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Leandro Vilar

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Bagdá: a joia do Islão (VIII-XIII)

Fundada no século VIII a cidade de Bagdá foi projetada a partir do sonho de um califa que enxergou nas terras da antiga Mesopotâmia um local onde se ergueria uma bela cidade circular com bairros, palácios, mesquitas e jardins, a qual se tornaria a capital do império abássida. Bagdá nos séculos seguintes cresceu rapidamente por conta do comércio, tornando-se uma cidade cosmopolita, reunindo artistas, estudiosos, inventores, viajantes, mercadores, artesãos e centenas de milhares de pessoas. Por mais de trezentos anos Bagdá foi a mais próspera cidade do Oriente Médio e uma das mais populosas do mundo. 

O sonho de um califa

Antes da fundação de Bagdá, a região que compreendeu terras da antiga Mesopotâmia, não era um deserto estéril e totalmente desabitado. Naquelas terras existiam cidades persas, algumas em ruínas, outras habitadas. Além disso, devido a ser uma zona entre os rios Tigre e Eufrates, isso permitiu o desenvolvimento de sistemas de irrigação para plantações e pastos, existindo várias fazendas e vilarejos rurais por ali. O próprio local que Bagdá seria construída fica situado ao oeste do rio Tigre, na época uma zona seca, mas com boa disponibilidade de água. O território que hoje corresponde o Iraque, tinha sido conquistado pelos árabes ainda nas décadas de 640 e 650, o que significava que quando Bagdá foi fundada em 672, aquelas terras já estavam a mais de vinte anos sob controle árabe. 

Além dessas duas condições postas: a existência de cidades persas como Ctesifonte e Seleucia, a existência de fontes de água, que permitiram plantações e pastos, soma-se a tais condições que a localidade estava próxima de rotas comerciais que cruzavam a Pérsia, advindas da China e da Índia. Tais rotas eram caminhos para caravanas que seguiam em direção ao Império Bizantino, a Síria, a Arábia, a Israel e o Egito. Sendo assim, observa-se que a região escolhida era bastante propícia para abrigar uma nova cidade. (MAROZZI, 2014, p. 43). 

No entanto, a ideia de construir uma capital para o império islâmico adveio do califa Abu Jafar Abdalá ibn Mohammed Al-Mansur (714-775), o qual assumiu o reinado em 754 com 40 anos de idade. Os califas eram os líderes espirituais das nações islâmicas sendo os sucessores do profeta Maomé (ou Mohammed em árabe). Desde a morte de Mohammed em 632, os primeiros califas foram homens próximos ao profeta como parentes e amigos, depois disso uma série de outras famílias disputaram esse importante título, pois o califa concentrava o poder temporal e espiritual. Isso inclusive gerou guerra entre as famílias que disputavam a sucessão para se tornarem califas, levando a origem dos sunitas e xiitas. Mas isso é outra história.

Todavia, a partir do conflito pelo califado surgiu a Dinastia Omíada (661-750), a qual tornou Damasco (atual capital da Síria) como sede do califado. Por mais que o governo tivesse passado a ficar sob a guarda de uma dinastia, isso não impediu rixas entre clãs. Apesar de sua expansão territorial e prosperidade, o califado entrou em crise no século VIII, por conta disso, os Omíadas foram derrubados do poder pela Dinastia Abássida (750-1258) formada por famílias que defendiam parentesco com um dos tios de Mohammed. 

Al-Saffah ou Açafá (721-754) aos 28 anos liderou a revolta que derrubou os Omíadas, inaugurando uma nova dinastia. No entanto, o jovem califa não viveu o suficiente para reorganizar o império adquirido. Após quatro anos de governo ele adoeceu possivelmente de varíola e veio a morrer. Açafá nomeou seu irmão Al-Mansur ou Almançor como seu sucessor. O novo califa reorganizaria alguns aspectos do império islâmico e expenderia os seus domínios para o interior da Pérsia.

"Os novos domínios dos abássidas estendiam-se do rio Indo até as margens da Ifríquia, mais de 6.400 quilômetros para oeste, e das encostas das montanhas nevadas do Cáucaso até a cidade árabe de San'â, 3.200 quilômetros ao sul. Os abássidas redesenharam o mapa político do mundo islâmico, abandonando a antiga capital omíada de Damasco, na Síria, e construindo uma nova cidade imperial em Bagdá, no Iraque. Embora fossem de origem árabe, tinham absorvido muitas influências culturais dos seus vizinhos persas, e convidaram árabes não convertidos ao Islã, judeus, cristãos, zoroastristas e budistas a fazer parte da grande e complexa burocracia que governava o império". (AS TERRAS DO ISLÃ, 2008, p. 59). 

Uma cidade projetada

Embora Almançor tenha se tornado califa em 754, a fundação de Bagdá levou quase dez anos para ocorrer. O novo califa teve que tratar antes disso de assuntos urgentes como conter revoltas, caçar traidores, desbaratar conspirações, reorganizar a administração, as finanças e o exército. Com a queda dos Omíadas, algumas províncias se rebelaram e se tornaram seus próprios califados. Mas passados oito anos desde que subiu ao trono, Almançor tendo ordenado seu vasto império na medida do possível, o qual ia da Pérsia a Hispânia, o califa decidiu pôr seu sonho em prática, para isso ele convocou os melhores arquitetos, engenheiros e mestres de obra para poderem projetar e construir a nova capital. (LE STRANGE, 1800, p. 4-6). 

Em uma das cartas escritas pelo califa ele descreveu seu projeto da seguinte forma:

"Seguramente, esta ilha [de terra entre os rios], limitada a leste pelo Tigre e a oeste pelo Eufrates, provará ser a encruzilhada do universo. Navios no Tigre, vindo de Wasit, Basra, Obolla, Ahwaz, Fars, Omã, Yamama, Bahrein e países vizinhos, vão aportar e ancorar ali. É lá que a mercadoria vai chegar pelo Tigre vinda de Mosul, do Azerbaijão e da Armênia; que também será o destino dos produtos transportados por navio no Eufrates a partir de Rakka, na Síria, nas fronteiras da Ásia Menor, no Egito e no Magrebe. Esta cidade também estará na rota dos povos de Jebel, Isfahan e as províncias de Khorasan. Por Deus vou construir esta capital e viver nela toda a minha vida. Será a residência dos meus descendentes. Certamente será a mais próspera cidade do mundo". (MAROZZI, 2014, p. 44-45, tradução minha). 

Bagdá começou a ser construída em 762 a partir de um projeto circular, em que a cidade possuía quatro portões, cada um dirigido para um dos pontos colaterais (nordeste, noroeste, sudeste e sudoeste), sendo cercada por um anel de muralhas e um fosso com água. Dentro do primeiro anel de muralhas estavam quadras simétricas, no segundo anel se encontravam mais quadras simétricas, no terceiro anel ficava o centro da cidade com praças e jardins, o palácio e a grande mesquita ao centro. 

Reconstituição de como seria Bagdá nas primeiras décadas. 

Se desconhece quantos operários trabalharam na construção da cidade, no entanto, relatos islâmicos informam que 100 mil trabalhadores atuaram em suas obras as quais custaram 18 milhões de dirrãs. No entanto um relatório do governo sugere que o custo da cidade foi de 4 milhões de dirrãs. Ainda assim, são valores altíssimos, pois o dirrã era uma moeda de ouro. Além disso, grande parte das casas e lojas eram feitos de tijolos de adobe (massa feita de terra crua ou barro, água e fibras vegetais compactadas), material abundante na região e fácil de ser manufaturado. Além disso, o adobe tem qualidades térmicas eficazes para diminuir a sensação de calor nos interiores. Porém, ele é eficiente em climas secos. (DURI, 2007, p. 33). 

Inicialmente a cidade não era chamada de Bagdá, mas de Medina al-Salam que significa "Cidade da Paz", uma referência aos novos tempos pacíficos que o califa Almançor pretendia instaurar em seu império. Apesar do simbólico nome, o califa não era tolo, então mandou construir três cinturões de muralhas e o fosso, precavendo-se de possível retaliações de clãs inimigos ou a ameaça de outros invasores. Na prática, muitas cidades islâmicas costumavam serem muradas por conta da ameaça de saques e guerras. (SYPECK, 2006, p. 66). 

A palavra Bagdá é de origem persa e foi dada mais tardiamente, embora ela designasse uma localidade próxima a cidade. Sua tradução costuma ser entendida como "dado por Deus" ou "presente de Deus". No entanto, não se sabe quando ao certo ela substituiu o nome Medina al-Salam. (DURI, 2007, p. 30). 

Bagdá foi concluída nos anos seguintes e quando suas casas já não davam conta do aumento populacional, bairros externos surgiram, inicialmente sendo moradias para os camponeses e os mais pobres. Posteriormente bairros de mercadores e artesãos foram fundados, e até mesmo os ricos construíram palácios e casas de campo. O mapa a seguir mostra um pouco dos arredores da cidade até o século X. (DURI, 2007, p. 33). Os distritos foram sendo ampliados até o século XIII. Autores islâmicos chegaram a dizer que Bagdá teria possuído quase 1 milhão de habitantes. 

Mapa mostrando como era Bagdá e seus distrito entre os séculos VIII e X ou os anos 150 e 300 do calendário islâmico. 

Um viajante no século IX ficou deslumbrado com a cidade e escreveu o seguinte sobre ela: 

"Em todo o mundo, não houve uma cidade que pudesse se comparar com Bagdá em tamanho e esplendor, ou no número de estudiosos e grandes personalidades. A distinção entre os notáveis e a população em geral serve para distinguir Bagdá de outras cidades, assim como a vastidão de seus distritos, a extensão de suas fronteiras e o grande número de residências e palácios. Considere as numerosas estradas [darb], vias públicas [shari] e localidades, os mercados e ruas [sikkah], as ruas [aziqqah], mesquitas e casas de banho, e as estradas [tariq] e lojas - tudo isso distingue essa cidade de todas as outras, assim como o ar puro, a água doce e o frescor sombra. Não há lugar que seja tão temperado no verão e no inverno, e tão salubre na primavera e no outono". (SYPECK, 2006, p. 66, tradução minha). 


A arquitetura da cidade foi sendo melhorada e modificada com o tempo, mas ainda no início das obras, adotou-se um estilo que mesclava elementos árabes e persas. De fato, o reinado de Almançor adotou padrões persas, até mesmo gostos artísticos, modas e costumes. A tendência se devia, por um lado, a proximidade da família do califa com a cultura persa, de outro lado, era uma forma de se aproximar da nobreza persa a fim de ganhar seu apoio, algo tentado pelos omíadas.

No entanto, a forte influência persa na nova capital acabou trazendo problemas também. Alguns dos califas passaram a serem submissos a poderosas famílias persas, inclusive sendo manipulados e chantageadas por essas. Por outro lado, algumas regiões do antigo império persa mantiveram sua autonomia e não se submetiam totalmente ao califado. Enquanto os Omíadas conseguiram manter uma autoridade hegemônica, os Abássidas falharam em dar continuidade a isso, condição essa que outros califados e emirados surgiram nesse período. (ROBINSON, 2007, p. 24-25). 

O início da prosperidade

Com a morte de Almançor em 775, seu filho Mohammed ibn Al-Mansur Al-Mahdi (744-785) assumiu o reinado, tratando de continuar com as reformas político-administrativas, a aproximação com a nobreza persa, as obras em Bagdá, mas também teve que conter revoltas e tentativas de golpe de estado. Mas no caso da capital real, sob o reinado de Al-Mahdi ou Almadi, o novo califa adotou uma política de tolerância como feita com seu pai, permitindo assim que imigrantes se mudassem para a cidade. Com isso, cristãos, judeus, zoroastrianos e budistas passaram a dividir espaço com muçulmanos. Almadi também procurou se aproximar dos xiitas.

Por outro lado, o sucessor de Almadi seu filho Abu Abdulá Musa ibn Al-Mahdi Al-Hadi (764-786) não teve a mesma sorte que o pai e o avô, pois ele governou apenas um ano, durante novas tentativas de golpe, traições e complôs, o que o levou a trocar a capital para a cidade persa de Hadita, na tentativa infrutífera de escapar das conspirações palacianas. No entanto, Alhadi acabou sendo assassinado. Porém, se ele não teve tempo de poder governar de forma adequada, seu filho e sucessor teve essa oportunidade. 

O quinto califa abássida foi Harun ibn Al-Hadi Al-Rashid (786-809), o qual embora novo ainda, governou por mais de vinte anos. Sob seu reinado Bagdá alcançou nova fase de prosperidade. Não obstante, a fama de Al-Rashid cresceu com o tempo e hoje ele é lembrado como o "califa das Mil e Uma Noites" pela condição de que nesse livro de contos, algumas narrativas ocorrem durante o reinado de Al-Rashid ou citam seu governo ou pessoa. Uma das narrativas mais famosas são as viagens de Simbad, o marujo, as quais informam que o lendário marujo viveu durante o reinado de Al-Rashid. (BOBRICK, 2012, p. 91). 

O governo de Al-Rashid foi próspero até certo ponto, pois o califa conseguiu realizar acordos comerciais com os bizantinos, francos e até os chineses. Al-Rashid enviou embaixadas e preciosos presentes para a corte de Carlos Magno, incluindo um elefante, o primeiro registrado no Império Carolíngio. Para o imperador da China, ele enviou várias joias e outros artigos de luxo, o que surpreendeu o monarca. Por outro lado, o califa também disputou territórios com os bizantinos, mas viu sua autoridade se enfraquecer na Síria, no Egito e Marrocos. Por conta disso, ele trocou a capital de Bagdá, a transferindo para Raca, a fim de ficar mais próximo da Síria e do Império Bizantino para empreender seu controle. (BOBRICK, 2012, p. 44-46). 

O califa Harum Al-Rashid recebe a embaixada de Carlos Magno. Pintura de Julius Köckert, 1864. 

Durante os dez anos que viveu em Bagdá, antes de se mudar para Raca, Al-Rashid ordenou reformas na grande mesquita, em ruas, jardins, praças, além de ordenar obras para a construção de novos mercados, canais, estradas, casas de banho, armazéns, uma biblioteca e escolas (madraças). Seus sucessores conseguiram manter a prosperidade em Bagdá, embora que o império adentrou períodos de crise, condição essa que no século IX, houve novas revoltas e guerras, no entanto, a estabilidade retornou nos séculos X e XI, e com ela Bagdá seguiu crescendo, tornando-a uma cidade urbanisticamente mais organizada e desenvolvida do que as capitais europeias. 

“Naqueles dias de glória do esplendor ordenado de Bagdá, Londres e Paris eram ainda sujas e caóticas pequenas cidades compostas por um labirinto de ruas tortuosas e vielas repletas de casas de madeira ou de pau-a-pique caiadas de branco com lima. A maioria das habitações era precária e um quinto da população vivia e morria nas ruas. Não havia pavimentação real de qualquer tipo, e para drenagem apenas uma vala no meio da estrada. Essa vala geralmente estava entupida com lixo - incluindo a confusão de matadouros, bem como dejetos humanos - e no tempo úmido as ruas eram como pântanos, inundados em uma profundidade de lama. As trilhas ao longo das ruas principais eram marcadas por postes e correntes”. (BOBRICK, 2012, p. 72, tradução minha). 

Cidade cosmopolita

A partir do século IX Bagdá começou a se tornar uma cidade cosmopolita, recebendo viajantes da Ásia, África e as vezes da Europa. Durante o governo do califa Harum Al-Rashid ele ordenou a fundação de uma biblioteca chamada Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikmah), a qual também atuou como centro de traduções, em que renomados tradutores passaram a traduzir documentos persas e gregos para a língua árabe. 

Estudiosos numa biblioteca. Pintura de Yahyá al-Wasati, 1237. 

Mas durante o reinado do califa Al-Mamun (r. 813-833) a Casa da Sabedoria ampliou suas traduções. Além de se traduzir literatura e filosofia grega, passou-se a se traduzir obras de matemática, física, biologia, medicina, farmácia, astrologia, astronomia, história, geografia, teologia, direito etc. Iniciou-se também a tradução de obras em latim, sírio, hindi, chinês e outros idiomas. Os dois califas que sucederam Al-Mamun seguiram investindo alto no centro de traduções, além de aumentar o acervo da biblioteca, levando estudiosos de várias partes do império a viajarem à Bagdá para estudar. (BOBRICK, 2012, p. 207-208). 

"Também floresceu a vida intelectual. Os estudiosos de religião multiplicaram-se em todas as cidades de Samarcanda até a Península Ibérica, e o grande afã de conhecimento abrangeu a história, a literatura, a medicina e a matemática grega, que se desenvolveram até incluir a álgebra e a trigonometria; e a geografia, cuja variedade e âmbito revelavam a ampla visão da época". (ROBINSON, 2007, p. 23). 

No século XI Bagdá ganhou uma "universidade", algo que ainda não existia na Europa, a qual foi fundada pelos nezamitas, um grupo de estudiosos discípulos de Khwaja Nizam al-Mulk (1018-1092), o qual foi um importante estudioso e político, assumindo o cargo de vizir (primeiro-ministro). Nizam al-Mulk era um mecenas das letras, incentivando a fundação de bibliotecas e madraças. A madraça de Bagdá se tornou uma das mais importantes e renomadas do mundo islâmico, rivalizando apenas com a do Cairo. No entanto, sua importância era reconhecida em várias terras. Por exemplo, o famoso teólogo, jurista e filósofo Algazali (1058-1111) foi nomeado pelo vizir Nizam al-Mulk para lecionar na "universidade" de Bagdá, cargo que assumiu em 1092. (ROBINSON, 2007, p. 33).

Mas Bagdá não se destacou em seu cosmopolitismo apenas pela educação e a cultura, mas também pelos contatos políticos e comerciais. Harum Al-Rashid iniciou a retomada de negócios com os bizantinos e abriu caminho para os francos, embora esses não costumassem ir à Bagdá após o reinado de Carlos Magno, por outro lado, os contatos com os chineses deram mais certo, com isso, a Rota da Seda, uma das mais longas rotas comerciais do mundo, que operou ao longo de mais de mil anos por via terrestre e marítima, teve Bagdá como um de seus pontos de parada obrigatório ao longo de séculos. (BIBROCK, 2012, p. 210). 

Mapa da Rota da Seda e seus caminhos secundários. Bagdá era uma dos pontos de parada obrigatórios no Oriente Médio. 

A Rota da Seda leva esse nome por conta do comércio de seda, produto que os chineses dominavam a produção e bastante requisitado pelos ricos da Ásia, África e Europa. Mas além de seda, os mercadores também vendiam especiarias, joias, minérios, escravos, tecidos, livros, objetos de luxo, chá, cerâmica, tinturas, óleos aromatizantes etc. Por conta de Bagdá estar no caminho desse importante fluxo de mercadores e mercadorias, a cidade recebia gente de diversas nacionalidades e etnias. 

No século IX também se destaca a iniciativa do califa Al-Muqtadir (r. 908-932) enviou algumas embaixadas para negociar com povos da Ásia Central e da Europa oriental. Uma das embaixadas ocorreu entre 921 e 922 e foi presidida por Ahmed ibn Fadlan (879-960), o qual registrou sua viagem. Sua obra foi publicada séculos depois, possuindo tradução para o português. Em sua viagem ibn Fadlan conheceu povos turcos, cazares, eslavos e até mesmo nórdicos, sendo famoso seu relato sobre um "funeral viking". Ibn Fadlan viajou por territórios que hoje compreendem o Uzbequistão, Turquestão, Cazaquistão, Rússia, Ucrânia e Armênia. (IBN FADLAN, 2018). 

Bagdá durante seus séculos e esplendor reuniu não apenas viajantes que estavam de passagem, mercadores ou estudiosos, mas foi o local escolhido para se viver e trabalhar. A Cidade da Paz foi por várias décadas contínuas um local acolhedor a ponto de existirem comunidades judias e cristãs ali, com direito de fundarem suas sinagogas e igrejas. Dessa forma, as três religiões abraâmicas conviviam juntas. 

"Em Bagdá, havia bairros étnicos onde minorias – gregos, indianos, chineses, armênios e assim por diante — tendiam a se unir. Judeus e cristãos também tinham seus próprios subúrbios, embora a maioria dos judeus de Bagdá foi assimilado pela comunidade árabe e considerando o árabe sua língua nativa". (BOBRICK, 2012, p. 78, tradução minha). 

A fúria mongol

Bagdá viveu seu auge entre os séculos VIII e XIII, tendo passado por crises e guerras que chegaram até suas altas muralhas, no entanto, os bagalis não imaginavam que um furioso inimigo que conquistava a Ásia, seria um adversário o qual eles não teriam chance de vencer. 

Em 1206 o poderoso chefe Genghis Khan foi proclamado imperador dos mongóis e deu início as suas campanhas, fundando um vasto império a base de sangue, massacres e terror. Seus filhos e netos deram continuidade ao império que se estendia da China a Europa oriental. Mais de cinquenta anos depois do início do império mongol, um dos netos de Genghis chamado Hulagu Khan (1217-1265), decidiu fundar seu próprio império, assim como seus irmãos estavam fazendo. Com isso, Hulagu tornou a cidade de Tabriz na Armênia sua capital e de lá iniciou suas campanhas. Em 1256 ele conquistou a Pérsia, mas faltava a coroa ser conseguida, no caso, Bagdá. 

A imponente cidade murada seria difícil de ser invadida devido as suas altas muralhas e o fosso. Por conta disso, Hulagu optou por um cerco. Ele tomou as fazendas, pastos e celeiros para si, dominou os subúrbios da cidade, colocou tropas para vigiar as estradas, fortificou seus acampamentos, ordenou que canais que abasteciam a cidade fossem bloqueados, mandou construir catapultas para demolir as muralhas, então aguardou. O cerco teve início em 29 de janeiro de 1258 e terminou em 10 de fevereiro do mesmo ano. (DUDI, 2008, p. 40). 

Pintura persa representando o cerco mongol a Bagdá em 1258. 

Sem recursos para poder manter-se na defesa, o califa Al-Mustasim decidiu negociar a rendição. Mas essa não foi uma medida sábia. Hulagu permitiu que seu exército massacrasse a população e saqueasse a cidade. Estimativas dadas por autores do período falavam em centenas de milhares de mortos. Algumas cifras chegavam a 800 mil ou 2 milhões de pessoas, números exagerados já que a cidade não abrigava tanta gente assim. No entanto, é fato que Bagdá foi incendiada, condição essa que Hulagu Khan ordenou a reconstrução de parte dela. (DURI, 2007, p. 40). 

O califa e sua família foram executados. Segundo os relatos da época, Al-Mustasim foi enrolado num tapete e pisoteado pelos cavaleiros mongóis, a fim de não derramar seu sangue real no chão. Outra versão diz que Hulagu mandou trancar o califa na câmara do tesouro, deixando morrer de fome e sede, tendo dito para ele comer seu tesouro. 

Pintura francesa do século XV mostrando Hulagu Khan trancando o califa Al-Mustasim em sua câmara do tesouro. 

"Em 1260 a maior parte do mundo muçulmano - à exceção e Egito, Arábia e Síria e demais países do oeste - reconheceu a supremacia dos mongóis pagãos. Aliás, estas mesmas áreas sobreviveram ao golpe mongol mais por capricho da sorte do que por outro razão, por somente a morte do grande cã (khan) Mongke, em 1259, fez que Hulagu voltasse seus olhos para o leste". (ROBINSON, 2007, p. 26).

Embora Hulagu Khan tenha interrompido suas campanhas de conquista do Oriente Médio e se dirigido a Mongólia para disputar com seu irmão Kublai o título de grande khan, os exércitos mongóis ainda continuaram a lutar em algumas áreas do Oriente Médio, levando destruição e terror. A conquista de Bagdá em 1258 foi tão significativa para o rumo do mundo islâmico que ela pôs fim ao Califado Abássida e o fim a chamada Era de Ouro do Islão. Além disso, o acervo bibliotecário que foi destruído durante o saque da cidade é de uma perda imensurável como foi o incêndio da Biblioteca de Alexandria. Muitas obras raras e únicas somente existiam ali e se perderam para sempre. 

Considerações finais

Após conquista em 1258 Bagdá entrou num declínio virtuoso do qual nunca mais se recuperou. Os persas da Dinastia Safavida tentaram recuperar a cidade nos séculos XIV e XV, mas não conseguiram retomar o esplendor e prosperidade de antes. No ano de 1401 o imperador Tamerlão invadiu e saqueou Bagdá, arruinando-a mais uma vez. Embora essa segunda invasão tenha tido efeitos colaterais menores do que a invasão mongol, ainda assim, comprometeu a recuperação da cidade. Os turcos da Dinastia Otomana assumiram o controle de Bagdá no XVI, mantendo sob seu jugo até o século XX. (DURI, 2007, p. 41). 

Os otomanos tentaram revigorar Bagdá, mas outras cidades como Isfahan, Samarcanda, Damasco, Cairo e Istambul eram os centros cosmopolitas do império otomano. Condição essa que a cidade nunca recuperou sua importância econômica, política e cultural. E durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) Bagdá foi ocupada pelo Exército Britânico e depois liberada em 1920, tornando-se capital do Iraque, função que conserva até hoje. Bagdá voltou a crescer no século XX tornando-se uma metrópole, mas sem as características que a fizeram ter destaque em sua época dourada. 

Por mais de trezentos anos Bagdá, a cidade da paz, o presente de Deus, representou o sonho do califa Almançor de criar uma cidade próspera, pacífica, bela e culta. 

NOTA: No passado uma madraça consistia numa escola laica ou religiosa, que oferecia educação para jovens e adultos. Algumas madraças eram equivalentes as escolas de hoje, mas outras se assemelhavam a universidades como o caso das grandes madraças de Bagdá e do Cairo. Atualmente a palavra madraça é mais usada para se referir a uma escola religiosa de estudo do Corão. 

NOTA 2: Bagdá após a invasão mongol de 1258 ficou reduzida a poucos milhares de habitantes, sendo que ela chegou a ter centenas de milhares moradores. E essa tendência se estendeu até o século XX, fato esse que registros do XIX apontam uma população entre 40 a 80 mil habitantes. Atualmente a cidade tem mais de 7 milhões de habitantes, sendo a maior do Iraque. 

Referências bibliográficas

BOBRICK, Benson. The Caliph's Splendor: Islam and the West in the Golden Age of Baghdad. New York, Simon & Schuster, 2012. 

DURI, A. A. Baghdad. In: BOSWORTH, C. Edmund (ed). Historic cities of the Islamic World. Leiden, Brill, 2007. 

LE STRANGE, Guy. Baghdad during The Abassid Caliphate. Oxford, Clarendon Press, 1800. 

MAROZZI, Justin. Baghdad: City of Peace, City of Blood. Boston, Da Capo Press, 2014. 

ROBINSON, Francis. O mundo islâmico: o esplendor de uma fé. Barcelana, Ediciones Folio, 2007. 

SYPECK, Jeff. Becoming Charlesmagne: Europe, Baghdad, and the empires of A.D 800. London, Harper Collins, 2006. 

AS TERRAS do Islã. Barcelona, Ediciones Folio, 2008.

Links relacionados: 

A expansão islâmica: VII-XII

Os mongóis

Tamerlão, o "homem de ferro"

domingo, 10 de julho de 2022

O que foram os xogunatos?

O xogunato consistiu num regime político-militar exclusivo da história e cultura japonesa, que esteve operante durante a época medieval, moderna e contemporânea do país, atuando dos séculos XIII ao XIX. Mas além de estabelecer o controle político-militar nas mãos do xogum e regentes, o xogunato também influenciou a divisão social, a economia e a cultura. O presente texto apresentou aspectos centrais desse sistema político que possuiu características monárquicas e feudais. 

Origem do termo xogum

A palavra xogum antecede a ideia de xogunato, a palavra já era usada anteriormente para se referir a um "comandante do exército", ou seja, um general. Todavia, xogum não era sinônimo de general, ele consistia numa abreviação do termo Seii Taishogun, que significava "Grande General Apaziguador dos Bárbaros"

A palavra xogum já era usada na Idade Média japonesa, sendo aplicada no Período Nara (710-794) e no Período Heian (794-1185), época em que a nobreza ainda detinha autoridade no país, entretanto, o Japão não estava totalmente unificado sob o comando dos imperadores; a região norte do país era povoada pelo povo Emishi ou Ebisu, os quais não se submetiam ao controle imperial, possuindo seus próprios líderes, dialetos e costumes. Por conta disso, os imperadores do Período Heian designaram alguns generais que receberam o título de xogum para conquistar os Emishi, considerados um "povo bárbaro". (YAMASHIRO, 1964). 

Um dos notáveis xoguns foi Sakanoue no Tamuramaro (759-811), designado a combater os emishi nas províncias de Mutsu e Dewa. Depois dele outros xoguns para o mesmo fim foram eleitos. Sublinha-se que o título de xogum era dado a alguns generais por fatores específicos, sobretudo em períodos de guerra, rebelião ou incumbido para alguma missão de conquista. Por conta disso existem variações do termo Seii Taishogun, designando a região ou função que o xogum estava cumprindo. (SANSOM, 1958). 

Sakanoue no Tamuramaro, um dos xoguns do Período Heian, o qual empreendeu campanhas contra os "bárbaros do Norte".  

As Guerras Genpei (1180-1185) e a origem do xogunato

Nas últimas décadas do Período Heian, quatro grandes clãs: Taira (Heishi), Minamoto (Guenji), Fujiwara e Tachibana dominavam a política do país. Tais clãs reversavam entre si a escolha de cargos importantes, fomentavam alianças, casamentos, conspirações, como também tratavam de determinar qual membro de suas famílias seria o próximo imperador, forjando casamentos para gerarem herdeiros. No caso, os Taira e Fujiwara por décadas foram os clãs mais poderosos, delegando os candidatos ao trono imperial. 

No ano de 1180 o imperador Takakura (1161-1181) foi forçado a abdicar do trono para delegar seu filho Antoku (1178-1185) como novo monarca, o motivo se devia que Takakura era casado com uma Taira, logo, o clã Taira havia realizado uma manobra para usurpar o poder imperial, colocando uma criança de sua família para ser o novo imperador do Japão. Por se tratar de uma criança de menos de três anos, os Taira atuariam como regentes do jovem monarca até sua maioridade e mesmo depois de adulto, ele ainda seria manipulado pela família. No entanto, o clã Minamoto foi contra a abdicação sem sentido de Takakura, e com isso eles foram considerados traidores, iniciando uma guerra. (SANSOM, 1958). 

O imperador Antoku foi o pivô da guerra entre os Taira e os Minamoto.

Minamoto no Yoritomo (1147-1199) e seu primo Minamoto no Yorimasa (1106-1180) foram os responsáveis por liderar seu clã contra os Taira e a disputa pelo trono imperial, iniciando uma guerra que durou cinco anos. Em 1183 a capital Quioto foi invadida, forçando os Taira a escaparem com Antoku. Por esse período Minamoto no Yoshinaka (1154-1184) foi nomeado xogum por conta da guerra, a fim de colocar fim ao conflito.

Com a fuga de Antoku, os Minamoto decidiram agir e recorreram ao imperador aposentado Go-Shirakawa (1127-1192), na época ele vivia como monge, para reconhecer seu neto Go-Toba (1180-1239) como herdeiro legítimo. Isso gerou um novo impasse, pois tanto Antoku quanto seu irmão Go-Toba, eram apenas crianças num joguete de poder entre os Taira e os Minamoto. 

O jovem imperador Antoku acabou sendo assassinado ou teria cometido suicídio (há divergências na história) em 1185, com isso, seu irmão Go-Toba era legalmente o imperador, mesmo sendo um garoto de cinco anos, mas o que importava era que ele estava sob tutela dos Minamoto e contava com o apoio formal de seu avô, que embora não detivesse autoridade política, mas possuía influência política. Dessa forma, os Minamoto passaram a controlar a realeza valendo-se da tutela do jovem imperador, mas a situação mudou em 1192, quando Go-Shirakawa faleceu, neste momento Yoritomo decidiu agir. (YAMASHIRO, 1964). 

Com a morte do imperador aposentado, o qual apoiava os Minamoto, e a condição de que o atual monarca era uma adolescente sob seu controle, Yoritomo decidiu que era hora de ele governar o país. Em 1192 ele adotou o título de xogum e mudou a capital de Quioto para Kamakura, instituindo um governo militar chamado de bakufu (governo da tenda), cujo termo foi traduzido como xogunato. 

Minamoto no Yoritomo, o fundador do primeiro xogunato. 

Épocas dos xogunatos

Na história japonesa existiram três xogunatos, os quais se sucederam ao longo de sete séculos. A seguir uma listagem cronológica deles e do período turbulento chamado de Sengoku jidaii (1467-1573), referente as guerras feudais, o qual consistiu numa época em que o poder dos xoguns estava fragilizado, abrindo margem para que daimiôs se rebelassem, iniciando revoltas e guerras para conquistar territórios e desafiar a autoridade do xogum. Esse período se estendeu por mais de trinta anos ainda. 

  • Xogunato Kamakura (1192-1333) com sede em Kamamura, dominado pelos clãs Minamoto e Hojo. 
  • Restauração Kemmu (1333-1336) marcou a tentativa do imperador Go-Daigo em recuperar a autoridade imperial no país. 
  • Xogunato Ashikaga ou Muromachi (1336-1573) com sede em Quioto, dominado pelo clã Ashikaga. 
  • Período Sengoku (1467-1573) época marcada pelo enfraquecimento do xogunato, levando o país a uma guerra civil ferrenha. 
  • Período Azuchi-Momoyama (1573-1603) marcado pelas campanhas de Oda NobunagaToyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu para reunificar e pacificar o país. 
  • Xogunato Tokugawa ou Edo (1603-1868) com sede em Edo (atual Tóquio), dominado pelo clã Tokugawa. 
  • Restauração Meiji (1868-1912), governo imperial que pôs fim a era dos xoguns. 
Sublinha-se que as guerras feudais do período Sengoku não se findaram em 1573, mas continuaram até 1603 quando houve a instituição do terceiro xogunato, promovido pelos Tokugawa. Além disso, é preciso destacar que embora Nobunaga e Hideyoshi tenham recusado a aceitar o título de xogum, na prática eles governaram como xoguns extraoficialmente. Nobunaga recebeu o título de ministro e Hideyoshi se tornou regente. Não obstante, a autoridade política e militar que eles possuíam diante da corte e de vários outros daimiôs, principalmente Hideyoshi, era claramente a autoridade de um xogum. Porém, como eles não adotaram tais títulos e não estabeleceram xogunatos, o período de seus governos não é considerado um xogunato, mas um período de transição político-militar. 

Salienta-se que embora houve um interregno de 1467 a 1603, em que o xogunato esteve enfraquecido, vindo a ser dissolvido em 1573, no entanto, a organização político, militar, econômica e social do xogunato foi mantida nesses dois períodos de guerras feudais. 

Característica político-administrativa

Feita a introdução histórica sobre o conceito de xogum e os fatores que levaram ao surgimento do xogunato, agora comentarei sobre sua organização política. Durante o governo de Yoritomo que foi de 1192-1199, ainda havia instabilidade no país, pois os Taira e seus aliados mesmo tendo sido derrotados em 1185, ainda buscavam por vingança, além disso, o novo xogum também não era bem visto pela monarquia e outros clãs fiéis ao imperador, logo, Yoritomo teve que conquistar autoridade e respeito, e para isso, ele mexeu na organização administrativa do império. 

Anteriormente a administração era realizada pelos kugues (membros da corte), delegados pelo imperador e ministros para cuidar da administração imperial, por sua vez, havia funcionários responsáveis pelas províncias, cidades e vilas. Yoritomo mexeu nessa organização, retirando dos kugues o controle administrativo e criando três novos departamentos: 

  • Mandakoro: departamento responsável pela administração e as finanças;
  • Samurai-dokoro: departamento responsável pela segurança, defesa e ordem, além de fiscalizar os samurais;
  • Monchu-jo: departamento de justiça. 
Com a criação dos novos departamentos, Yoritomo retirou dos kugues tais funções e as incumbiu aos samurais esses cargos e funções. É preciso salientar que os samurais não eram apenas guerreiros, mas também gestores, governantes e funcionários públicos do xogunato. Um dos êxitos da política de Yoritomo foi valer-se do código de honra dos samurais para fomentar a lealdade ao xogunato e não a corte, dessa forma, desenvolveu-se uma cultura política pautada na submissão hierárquica, na lealdade, na honra, no dever e na disciplina militar. Com isso, os samurais passaram a cuidar da administração do país, além de atuar na segurança e nos tribunais. (YAMASHIRO, 1964). 

Minamoto no Yoritomo também criou outros dois cargos o comissário militar (shugo) e o comissário da terra (jito). O shugo equivaleria ao delegado de polícia ou xerife, sendo responsável pela segurança e a ordem, já o jito, inicialmente ele era o cobrador de impostos e o fiscal tributário, com o tempo passou a ser também um cargo de governo, equivalendo a um governador ou prefeito. Com esses dois novos cargos, Yoritomo nomeou gente de confiança ou que lhe devia favores, para assim, manter seu pessoal espalhado pelas províncias, até porque alguns cargos ainda eram ocupados por gente da aristocracia e da corte. (YAMASHIRO, 1964). 

"Politicamente, a criação dos cargos de "shugo" e "jitô" teve grande importância, porque visou, principalmente, controlar o poder e a influência dos governadores das províncias ("kunitsukasa"), pertencentes à corrente dos nobres ("kugue"), em particular dos Heishi. Yoritomo controlou também a posse das terras, que ainda constituíam as principais fontes de renda e avocou a si o direito da tributação. Estas medidas tiveram, naturalmente, íntima relação com o subseqüente desenvolvimento do novo regime, que, na prática, arrebatou os poderes temporais da coroa". (YAMSHIRO, 1964, p. 65). 

Com a morte de Yoritomo em 1199, ele deixou dois herdeiros: Minamoto no Yoriie (1182-1204) com 18 anos na época e Minamoto no Sanetomo (1192-1219) com sete anos. No caso, sublinha-se que Yoritomo tentou tornar o título de xogum algo hereditário como na monarquia. De fato, tal prática foi adotada pelos Ashikaga e os Tokugawa. Mas no caso do bakufu de Kamakura, surgiu o cargo de regente (shiken). Em 1202, Yoriie que herdara o título de xogum por hereditariedade, adoeceu gravemente, estando incapaz de exercer suas funções, com isso, seu avô Hojo Tokimasa (1138-1215) se tornou seu regente temporário, no entanto, Yoriie faleceu em 1204, sendo sucedido por seu irmão Sanetomo, uma criança, por conta disso, os Hojo passaram a tutelar o jovem xogum, mesmo Tokimasa tendo renunciado ao cargo. (HENSHALL, 2004). 

Hojo Tokimasa instituiu o cargo de regente no Xogunato Kamakura. 

A questão da regência criada pelo clã Hojo assegurou que a família controlasse o xogunato até seu fim, pois com a morte do xogum Sanetomo, o qual não deixou herdeiros, foi escolhido um parente da família de nome Kujo Yoritsune (1218-1244), que deu início a época dos "xoguns fantoches", pois na prática eles não possuíam a autoridade real, pois que mandava no xogunato eram seus regentes, sendo esses, membros do clã Hojo. E isso foi tão marcante que dos nove xoguns de Kamakura, cinco eram príncipes, como meio dos Hojo de conquistar alianças e prestígio com a nobreza. Bem dizer, o título de xogum tornou-se algo honorífico durante esse período nomeado de Shiken Seiiji (governo dos regentes), que foi de 1226 a 1333. (YAMASHIRO, 1964).

No ano de 1232 o regente Hojo Yasutoki instituiu um código legal para o xogunato, criando o Goseibai Shikimoku (Formulário de Adjudicações) ou Joei Shikimoku, formado por 51 artigos originais e mais 13 complementares. Antes desse formulário, não havia uma lei fixa que determinasse os crimes, penas, procedimentos, direitos e as normas de como os tribunais e a administração funcionaria. Algumas ideias do Goseibai Shikimoku foram adotadas pelo Xogunato Ashikaga. (YAMASHIRO, 1964).

Uma cópia do século XVII do Goseibai Shikimoku.

Quanto ao tribunal Muncho-jo ele ganhou novas repartições, como o Hikitsuke (inquérito) que originou a Suprema Corte (Hikitsuke-kata), surgido em 1249 com o regente Hojo Tokiyori, para poder atender a demanda de processos judiciais. Sendo assim, o Muncho-jo ficou responsável pela aplicação da lei, enquanto o Hikitsuke passou a ser o tribunal que julgava os processos. Com os anos as funções do Hikitsuke e do Hyojoshu foram se alterando, além de ganhar novas varas, para tratar de assuntos da vassalagem e depois de outros segmentos da população. (SANSOM, 1958). 

Durante o Xogunato Ashikaga a administração pública voltou a ser compartilhada com os kugues, como uma forma de aproximar os xoguns da nobreza e evitar novas rebeliões contra o xogunato. Além disso, a sede do novo xogunato foi estabelecida na Rua Muromachi, em Quioto, a capital imperial, o que significava que o xogum e o imperador viviam na mesma cidade, e isso facilitava os acordos e alianças entre ambos, embora que nem sempre tais acordos davam certo, a ponto que houve uma ruptura na corte que durou 56 anos, revelando a fragilidade dessas alianças.

A divisão dos departamentos foi refeita durante esse xogunato, criando o Kanrei, um departamento auxiliar do xogum, ocupado por um "deputado" chamado Shitsuji. Após 1337 foram criados o Kanrei de Quioto e o Kanrei de Kanto, o que representava uma descentralização burocrática, em que o xogum passava a ter dois secretários-gerais para auxilia-lo. No entanto, anos depois os dois Kanrei ganharam algumas secretárias para ajudar na administração. Outro departamento criado pelos Ashikaga foi o Hyojoshu, equivalente ao Conselho de Estado, o qual deliberava assuntos burocráticos, judiciais e legais. Além desses dois departamentos, os outros três que existiam no xogunato Kamakura, foram mantidos. (HENSHALL, 2004). 

No âmbito da administração local, o xogunato Ashikaga fez algumas reformulações também. Ele instituiu o Kamakura kubo, renomeado para Kanto kubo, que consistia no cargo de "vice-xogum", responsável pela administração de Kanto; reformulou os tandai (posto de segurança), os quais eram responsáveis pelo policiamento e a justiça local. Para isso, se criou os tandai de Kyushu, Oshu e Ushu. (HENSHALL, 2004). 

Estrutura administrativa do Xogunato Ashikaga (1336-1573).

É preciso salientar que no século XV a estrutura dos shoen foi reformulada, concedendo novamente mais autonomia aos daimiôs (procedentes da nobreza e da aristocracia) como eles possuíam no Período Heian, e isso se tornou um problema para a administração geral, pois alguns daimiôs que não simpatizavam com os Ashikaga, passaram a não obedecer suas ordens, e isso foi um dos fatores para as guerras feudais, marcadas pela insurgência dos daimiôs contra o governo do xogum. 

Foi também com os Ashikaga que o comércio sofreu reformulações, embora que socialmente a classe mercantil fosse vista como plebe, nem todo mundo pensava dessa forma. O governo fez alguns incentivos ao comércio como a construção de portos, estradas, alterações monetárias como a adoção da moeda chinesa eiraku-sen, e de outras moedas para expressar valores distintos. O uso regular de moedas foi ampliado nos séculos seguintes, pois anteriormente seu emprego era escasso. Assim surgiram lojas, feiras, mercados públicos, casas de câmbio, atacadistas etc. Os artesãos e comerciantes criaram guildas (za), as quais detinham contratos de monopólio em determinadas vilas, templos e feudos. Alguns daimiôs para outorgarem o privilégio de monopólio exigiam parte dos lucros da guilda. (YAMASHIRO, 1964). 

O xogunato Ashikaga também ampliou o comércio marítimo com os coreanos e chineses, intensificando no século XIV e XV a exportação de produtos como espadas, minério de cobre e ferro, etc. em troca se importava seda, frutas, cereais, pinturas, papel, madeira, artigos de luxo, etc. (YAMASHIRO, 1964). 

Na segunda metade do século XVI, já com o declínio do xogunato, os europeus passaram a frequentar o Japão, alguns daimiôs, sobretudo do sul do país, passaram a fechar acordos comerciais com os portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses. O comércio com os europeus floresceu entre 1570 e 1615, em que se comprava armas de fogo, livros, joias, especiarias, objetos de decoração e outros produtos. Nesse período estradas foram reconstruídas, pois tinham sido destruídas na época das guerras; além disso, Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi aboliram as guildas (za) de artesãos e comerciantes, instituindo livre comércio, principalmente com os estrangeiros, política que não agradou a todos. (YAMASHIRO, 1964). 

Comerciantes portugueses num porto japonês. Detalhe de uma pintura do século XVII. 

Na época do Xogunato Tokugawa (1603-1868) a administração foi reformulada, adotando-se alguns elementos do Xogunato Kamamura e Ashikaga, mas instituindo outro modelo de organização do poder executivo e judiciário. Assim, teve-se a criação do Conselho de Estado (Roju) formado por cinco conselheiros (rofu) ou anciãos (toshiyori), podendo ser presidido por um alto conselheiro (tairo). As funções do Roju variaram com o tempo mas englobavam manter relação com a corte, realizar obras públicas, fiscalizar os daimiôs mais ricos, supervisionar templos, providenciar a cunhagem de moedas, tratar de assuntos administrativos gerais etc. (SANSOM, 1963). 

O Roju por décadas ajudou a desafogar o excesso de obrigações sobre os xoguns, embora alguns xoguns chegaram a reduzir a autoridade e funções do Roju. Por outro lado, foi instituído o Conselho Menor (Wakadoshi), o qual era responsável por fiscalizar assuntos referentes a segurança do xogum. Os membros desse conselho variavam de três a nove homens, sendo escolhidos entre as famílias vassalas dos Tokugawa. O membros desse conselho deveriam fiscalizar os hatamotos (guarda do xogum), os artesãos e médicos, o pagamento de impostos pelas famílias vassalas e assuntos pertinentes das grandes cidades. (SANSOM, 1963).

Outra mudança feita foi a reformulação do cargo de bugyo (comissário, intendente, magistrado), criando novas funções e alterando outras existentes. Assim tínhamos o Jisha-bugyo que fiscalizava os templos e santuários, Kanio-bugyo que cuidava de assuntos financeiros, o Yedo-machi bugyo que atuava como prefeito de Edo (atual Tóquio), entre outras funções, pois os bugyo exerciam funções de fiscalização, supervisão e governo. Os tribunais do Hikitsuke, do Hyojoshu e outros foram mantidos também. (SANSOM, 1963). 

Entretanto, os Tokugawa criaram um cargo específico para a espionagem e o monitoramento de possíveis inimigos e revoltas. Tratava-se dos superintendentes (metsuke), os quais eram dirigidos pelo superintendente-mor (ometsuke). Os metsuke não seriam espiões propriamente, mas censores autorizados a fiscalizarem assuntos pertinentes a segurança pública e aos interesses do xogum e sua família. Tais homens fiscalizavam funcionários públicos, a aristocracia, a nobreza, os samurais e qualquer um que fosse considerado suspeito. (SANSOM, 1963).

É preciso salientar que a instituição desses censores se deveu como medida de segurança do xogunato para evitar rebeliões e tentativas de golpe de estado, por conta disso, o poder dos daimiôs que havia crescido durante o Xogunato Ashikaga, passou a ser controlado para evitar uma nova guerra feudal. No entanto, isso também abriu margens para que os Tokugawa agissem com autoritarismo e opressão, e uma das medidas para isso foi a prática do Sankin-kotai (serviço rotativo). 

O Sankin-kotai foi instituído em 1635 pelo xogum Tokugawa Iemtsu (1604-1651) como forma de controlar os daimiôs, pois o decreto ordenava que todos os daimiôs deveriam residir um ano na capital Edo, e no ano seguinte voltavam para seu feudo (han), e depois retornavam novamente para Edo, e assim por diante. Todavia, havia casos em que a família do daimiô não retornava com ele para o feudo, permanecendo na capital. Isso era uma forma de controle do xogum contra alguma possível revolta ou traição, pois caso um daimiô se rebelasse, sua família estaria a mercê do xogum que vivia na capital. (YAMASHIRO, 1964). 

Procissão dos daimiôs no castelo de Edo. Todas as vezes que os daimiôs chegavam ou deixavam a capital, tinham que fazer tais desfiles. Pintura datada de 1847. 

Os Tokugawa também reorganizaram a divisão da terra, instituindo o sistema do han com base no kokudaka (produção de arroz), algo que comentei adiante. Além disso, o governo instituiu que as vilas e cidades não seriam geridas por daimiôs como foi no passado. Nas cidades havia um prefeito (machi-bugyo), nas vilas existia um chefe (shoya) responsável por governar a vila. O shoya era atendido por pessoas de confiança, mas também por funcionários (bugyo) designados para atividades específicas. (YAMASHIRO, 1964). 

Outro aspecto da política-administrativa dos Tokugawa foi o isolamento do país, a chamada política do Sakoku ("país fechado"). A ideia para o Sakoku antecede o xogunato Tokugawa, tendo sido iniciada durante o governo de Toyotomi Hideyoshi nas décadas de 1580 e 1590, em que o daimiô instituiu restrições aos missionários europeus, tentou banir o cristianismo, além de restringir o acesso de navios estrangeiros aos portos japoneses. Entretanto, os decretos e éditos baixados por Toyotomi nunca foram aplicados de forma efetiva, condição essa que os europeus seguiram frequentando regularmente o Japão até a década de 1640.

Em 1615 foi decretado novamente a proibição do cristianismo no país, pois essa religião era considerada uma ameaça a cultura e estilo de vida japonês. Além disso, proibiu-se a entrada de missionários, a manutenção de missões e a abertura de igrejas. Em 1625 o comércio com os europeus foi novamente restringido a algumas cidades como Nagasaki e Hiroshima. Por outro lado o governo criou uma autorização para que japoneses pudessem comercializar nos portos estrangeiros, os navios autorizados pelo shuinjô era chamados de shuin-sen ou navios do selo vermelho. (HANSHALL, 2004). 

Um navio de selo vermelho datado de 1634. A embarcação seguia o modelo do junco chinês, mas apresentava velas chinesas e velas latinas. Ele também possuía canhões. 

No ano de 1639 o xogum Tokugawa Iemtsu decretou o Édito de Isolamento, proibindo a presença de europeus, exceto dos holandeses, no país. Dessa forma, nenhum europeu que não fosse holandês, poderia entrar no Japão, tampouco permanecer ou residir no país. Os portugueses, espanhóis, ingleses e outros europeus que estavam ali foram forçados a deixaram o Japão, sob ameaça de serem presos ou mortos se não fizessem isso. Os japoneses de origem mestiça foram banidos também, sendo enviados para as Filipinas, Macau ou Índia. (SANSOM, 1963). 

Os holandeses ainda mantiveram sua licença de frequentar o país regularmente até 1671, mas estando restritos a desembarcar e comercializar em Dejima, um distrito portuário de Nagasaki. Depois de 1671 o número de navios holandeses que podiam aportar em Dejima foi sendo reduzido até dois por ano em 1799. No começo do XIX, os holandeses estiveram sem retornar ao Japão, somente voltando a fazer isso em 1812. Apesar dos holandeses terem sido os únicos europeus autorizados a frequentar o país, eles somente podiam fazer isso para fins comerciais que atendiam os interesses do xogunato. Qualquer outra atividade de ordem política, científica, artística, missionária etc. estava proibida. Inclusive o contato dos holandeses foram de Dejima era vetado sem autorização. (SANSOM, 1963). 

Dessa forma, o xogunato cortou relações com as nações europeias - exceto a Holanda -, e restringiu o acesso dos chineses e coreanos ao país. Isso acabou por afetar acordos diplomáticos, contatos culturais e o comércio, que seguia restrito pela autorização do shuinjô, além de ter caído drasticamente no quesito de exportação e importação, o que levou o comércio a voltar a ficar limitado a produção e consumo internos. A política isolacionista do Sokaku permaneceu até a segunda metade do século XIX.  

A divisão social

Com o advento do xogunato a pirâmide social japonesa sofreu alterações, recebendo novas classes, essas oriundas dos militares. Ainda no Período Heian a nobreza se encontrava no topo da pirâmide, sendo seguida pela aristocracia, depois disso vinha o restante da população, e na base estavam os escravos e criminosos. Com o tempo as classes foram sendo renomeadas e alteradas, mas durante o Xogunato Kamakura a pirâmide social se destacou pela ascensão dos samurais como uma classe militar.

Os samurais surgiram no século X como guerreiros convocados por um senhor para servir em suas milícias, na guerra ou para atuarem como guardas. Enquanto não estavam lutando, os samurais exerciam outras funções. Inclusive a palavra samurai significa "aquele que serve". No entanto, os séculos XI e XII por conta das guerras, isso fez os samurais se tornarem algo mais recorrente já que muitos senhores não detinham tropas, e nem existia formalmente um exército nacional. Quando chegou-se ao século XIII com a instituição de um governo militar, essa foi a grande oportunidade dos samurais se tornarem uma classe com destaque. (TURNBULL, 2003).

Os samurais no xogunato não eram apenas guerreiros de elite, mas também passaram a exercerem cargos públicos e políticos como assinalado anteriormente. Por conta disso, um guerreiro se tornar um samurai era algo almejado, pois era uma oportunidade de ascensão social, prestígio e ter acesso a regalias, a começar pela condição de que samurais eram isentos de pagarem alguns tributos ao seu senhor, por outro lado, deveriam dedicar sua vida em servi-lo. Em algumas épocas do xogunato Tokugawa, um samurai poderia executar criminosos ou até mesmo pessoas que o tivessem ofendido. 

Dessa forma, a pirâmide social no Xogunato Kamakura e Ashikaga passou a ser formada oficialmente por quatro classes principais (samurais, camponeses, artesãos e comerciantes), mas havendo outras classes também como se pode ver a seguir:

Classe alta:
  • Elite militar (buke): formada pelo xogum, regente, generais, comandantes e altos funcionários do xogunato. 
  • Nobreza 
  • Aristocracia feudal: formada pelos daimiôs e suas famílias. 
  • Samurais (bushi ou shi)
Classe média:
  • Clero 
  • Letrados (gakusha)
Classe baixa ou plebe:
  • Camponeses (hyakusho ou no)
  • Artesãos (shokunin ou kô)
  • Comerciantes (akindo ou shô)
Indigentes:
  • Escravos (yakku)
  • Marginalizados (eta)
Algumas ponderações devem ser feitas. Primeiro, nem todo samurai era um homem da elite. Os samurais formavam uma classe mediana, até porque havia samurais oriundos da plebe, enquanto outros eram oriundos da aristocracia e da nobreza. Segundo, os samurais formavam uma segunda classe militar, a primeira era a elite (buke). Sendo assim, alguns samurais conseguiam ascender socialmente dentro de sua própria classe, podendo chegar a aristocracia e ao buke. (TURNBULL, 2003).

A classe dos clérigos era formada pelos monges budistas (bonzos) e sacerdotes xintoístas (kannushi), os quais detinham determinados privilégios como isenção de impostos, direito a terras e servos. Havia grandes templos que possuíam shoen. Além disso, enquanto geralmente os monges budistas costumavam fazer votos monásticos, um sacerdote xintoísta não precisava adotar o monasticismo, podendo ter esposa, filhos, um lar, uma propriedade e até exercer outras atividades e cargos públicos. Em diferentes épocas houve casos de sacerdotes envolvidos com assuntos políticos e militares. (YAMASHIRO, 1964). 

Dois bonzos num desenho de 1882. 

No caso dos intelectuais ou homens letrados (gakusha), eles eram uma pequena classe mediana abaixo dos samurais e do clero, mas não pobres o suficiente para serem tratados como parte da plebe. Consistiam em professores, mestres, tutores, filósofos, poetas, escritores, artistas renomados e alguns funcionários públicos. Todavia, médicos e arquitetos não necessariamente estavam nessa classe, mas pertenciam a plebe. (YAMASHIRO, 1964). 

Outra ponderação é quanto aos servos, no caso, os servos geralmente eram pessoas provenientes da classe dos camponeses, passando a exercer funções na agricultura, pecuária e até mesmo a pesca. No entanto, nem todo camponês era servo. Em algumas localidades e épocas existiam camponeses livres, os quais negociavam prestar serviços a algum daimiô por alguns meses, em troca de rendimento ou porcentagem da produção. Embora que em temos de crise essa negociação mudava. 

Os camponeses eram a classe baixa mais importante da sociedade feudal, pois eram responsáveis por sustentar o país, cuja economia era predominantemente rural. Apesar disso, eram pobres e explorados. 

Também é preciso salientar que a palavra eta não se referia apenas aos criminosos, mas também a população pobre e marginalizada como prostitutas, agiotas, apostadores, cafetões, mendigos, açougueiros, curtidores etc. Em alguns casos tais pessoas eram malvistas mais do que os escravos, pois realizavam atos criminosos ou vergonhosos. (YAMASHIRO, 1964). 

Na pirâmide social feudal japonesa as classes abaixo dos samurais são consideradas como a plebe (heimin), mas não significava que todos seriam pobres, pois existiam artesãos que até conseguiam dinheiro, não chegavam a serem ricos, mas possuíam uma condição de vida satisfatória. Por outro lado, havia mercadores que conseguiam enriquecer e viviam no luxo. No entanto, no xogunato, em diferentes épocas a classe dos comerciantes era socialmente malvista, pois seu ofício era visto como inferior ao dos camponeses e artesãos, os quais eram produtores, diferentes dos mercadores que eram revendedores. (SANSOM, 1958). 

A figura do ronin também era problemática na divisão social. O ronin era um termo usado para diferentes aplicações. Basicamente um ronin era um espadachim que não foi samurai ou deixou de ser samurai, mas também poderia designar um mercenário, assassino de aluguel, guerreiro vadio etc. Sendo assim, o ronin poderia pertencer a alguma classe da plebe, mas também poderia ser um criminoso, sendo tratado como um eta. Vale ressalvar que durante o governo de Toyotomi Hideyoshi nas décadas de 1580 e 1590, foi instituído que somente a classe dos samurais poderia portar armas, sendo vedado ao restante da população isso, logo, ronins se tornavam malvistos por se negarem a abandonar suas espadas. (HENSHALL, 2005). 

A divisão social do xogunato praticamente não se alterou por séculos, recebendo mudanças mais significativas no XVII, com os Tokugawa, quando o sistema de classes foi reformulado sob influência da filosofia do Confucionismo, estabelecendo apenas quatro classes principais: samurais, camponeses, artesãos e mercadores, chamada de Shinokoshô. No entanto, além dessas quatro classes centrais, havia outras classes como a dos nobres e do clero, e as subclasses, as quais excluíram os escravos, mas estigmatizaram outros indivíduos da sociedade. (HENSHALL, 2005). No caso, a nova pirâmide social do xogunato Tokugawa ficou da seguinte forma:

Classe alta:
  • Buke: elite marcial 
  • Nobreza 
  • Aristocracia: formada pelos daimiôs e os aristocratas das cidades
  • Samurais
Classe média:
  • Clero
  • Letrados (gakusha)
Classe baixa ou plebe: 
  • Camponeses
  • Artesãos: trabalhadores de ofícios manuais diversos.
  • Mercadores: incluía vários ofícios de prestação de serviços. 
Subclasse ou indigentes: 
  • Eta: indivíduos que exerciam trabalhos vergonhosos, de baixa remuneração ou eram criminosos. Socialmente não poderiam ascender de classe. 
  • Hinin (não-humano): indivíduos pobres que tinham chance de subir de classe através do casamento ou adoção. Isso incluía prostitutas, mendigos, mercenários, artistas de rua, trabalhadores manuais pobres etc.
  • Burakumin (habitante do vilarejo): indigentes que realizavam trabalhos impuros para a religião budista e xintoísta como serem coveiros, açougueiros, curtidores, carrascos etc. Socialmente não poderiam ascender de classe.
No século XIX, já no final do xogunato, o termo burakumin era usado também como sinônimo de eta, o que significava que aos olhos da sociedade aquelas pessoas eram marginalizadas de forma igual, independente do ofício e procedência delas. Embora que os burakumin costumassem viver em vilarejos e aldeias específicos, pois representava uma segregação social desse grupo. 

Fotografia colorizada de burakumin no XIX, os quais eram os marginalizados na sociedade feudal do xogunato. Em algumas épocas eram chamados de eta. 

No tocante aos mercadores, durante o Xogunato Tokugawa passou-se a usar o termo chonin (morador da cidade) como sinônimo para se referir a uma variedade de ofícios ligado ao comércio, o que incluía-se donos de restaurantes, tavernas, prostíbulos, mercearias, pousadas, armazéns, lojas, navios etc; boticários, médicos, arquitetos, artistas etc. Observa-se que as classes do Japão feudal englobavam uma variedade de ofícios. No caso, a profissão de médico e arquiteto no feudalismo não era valorizada, fato esse que o médico era tratado como um curandeiro em determinadas épocas. (HENSHALL, 2004). 

Divisão por porcentagem das classes durante o Xogunato Tokugawa, de acordo com dados do século XIX. Os valores são aproximados, já que o censo era impreciso na época. (SANSOM, 1963):
  • Camponeses: 80%
  • Samurais (incluso o buke): 10%
  • Artesãos: 3%
  • Comerciantes: 3%
  • Eta/hinin: 2%
  • Nobreza, clero, letrados, burakumin: cada um tinha menos de 1% e compreendiam os 2% restantes da população. 
O sistema feudal

O sistema feudal japonês possui alguns aspectos em comum com o feudalismo europeu como a instituição do feudo, a vassalagem e suserania, a servidão, o pagamento de tributos ao senhor feudal etc. O modelo do feudo no Japão começou a se formar no Período Heian através do shoen (latifúndio ou feudo), os quais passaram a serem mais regulares, além de concentrar muitas terras e consequentemente atraindo para sua tutela os camponeses que se tornavam seus servos, tendo que pagar tributos, trabalhar nas terras do senhor e até servir em suas milícias. 

Um shoen (feudo).

"Muitos "shoen" pertenciam a nobres residentes na capital (Kyoto), ficando a sua administração a cargo de prepostos que moravam no local. Dos "shoen" originaram-se as famílias ricas e influentes do interior, cada vez mais auto-suficientes e afastadas do poder central". (YAMASHIRO, 1964, p. 57).

No século XII os shoen tinham se tornado uma realidade em várias partes do Japão, embora ainda fossem controlados em parte pela nobreza, mas com o advento do xogunato a realidade mudou; novas famílias ascenderam socialmente sob os auspícios dos xoguns e regentes, ganhando seus shoen ou mais terras a ponto de constituírem seus feudos. Por outro lado, Minamoto no Yoritomo instituiu uma reforma administrativa como comentado, para poder fiscalizar esses feudos, pois alguns daimiôs (senhores feudais) detinham tanta autoridade, que consideravam não prestar obediência nem ao imperador (tenno) e nem ao xogum. Além de que alguns nem pagavam impostos ao xogunato. Essa condição piorou no século XV levando as guerras feudais. (SANSOM, 1958). 

Oda Nobunaga foi um dos mais poderosos daimiôs do Japão. 

No entanto, nos séculos XIII e XIV, o sistema feudal japonês estava estabelecido e se manteria quase inalterado pelos séculos seguintes. O senhor feudal (daimiô) consistia num homem rico, que detinha um feudo (shoen), sendo geralmente um samurai. Em alguns casos, havia senhores que exerciam atividades burocráticas ou atuavam como governadores, prefeitos e juízes. Os daimiôs viviam em mansões (sho) com jardins e cercadas por muros e até fossos. 

No feudo havia também a população livre, formada pelos samurais, conselheiros, funcionários da administração, artesãos, sacerdotes, comerciantes e os marginalizados etc. Em seguida havia os servos, os quais eram sujeitos a um voto de obediência ao daimiô, em troca de manterem suas terras ou ganharem terras, passavam a trabalhar no feudo (anteriormente a servidão nos feudos não era obrigatória). Se comprometiam em pagar tributos in natura, além de servir na milícia. Por fim, tinham-se os escravos, os quais foram comprados ou adquiridos na guerra. A escravidão no Japão manteve-se operante até final do século XVI, quando foi proibida e entrou em declínio. Todavia, o escravo era tratado como mercadoria e um pária, diferente do servo que era uma pessoa livre, mas com obrigações a prestar. (HENSHALL, 2004). 

A defesa do feudo era feita pelos samurais, os quais prestavam juramento ao seu senhor que era tratado como mestreOs feudos antes do século XV não possuíam um exército, a defesa era feita por milícias formadas por samurais e guerreiros advindos da população local, os quais recebiam armas como lanças e arcos. Essa prática lembrava o feudalismo europeu, em que os cavaleiros eram juramentados aos seus suseranos para proteger feudos. Vale lembrar que os samurais com o xogunato se tornaram uma classe militar importante e respeitada, e em troca de seus serviços eles recebiam propriedades, casas, presentes, cargos etc. (TURNBULL, 2003). 

O comércio variava de região para região, pois feudos próximos a cidades, vilas e portos costumavam ter um comércio mais intenso devido a regularidade de mercadorias que eram comercializadas por ali; por outro lado, feudos mais distantes, tinham um comércio a nível interno e local, comercializando com feudos vizinhos. Algumas localidades realizavam feiras semanais ou mensais, em que comerciantes, agricultores e artesãos se reuniam para vender seus produtos. Alguns daimiôs também promoveram a criação de rotas comerciais para seu feudo ou instituíram feiras regulares, para que os produtores locais e vizinhos fossem ali vender suas mercadorias. No entanto, o comércio somente se expandiu a partir do Xogunato Ashikaga, embora a classe dos comerciantes era socialmente considerada inferior. (YAMASHIRO, 1964). 

Apesar do comércio ter crescido nos séculos XV e XVI, a economia japonesa seguiu majoritariamente rural até o começo do XX, quando o processo de industrialização passou a encaminhar. No entanto, a base da economia rural japonesa durante o feudalismo era o cultivo do arroz, o principal cereal plantado no país. 

"O bakufu considerava a agricultura o mais importante ramo da produção. Tinha especial cuidado com a cultura do arroz, porque a importância das propriedades de um daimyô era aferida pela quantidade de arroz nelas produzida. A essa quantidade se dava o nome de "kokudaka", sendo o "koku" uma unidade de volume equivalente a cerca de 180 litros. O bakufu, por exemplo, possuía 4 a 8 milhões de "koku", enquanto que, mesmo os daimyôs mais abastados, não possuíam mais de um milhão de "koku". Os samurais que estavam a serviço dos daimyôs recebiam, como pagamento, determinada quantidade de arroz, variável conforme a classe ou categoria da função que ocupassem na hierarquia de vassalos do shogun. Por isso, a começar pelo próprio bakufu, todos os daimyôs estimulavam a lavoura. Terras abandonadas foram aproveitadas, pantanais das proximidades do mar foram aterrados para a produção rizícola e outras". (YAMASHIRO, 1964, p. 118-119). 

Agricultores trabalhando num campo de arroz. 

O sistema do shoen entrou em declínio no século XV por conta do enfraquecimento do Xogunato Ashikaga, levando daimiôs a não respeitaram mais os limites de suas propriedades e decidirem invadir os territórios vizinhos. Alguns daimiôs chegaram a conquistar províncias inteiras por conta disso. Logo, o Xogunato Tokugawa teve que reformular a lei de terras, adotando o han (domínio), um novo sistema de divisão da terra aplicado por Toyotomi Hideyoshi, agora não pautado nas dimensões territoriais, mas na produção agrícola. 

O sistema do han era definido com base no kokudaka, a quantidade de arroz produzido por um domínio. Lembrando que o arroz era o principal alimento produzido no país, consumido em todas as refeições, costume ainda hoje mantido pelos japoneses. Sendo assim, o kokudaka calculava a quantidade de um koku, o que equivaleria a 150 quilos de arroz, quantidade essa considerada a média para sustentar uma pessoa ao longo do ano. No entanto, o valor do koku mudou em algumas épocas, ainda assim, ele era a média da produção do kokudaka. Sendo assim, os grandes feudos poderiam produzir 10 mil koku (1.500 toneladas), apesar de haver alguns han que produzissem mais do que isso. E como parte da fiscalização dos Tokugawa, foi estipulado que 1/4 das terras do país pertenceriam ao xogunato, sendo administradas por funcionários públicos. O restante das terras estava dividida entre a nobreza, o clero, os daimiôs e os pequenos agricultores. (YAMASHIRO, 1964). 

Durante o xogunato Tokugawa, houve mais de 275 daimiôs, sendo que esses eram divididos em três categorais: shinpan (parentes), fudai (donos antigos), tozama (novos donos). Tradicionalmente eram 150 fudai e 100 tozamas, em que os fudai eram daimiôs antigos que mantiveram suas terras ao prestar vassalagem ao xogunato, já os tozamas eram clãs que se tornaram detentores de han, sendo que alguns eram considerados de lealdade duvidosa. (HENSHALL, 2005). 

Além da forte fiscalização sobre os daimiôs para evitar que eles ganhassem muito poder e autoridade, a ponto do Estado até cecear seus direitos, não foi a aristocracia rural que teve perdas de privilégios, o campesinato também sofreu nas mãos da política autoritária dos Tokugawa. 

"Muito embora o agricultor gozasse de um status social elevado, colocado logo depois do samurai, sua vida era consideravelmente mais pobre do que a dos comerciantes e artesãos. Isso porque o bakufu interferia na vida dos lavradores, estabelecendo-lhes regulamentos minuciosos e impondo-lhes medidas restritivas, para impedir que eles se entregassem ao ócio ou se rebelassem. As restrições chegavam ao cúmulo de proibir que os camponeses se alimentassem do arroz que eles próprios produziam. Nem lhes era permitido usar roupa de seda ou possuir uma casa confortável. Também lhes proibiam montar a cavalo. Eram obrigados a trabalhar durante o ano inteiro, sem possibilidade de melhorar suas condições econômicas. Por isso, em épocas de crise econômica, verificavam-se com freqüência sangrentos levantes e motins de camponeses, sempre sufocados a ferro e fogo. Os que escapavam com vida do combate com as forças do shogun, eram sumariamente executados. Segundo o professor Kuromasa, nada menos de 574 casos de motins de lavradores ocorreram no período Tokugawa, o que mostra como o descontentamento lavrava intenso na classe dos camponeses, considerada a mais pacífica e ordeira do Japão feudal". (YAMASHIRO, 1964, p. 119-120). 

Da cultura marcial à vida urbana

O bakufu de Kamakura se desenvolveu originalmente pautado numa cultura marcial, condição essa vista pelos Minamotos adotarem o título de xogum (mesmo que alguns nem fossem militares de carreira), além de tornar os samurais uma classe social, lhe concedendo privilégios. Neste sentido o bushido (caminho do guerreiro) se tornou central na conduta dos samurais, servindo de modelo para seu comportamento. 

Basicamente o bushido determina que o samurai deveria cultivar valores como honra, devoção, disciplina, lealdade, servidão, coragem, paciência, serenidade, compaixão, polidez e sabedoria. O bushido era influenciado por elementos religiosos do Budismo e Xintoísmo, mas também da filosofia do Confucionismo. Dessa forma, a classe militar dos samurais era amparada por esse código de conduta, fazendo juramentos aos seus mestres, zelando pela honra, a disciplina e compromisso na guerra e no funcionalismo público. Os samurais eram o ideal de guerreiro no Japão feudal. (TURNBULL, 2003). 


Entre os séculos XIII e XVI por conta das guerras, os samurais constantemente estavam treinando e envolvidos em batalhas, principalmente na época das guerras feudais, em que milhares de samurais lutaram e morreram nos vários conflitos. Por conta disso, a cultura marcial nos xogunatos Kamakura e Ashikaga esteve em alta, condição de que houve nobres e aristocratas que aderiram ao bushido e iam ao campo de batalha. Além disso, a maioria dos senhores feudais eram samurais também. 

Os primeiros quarenta anos do Xogunato Tokugawa ainda contaram com guerras, e grandes batalhas como a Batalha de Osaka (1615) e a Batalha de Sekigahara (1639), todavia, após esse período a "Paz de Edo" foi sendo estabelecida, as guerras acabaram, embora revoltas pontuais, geralmente promovida por camponeses e mercadores, seguiram ocorrendo, mas sem nenhum grande conflito para pôr o país novamente num período de guerra civil que se estendeu por anos como ocorrido nos séculos XVI e XVII, a ênfase a marcialidade entrou em segundo plano. Os novos xoguns necessariamente não eram militares de carreira, alguns nem se quer tinham participado de alguma batalha ou guerra, e todos adotaram o luxo, algo também compartilhado pelos daimiôs e samurais, que anteriormente prezavam pela simplicidade e humildade. 

"Luxo e pompa caracterizaram os costumes da época. Vestidos e faixas de lindas cores, penteados caprichosos e pinturas cuidadosas tornavam as mulheres sumamente atraentes. O próprio mobiliário e objetos de uso caseiro assumiram formas e cores vistosas". (YAMASHIRO, 1964, p. 121).

"Desde que os bushi começaram a viver a vida de ócio e luxo das grandes cidades como Yedo e Osaka, a posição dos chonin melhorou consideravelmente, embora na hierarquia social ocupassem posição inferior à dos primeiros. Originariamente os samurais desprezavam os chonin e o dinheiro. Mas, com o aumento dos gastos provenientes do luxo, os bushi não tiveram outra alternativa senão trocar o arroz, que recebiam dos seus senhores como remuneração do serviço, pelo dinheiro. Assim, tornou-se comum o envio, por daimyôs, de arroz e outros produtos das províncias a Yedo ou Osaka para vendê-los aos chonin. Estes, que dispunham de dinheiro, foram, aos poucos, substituindo os bushi em sua influência na direção real dos negócios do país, embora não aparecessem publicamente. Constituíam já uma verdadeira força no terreno econômico". (YAMASHIRO, 1964, p. 134). 

O teatro floresceu nesse período em que velhos e antigos estilos foram reformulados. Dentre os estilos antigos estavam o no com seu uso de máscaras e perucas, pautado no drama ritualístico e o kyogen, voltado para a comédia. Todavia, no xogunato Tokugawa surgiu o estilo kabuki, em que as peças  passaram a girar entre o drama, melodrama e a comédia, abordando temas cotidianos. Os atores trocaram as máscaras por pinturas faciais extravagantes, o que se tornou um dos marcos desse estilo. Por fim, outro estilo que cresceu nesse período do XVII foi o joruri ou bunraku, o teatro de marionetes. (YAMASHIRO, 1964). 

Uma peça kabuki no teatro Ichimura-za, em Edo, na década de 1740. 

A literatura também foi influenciada nesse período, com o surgimento de contos, romances, fábulas, e a popularização da poesia, como o haiku (ou haikai). Nas artes plásticas destacou-se o estilo do ukiyo-ye na xilogravura e o desenho a Guenroku, que ficou em moda no século XVIII. Alguns samurais passaram a ter como hobbies a poesia, a escrita, a filosofia, o tiro ao alvo com arco, o desenho etc. Embora que outros optassem por ir ao teatro, banquetes, tavernas, prostíbulos, casas de aposta, casas de ópio, é preciso salientar que nos séculos XVII e XVIII, houve críticas aos samurais terem deixado de lado sua disciplina, humildade e honra e cedido ao luxo, o ócio e os vícios. (YAMASHIRO, 1964; TURNBULL, 2003). 

Bakumatsu: o fim do xogunato

Um dos fatores para que o xogunato Tokugawa tenha sido longevo a ponto de durar mais de duzentos anos, consistiu na política do Sakoku, e o controle exercido sobre os daimiôs e o restante da população. No entanto, o século XIX trouxe ventos da mudança. O sistema feudal estava em declínio, sendo o Japão e a Rússia, alguns dos últimos países que o mantinham operante; além disso, os holandeses que eram os únicos europeus autorizados a frequentar o Japão, mesmo com restrições, forneciam informações sobre a Ásia, África, Europa e as Américas, informações essas desconhecidas de grande parte da população, mas que mostravam que o mundo já tinha mudado drasticamente nos últimos duzentos anos. 

No XIX também ocorreu pressões dos russos para poderem negociar com o Japão e romper a política de isolamento. A ilha de Hokkaido no norte do país passou a negociar as escondidas com os russos, ainda no final do XVIII, o que levou o xogunato a intervir na região, temendo que isso saísse de controle, e pudesse incentivar outros daimiôs a desobedecerem o Sakoku. 

Em 1825 foi decretado que qualquer navio estrangeiro sem autorização deveria ser rechaçado e proibido de aportar. Isso valia principalmente para os ingleses, que naquele período guerreavam contra os chineses por conta do comércio de ópio e territórios como Hong Kong e Xangai. Além de rechaçar os navios estrangeiros, o governo ordenou que os daimiôs com territórios com costa, posicionassem canhões e reforçassem suas defesas contra uma possível ameaça de invasão. Somou-se a isso a construção de navios de guerra, o que demandou gastos aos cofres públicos. (YAMASHIRO, 1964).

O incidente de Morrison ocorrido em 1837, foi um exemplo de como a política de expulsar navios estrangeiros era perigosa. Naquele ano o navio Morrison, capitaneado por Charles W. King, tinha ido ao Japão para levar sete japoneses que haviam naufragado próximo a Macau. A embarcação estadunidense também tinha interesse em comercializar com os japoneses até porque desconheciam a realidade da proibição do Sakoku, no entanto, o navio foi alvejado e quase naufragou. Os japoneses abordo foram descidos em botes e levados ao porto. (SANSOM, 1963). 

Pintura japonesa do navio Morrison, alvo de um incidente diplomático em 1837. 

Por outro lado, na política interna do xogunato enfrentava problemas com grupos opositores. Embora os Tokugawa tenham tido bastante êxito em controlar grandes revoltas, conspirações e possíveis traições que gerariam golpes de estado ou guerras, uma hora isso não é mais possível de ser feito. Parte dos samurais estavam descontentes com o andamento do governo e começaram a se aproximar novamente da nobreza, voltando a tramar. Além disso, vários tozama daimiôs (daimiôs de fora), termos usado para designar os daimiôs de feudos mais afastados e de confiança duvidosa, passaram a tramar contra os xoguns. Vale lembrar que os daimiôs de Hokkaido que negociaram com os russos pertenciam ao grupo dos tozama.

A produção agrícola estava em crise devido a falta de práticas mais eficazes para a rotação de cultura, o que levou o empobrecimento rápido do solo, somava-se isso a opressão da tributação das taxas do arroz, o que levava alguns camponeses a desistirem do plantio e procurarem outro ofício. Por outro lado, os mercadores ganharam muito dinheiro e influência nas cidades e grandes vilas, e eles ambicionavam pôr abaixo a política de isolamento para poderem negociar com os estrangeiros. Tal condição levou parte da classe dos comerciantes a se opor ao xogunato. (SANSOM, 1963). 

Na década de 1850 surgiu os Shishi ou Ishin Shishi um grupo pró-monarquia, formado por nobres, kugues, aristocratas, samurais, daimiôs, mercadores e outros membros da sociedade, os quais defendiam o retorno do poder político do imperador e o fim do xogunato. Alguns membros inclusive defendiam o caminho da guerra para fomentar um golpe de estado, condição essa que alguns daimiôs de Kyushu, no sul do país, ordenaram a construção de fábricas de armas de fogo, para poder equipar sua milícia. 

No entanto, a década de 1850 foi crucial para o enfraquecimento do xogunato devido a pressão estrangeira exercida pelos Estados Unidos. Em 1853 o comodoro Matthew Calbaith Perry (1794-1858), o qual atuava em negociações na China, foi enviado ao Japão para oferecer um acordo comercial e diplomático. Perry era veterano de guerras e sabia como usar a força na intimidação, com isso ele deixou a China com uma pequena esquadra e seguiu para o porto de Uraga e enviou a solicitação a corte. Os americanos chegaram com navios de aço, movidos a vapor e com canhões contemporâneos, diferente dos navios japoneses feitos de madeira, movidos a vela e usando modelos de canhões do século XVI e XVII. Os japoneses ficaram intimidados com aquilo e temerosos. Perry exigiu negociar com o imperador, mas esse não tinha autoridade para isso, assim, o xogum Tokugawa Iesada aceitou a negociação, mas pediu um prazo de alguns meses para avaliar o acordo. Perry aceitou e foi embora, dizendo que retornaria no ano seguinte. O processo resultou no Tratado de Kanagawa (1854), que liberou o acesso aos Estados Unidos em negociar com portos japoneses e estabelecer um consulado. (SANSOM, 1963). 

O Comodoro Matthew Perry. 

A assinatura do Tratado de Kanagawa foi vista de forma positiva e negativa. Os que defendiam o fim da política do Sakoku celebraram a abertura dos portos japoneses, já que depois dos Estados Unidos, outros países como Inglaterra, Rússia e França foram autorizados a negociar e frequentar o Japão. Todavia, os que defendiam o conservadorismo feudal do xogunato consideraram isso um erro e fraqueza do xogum Iesada em ceder a pressão estrangeira. 

A entrada regular de estrangeiros no país colocou em choque a cultura japonesa ainda com traços feudais. Consulados foram estabelecidos no país, militares, empresários e estudiosos começaram de 1855 em diante a frequentar o Japão. Uma pequena imprensa foi estabelecida pelos estrangeiros. Ideias políticas sobre democracia, republicanismo, parlamentarismo, revolução, comunismo, liberalismo, etc., chegaram ao Japão. Tais ideias levaram grupos contra o xogunato a melhor se organizarem. Neste caso, os Shishi cresceram significativamente nesse período a ponto que em 1863, o xogum Tokugawa Iemochi temendo um possível golpe de estado criou a guarda dos Shinsengumi (Nova Brigada Selecionada). (SANSOM, 1963). 

Bandeira do Shinsengumi, a tropa de elite do xogunato. 

O Shinsengumi era formado por samurais leais ao xogunato, os quais estavam sob comando do Protetor de Quioto, cargo criado em 1862 para assegurar a ordem na capital real, e evitar revoltas ali e na região. A apreensão do xogum Iemochi se mostrou certeira, pois em 1863, os feudos de Choshu e Satsuma conspiraram com a corte e se rebelaram, desacatando ordens do governo, como de receber os estrangeiros, condição essa que em Choshu alguns ingleses foram atacados. Apesar da desaprovação do imperador, a rebelião já tinha se iniciado. Em 1863 e 1864 ocorreram algumas batalhas e revoltas entre os rebeldes do xogunato e a participação estrangeira dos ingleses e americanos que apoiavam o xogum. (YAMASHIRO, 1964). 

Os conflitos iniciados em Choshu e Satsuma fizeram eclodir uma guerra civil em 1863 que se alastrou até 1869, e nesse meio tempo o último xogum Tokugawa Yoshinobu (1837-1913), vendo que as forças do xogunato estavam enfraquecidas mesmo com apoio estrangeiro, além de que seus antigos aliados haviam debandado, decidiu renunciar ao governo e reconhecer o jovem imperador Meiji de 16 anos como líder oficial do Japão. Yoshinobu renunciou em 1867, e no ano seguinte teve início a Restauração Meiji, a qual iniciou com a Guerra Boshin (1868-1869), a última tentativa de se manter o xogunato, mesmo com a renúncia do xogum, alguns clãs vassalos se negaram a aceitar a decisão e iniciaram a guerra, a qual terminou com a vitória dos monarquistas. Dessa forma, a era dos xogunatos tinha chegado ao fim. (YAMASHIRO, 1964).  

Pintura retratando a Batalha de Ueno, em 4 de julho de 1868, nos arredores de Tóquio. Foi um dos conflitos da Guerra Boshin, para tentar se manter o xogunato

Com a derrota das últimas forças de resistência do Xogunato Tokugawa, o sistema feudal foi gradativamente abolido, os samurais deixaram de ser uma classe social, em que vários acabaram ingressando no exército, marinha, polícia, mas outros procuraram por outras profissões, mas alguns se tornaram ronins. A administração foi reformulada, o imperador Meiji iniciou a restauração política do país, mas também implementou reformas sociais, culturais, econômicas, além de abrir caminho para a industrialização, a educação, a medicina, a imprensa etc. No entanto, durante a década de 1870 algumas revoltas de samurais e daimiôs pró-xogunato ainda ocorreram. 

Considerações finais

Pelas explanações aqui apresentadas pode se perceber que o xogunato consistiu num regime militar com características monárquicas, feudais e burocráticas, por manter a regência e tornar o cargo de xogum hereditário, por enfatizar o papel dos feudos, principalmente entre os séculos XIII e XVI, o que influenciou a divisão social pautada na origem do indivíduo, mas principalmente no ofício que ele exercia ou pertencia sua família. Por estruturar a administração do país de forma burocrática, fomentando a origem de uma classe para isso: inicialmente os samurais depois a nobreza novamente e a aristocracia. 

A vassalagem era pautada não apenas na submissão do servo ao senhor, em que o senhor concedia terras ou firmava um contrato de prestação de serviço e lealdade, mas na devoção marcial do samurai com seu mestre. Sendo os samurais uma classe importante durante os xogunatos, eles foram doutrinados a seguir seu código de honra para servir seus mestres na guerra e em outros trabalhos, como o funcionalismo público. 

O xogunato reformulou a administração pública, a gestão e a justiça, tirando da nobreza tais funções e criando a classe dos samurais para ocupar esses cargos públicos. É válido lembrar que desde o Xogunato Kamakura os samurais já tinham ingressado na vida pública, e não apenas tardiamente como alguns autores salientaram. Eo fator burocrático foi essencial para a organização do país, mesmo que tenha significado manter um sistema feudal que se alterou com o tempo, além da imposição de uma sociedade dividida em classes. 

O sistema feudal sofreu alterações ao longo dos sete séculos de domínio do xogunato, em que se percebe que durante o período Kamakura e Tokugawa houve uma centralização do poder nas mãos dos xoguns e regentes, todavia, durante o período Ashikaga ocorreu uma crescente descentralização da autoridade do xogum, levando os daimiôs a se rebelaram iniciando o interregno das guerras feudais

A cultura marcial do bushido foi importante para o desenvolvimento de uma cultura política pautada na honra, lealdade e dever, sendo que o lado guerreiro esteve em alta com os xogunatos Kamakura e Ashikaga e o período das guerras feudais, mas com o advento da paz com os Tokugawa, os samurais se tornaram mais ociosos no sentido de não terem um papel com guerreiros para a batalha, mas passando a agir como guardas, policiais, funcionários públicos e alguns até mesmo se dedicaram a filosofia e as artes.

A época dos xogunatos apresentou mudanças na cultura japonesa, passando pelo medievo, a modernidade e terminando na contemporaneidade, condição essa que vimos como a administração, a sociedade, a economia e os costumes mudaram nessas épocas. Apesar da economia pautada num sistema feudal com base na plantação de arroz, durante os séculos XVI e XVII o comércio vivenciou investimentos, isso levou ao crescimento das cidades e o desenvolvimento de uma cultura urbana, das artes, da filosofia, da arquitetura, além de mudanças nos costumes

Alguns historiadores consideram o xogunato uma espécie de ditadura militar por instituir um autoritarismo centrado no xogum ou regente, estipular uma justiça militar que vigorava como justiça geral; colocar militares para exercer funções públicas; aplicar decretos e leis autoritárias e opressivas, instituir a proibição do porte de armas para a população, proibir a entrada de estrangeiros (sobretudo os europeus), impor restrições ao comércio exterior, aplicar uma política de intolerância religiosa com os cristãos, banir os párias, permitir a escravidão (embora essa foi abolida depois); instituir execuções públicas, o trabalho forçado etc. Tais características apresentam elementos vistos em outras ditaduras militares na História. 

NOTA: No Japão o imperador não precisa permanecer no governo até o fim da vida, em muitos casos os imperadores governavam por poucos anos, renunciando para algum filho ou outro parente. Além disso, em determinadas épocas a sucessão era manipulada pelos clãs poderosos ou até mesmo indicada pelo xogum. 

NOTA 2: Os europeus como portugueses, espanhóis, franceses, ingleses e holandeses, os quais tiveram contato com os japoneses, acreditavam que o xogum fosse o imperador daquele país, condição essa que encontramos livros, cartas e pinturas desses povos, referindo-se ao xogum como sendo o imperador, um equívoco que ocorria pela condição de que os europeus não entendiam o sistema político do xogunato. 

NOTA 3: A palavra bakufu originalmente designava a tenda do xogum, usada como local de reuniões para o conselho militar. Todavia, com a ascensão de Minamoto no Yoritomo como xogum, o termo bakufu passou a designar o regime militar dos xoguns. 

NOTA 4: O nome Boshin significa "Ano do Dragão", e foi um período turbulento para o Japão por conta da guerra civil que tentou manter o xogunato entre 1868 e 1869. 

NOTA 5: O filme O último samurai (2003) foi inspirado na Revolta de Satsuma (1877), em que samurais lutavam pelo retorno do xogunato. Tal revolta foi o último grande conflito do tipo, depois disso as tentativas de pedir a volta do xogunato foram diminuindo e sumiram. 

NOTA 6: O mangá/anime Samurai X mostra o início da Era Meiji, no entanto, o protagonista, o ronin Kenshin Himura, lutou na guerra civil que levou ao término do Xogunato Tokugawa. Kenshin atuou como mercenário servindo os monarquistas. Com o término da guerra, ele procurou se redimir de seus crimes e matanças, adotando uma vida de redenção e heroísmo. 

NOTA 7: Os jogos Shogun: Total War (2000) e Total War: Shogun 2 (2011), ocorrem durante o Período Sengoku, embora as DLCs acrescentem campanhas de outras épocas. 

NOTA 8: O jogo Like a Dragon: Ishin (2014), um spin-off da franquia Yakuza, se passa durante o período do Bakumatsu, apresentando até mesmo alguns personagens históricos e fatos. O jogo ganhará um remake em 2023. 

Referências bibliográficas

HENSHALL, Kenneth G. A History of Japan: From Stone Age to Superpower. 2a ed. New York, Palgrave Macmillan, 2004. 

SANSOM, George. The History of Japan to 1334. Tokyo, Charles E. Tuttle Company, 1958. 

SANSOM, George. The History of Japan: 1615-1867. Tokyo, Charles E. Tuttle Company, 1963. 

TURNBULL, Stephen. Samurai: The World of Warrior. Oxford, Osprey Publishing, 2003. 

YAMASHIRO, José. Pequena História do Japão. 2a ed. São Paulo, Editora Herder, 1964. 

Links relacionados: 

As invasões mongóis do Japão em 1274 e 1281

Oda Nobunaga

Ninjas x Samurais: crônicas de uma guerra feudal (XV-XVII)

Kirishitan: O Cristianismo chega ao Japão

Yasuke: o samurai negro