Esse texto consiste no capítulo XIII do livro Microfísica do Poder, escrito pelo filósofo e historiador francês Michel Foucault.
A POLÍTICA DA SAÚDE NO SÉCULO XVIII
Duas observações para começar:
1) Uma medicina privada, "liberal", submetida aos mecanismos
da iniciativa individual e às leis do mercado; uma política médica que se apoia
em uma estrutura de poder e que visa à saúde de uma coletividade; não resulta
em quase nada, sem dúvida, procurar uma relação de anterioridade ou de derivação
entre elas. E um tanto mítico supor, na origem da medicina ocidental, uma
prática coletiva a que as instituições mágico−religiosas teriam proporcionado
seu caráter social e que a organização das clientelas privadas teria, em
seguida, desmantelado pouco a pouco.
Mas é também inadequado supor, no início da medicina moderna, uma
relação singular, privada, individual, "clínica" em seu funcionamento
econômico e na sua forma epistemológica que uma série de correções, de
ajustamentos ou coações teria socializado lentamente, tornando−a responsável
pela coletividade.
O que o século XVIII mostra, em todo o caso, são duas faces de um mesmo
processo: o desenvolvimento de um mercado médico sob a forma de clientelas
privadas, a extensão de uma rede de pessoal que oferece intervenções
medicamente qualificadas, o aumento de uma demanda de cuidados por parte dos
indivíduos e das famílias, a emergência de uma medicina clínica fortemente
centrada no exame, no diagnóstico, na terapêutica individuais, a exaltação explicitamente
moral e científica (secretamente econômica) do "colóquio singular",
em suma, o surgimento progressivo da grande medicina do século XIX não pode ser
dissociado da organização, na mesma época, de uma política da saúde e de uma
consideração das doenças como problema político e econômico, que se coloca às
coletividades e que elas devem tentar resolver ao nível de suas decisões de
conjunto.
Medicina "privada" e medicina "socializada" relevam,
em seu apoio recíproco e em sua oposição, de uma estratégia global. Não há sem
dúvida, sociedade que não realize uma certa "noso−politica". O século
XVIII não a inventou. Mas lhe prescreveu novas regras e, sobretudo. A fez
passar a um nível de análise explícita e sistematizada que ela ainda não tinha
conhecido. Entra−se, portanto, menos na era da medicina social que na da noso−politica
refletida.
2) Não se deve situar somente nos aparelhos do
Estado o polo de iniciativa, de organização e de controle desta noso−política.
Existiram, de fato, múltiplas políticas de saúde e diversos meios de se encarregar dos problemas médicos: grupos religiosos
(importância considerável, por exemplo, dos Quakers e dos diversos
movimentos Dissent, na Inglaterra); associações de socorro e beneficência
(desde as repartições de paróquia até as sociedades filantrópicas que também funcionam
como órgãos da vigilância que uma classe social privilegiada exerce sobre as
outras, mais desprotegidas e, por isso mesmo, portadoras de perigo coletivo);
sociedades científicas, as Academias do século XVIII ou as sociedades de
estatística do início do século XIX, tentam organizar um saber global e
quantificável dos fenômenos de morbidade. A saúde, a doença como fato de grupo
e de população, é problematizada no século XVIII a partir de instâncias
múltiplas em relação às quais o Estado desempenha papéis diversos.
Intervém diretamente: as distribuições gratuitas de
medicamentos são efetuadas na França, com uma amplitude variável, de Luís XIV a
Luís XVI. Cria órgãos de consulta e de informação (o Collegium sanitário
da Prússia data de 1685; a Sociedade Real de Medicina fundou−se na
França em 1776). Fracassa em seus projetos de organização médica autoritária (o
Código de Saúde elaborado por Mai e aceito pelo Eleitor Palatino em 1800 nunca
foi aplicado). O Estado é também objeto de solicitações às quais ele resiste.
A problematização da noso−politica, no século
XVIII, não traduz, portanto uma intervenção uniforme do Estado na prática da medicina,
mas, sobretudo a emergência, em pontos múltiplos do corpo social, da saúde e da
doença como problemas que exigem, de uma maneira ou de outra, um encargo
coletivo. A noso−politica, mais do que o resultado de uma iniciativa vertical,
aparece, no século XVIII, como um problema de origens e direções múltiplas: a
saúde de todos como urgência para todos; o estado de saúde de uma população
como objetivo geral.
O traço mais marcante desta
"noso−política" que inquieta a sociedade francesa − e europeia – no século
XVIII, é sem dúvida, o deslocamento dos problemas de saúde em relação às
técnicas de assistência. Esquematicamente, pode−se dizer que até o fim do século
XVII os encargos coletivos da doença eram realizados pela assistência aos
pobres. Há exceções, certamente: as regras a aplicar em época de epidemias, as
medidas que eram tomadas nas cidades pestilentas, as quarentenas que eram
impostas em alguns grandes portos constituíam formas de medicalização autoritária
que não estavam organicamente ligadas às técnicas de assistência. Mas fora
destes casos−limite, a medicina entendida e exercida como "serviço"
foi apenas uma das componentes dos "socorros".
Ela se dirigia à categoria importante, não obstante
a imprecisão de suas fronteiras, dos "pobres doentes".
Economicamente, esta medicina−serviço estava essencialmente assegurada por
fundações de caridade. Institucionalmente, ela era exercida dentro dos limites
de organizações (leigas ou religiosas) que se propunham fins múltiplos: distribuição
de viveres, vestuário, recolhimento de crianças abandonadas, educação elementar
e proselitismo moral, abertura de ateliês e de oficinas, eventualmente
vigilância e sanções de elementos "instáveis" ou "perturbadores"
(as repartições hospitalares tinham, nas cidades, jurisdição sobre os
vagabundos e os mendigos; as repartições paroquiais e as sociedades de caridade
se outorgavam também, e muito explicitamente, o direito de denunciar os
"maus elementos"). Do ponto de vista técnico, a parte desempenhada
pela terapêutica no funcionamento dos hospitais na época clássica era limitada,
relativamente à ajuda material e ao enquadramento administrativo.
Na figura do "pobre necessitado" que
merece hospitalização, a doença era apenas um dos elementos em um conjunto que
compreendia também a enfermidade, a idade, a impossibilidade de encontrar
trabalho, a ausência de cuidados. A série doença−serviços médicos−terapêutica
ocupa um lugar limitado e raramente autônomo na política e na economia complexa
dos "socorros".
Primeiro fenômeno a destacar durante o século XVIII: o deslocamento
progressivo dos procedimentos mistos e polivalentes de assistência. Este desmantelamento
se opera, ou melhor, ele se faz necessário, (pois só se tornará efetivo no
final do século) a partir do reexame do modo de investimento e capitalização: a
prática das "fundações" que imobilizam somas importantes e cuja renda
serve para entreter ociosos que podem, assim, permanecer fora dos circuitos de produção,
é criticada pelos economistas e pelos administradores. Opera−se, igualmente, a
partir de um esquadrinhamento mais rigoroso da população e das distinções que
se tenta estabelecer entre as diferentes categorias de infelizes aos quais,
confusamente, a caridade se destinava: na atenuação lenta dos estatutos
tradicionais, o "pobre" é um dos primeiros a desaparecer e ceder lugar
a toda uma série de distinções funcionais (os bons e os maus pobres, os ociosos
voluntários e os
desempregados involuntários; aqueles que podem fazer determinado trabalho e aqueles
que não podem).
Uma análise da ociosidade − de suas condições e
seus efeitos − tende a substituir a sacralização um tanto global do
"pobre". Análise que na prática tem por objetivo, na melhor das hipóteses,
tornar a pobreza útil, fixando−a ao aparelho de produção; e, na pior, aliviar o
mais possível seu peso para o resto da sociedade: como fazer trabalhar os
pobres "válidos", como transformá−los em mão−de−obra útil; mas,
também, como assegurar o autofinanciamento pelos menos ricos de sua própria
doença e de sua incapacidade transitória ou definitiva de trabalhar; ou ainda,
como tornar lucrativas a curto ou a longo prazo as despesas com a instrução das
crianças abandonadas e dos órfãos. Delineia−se, assim, toda uma decomposição
utilitária da pobreza, onde começa a aparecer o problema especifico da doença
dos pobres em sua relação com os Imperativos do trabalho e a necessidade da
produção.
Mas é preciso, também, chamar atenção para um outro processo, mais geral
que o primeiro e que não é o seu simples desdobramento: o surgimento da saúde e
do bem−estar físico da população em geral como um dos objetivos essenciais do
poder político. Não se trata mais do apoio a uma franja particularmente frágil
− perturbada e perturbadora − da população, mas da maneira como se pode elevar
o nível de saúde do corpo social em seu conjunto. Os diversos aparelhos de
poder devem se encarregar dos "corpos" não simplesmente para exigir
deles o serviço do sangue ou para protege−los contra os inimigos, não
simplesmente para assegurar os castigos ou extorquir as rendas, mas para
ajudá−los a garantir sua saúde. O imperativo da saúde: dever de cada um e objetivo
geral.
Recuando um pouco, se poderia dizer que, desde o
inicio da Idade Média, o poder exercia tradicionalmente duas grandes funções: a
da guerra e a da paz, que ele assegurava pelo monopólio dificilmente adquirido
das armas; a da arbitragem dos litígios e da punição dos delitos, que
assegurava pelo controle das funções judiciárias. Pax et Justitia. A
estas funções foram acrescentadas, desde o fim da Idade Média, a da manutenção
da ordem e da organização do enriquecimento. Eis que surge, no século XVIII,
uma nova função: a disposição da sociedade como meio de bem−estar físico, saúde
perfeita e longevidade.
O exercício destas três últimas funções (ordem,
enriquecimento, saúde) foi assegurado menos por um aparelho único que por um
conjunto de regulamentos e de instituições múltiplas que recebem, no século
XVIII, o nome genérico de "policia". O que se chamará até o fim do
Antigo Regime de polícia não é somente a instituição policial; é o conjunto dos
mecanismos pelos quais são assegurados a ordem, o crescimento canalizado das
riquezas e as condições de manutenção da saúde "em geral": O Traité
de Delamare − grande carta das funções da policia na época clássica − é,
neste sentido, significativo.
As 11 rubricas segundo as quais ele classificava as
atividades da polícia se repartem, facilmente, segundo estas 3 grandes
direções: respeito da regulamentação econômica (circulação das mercadorias,
procedimentos de fabricação, obrigações dos profissionais entre eles e com
relação à sua clientela); respeito das medidas de ordem (vigilância dos
indivíduos perigosos, caça aos vagabundos e eventualmente aos mendigos, perseguição
dos criminosos); respeito às regras gerais de higiene (cuidar da qualidade dos
gêneros postos à venda, do abastecimento de água, da limpeza das ruas).
No momento em que os procedimentos mistos de assistência são decompostos
e decantados, e em que se delimita, em sua especificidade econômica, o problema
da doença dos pobres, a saúde e o bem−estar físico das populações aparecem como
um objetivo político que a "policia" do corpo social deve assegurar
ao lado das regulações econômicas e obrigações da ordem. A súbita importância
que ganha à medicina no século XVIII tem seu ponto de origem no cruzamento de
uma nova economia "analítica" da assistência com a emergência de uma
"policia" geral da saúde. A nova noso−politica inscreve a questão
especifica da doença dos pobres no problema geral da saúde das populações; e se
desloca do contexto estreito dos socorros de caridade para a forma mais geral
de uma "polícia médica" com suas obrigações e seus serviços. Os
textos de Th. Rau: Medizinische Polizei Ordnung (1764) e, sobretudo a
grande obra de J. P. Frank − "System einer Medizinischen
Polizei" são a expressão mais coerente desta transformação.
Qual o suporte desta transformação? A grosso modo,
pode−se dizer que se trata da preservação, manutenção e conservação da
"força de trabalho". Mas, sem dúvida, o problema é mais amplo: ele também
diz respeito aos efeitos econômico−político da acumulação dos homens. O grande crescimento
demográfico do Ocidente europeu durante o século XVIII, a necessidade de coordená−lo
e de integrá−lo ao desenvolvimento do aparelho de produção, a urgência de controlá−lo
por mecanismos de poder mais adequados e mais rigorosos fazem aparecer a "população"
− com suas variáveis de números, de repartição espacial ou cronológica, de longevidade
e de saúde − não somente como problema teórico, mas como objeto de vigilância análise,
intervenções, operações transformadoras, etc.
Esboça−se o projeto de uma tecnologia da população:
estimativas demográficas, cálculo da pirâmide das idades, das diferentes
esperanças de vida, das taxas de morbidade, estudo do papel que desempenham um
em relação ao outro o crescimento das riquezas e da população, diversas
incitações ao casamento e à natalidade, desenvolvimento da educação e da
formação profissional. Neste conjunto de problemas, o "corpo" − corpo
dos indivíduos e corpo das populações − surge como portador de novas variáveis:
não mais simplesmente raros ou numerosos, submissos ou renitentes, ricos ou
pobres, válidos ou inválidos, vigorosos ou fracos e sim mais ou menos
utilizáveis, mais ou menos suscetíveis de investimentos rentáveis, tendo maior
ou menor chance de sobrevivência, de morte ou de doença, sendo mais ou menos
capazes de aprendizagem eficaz. Os traços biológicos de uma população se tornam
elementos pertinentes para uma gestão econômica e é necessário organizar em
volta deles um dispositivo que assegure não apenas sua sujeição, mas o aumento
constante de sua utilidade.
A partir daí se podem compreender várias
características da noso−política do século XVIII.
1) O privilégio da infância e a medicalização da
família. Ao problema "das crianças" (quer dizer de seu número no
nascimento e da relação natalidade − mortalidade) se acrescenta o da
"infância" (isto é, da sobrevivência até a idade adulta, das
condições físicas e econômicas desta sobrevivência, dos investimentos
necessários e suficientes para que o período de desenvolvimento se torne útil,
em suma, da organização desta "fase" que é entendida como especifica
e finalizada). Não se trata, apenas, de produzir um melhor número de crianças,
mas de gerir convenientemente esta época da vida.
São codificadas, então, segundo novas regras − e
bem precisas − as relações entre pais e filhos. São certamente mantidas, e com
poucas alterações, as relações de submissão e o sistema de signos que elas
exigem, mas elas devem estar regidas, doravante, por todo um conjunto de obrigações
que se impõe tanto aos pais quanto aos filhos: obrigações de ordem física
(cuidados, contatos, higiene, limpeza, proximidade atenta); amamentação das
crianças pelas mães; preocupação com um vestuário sadio; exercícios físicos
para assegurar o bom desenvolvimento do organismo: corpo a corpo permanente e
coercitivo entre os adultos e as crianças. A família não deve ser mais apenas
uma teia de relações que se inscreve em um estatuto social, em um sistema de
parentesco, em um mecanismo de transmissão de bens.
Deve−se tornar um meio físico denso, saturado,
permanente, contínuo que envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança. Adquire,
então, uma figura material, organiza−se como o meio mais próximo da criança;
tende a se tornar, para ela, um espaço imediato de sobrevivência e de evolução.
O que acarreta um efeito de limitação ou, pelo menos, uma intensificação dos
elementos e das relações que constituem a família no sentido estrito (o grupo
pais−filhos). O que acarreta, também, certa inversão de eixos: o laço conjugal
não serve mais apenas (riem mesmo, talvez, em primeiro lugar) para estabelecer
a junção entre duas ascendências, mas para organizar o que servirá de matriz
para o indivíduo adulto. Sem dúvida, ela serve ainda para dar continuidade a
duas linhagens e, portanto para produzir descendência, mas também para
fabricar, nas melhores condições possíveis, um ser humano elevado ao estado de
maturidade.
A nova "conjugalidade" é, sobretudo,
aquela que congrega pais e filhos. A família aparelho estrito e localizado de
formação − se solidifica no interior da grande e tradicional família−aliança.
E, ao mesmo tempo, a saúde − em primeiro plano a saúde das crianças − se torna
um dos objetivos mais obrigatórios da família. O retângulo pais−filhos deve se
tornar uma espécie de homeostase da saúde. Em todo o caso, desde o fim do
século XVIII, o corpo sadio, limpo, válido, o espaço purificado, límpido, arejado,
a distribuição medicamente perfeita dos indivíduos, dos lugares, dos leitos,
dos utensílios, o jogo do "cuidadoso" e do "cuidado",
constituem algumas das leis morais essenciais da família. E, desde esta época,
a família se tornou o agente mais constante da medicalização.
A partir da segunda metade do século XVIII ela foi
alvo de um grande empreendimento de aculturação médica. A primeira leva disse
respeito aos cuidados ministrados às crianças e, sobretudo, aos bebês. Audry:
L'orihopédie (1749),Vandemonde: Essai sur la maniére de perfectionner l'espèce
humaine (1756), Cadogan: Manière de nourrir ei d'élever les enfants (a tradução
francesa é de 1752), Des Essariz: Traité de l'éducation corporelle en bas âge
(1760), Ballexsert: Dissertaiion sur l'Éducation physique des enfanis (1762);
Raulin: Dela conservation des enfanis (1768),
Nicolas: Le cri de la nature en faveur des enfanis nouveau−nés (1775), Daignan:
Tableau des sociéiés de la
vie humaine (1786), Sauceroite: De la conserva tion des enfan is (ano IV), W. Buchanam: Le conserva ieur de san 'é des mêres ei des enfanis (tradução
francesa de 1804), J. A. Milbi: Le Nestor francais (1807);
Laplace Chanvre: Disseriation sur quelques poinis
de l'éducaiion physique ei morale des enfanis (1813), Lereiz: Hygiêne
des enfanis (1814), Prévosi Leygonie: Essai sur l'éducaiion physique des
enfanis (1813).
Esta literatura aumentará logo com a publicação, no
século XIX, de uma série de periódicos e de jornais mais diretamente dirigidos
às classes populares.
A longa campanha a respeito da inoculação e da
vacinação se insere no movimento que procurou cercar as crianças de cuidados
médicos, tendo a família a responsabilidade moral e, pelo menos, uma parte do
encargo econômico. A política em favor dos órfãos segue, por caminhos
diferentes, uma estratégia análoga. São abertas instituições especialmente
destinadas a recolhe−los e a ministrar−lhes cuidados particulares (o Foundling
Hospital de Londres, o Enfanis Trouvés de Paris).; é organizado,
também, um sistema de acolhimento por amas de leite ou em famílias onde eles
serão úteis, participando, ainda que pouco, da vida doméstica, e onde, além
disso, encontrarão um meio de desenvolvimento mais favorável e economicamente
menos custoso que um asilo, onde ficariam confinados até á adolescência.
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Gravura do século XVIII retratando o complexo do Fouding Hospitalar em Londres. |
A política médica, que se delineia no século XVIII em todos os países da
Europa, tem como reflexo a organização da família, ou melhor, do complexo
família−filhos, como instância primeira e imediata da medicalização dos
indivíduos; fizeram−na desempenhar o papel de articulação dos objetivos gerais
relativos à boa saúde do corpo social com o desejo ou a necessidade de cuidados
dos indivíduos; ela permitiu articular uma ética "privada" da boa
saúde (dever recíproco de pais e filhos) com um controle coletivo da higiene e
uma técnica científica da cura, assegurada pela demanda dos indivíduos e das
famílias, por um corpo profissional de médicos qualificados e como que recomendados
pelo Estado.
Os direitos e os deveres dos indivíduos concernindo à sua saúde e à dos
outros, o mercado onde coincidem as demandas e as ofertas de cuidados médicos,
as intervenções autoritárias do poder na ordem da higiene e das doenças, a
institucionalização e a defesa da relação privada com o médico, tudo isto, em
sua multiplicidade e coerência, marca o funcionamento global da política de
saúde do século XIX, que, entretanto não se pode compreender abstraindo−se este
elemento central, formado no século XIII: a família medicalizada−medicalizante.
2) O privilégio da higiene e o funcionamento da
medicina como instância de controle social. A velha noção de regime
entendida como regra de vida e como forma de medicina preventiva tende a se alargar
e a se tornar o "regime" coletivo de uma população considerada em
geral, tendo como tríplice objetivo: o desaparecimento dos grandes surtos
epidêmicos, a baixa taxa de morbidade, o aumento da duração média de vida e de
supressão de vi da para cada idade. Esta higiene, como regime de saúde das populações
implica, por parte da medicina, um determinado número de intervenções
autoritárias e de medidas de controle.
E, antes de tudo, sobre o espaço urbano em geral:
porque ele é, talvez, o meio mais perigoso para a população. A localização dos diferentes
bairros, sua umidade, sua exposição, o arejamento total da cidade, seu sistema
de esgotos e de evacuação de águas utilizadas, a localização dos cemitérios e
dos matadouros, a densidade da população constituem fatores que desempenham um papel
decisivo na mortalidade e morbidade dos habitantes.
A cidade com suas principais variáveis espaciais aparecem
como um objeto a medicalizar. Enquanto que as topografias médicas das regiões
analisam dados climáticos ou fatos geológicos que não controlam e só podem
sugerir medidas de proteção ou de compensação, as topografias das cidades
delineiam, pelo menos negativamente, os princípios gerais de um urbanismo
sistemático. A cidade patogênica deu lugar, no século XVIII, a toda uma
mitologia e a pânicos bem reais (o Cemitério dos Inocentes, em Paris, foi um
destes lugares saturados de medo); ela exigiu, em todo caso, um discurso médico
sobre a morbidade urbana e uma vigilância médica de todo um conjunto de
disposições, de construções e de instituições (Cf. por exemplo, J.P.L. Morei disserta tion sur les causes que contribueni le plus â rendre cachectique ei
rachitique la constitution d'un grand nombre d'enfanis de la ville de Lille, 1812).
De um modo mais preciso e mais localizado, as
necessidades da higiene exigem uma intervenção médica autoritária sobre o que
aparece como foco privilegiado das doenças: as prisões, os navios, as
instalações portuárias, os Hospitais gerais onde se encontravam os vagabundos,
os mendigos, os inválidos; os próprios hospitais, cujo enquadramento médico é
na maior parte do tempo insuficiente, e que avivam ou complicam as doenças dos
pacientes, quando não difundem no exterior os germes patológicos. Isolam−se,
portanto, no sistema urbano, regiões de medicalização de urgência, que devem se
tornar pontos de aplicação para o exercício de um poder médico intensificado.
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Gravura de 1821 retratando um casal doando uma criança em uma das entradas do orfanato Enfanis Trouvés em Paris. |
Além disso, os médicos deverão ensinar aos
indivíduos as regras fundamentais de higiene que estes devem respeitar em
beneficio de sua própria saúde e da saúde dos outros: higiene da alimentação e
do habitat, incitação a se fazer tratar em caso de doença.
A medicina como técnica geral de saúde, mais do que
como serviço das doenças e arte das curas, assume um lugar cada vez mais
importante nas estruturas administrativas e nesta maquinaria de poder que,
durante o século XVIII, não cessa de se estender e de se afirmar. O médico
penetra em diferentes instâncias de poder. A administração serve de ponto de apoio
e, por vezes, de ponto de partida aos grandes inquéritos médicos sobre a saúde
das populações; por outro lado, os médicos consagram uma parte cada vez maior
de suas atividades a tarefas tanto gerais quanto administrativas que lhes foram
fixadas pelo poder. Acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua
condição de vida, de sua habitação e de seus hábitos, começa a se formar um saber
médico−administrativo que serviu de núcleo originário à "economia
social" e â sociologia do século XIX.
E constitui−se, igualmente, uma ascendência político−médica
sobre uma população que se enquadra com uma série de prescrições que dizem respeito
não só â doença, mas às formas gerais da existência e do comportamento (a
alimentação e a bebida, a sexualidade e a fecundidade, a maneira de se vestir,
a disposição ideal do habitat).
O excesso de poder de que se beneficia o médico
comprova, desde o século XVIII, esta interpretação do que é político e médico
na higiene: presença cada vez mais numerosa nas academias e nas sociedades
científicas; participação ampla nas Enciclopédias; presença a titulo de conselheiro,
junto aos representantes do poder; organização de sociedades médicas
oficialmente encarregadas de certo número de responsabilidades administrativas
e qualificadas para tomar ou sugerir medidas autoritárias; papel desempenhado
por muitos médicos como programadores de uma sociedade bem administrada (o
médico reformador da economia ou da política é um personagem frequente na segunda
metade do século XVIII); sobre−representação dos médicos nas assembleias
revolucionárias.
O médico se torna o grande conselheiro e o grande
perito, se não na arte de governar, pelo menos na de observar, corrigir,
melhorar o "corpo" social e mantê−lo em um permanente estado de
saúde. E é sua função de higienista, mais que seus prestígios de terapeuta, que
lhe assegura esta posição politicamente privilegiada no século XVIII, antes de
sê−la econômica e socialmente no século XIX.
O questionamento do hospital, durante o século
XVIII, pode ser compreendido a partir destes três fenômenos principais: a
emergência da "população" com suas variáveis biomédicas de longevidade
e de saúde; a organização da família estritamente parental como centro de transmissão
de uma medicalização onde ela desempenha um papel de permanente demanda e de instrumento
último; o emaranhado médico−administrativo em torno dos controles de higiene coletiva.
É que, em relação a estes novos problemas, o
hospital aparecia como uma estrutura em muitos pontos ultrapassada. Fragmento
de espaço fechado sobre si, lugar de internamento de homens e de doenças,
arquitetura solene, mas desajeitada que multiplica o mal no interior sem
impedir que ele se difunda no exterior, ele é mais um foco de morte para as cidades
onde se acha situado do que um agente terapêutico para a população inteira.
A
dificuldade de encontrar vagas, as exigências impostas àqueles que desejam
entrar, mas também a desordem incessante das idas e vindas, a precária
vigilância médica ali exercida, a dificuldade em tratar efetivamente os doentes
fazem do hospital um instrumento inadequado, uma vez que o objeto da
medicalização deve ser a população em geral e seu objetivo uma melhoria de
conjunto do nível de saúde.
No espaço urbano que a medicina deve purificar ele
é uma mancha sombria. E para a economia um peso inerte, já que dá uma
assistência que nunca permite a diminuição da pobreza, mas, no máximo, a sobrevivência
de certos pobres e, assim, o crescimento de seu número, o prolongamento de suas
doenças, a consolidação de sua má saúde, com todos os efeitos de contágio que
dele podem resultar.
Daí a ideia que se espalha no século XVIII de uma
substituição do hospital por três mecanismos principais. Pela organização de
uma hospitalização a domicílio: ela é, sem dúvida, perigosa quando se trata de
moléstias epidêmicas, mas apresenta vantagens econômicas na medida em que o custo
da manutenção de um doente é bem menor para a sociedade se ele é sustentado e alimentado
em sua própria casa como antes da doença (o custo para o corpo social resume−se
apenas na falta de ganho que representa sua ociosidade forçada e isto somente
no caso onde ele tivesse efetivamente um trabalho); ela representa, também, vantagens
médicas na medida em que a família − desde que seja aconselhada − pode
assegurar cuidados mais constantes e apropriados do que se pode pedir de uma
administração hospitalar: toda a família deve poder funcionar como um pequeno
hospital provisório, individual e não custoso.
Mas um tal procedimento implica que a substituição
do hospital seja, além disso, assegurada por um corpo médico espalhado pela
sociedade e suscetível de oferecer cuidados totalmente gratuitos ou os menos
custosos possíveis. Um enquadramento médico da população se for permanente, flexível
e facilmente utilizável, pode tornar inútil uma boa parte dos hospitais
tradicionais. Enfim, pode−se conceber que se generalizem os cuidados, consultas
e distribuições de medicamentos que alguns hospitais já oferecem a doentes de
passagem, sem retê−los ou interná−los: método dos dispensários, que procuram
conservar as vantagens técnicas da hospitalização sem ter os inconvenientes
médicos ou econômicos.
Estes três métodos deram lugar, sobretudo na
segunda metade do século XVIII, a uma série de projetos e programas. Eles
provocaram várias experiências. Em 1769 foi fundado, em Londres, o dispensário
para crianças pobres do Red Lion Square; 30 anos mais tarde, quase todos
os bairros da cidade tinham seu dispensário e era estimado em cerca de 50.000 o
número daqueles que lá recebiam cada ano cuidados gratuitos.
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Gravura retratando o complexo do Red Lion Square em Londres. |
Na França, parece que se procurou, sobretudo, a melhoria,
a extensão e uma distribuição homogênea do corpo médico nas cidades e no campo:
a reforma dos estudos médicos e cirúrgicos (1772 e 1784), a obrigatoriedade dos
médicos de exercerem a profissão nos burgos e nas pequenas cidades, antes de
serem recebidos em algumas grandes cidades, os trabalhos de inquérito e
coordenação feitos pela Sociedade Real de Medicina, o lugar cada vez maior que
o controle da saúde e da higiene ocupa na responsabilidade dos Intendentes, o desenvolvimento
das distribuições gratuitas de medicamentos sob a responsabilidade de médicos designados
pela administração, tudo isto remete a uma política de saúde que se apoia na
presença extensiva do pessoal médico no corpo social.
No bojo destas críticas
ao hospital e deste projeto de substituição encontra−se, durante a Revolução,
uma acentuada tendência para a "deshospitalização"; ela já é sensível
nos relatórios do Comitê de Mendicidade (projeto de estabelecer, em cada
distrito do campo, um médico ou um cirurgião que trataria os indigentes, velaria
pelas crianças assistidas e praticaria a inoculação). Mas ela se formula
claramente na época da Convenção (projeto de três médicos por distrito, assegurando
o essencial dos cuidados de saúde para o conjunto da população).
Mas o desaparecimento do hospital foi apenas uma
utopia. De fato, o verdadeiro trabalho se fez quando se quis elaborar um
funcionamento complexo em que o hospital tende a desempenhar um papel
especifico em relação à família, constituída como primeira instância da saúde,
à rede extensa e contínua do pessoal médico e ao controle administrativo da
população. E em relação a este conjunto que se tenta reformar o hospital.
Trata−se, em primeiro lugar, de ajustá−lo ao espaço
e, mais precisamente, ao espaço urbano onde ele se acha situado. Dai uma série
de discussões e conflitos entre diferentes fórmulas de implantação: grandes
hospitais suscetíveis de acolher uma população numerosa, onde os cuidados assim
agrupados seriam mais coerentes, mais fáceis de controlar e menos custosos; ou,
ao contrário, hospitais de pequenas dimensões, onde os doentes seriam mais bem
vigiados e onde os riscos de contágio interno seriam menos graves.
Outro problema, ligado ao precedente: devem−se colocar
os hospitais fora da cidade, onde a ventilação é melhor e onde eles não correm
o risco de difundir miasmas pela população, solução que combina bem com a
disposição dos grandes conjuntos arquitetônicos? Ou se deve construir uma
multiplicidade de pequenos hospitais nos pontos em que eles possam ser os mais
facilmente acessíveis à população que deve utilizá−los, solução que implica,
frequentemente, o ajustamento hospital−dispensário? O hospital, em todo o caso,
deve se tornar um elemento funcional em um espaço urbano onde seus efeitos
devem poder ser medidos e controlados.
É preciso, em segundo lugar, dispor o espaço
interno do hospital de modo à torná−lo medicamente eficaz: não mais lugar de
assistência, mas lugar de operação terapêutica. O hospital deve funcionar como
uma "máquina de curar". De um modo negativo: é preciso suprimir todos
os fatores que o tornam perigoso para aqueles que o habitam (problema de circulação
do ar, que deve ser sempre renovado sem que seus miasmas ou suas qualidades
mefíticas passem de um doente para outro; problema da renovação, lavagem e
transporte da roupa de cama).
De modo positivo, é preciso organizá−lo em função
de uma estratégia terapêutica sistematizada: presença ininterrupta e privilégio
hierárquico dos médicos; sistema de observações, anotações e registros que
permita fixar o conhecimento dos diferentes casos, seguir sua evolução
particular e globalizar dados referentes a toda uma população e a longos períodos;
substituição dos regimes pouco diferenciados em que consistia,
tradicionalmente, o essencial dos cuidados por curas médicas e farmacêuticas
mais adequadas. O hospital tende a se tornar um elemento essencial na
tecnologia médica: não apenas um lugar onde se pode curar, mas um instrumento
que, em certo número de casos graves, permite curar.
É preciso, por conseguinte, que nele se articulem o saber médico e a
eficácia terapêutica. Surgem, no século XVIII, os hospitais especializados. Se
existiram, anteriormente, certos estabelecimentos reservados aos loucos e aos
"venéreos", foi mais por uma medida de exclusão ou receio dos perigos
do que em razão de uma especialização dos cuidados. O hospital
"unifuncional" só se organiza a partir do momento em que a
hospitalização se torna o suporte e, por vezes, a condição de uma ação
terapêutica mais ou menos complexa.
O Middlesex Hospital de Londres foi inaugurado
em 1745; ele se destinava a tratar a varíola e a praticar a vacinação. O London
Fever Hospital data de 1802 e o Royal Ophtalmic Hospital de
1804. A primeira Maternidade de Londres foi aberta em 1749. O Enfants
Malades, em Paris, foi fundado em 1802. Constitui−se, lentamente, uma rede
hospitalar em que a função terapêutica é bastante acentuada. Ela deve, por um
lado, cobrir com bastante continuidade o espaço urbano ou rural de cuja
população ela se encarrega e, por outro lado, se articular com o saber médico,
suas classificações e suas técnicas.
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Gravura do século XIX do Middlesex Hospital em Londres. |
Por último, o hospital deve servir de estrutura de apoio ao enquadramento
permanente da população pelo pessoal médico. Deve−se poder passar dos cuidados
a domicilio ao regime hospitalar por razões que são tanto econômicas quanto
médicas. Os médicos, da cidade ou do campo, deverão, com suas visitas, aliviar
os hospitais e evitar nestes o acúmulo; por outro lado, o hospital só deve
receber doentes através de parecer e requerimento dos médicos. Além disso, o
hospital, como lugar de acumulação e desenvolvimento do saber, deve permitir a
formação dos médicos que exercerão a medicina para a clientela privada.
O
ensino clínico em meio hospitalar, cujos primeiros rudimentos aparecem na Holanda
com Sylvius, depois com Boerhaave, em Viena, com Van Swieten, em Edimburgo
(pela união da Escola de Medicina e da Edinburgh Enfirmary), se torna,
no fim do século, o principio geral em torno do qual se tenta reorganizar os
estudos de medicina. O hospital, instrumento terapêutico para aqueles que o
habitam, contribui, pelo ensino clínico e pela boa qualidade dos conhecimentos médicos,
para a elevação do nível de saúde da população.
A reforma dos hospitais, mais particularmente os projetos de sua
reorganização arquitetônica, institucional, técnica, adquiriu importância, no
século XVI II, graças a este conjunto de problemas que articulam o espaço
urbano, a massa da população com suas características biológicas, a célula
familiar densa e o corpo dos indivíduos. E na história destas materialidades −
tanto políticas quanto
econômicas − que se inscreve a transformação física dos hospitais.
Referência Bibliográfica:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro,
Graal, 2010. (Capítulo XIII).
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