma abreviação comum utilizada pelos atenienses, uma vez que a designação oficial da festa era Dionísio de Lénaion, isto é, cerimônias religiosas dionisíacas que se realizavam no Lénaion, local onde se erguia o mais antigo templo do deus e, mais tarde também um teatro. O autor ressalta que, pouquíssimas são as informações desta festa. Sabe-se tão somente que Dionísio era invocado com auxílio do daduco, “o condutor de tochas”, e, consoante uma glosa de um verso de Aristófanes, o sacerdote elusino, “trazendo na mão uma tocha”, exclamava: “Invocai o deus!”. Os participantes do festival gritavam em resposta: “Ó Iaco, filho de Sêmele, distribuidor de riquezas!”. Trata-se, de uma invocação para provocar a fertilidade e a hierofania de Dionísio, que deveria presidir às solenidades de Lenéias. Estas ao que tudo indica, se iniciavam com uma procissão de caráter orgiástico.

As Dionisíacas Urbanas ou Grandes Dionisíacas era comum a realização de concursos de arte dramática, o que favoreceu o desenvolvimento do teatro ateniense. As comemorações eram realizadas na primavera, sendo festejada durante seis dias. No primeiro era realizada uma majestosa procissão que transportava a estátua do deus. Nos dois dias seguintes eram realizados concursos de dez Coros de Ditirâmbicos1. Sendo os três últimos dias dedicados aos concursos dramáticos. (Brandão,1987, p.126).

A Antestéria era a “festa das flores”, festejada na primavera. No primeiro dia, os tonéis de terracota, nos quais eram armazenados o vinho da colheita do outono, eram levados até o Santuário de Dionísio no Lénaion. O vinho novo era “dessacralizado”, ou seja, levantava-se o tabu que ainda pesava sobre a colheita anterior e, após a libação de Dionísio pela boa safra, dava-se início a “bebedeira” sagrada”. (Brandão,1987, p.133).

Até o Concílio de Nicéia, no ano de 325 do nosso calendário, o mesmo que oficializou o Cristianismo como religião do Império Romano, tais rituais foram objeto de discussão, dada a sua aceitação na sociedade da época (Batista; Ávila, 2006, p2). No ano de 604, o papa Gregório I deliberou que num determinado período do ano, os fiéis deveriam deixar de lado a vida cotidiana para, durante um determinado número de dias, dedicarem-se exclusivamente às questões espirituais. Todo esse evento durava em torno de quarenta dias, lembrando os quarenta dias de jejum e provações passadas por Jesus no deserto antes de iniciar o seu ministério apostólico. Por causa disso, o período ficou conhecido como “quadragésima” ou “quaresma”. No ano de 1091, o papa Urbano II, convocou uma reunião com representantes da Igreja – Chamada de Sínodo de Benevedo – na qual se decidiu entre muitas outras coisas, que era necessário se escolher a data oficial para o período da Quaresma. O primeiro dessa sequência de dias passa a ser chamado de Quarta-feira de Cinzas, em vista do costume, que até hoje perdura de se marcar a testa dos fiéis com uma cruz feita com as cinzas de uma fogueira, em sinal de penitência. (Batista; Ávila, 2006, p.25).

3 - CARNAVAL CARIOCA

O Carnaval é uma festa democrática, realizadora e conscientizadora, uma festa que concentra e redistribui riquezas; capaz de suprir as necessidades reais, ao mesmo tempo em que as simbólicas. Uma festa que vivifica a história popular e a construção da brasilidade, podendo ser entendida como o modelo de ação e participação social do brasileiro.

No Brasil, o Carnaval desenvolveu-se muito e num período relativamente curto, devendo ser entendido não só um fenômeno social, mas, simultaneamente, se constitui como um fundamento de comunicação, uma das expressões mais completas e perfeitas das utopias humanas de igualdade e liberdade. Segundo o pesquisador Hiram Araújo:

“O Carnaval é comumente definido como a festa da confraternização universal, a festa da democracia social e racial, que une e iguala a todos: brancos e pretos, ricos e pobres. Esta pressuposta universalidade da festa, capaz de destruir as diferenças e desigualdades culturais internas, de unificá-las e de promover a integração social, possibilitou sua conversão em símbolo da identidade nacional” (Araújo, 1996, p.19).

As brincadeiras tinham características agressivas, com atitudes contrárias da norma social através de zombarias e pancadaria simbólicas (Ferreira, 2006, p.12).

São muitas as descrições do festejo no Rio de Janeiro. As narrativas, em geral, atêm-se à sua parte mais visível, que era o costume de molhar e sujarem-se uns aos outros com limões ou laranjinhas de cera recheados com água perfumada, com recurso a seringas, gamelas, bisnagas, até banheiras – todo e qualquer recipiente que pudesse comportar água a ser arremessada. Incluía também, em determinadas situações, o uso de polvilho, “vermelhão”, tintas, farinhas, ovos e mesmo lama, piche e líquidos fétidos, entre os quais urina ou “águas servidas”. As festividades carnavalescas, chamadas de Entrudo (palavra de origem latina que significa "entrada"), eram semelhantes às que ocorriam em Portugal, mas, segundo Queiroz (1999, 46) foi específico do meio urbano durante todo o período colonial.

O entrudo no Rio de Janeiro era uma festa repleta de atitudes inconvenientes da qual participavam tanto os escravos quanto as famílias de origem europeia. A festividade mobilizava famílias inteiras que, semanas antes da festa, já se dedicavam à fabricação artesanal da principal arma da brincadeira, os limões-de-cheiro: uma bola de cera moldada com laranja ou limão que levava em seu interior água e, em alguns casos, urina. Durante o entrudo, as famílias se reuniam em suas casas para arremessá-los das janelas ou ainda para despejar baldes de água suja e todo tipo de entulho e pó nos passantes. Do lado de fora, os afrodescendentes saíam às ruas, desfilando sua batucada. (Sebe, 1986; Cunha, 2001).

A cada ano o “jogo do entrudo” ficava mais agressivo.

Em 02 de maio de 1850 o arquiteto francês Grandjean de Montigny, de pois de ter “tomado um destes banhos de água” faleceu vitimado de uma pneumonia (Sebe, 1986, p.57).

Segundo Sebe:

”No Rio, ainda que não unanimamente, fica estabelecida a data de 1853 como uma espécie de momento de definição nacional da festa momística. A “certidão de batismo” do carnaval, em regra, é considerada a portaria baixada pelo chefe de polícia do Rio de Janeiro proibindo o entrudo pelas suas repercussões agressivas” (Sebe, 1986, p.55).

Sobre o nascimento do carnaval carioca, Sebe (1986, p.55) destaca três explicações essenciais: a primeira que o “entrudo transformado” poderia ter originado o festival de base popular; a segunda, que a mistura de duas festas diferentes, conviveram juntas durante certo tempo e depois foram organizadas em termos de espaço e variações, gerando, finalmente, uma celebração multifacetada e, por último a origem de uma celebração nova, autenticamente carioca, inspirada nos ranchos evoluídos e pela definição de um espaço urbano.

O Entrudo desapareceu completamente no início do século XX, originando uma nova forma de comemoração que foi chamada de Carnaval Veneziano (Queiroz, 1999, 32).

Em 1904, face ao empenho do Prefeito Pereira Passos, o jogo começa a perder a popularidade das ruas, voltando-se para o universo doméstico, maneira encontrada pelas elites para divertir-se com a folia. Era hora do confete, serpentina, a língua-de-sogra e o lança-perfume substituírem a cal e as bisnagas ou limões-de-cheiro com que os foliões se emporcalhavam, no Segundo Reinado e nas primeiras décadas da República. No mesmo ano, se inaugurou a Avenida Central a Gazeta de Notícias (apud Loredano, 1999, 15), lançava o slogan “O Rio civiliza-se”; nada mais natural que esta civilidade chegasse também ao Carnaval, trazendo os corsos e bailes de máscaras da França (Nice) e da Itália (Veneza e Nápoles).

4 – OS BAILES DE MÁSCARAS

A partir dos meados do século XIX, a sociedade carioca passou por variadas mudanças, entre elas, uma crescente transformação sociocultural, surgindo uma nova realidade, no âmbito das festividades carnavalescas, descritas na obra de Loredano (1999, 16). As práticas tradicionais de conviver e interagir socialmente foram sendo desprestigiadas surgindo novas ideologias de convivência social. Com o surgimento de uma nova classe média, surgia um novo modelo, o Carnaval de Veneza, em que predominavam as máscaras e as fantasias, bem mais civilizadas que o entrudo.

Os salões tornavam-se o novo espaço da convivência social elitizada, da elegância, do encontro e do divertimento. Vários bailes são anunciados na cidade do Rio de Janeiro, onde “[...] o espírito carioca estava predestinado a fazer do carnaval a sua maior festa popular” (Renault, 1969, p. 218).

O primeiro baile de máscaras documentado no Brasil data de 22 de janeiro de 1840, realizado no “Hotel Itália”, localizado no Largo do Rócio, atual Praça Tiradentes no mesmo local em que se arguiria posteriormente Cinema São Jose. O sucesso do primeiro baile fez com que se repetisse no mês seguinte durante o carnaval sendo assim anunciado: "Baile de Máscaras, como se usa na Europa por ocasião do Carnaval” (Tinhorão, 1997, p. 148).

No dia 21 de fevereiro 1846 outro famoso baile de máscaras documentado foi realizado no “Teatro São Januário”, promovido pela cantora de teatro Clara Delamastro. O preço do convite custava cera de dois mil réis e o camarote, vendido à parte, por cinco mil réis. Uma família de seis pessoas gastaria a pequena fortuna de 17 mil réis. Para efeito de comparação, naquela época o aluguel de uma escrava para lavar, passar e engomar era de 14 mil réis por mês. Entretanto o valor do convite permitia que a família levasse consigo seus escravos para atendê-los durante a noite de gala, principalmente na tarefa de ajudar seus senhores a vestir os elaborados costumes em salas reservadas exclusivamente para este fim no próprio teatro. (Ferreira, 2004, p. 111)

Apesar da imponência, o risco financeiro do investimento era grande, fazendo com que a promotora do evento, publicasse a seguinte nota no Jornal do Commercio, de 19 de fevereiro de 1846: “A empresária, pois, confiando na generosidade e benevolência do público desta corte lhe implora humildemente a sua proteção, a fim de poder tornar brilhante este divertimento, tão conhecido na Itália e França.” (Ferreira, 2004, p. 111).

Os cavalheiros e damas das mais importantes famílias fizeram-se presentes em suas melhores roupas de gala, ou com fantasias tais como se usavam nos bailes parisienses. Dentre as fantasias estavam as de palhaço, turco ou fidalgo. Dentre as mais usadas pelos participantes era a de Dominó. A repercussão e o sucesso do baile, fez com que muitos outros se repetissem, marcando, também através do carnaval, as diferenças sociais que atingiam a sociedade brasileira: de um lado, a festa de rua, ao ar livre e popular; do outro, o carnaval de salão que agradava, sobretudo à classe média emergente no país. (Ferreira, 2004, 112).

Mesmos fora do calendário cristão, foram realizados bailes de máscaras, tal como o do Hotel Universo, no Largo do Paço, “a benefício de hum empregado da casa. Só as senhoras damas podem ir mascaradas e tem entrada grátis, e os homens trajes à fantasia”, pagam 2$000 (Renault, 1969, 219 apud JC-29/11/1848).

A partir da portaria policial de 1853, os salões passaram a ser o espaço preferido pelas elites, os quais seguiam os padrões europeus, tornando-se mais seguros e disciplinados. Em 1871, foi inaugurado o Teatro Imperial D. Pedro II, tendo sido realizado um baile de máscaras na sua inauguração. O prédio localizava-se na Rua da Guarda Velha, atual Rua 13 de Maio e nele eram apresentadas às óperas, muito ao gosto da Corte, por isto ficou conhecido como
Teatro Lírico. Com a inauguração do Teatro Municipal, em 1909, o anterior ficou relegado ao segundo plano e acabou por ser demolido em 1934. (Valença, 1975, p.29).

5 - MÁSCARAS: SUBJETIVIDADE E CRIAÇÃO

Desde as primeiras civilizações o homem demonstra interesse pelas práticas lúdicas, trazendo dentro de si uma ânsia de "ser outro". A máscara sempre desempenhou histórica e culturalmente o papel de disfarçar, de permitir que a verdadeira identidade ficasse “escondida”, enquanto uma nova aflorava.

As máscaras têm o poder de nos transportar aos primórdios dos tempos, quando eram substitutas de “outros”. “Outros”, no nível psicológico, são criaturas de um mundo imaginário, criado por nós mesmos. Os “outros” não vão além da imaginação humana, dos sonhos humanos e dos elementos próprios da subconsciência humana. Ao usar a máscara, o sujeito passa a ser o “outro”, deixando de ser simplesmente o que é para aparentar ou simbolizar algo além de si mesmo (Amaral, 2004, p.41).

Na história da humanidade, a imagem apresenta-se anterior à escrita (a escrita era realizada por meio de imagens simbólicas), portanto está no nível do inconsciente, é ligada aos arquétipos e, como estes, depende de uma concretização para sua manifestação.

Portanto, as máscaras, modeladas de acordo com diferentes objetivos culturais, nos introduzem em um mundo imaginário, ilusório. A máscara pode ser mediadora no processo da transformação que ocorre nas cerimônias rituais e nas festas profanas, como as do carnaval de Veneza, pois as máscaras permitem que seus portadores escondam a posição social mediante uma substituição de personalidade em busca de instintos e emoções (Amaral, 2004, p.11).

A magia das máscaras é atribuída ao fenômeno que surge quando duas realidades diferentes são conectadas: a interna e a externa. A máscara, sendo um objeto material, também representa algo imaterial. Dentro de um ritual as máscaras representam forças, conceitos, ideias abstratas. O que antes eram divindades transforma-se em personagens-arquétipos (Amaral, 2004, p.41).

Dentre as Artes, o teatro teve grande desenvolvimento durante o período de apogeu da democracia grega. Sua origem está relacionada às danças, aos cantos e às representações de cenas mitológicas que ocorriam durante as festas religiosas.

As máscaras são objetos representativos da cultura material de uma sociedade. Criada a partir de uma infinidade de objetos manipuláveis, sua função social se estabelece numa relação direta como o corpo do indivíduo e suas práticas sociais dentro de uma determinada cultura.

Estudiosos da Antropologia defendem que a Arte não deve possuir somente um caráter técnico, mas ressaltam a importância de situá-la em seu contexto, conferindo-lhe uma significação cultural. Os métodos de produção da Arte e os sentimentos que a animam são inseparáveis. Portanto deve-se compreender o objeto estético como encadeamento de formas, e não somente como um mecanismo cognitivo que reflete a visão e os sentidos conferidos a ele, pelos membros de sua sociedade, logo, a abordagem da Arte não se restringe às estruturas formais, devendo-se englobar os processos socioculturais que moldam sua produção, ou seja, uso e significado (Geertz, 1999, p.124).

A magia das máscaras é atribuída ao fenômeno que surge quando duas realidades diferentes são conectadas. A máscara, sendo um objeto material, também representa algo imaterial. Dentro de um ritual as máscaras representam forças, conceitos, ideias abstratas. O que antes eram divindades transforma-se em personagens-arquétipos (Amaral, 2004, 41).

Os mitos sempre brotam da projeção imaginativa que o homem faz da vida e sintetiza tudo o que ele conseguiu conquistar, em face de uma vida que ele não solicitou, uma morte que o amedronta, um amor que o domina ou uma Natureza que o assombra. O Mito sempre diz o que a ciência e a razão não conseguiram dizer (Maciel, 2000, p.30).

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O “Carnaval”, entendido em várias áreas das Ciências Sociais e Humanas como um rito, vincula-se a solidificação de um mito de cunho nacional versando sobre a “sociedade ideal”. Os rituais e o Carnaval entre eles, podem dividir-se em três grupos: ritual de separação ou ritual de reforço, no qual uma situação ambígua torna-se claramente marcada; ritual de inversão, em que há quebra dos papéis rotineiros; ritual de neutralização, combinação dos dois tipos anteriores. Para o autor, o Carnaval brasileiro seria um ritual de inversão, onde as hierarquias se apagam: o pobre fantasia-se de príncipe, o homem de mulher e assim por diante, propiciando a dissolução das ordenações hierárquicas. No Carnaval, contrariando o projeto social, as leis são mínimas, não existindo uma forma peculiar de se brincar o Carnaval. (Da Matta, 1990, p. 65-67). "É o folião que conta. É o folião que decidirá de que modo irá brincar o Carnaval". (Da Matta, 1990, p 121).

Maria Isaura Pereira de Queiroz critica essa perspectiva da inversão, e observa que isto pode acontecer no nível dos sentimentos e expectativas no Carnaval, e que, em termos de estrutura social não existe nenhuma inversão. (Queiroz,1999, p. 196).

Para Maria Isaura a festa de Carnaval deve ser entendida como um rito de um mito sobre a sociedade ideal.

A multiplicidade de suas formas, seus traços, suas cores, suas funções, as máscaras representam a complexidade dos grupos sociais e suas peculiaridades, ao mesmo tempo em que são uma mostra da riqueza simbólica nas tradições e manifestações festivas que, após superar e passar à prova do tempo se presentifica na memória social como símbolos universais. Dentre as inúmeras funções das máscaras sublinha-se a de reanimar os mitos que sustentam os costumes sociais que se mantém nas sociedades contemporâneas.

As máscaras sempre estiveram presentes nas diversas manifestações culturais, fossem às manifestações espetaculares do Oriente, na origem do teatro grego, nas grandes tragédias e posteriormente nas comédias ou quando dessacralizadas, nas ruas. É parte integrante das festas populares, das cerimônias religiosas e profanas, tendo como intuito de reverenciar ou simular, assustar ou brincar.

Assim, as máscaras constituem-se como um potencial revelador das relações do indivíduo como sede da operação que articula os diversos níveis da experiência humana: o biológico, o psíquico e o social. Através das máscaras escondemos o que somos e permitimos ser o que não somos. Na máscara social estão os disfarces, dissimulações e segredos tanto da vida privada quanto da vida pública do sujeito.

As atitudes modernas em relação à máscara ressaltam seu papel ocultante, há a máscara social, atrás da qual nos ocultamos; as máscaras cosméticas, que buscam esconder “as marcas do tempo”; a máscara protetoras usadas por todos que exercem profissões de risco são alguns exemplos. Portanto, somos atores sociais, todos nós usamos máscaras ou representamos nossos papéis, o tempo das transformações que ocorrem incessantemente, a cada lugar e a todo instante.

O uso habitual das máscara muitas vezes faz com que o sujeito passe a se identificar com a sua “máscara” esquecendo-se da sua feição verdadeira, a sua real identidade. Quantos funcionários não se confundem com seu cargo ou sua classe social trazendo de volta as origens das brincadeiras carnavalescas europeias a celebre frase: “Sabe com quem está falando?”

Quanto aos noticiários do nosso país, os superfaturamentos, a fabricação e comercialização de produtos falsificados, os chats, as redes sociais, entre outros, não serão eles uma cópia fiel dos bailes de mascarados, onde já não se distingue a realidade da mentira, quem é quem, assim como, mal se pode esconder que ninguém é de ninguém?

REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: Senac, 2004.
ARAÚJO, Hiram. Carnaval: Seis Milênios de História. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.
BATISTA, C. M. et al. Patrimônio histórico cultural e turismo no carnaval de Caravelas: Axé versus Samba. In: Caderno Virtual de Turismo Vol. 6, N° 2. p.2, 2006. 
BRANDÃO, J.S. Mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes. V. 2, 1987. 
____. Teatro Grego: origem e evolução. Rio de Janeiro: T.A.B, 1980. 
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. 
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da folia: Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 
CHEVALIER, J. et al. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2003. 
LOREDANO, Cássio. (org.) Carnaval J. Carlos. Rio de Janeiro: Lacerda, 1993. 
FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 
FERREIRA, Felipe, O Triunfal Passeio do “Congresso das Sumidades Carnavalescas” e a Fundação do Carnaval Moderno no Brasil In: TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano X, nº 14, 2006. 
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1999. 
MACIEL, Corintha. Mitodrama: o universo mítico e seu poder de cura. São Paulo: Agora, 1999. 
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992. 
RENAULT, Delso. O Rio antigo nos anúncios de jornais: 1808-1850. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969. 
SEBE, Jose Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo: Ática, 1986. 
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. São Paulo: Editora 34, 1997. 
VALENÇA, Rachel. Carnaval. Rio de Janeiro: Guavira, 1975.


Fonte: MÔNICA, Perny, M; MELLO, Denise M. Máscaras: eu te conheço, Carnaval! II CONINTER - Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades, Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013. 

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Togo e Balto e a corrida do soro no Alasca (1925)

Togo e Balto foram dois cães da raça husky siberiano que viveram no Alasca entre as primeiras décadas do século XX, ambos pertenciam ao famoso criador de cães Leonhard Seppala, conhecido não apenas pela criação dessa raça, mas por ter se especializado em treiná-los para puxar trenós e participar de corridas. A história desses dois cães tornaram-se filme e desenho, embora que ambas as produções cinematográficas tenham alterado informações para adequá-las aos seus intuitos de entretenimento. O presente artigo embora breve, foi uma homenagem a este dois cães, mas também a Seppala e os demais envolvidos que durante a grande nevasca de 1925, arriscaram suas vidas para conseguir transportar por mais de 400 milhas (643 km), uma vacina para a difteria, doença que afligiu a pequena cidadezinha de Nome

Leonhard Seppala, o dono de Togo e Balto: 

Leonhard Seppala (1877-1967) nasceu na Noruega e aos 23 anos mudou-se para o Alasca nos Estados Unidos, na época que ocorria a "corrida do ouro" do Alasca, a qual atraiu muitos americanos e estrangeiros. De fato, houve uma pequena onda migratória de noruegueses nessa época para os Estados Unidos, e Seppala fez parte dessa migração. Chegando ao Alasca em 1900, ele passou a trabalhar em diversos serviços como lenhador, pescador, entregador e minerador. Nessa época ele se tornou amigo do empresário Jafet Lindeberg, o qual explorava ouro na região de Nome. A cidade de Nome em si surgiu por causa da exploração do ouro. 

Durante esse período vivendo em Nome, Seppala teve contato com a criação de cães para puxar trenós e as corridas, embora que somente vários anos depois é que ele entrou neste ramo. Em 1908, Seppala casou-se com Constance com quem manteve matrimônio até o fim da vida e esta lhe deu uma filha. Sua esposa passou a ajudar na criação dos cães. Por volta de 1910 ou 1911 Seppala e Constance começaram a criar e treinar cães para puxar trenós, dedicando-se a criação do husky siberiano, raça de origem russa, introduzida por volta de 1900 no Alasca. O husky nos anos seguintes se popularizou-se no Alasca e em outras localidades vizinhas, tornando-se a raça preferida para puxar trenós e as corridas de trenó com cães. Tais corridas já eram realizadas desde o final do XIX e haviam se popularizado no começo do século XX. O próprio Seppala por volta de 1913 começou a participar de várias delas, além de fornecer cães para outros competidores. 

Nos dez anos seguintes, Seppala e Constance ganharam fama regional pela sua criação de husky siberianos é foi neste período que nasceram Togo e Balto. No caso, Togo nasceu no ano de 1913, sendo filho de Dolly e Suggen, sendo descrito como um cão pequeno para sua raça, de pelugem preta, marrom e com detalhes em cinza na cabeça, tórax, barriga e patas dianteiras. Togo na infância era descrito como imperativo, ágil, brincalhão e indisciplinado. Características que não combinavam para ser um cão guia. Apesar que após anos de treinamento, ele tornou-se um exemplo de obediência e liderança. Quanto ao nome Togo, esse foi escolhido em referência ao almirante japonês Togo Heihachiro (1847-1934), o qual obtive importantes vitórias na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). (ABOUL-ENEIN; PUDDY; BOWSER, 2019, p. 291). 


Fotografia de Togo
Balto, ele nasceu no ano de 1919, e como Togo, ele não foi um cão de guia de início, pois não apresentava as qualidades requiridas para isso, além de ser descrito principalmente como veloz. Inclusive quando Balto participou da corrida do soro, como veremos adiante, ele não guiou sozinho os outros cães. Balto era um cão predominantemente preto, mas destacava-se pelugem branca no seu tórax e nas duas patas dianteiras, as quais lembravam meias. O nome Balto foi dado por Seppala em homenagem a Samuel Johanssen Balto (1861-1921), explorador de origem norueguesa-sami, lembrando por suas expedições à Groenlândia em 1888-1889. Em 1898 Balto se mudou para o Alasca, onde passou o restante da vida. No período que viveu no Alasca, realizou também expedições de exploração, ganhando fama local. (ABOUL-ENEIN; PUDDY; BOWSER, 2019, p. 291). 


Fotografia de Balto
O surto de difteria em Nome:

Togo e Balto participaram de missões de entrega, explorações e corridas, entretanto a fama dos dois cães apenas surgiu com o fatídico ano de 1925. Nessa data, Togo já contava com seus 12 anos, idade avançada para um cão, mas impressionantemente, Togo apesar de ser classificado como "idoso", possuía uma resistência, velocidade, coragem e determinação ímpares. Já Balto contava com seus 6 anos, metade da idade de Togo. Apresentando resistência e velocidade louváveis, embora não fosse um cão experiente e destemido como Togo naquele tempo. 

No ano de 1925 a população de Nome havia decaído bastante, pois nessa época as minas de ouro havia se esgotado e muita gente foi embora. Na cidade habitavam um pouco mais de mil pessoas, além de outros habitantes que viviam em fazendas ou cabanas nas localidades próximas da cidade. Devido a sua localização bem ao Norte, o inverno em Nome ainda continua sendo rigoroso e longo podendo durar até sete meses do ano. Devido a este rigoroso inverno as estradas e linhas férreas são soterradas por várias camadas de neve, os rios, lago e até o mar chegam a congelar também. Aviões somente conseguem trafegar em determinadas épocas quando os ventos são favoráveis. Evidentemente que hoje em dia a tecnologia melhorou permitindo melhor conexão com Nome, todavia, há quase cem anos a situação era bem pior. (SCHEINDLIN, 2008, 153). 

Em 11 de janeiro de 1925, o médico da cidade, o Dr. Curtis Welch e sua esposa a enfermeira Lula Welch, diagnosticaram uma criança esquimó de seis anos, chamada Billy Barnett, estando com difteria. Doença causada pela bactéria Corynebacterium diphtheriae, a qual atinge especialmente a região da garganta, afetando amígdalas, laringe, faringe e até o nariz. Mais raramente pode se instalar em outras partes do corpo. A difteria é bastante contagiosa, sendo transmitia pelo ar através de partículas de saliva e muco nasal, em outras palavras, ser disseminada através de tosse e espirros. Dentre seus sintomas mais comuns estão febre, dores de garganta, palidez, dificuldade de respirar em alguns casos, gânglios inchados e amígdalas inchadas. Se não for tratada, a difteria pode levar a óbito através de problemas respiratórios, cardíacos e renais. (ANDERSON, 2014, p. 30). 

Fotografia de 1925 do Hospital de Nome.
Ainda no verão de 1924 o Dr. Welch havia solicitado do governo o envio de soros antidiftérico para precaver-se, já que os esquimós ou inuítes possuíam baixa resistência imunológica a essa doença e outras. O soro não chegou a tempo, pois com a chegada do inverno seu envio foi suspenso. E isso contribuiu para que a situação se complicasse em janeiro de 1925 quando tanto crianças esquimós quanto outras crianças de Nome, começaram a serem diagnosticadas com difteria. Billy e uma menina chamada Bessie vieram morrer antes do dia 20. (ANDERSON, 2014, p. 31)

Como não havia soro, a situação se tornou um problema de saúde pública. No dia 20 de 1925, o Dr. Welch notificou o governador do Alaska solicitando vacina emergencialmente para a cidade, e no dia 22 ele enviou um telegrama para o Serviço Público de Saúde de Washington (Public Health Service) solicitando com urgência o envio de soros antidiftéricos. O governo atendeu a solicitação, porém, vários problemas surgiram no caminho. (SCHEINDLIN, 2008, p. 154). 

De início cogitaram enviar o soro a partir de Seattle, capital de Washington, no entanto, o Mar de Bering estava congelado na ocasião, impedindo que navios pudessem passar por ali. Cogitou-se enviar por terra, mas as estradas estavam soterradas por neve, não permitindo que nenhum veículo com rodas pudesse trafegar. Também considerou-se mandar um avião, mas o tempo no Alasca não estava favorável para viagens aéreas, além do risco que com as baixas temperaturas, o morto dos aviões tendiam a congelar naquela época. A diretoria do Serviço Público de Saúde de Washington passou os dias seguintes tentando buscar uma solução para aquilo, enviando mensagens para vários hospitais dos estados vizinhos até que no dia 26 de janeiro, o Dr. John Bradley Beeson, do Hospital Ferroviário do Alasca (Alaska Railroad Hospital), situado na cidade de Anchorage, disse que poderia enviar um carregamento com 300 mil doses da vacina. A carga seria transportada por trem até Nenana no norte. 

A corrida do soro: 

Com a notícia que o carregamento do soro seria enviado para Nenana, o governador do Alasca, o senhor Scott C. Bone comunicou as autoridades de Nome, informando a respeito e dizendo que eles teriam que ir de trenó até Nenana buscar o soro. Muitos dos moradores do Alasca estavam acostumados em se mover por trenós puxados por cães durante os longos meses de inverno, entretanto, aquela jornada era algo sem precedentes. Nenana dista 1.085 km  (674,187 milhas) de Nome, uma distância absurda a qual seria percorrida normalmente em até 25 dias, porém, as crianças doentes provavelmente não resistiriam. (ANDERSON, 2014, p. 32). 

Rota da corrida do soro de Nome para Nenana, e o trajeto ferroviário até Anchorage e a rota marítima até Seward. Observa-se também no mapa os pontos de revesamento. 
Com isso o prefeito de Nome, o governador do Alasca e outras autoridades decidiram montar um sistema de revesamento para fazer a entrega. Foram nomeados 20 condutores os quais fizeram uso de 150 cachorros. Utilizando-se o telégrafo foi definido uma rota de entrega entre Nome-Nenana, e cada condutor de trenó teria se dirigir para os pontos de troca e aguardar a caixa com o soro. Além da longa distância a ser percorrida o inverno no Alasca era e ainda é bastante rigoroso com temperaturas que facilmente passam de 30 C negativos, além de ventanias, nevascas e nevoeiros, e para completar, havia o problema da rota. Por mais que tenham buscado o caminho mais rápido, ainda assim, os entregadores tiveram que atravessar montanhas, vales, florestas, colinas, depressões e rios congelados, o que dificultava todo o procedimento. Sem contar que alguns dos entregadores se feriram na ocasião, adoeceram e alguns dos cães morreram durante a missão. 

Tabela apresentando o nome dos entregadores, os trechos percorridos e as respectivas distâncias. Fonte: ABOUL-ENEIN; PUDDY; BOWSER, 2019, p. 292. 
O início da chamada "corrida do soro" se deu no dia 27 de janeiro, sendo concluído em 2 de fevereiro. Isso significa que em quase sete dias, os 20 condutores e seus cães percorreram 1.085 km sob um frio abaixo de zero e por uma rota perigosa. Sem contar que o trajeto em dados momentos foi feito a noite, pois a duração do dia era curta e o tempo de entrega também, o que forçou os entregadores terem que se arriscar ainda mais. 

Na antepenúltima parte do trajeto, Leonhard Seppala e sua equipe de cães guiada por Togo, realizaram o trajeto entre Shaktoolik para Golovin. Devido as condições terem piorado por causa de uma nevasca e da neblina resultante, Seppala temia que não chegasse a tempo e isso estragaria o soro e toda a missão de salvamento. Além disso, ele percorreu 146 quilômetros em menos de 30 horas, tendo inclusive viajado a noite. E tal façanha somente foi possível devido a um ato arriscado: Seppala decidiu cortar caminho através do Estreito do Norte (Norton Sound), o qual estava congelado na época, mas ainda assim, fornecia o risco de que o gelo poderia se rachar devido a velocidade de impacto e atrito gerado pelos cães puxando o trenó. (ABOUL-ENEIN; PUDDY; BOWSER, 2019, p. 296). 

O Estreito do Norte (Norton Sound). Observa-se várias cidades na sua costa, em destaque Shakftoolik e Golovin, a rota que Seppala, Togo e os demais cães percorreram ao cruzar a pequena parte congelada do estreito no dia 1 de fevereiro de 1925.  
Após a ousada travessia que poderia ter matado Seppala e seus cães caso eles caíssem no mar gelado, o carregamento de soro chegou a Golovin e Seppala o entregou para Charlie Olson que partiu na manhã do dia 1 de fevereiro, indo até Bluff, onde encontrou Gunnar Kaasen (1882-1960) e Balto. Kaasen também era norueguês como Seppala e como ele, viajou ao Alasca devido a corrida do ouro. Na ocasião de 1925, lhe foi incumbido a última parte do trajeto, ligando Bluff a Nome, o qual ele percorreu com Balto e Foxy guiando seu trenó através de 85 quilômetros por uma tempestuosa noite do dia primeiro de fevereiro. Depois de Seppala, Kaasen percorreu a segunda maior rota da corrida do soro. Na manhã do dia 2 de fevereiro, após passar a madrugada viajando, Kaasen chegou a cidade por volta das 5h30 da manhã, dirigindo-se até o hospital para entregar ao Dr. Welch a caixa com o soro. Devido a Kaasen ter feito a última parte do trajeto e uma das mais extensas também, ele e Balto receberam a fama de heróis. E não demorou para que os jornais de outros cantos do país noticiassem seus nomes e grande feito. (STOKES, 1996, p. 275). 

Graças ao soro antidiftérico não apenas as crianças doentes foram salvas, mas toda a população também foi imunizada contra a difteria, evitando que mais gente viesse a adoecer e pudesse morrer. A grande façanha daqueles 20 condutores e seus cães ao percorrerem mais de mil quilômetros em meio a o rigoroso inverno do Alasca, havia entrado para a História. 

Balto e Kaasen recebem os louros da fama:

A fama de Balto e Kaasen foi algo avassalador e bastante rápido. Gunnar Kaasen não apenas deu entrevistas e tirou fotos para os jornais, mas foi cumprimentado pelas autoridades locais, parabenizado pelo governador do Alasca, ele e Balto receberam medalhas e prêmios em dinheiro. A notícia se espalhou pelos jornais americanos noticiando que a cidadezinha de Nome no Alasca havia sido salva de uma epidemia de difteria. Embora que o risco somente foi descartado em março, pois outra dose do soro foi enviado em 15 de fevereiro e apenas a partir do dia 21 daquele mês, o Dr. Welch suspendeu a quarentena na cidade (ANDERSON, 2014, p. 39). De qualquer forma, os jornais noticiavam que a corrida do soro havia sido um sucesso e na maior parte dos casos ignoraram o nome dos outros entregadores até mesmo do Seppala, que realizou o trajeto mais longo e talvez o mais perigoso. 

Balto e Gunnar Kaasen em fotografia de 1925 para os jornais da época. 
A medida que as semanas e meses passavam, os jornais começaram a noticiar os outros envolvidos na missão e inclusive o governo do Alasca ofereceu uma medalha de ouro para cada um dos 20 condutores, além de certificados de agradecimentos assinados pelo presidente Calvin Coolidge, agradecendo pela bravura, determinação, esforço e compromisso por aquela nobre causa. (STROKES, 1996, p. 275). 

Entretanto, a fama de Balto até mesmo foi maior do que a do próprio Kaasen. No dia 16 de dezembro de 1925 foi inaugurada no Central Park de Nova York, uma estátua de Balto, homenageando-o por sua bravura e perspicácia em ter liderado o último trenó que carregava o soro antidiftérico através de 85 quilômetros de neve e em meio a noite. 

Fotografia da estátua de Balto no Central Park, em Nova York. 
Os últimos anos de Togo e Balto: 

Balto e os demais cães da sua equipe conduzida por Kaasen, foram vendidos a um empresário que viajou pelo país exibindo os animais, aproveitando-se da fama que o animal obtive. Balto e seus companheiros foram viver em Los Angeles até que um empresário chamado George Kimble denunciou os maus-tratos aos cães. Kimble iniciou uma campanha pública para arrecadar dinheiro e assim comprou Balto e os outros cães, levando-os para Cleveland, onde ele vivia. Kimble doou o restante do dinheiro para o zoológico da cidade o qual acolheu Balto e os demais cachorros, os quais passaram o restante da vida ali. Balto faleceu em 1933, aos 14 anos. Seus restos mortais foram recolhidos pelo zoológico e doados ao Museu de História Natural de Cleveland, onde ele foi empalhado e desde então está em exposição. (SCHEINDLIN, 2008, p. 155). 

Balto encontra-se empalhado e em exposição no Museu de História Natural de Cleveland, em Ohio. 
Se por um lado Balto não teve um final tão feliz, pois não recebeu um lar e nem um novo dono, pois foi maltratado pelo seu antigo dono e depois passou seus últimos anos vivendo num zoológico, Togo, teve ainda um final melhor. 

No ano de 1926 a fama chegou para Seppala e ele foi convidado para participar de um tour no oeste americano exibindo seus cães e o famoso Togo. Seppala passou os meses seguintes viajando de Seattle a Los Angeles, depois seguindo para outras cidades indo até Nova York, e finalmente chegando a Poland Spring no Maine, onde Seppala passou a participar de competições de trenó e até ajudou a criar um clube para isso. Ele viveu algum tempo ali, onde Togo passou seus últimos anos, vindo a falecer em 1929 aos 16 anos, após sofrer eutanásia a pedido de seu dono, pois o cachorro estava muito debilitado e sofrendo. 

Togo e Seppala
Após a morte de Togo, Seppala retornou para o Alasca, mudando-se com sua esposa e filha para Fairbanks. Ele continuou no ramo da criação de cães e participando de corridas de trenó. Por sua vez, os vários filhos gerados por Togo ao longo da sua vida deram origem a uma linhagem nobre de husky siberianos, chamada de linhagem Seppala

NOTA: A história de Balto foi adaptada para um desenho animado chamado Balto (1995). O filme ganhou três continuações fictícias: Balto II: Wolf Quest (2002), Balto III: Wings of Change (2004) e Balto IV: The Journey of Wolves (2020). O ator Kevin Bacon é o dublador original de Balto em todos os filmes. 
NOTA 2: Recentemente a Walt Disney lançou o filme Togo (2019), focando a história dessa vez em Seppala e Togo, pois o desenho Balto, foca-se em Balto e Kaasen. O ator William Dafoe interpreta Leonhard Seppala. 
NOTA 3: A história de Balto e Togo inspirou livros infantis e romances.
NOTA 4: Tanto o desenho Balto quanto o filme Togo, ambos romantizam a história real e omitem várias informações históricas, além de dar a entender que Balto e Togo teriam realizado a maior parte da corrida do soro, sozinhos. 
NOTA 5: Seppala competiu nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1932, ganhando a medalha de prata nas corridas de trenó. 
NOTA 6: O soro antidiftérico foi invetado pelo médico alemão Emil Adolf von Behring em 1898. Poucos anos depois ele chegou aos Estados Unidos, já sendo produzido em massa. 
NOTA 7: No começo do século XX, o comerciante de peles William Goosak, participando da corrida do ouro, introduziu os primeiros husky siberianos no Alasca, após visitar a Sibéria e se encantar por estes animais. No entanto, somente após vencer algumas corridas é que os cães começaram a chamar atenção dos competidores. 
NOTA 8: Os husky siberianos ao chegarem ao Alasca foram chamados de "raposinha" (foxy) e "lobinho" (wolfy) devido a sua aparência. Embora alguns competidores que desdenhavam de Goosak por ele usar esses cães pequenos, em oposição ao tradicional malamute do Alasca, chamavam os husky de "ratinho" (mouse).
NOTA 9: Celebrada desde 1973, ocorre anualmente no Alasca a tradicional Iditarod Trail Sled Dog Race, uma corrida de longa duração, cujo trajeto vai de Nome a Anchorage, em memória da corrida do soro em 1925. A corrida possui duas rotas: a Rota Sul com 1.606 km (998 milhas) e a Rota Norte com 1.569 km (975 milhas). 

Referências bibliográficas:
ABOUL-EINEN, Basil H; PUDDY, William C; BOWSER, Jacquelyn E. The 1925 Diphtheria Antitoxin Run to Nome - Alaska: A Publich Health Illustration of Human-Animal Collaboration. Journal Medical Humanit, v. 40, 2019, p. 287-296. 
ANDERSON, Rebecca J. The Great Dogsled Relay: the race against diphteria. The Pharmacologist, special edition, 2014, p. 30-40. 
SCHEINDLIN, Stanley. The Drug that Launched a Thousand Sleds. Molecular Interventions, vol. 8, is. 4, august 2008, p. 152-158. 
STOKES, E. D. The race for life. Public Health Reports, vol. 111, May/June 1996, p. 272-275.