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Leandro Vilar

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões

Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões



Abdias do Nascimento*


VÁRIAS INTERROGAÇÕES suscitaram ao meu espírito a tragédia daquele negro infeliz que o gênio de Eugene O'Neill transformou em O Imperador Jones. Isso acontecia no Teatro Municipal de Lima, capital do Peru, onde me encontrava com os poetas Efraín Tomás Bó, Godofredo Tito Iommi e Raul Young, argentinos, e o brasileiro Napoleão Lopes Filho. Ao próprio impacto da peça juntava-se outro fato chocante: o papel do herói representado por um ator branco tingido de preto.

Àquela época, 1941, eu nada sabia de teatro, economista que era, e não possuía qualificação técnica para julgar a qualidade interpretativa de Hugo D'Evieri. Porém, algo denunciava a carência daquela força passional específica requerida pelo texto, e que unicamente o artista negro poderia infundir à vivência cênica desse protagonista, pois o drama de Brutus Jones é o dilema, a dor, as chagas existenciais da pessoa de origem africana na sociedade racista das Américas.

Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um intérprete dessa raça? Entretanto, lembrava que, em meu país, onde mais de vinte milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta milhões de habitantes, na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da minha cor. Não seria, então, o Brasil, uma verdadeira democracia racial? Minhas indagações avançaram mais longe: na minha pátria, tão orgulhosa de haver resolvido exemplarmente a convivência entre pretos e brancos, deveria ser normal a presença do negro em cena, não só em papéis secundários e grotescos, conforme acontecia, mas encarnando qualquer personagem – Hamlet ou Antígona – desde que possuísse o talento requerido. Ocorria de fato o inverso: até mesmo um Imperador Jones, se levado aos palcos brasileiros, teria necessariamente o desempenho de um ator branco caiado de preto, a exemplo do que sucedia desde sempre com as encenações de Otelo. Mesmo em peças nativas, tipo O demônio familiar (1857), de José de Alencar, ou Iaiá boneca (1939), de Ernani Fornari, em papéis destinados especificamente a atores negros se teve como norma a exclusão do negro autêntico em favor do negro caricatural. Brochava-se de negro um ator ou atriz branca quando o papel contivesse certo destaque cênico ou alguma qualificação dramática. Intérprete negro só se utilizava para imprimir certa cor local ao cenário, em papéis ridículos, brejeiros e de conotações pejorativas.

Devemos ter em mente que até o aparecimento de Os Comediantes e de Nelson Rodrigues – que procederam à nacionalização do teatro brasileiro em termos de texto, dicção, encenação e impostação do espetáculo – nossa cena vivia da reprodução de um teatro de marca portuguesa que em nada refletia uma estética emergente de nosso povo e de nossos valores de representação. Esta verificação reforçava a rejeição do negro como personagem e intérprete, e de sua vida própria, com peripécias específicas no campo sociocultural e religioso, como temática da nossa literatura dramática.

Naquela noite em Lima, essa constatação melancólica exigiu de mim uma resolução no sentido de fazer alguma coisa para ajudar a erradicar o absurdo que isso significava para o negro e os prejuízos de ordem cultural para o meu país. Ao fim do espetáculo, tinha chegado a uma determinação: no meu regresso ao Brasil, criaria um organismo teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói das histórias que representasse. Antes de uma reivindicação ou um protesto, compreendi a mudança pretendida na minha ação futura como a defesa da verdade cultural do Brasil e uma contribuição ao humanismo que respeita todos os homens e as diversas culturas com suas respectivas essencialidades. Não seria outro o sentido de tentar desfiar, desmascarar e transformar os fundamentos daquela anormalidade objetiva dos idos de 1944, pois dizer teatro genuíno – fruto da imaginação e do poder criador do homem – é dizer mergulho nas raízes da vida. E vida brasileira excluindo o negro de seu centro vital, só por cegueira ou deformação da realidade.

Fundação e estréia do TEN

Engajado a estes propósitos, surgiu, em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro, ou TEN, que se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua formação metropolitana européia, imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, da cultura e da arte.

Pela resposta da imprensa e de outros setores da sociedade, constatei, aos primeiros anúncios da criação deste movimento, que sua própria denominação surgia em nosso meio como um fermento revolucionário. A menção pública do vocábulo "negro" provocava sussurros de indignação. Era previsível, aliás, esse destino polêmico do TEN, numa sociedade que há séculos tentava esconder o sol da verdadeira prática do racismo e da discriminação racial com a peneira furada do mito da "democracia racial". Mesmo os movimentos culturais aparentemente mais abertos e progressistas, como a Semana de Arte Moderna, de São Paulo, em 1922, sempre evitaram até mesmo mencionar o tabu das nossas relações raciais entre negros e brancos, e o fenômeno de uma cultura afro-brasileira à margem da cultura convencional do país.

Polidamente rechaçada pelo então festejado intelectual mulato Mário de Andrade, de São Paulo, minha idéia de um Teatro Experimental do Negro recebeu as primeiras adesões: o advogado Aguinaldo de Oliveira Camargo, companheiro e amigo desde o Congresso Afro-Campineiro que realizamos juntos em 1938; o pintor Wilson Tibério, há tempos radicado na Europa; Teodorico dos Santos e José Herbel. A estes cinco, se juntaram logo depois Sebastião Rodrigues Alves, militante negro; Arinda Serafim, Ruth de Souza, Marina Gonçalves, empregadas domésticas; o jovem e valoroso Claudiano Filho; Oscar Araújo, José da Silva, Antonieta, Antonio Barbosa, Natalino Dionísio, e tantos outros.

Teríamos que agir urgentemente em duas frentes: promover, de um lado, a denúncia dos equívocos e da alienação dos chamados estudos afro-brasileiros, e fazer com que o próprio negro tomasse consciência da situação objetiva em que se achava inserido. Tarefa difícil, quase sobre-humana, se não esquecermos a escravidão espiritual, cultural, socioeconômica e política em que foi mantido antes e depois de 1888, quando teoricamente se libertara da servidão.

A um só tempo o TEN alfabetizava seus primeiros participantes, recrutados entre operários, empregados domésticos, favelados sem profissão definida, modestos funcionários públicos – e oferecia-lhes uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava também a ver, enxergar o espaço que ocupava o grupo afro-brasileiro no contexto nacional. Inauguramos a fase prática, oposta ao sentido acadêmico e descritivo dos referidos e equivocados estudos. Não interessava ao TEN aumentar o número de monografias e outros escritos, nem deduzir teorias, mas a transformação qualitativa da interação social entre brancos e negros. Verificamos que nenhuma outra situação jamais precisara tanto quanto a nossa do distanciamento de Bertolt Brecht. Uma teia de imposturas, sedimentada pela tradição, se impunha entre o observador e a realidade, deformando-a. Urgia destruí-la. Do contrário, não conseguiríamos descomprometer a abordagem da questão, livrá-la dos despistamentos, do paternalismo, dos interesses criados, do dogmatismo, da pieguice, da má-fé, da obtusidade, da boa-fé, dos estereótipos vários. Tocar tudo como se fosse pela primeira vez, eis uma imposição irredutível.

Cerca de seiscentas pessoas, entre homens e mulheres, se inscreveram no curso de alfabetização do TEN, a cargo do escritor Ironides Rodrigues, estudante de direito dotado de um conhecimento cultural extraordinário. Outro curso básico, de iniciação à cultura geral, era lecionado por Aguinaldo Camargo, personalidade e intelecto ímpar no meio cultural da comunidade negra. Enquanto as primeiras noções de teatro e interpretação ficavam a meu cargo, o TEN abriu o debate dos temas que interessavam ao grupo, convidando vários palestrantes, entre os quais a professora Maria Yeda Leite, o professor Rex Crawford, adido cultural da Embaixada dos Estados Unidos, o poeta José Francisco Coelho, o escritor Raimundo Souza Dantas, o professor José Carlos Lisboa.

Após seis meses de debates, aulas e exercícios práticos de atuação em cena, preparados estavam os primeiros artistas do TEN. Estávamos em condições de apresentar publicamente o nosso elenco. Revelou-se então a necessidade de uma peça ao nível das ambições artísticas e sociais do movimento: em primeiro lugar, o resgate do legado cultural e humano do africano no Brasil. O que então se valorizava e divulgava em termos de cultura afro-brasileira, batizado de "reminiscências", eram o mero folclore e os rituais do candomblé, servidos como alimento exótico pela indústria turística (no mesmo sentido podemos inscrever hoje a exploração do samba, criação afro-brasileira, pela classe dominante branca, levada nos últimos anos ao exagero do espetáculo carnavalesco luxuoso e, pela carestia, cada vez mais longe do alcance do povo que o criou).

O TEN não se contentaria com a reprodução de tais lugares-comuns, pois procurava dimensionar a verdade dramática, profunda e complexa, da vida e da personalidade do grupo afro-brasileiro. Qual o repertório nacional existente? Escassíssimo. Uns poucos dramas superados, onde o negro fazia o cômico, o pitoresco, ou a figuração decorativa: O demônio familiar (1857) e Mãe (1859), ambas de José de Alencar; Os cancros sociais (1865), de Maria RibeiroO escravo fiel (1858), de Carlos Antonio CordeiroO escravocrata (1884) e O dote (1907), de Artur Azevedo, a primeira com a colaboração de Urbano DuarteCalabar (1858), de Agrário de Menezes; as comédias de Martins Pena (1815-1848). E nada mais. Nem ao menos um único texto que refletisse nossa dramática situação existencial.

Sem possibilidade de opção, O imperador Jones se impôs como solução natural. Não cumprira a obra de O'Neill idêntico papel nos destinos do negro norte-americano? Tratava-se de uma peça significativa: transpondo as fronteiras do real, da logicidade racionalista da cultura branca, não condensava a tragédia daquele burlesco imperador um alto instante da concepção mágica do mundo, da visão transcendente e do mistério cósmico, das núpcias perenes do africano com as forças prístinas da natureza? O comportamento mítico do Homem nela se achava presente. Ao nível do cotidiano, porém, Jones resumia a experiência do negro no mundo branco, onde, depois de ter sido escravizado, libertam-no e o atiram nos mais baixos desvãos da sociedade. Transviado num mundo que não é o seu, Brutus Jones aprende os maliciosos valores do dinheiro, deixa-se seduzir pela miragem do poder. Além do impacto dramático, a peça trazia a oportunidade de reflexão e debate em torno de temas fundamentais aos propósitos do TEN.

Escrevemos a Eugene O'Neill uma carta aflita de socorro. Nenhuma resposta jamais foi tão ansiosamente esperada. Quem já não sentiu a atmosfera de solidão e pessimismo que rodeia o gesto inaugural, quando se tem a sustentá-lo unicamente o poder de um sonho? De seu leito de enfermo, em São Francisco, a 6 de dezembro de 1944, O'Neill nos respondeu:

"You have my permission to produce The Emperor Jones without any payment to me, and I want to wish you all the success you hope for with your Teatro Experimental do Negro. I know very well the conditions you describe in the Brazilian theatre. We had exactly the same conditions in our theatre before The Emperor Jones was produced in New York in 1920 – parts of any consequence were always played by blacked-up white actors. (This, of course, did not apply to musical comedy or vaudeville, where a few negroes managed to achieve great sucess). After The Emperor Jones, played originally by Charles Gilpin and later by Paul Robeson, made a great success, the way was open for the negro to play serious drama in our theatre. What hampers most now is the lack of plays, but I think before long there will be negro dramatists of real merit to overcome this lack".

"O senhor tem a minha permissão para encenar O imperador Jones isento de qualquer direito autoral, e quero desejar ao senhor todo o sucesso que espera com o seu Teatro Experimental do Negro. Conheço perfeitamente as condições que descreve sobre o teatro brasileiro. Nós tínhamos exatamente as mesmas condições em nosso teatro antes de O imperador Jones ser encenado em Nova York em 1920 – papéis de qualquer destaque eram sempre representados por atores brancos pintados de preto. (Isso, naturalmente, não se aplica às comédias musicadas ou ao vaudeville, onde uns poucos negros conseguiram grande sucesso). Depois que O imperador Jones, representado primeiramente por Charles Gilpin e mais tarde por Paul Robeson, fez um grande sucesso, o caminho estava aberto para o negro representar dramas sérios em nosso teatro. O principal impedimento agora é a falta de peças, mas creio que logo aparecerão dramaturgos negros de real mérito para suprir essa lacuna".

Esta generosa adesão e lúcido conselho tiveram importância decisiva em nosso projeto. Transformaram o total desamparo das primeiras horas em confiança e euforia. Ajudaram a que nos tornássemos capazes de suprir com intuição e audácia o que nos faltava em conhecimento de técnica teatral e em recurso financeiro para enfrentar as inevitáveis despesas com cenários, figurinos, maquinistas, eletricistas, contra-regra. Encontramos em Aguinaldo de Oliveira Camargo a força dramática capaz de dimensionar a complexidade psicológica de Brutus Jones. Ricardo Werneck de Aguiar nos ofereceu uma excelente tradução. Os mais belos e menos onerosos cenários que poderíamos pretender foram criados pelo pintor Enrico Bianco, os quais se tornaram clássicos no teatro brasileiro. A colaboração desses dois amigos brancos do teatro negro iniciou uma tradição que depois se consolidaria com a ação solidária de muitos outros amigos do TEN, entre eles o fotógrafo José Medeiros, o diretor teatral Willy Keller, o cenógrafo Santa Rosa, o diretor Léo Jusi, assim como o ator Sady Cabral, que encarnou o Smithers de O imperador Jones.

Sob intensa expectativa, a 8 de maio de 1945, uma noite histórica para o teatro brasileiro, o TEN apresentou seu espetáculo fundador. O estreante ator Aguinaldo Camargo entrou no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde antes nunca pisara um negro como intérprete ou como público, e, numa interpretação inesquecível, viveu o trágico Brutus Jones, de O'Neill. Na sua unanimidade, a crítica saudou entusiasticamente o aparecimento do Teatro Experimental do Negro e do grande ator negro Aguinaldo Camargo, comparando-o em estrutura dramática a Paul Robeson, que também desempenhou o mesmo personagem nos Estados Unidos. Henrique Pongetti, cronista de O Globo, registrou: "Os negros do Brasil – e os brancos também – possuem agora um grande astro dramático: Aguinaldo de Oliveira Camargo. Um anti-escolar, rústico, instintivo grande ator".

Um clima de pessimismo e descrença dos meios culturais havia cercado a estréia do TEN, expresso nessas palavras do escritor Ascendino Leite:

"Nossa surpresa foi tanto maior quanto as dúvidas que alimentávamos relativamente à escolha do repertório que começava, precisamente, por incluir um autor da força e da expressão de um O'Neill. Augurávamos para o Teatro Experimental do Negro um redondo fracasso. E, no mínimo, formulávamos censuras à audácia com que esse grupo de intérpretes, quase todos desconhecidos, ousava enfrentar um público que já começava a ver no teatro mais do que um divertimento, uma forma mais direta de penetração no centro da vida e da natureza humana. Aguinaldo Camargo em O Imperador Jones foi, no entanto, uma revelação".

R. Magalhães Júnior traduziu o desejo dos que não assistiram:

"O espetáculo de estréia do Teatro do Negro merecia, na verdade, ser repetido, porque foi um espetáculo notável. E notável por vários títulos. Pela direção firme e segura com que foi conduzido. Pelos esplêndidos e artísticos cenários sintéticos de Enrico Bianco. E pela magistral interpretação de Aguinaldo de Oliveira Camargo no papel do negro Jone"s.

Infelizmente, as circunstâncias não permitiram a repetição daquele espetáculo, pois o palco do Teatro Municipal havia sido concedido ao TEN por uma única noite, e assim mesmo por intervenção direta do Presidente Getúlio Vargas, num gesto no mínimo insólito para os meios culturais da sociedade carioca.

Conquistara o TEN sua primeira vitória. Encerrada estava a fase do negro sinônimo de palhaçada na cena brasileira. Um ator fabuloso como Grande Otelo poderia de agora em diante continuar extravasando sua comicidade. Mas já se sabia que outros caminhos estavam abertos e que só a cegueira ou a má vontade dos empresários continuaria não permitindo que as platéias conhecessem o que, muito acima da graça repetida, seria capaz o talento de atores negros como Grande Otelo e Aguinaldo Camargo.

Como diria mais tarde Roger Bastide, o TEN não era a catarsis que se exprime e se realiza no riso, já que o problema é infinitamente mais trágico: o do esmagamento da cultura negra pela cultura dominante.

A primeira vitória abriu passagem à responsabilidade do segundo lance: a criação de peças dramáticas brasileiras para o artista negro, ultrapassando o primarismo repetitivo do folclore, dos autos e folguedos remanescentes do período escravocrata. Almejávamos uma literatura dramática focalizando as questões mais profundas da vida afro-brasileira. Toda razão tinha o conselho de O'Neill. Uma coisa é aquilo que o branco exprime como sentimentos e dramas do negro; outra coisa'é o seu até então oculto coração, isto é, o negro desde dentro. A experiência de ser negro num mundo branco'é algo intransferível.

Enquanto não dispunha dessa literatura dramática específica, o TEN continuou trabalhando. Ao imperador Jones seguiram-se outros textos de O'Neill, a começar por Todos os filhos de Deus têm asas, encenado em 1946 no Teatro Fênix, com cenários de Mário de Murtas. Trocando de lugar comigo, Aguinaldo Camargo assumiu, desta vez, a direção dos intérpretes Ruth de Souza, Abdias do Nascimento, Ilena Teixeira, e José Medeiros. Cristiano Machado, do Vanguarda, comentou na sua crítica que "Não basta apenas representar O'Neill; o autor de Todos os filhos de Deus têm asas exige que o saibam representar. Foi o que aconteceu no espetáculo a que assistimos no Fênix". Mais tarde, o TEN ainda produziu, de Eugene O'Neill, O moleque sonhador e Onde está marcada a cruz.


Literatura dramática negro-brasileira

No seguinte ano de 1947, houve, afinal, o encontro com o primeiro texto brasileiro escrito especialmente para o TEN:—O filho pródigo, um drama poético de Lúcio Cardoso, inspirado na parábola bíblica. Com cenário de Santa Rosa, o artista que renovou a arte cenográfica do teatro brasileiro, e interpretação principal de Aguinaldo Camargo, Ruth de Souza, José Maria Monteiro, Abdias do Nascimento, Haroldo Costa e Roney da SilvaO filho pródigo foi considerado por alguns críticos como a maior peça do ano teatral. Em seguida, o TEN montou Aruanda, outro texto especialmente criado para ele, escrito por Joaquim Ribeiro. Trabalhando elementos folclóricos da Bahia, o autor expõe de forma tosca a ambivalência psicológica de uma mestiça e a convivência dos deuses afro-brasileiros com os mortais.

Nossa encenação compôs um espetáculo integrado organicamente, com dança, canto, gesto, poesia dramática, fundidos e coesos harmonicamente. Usamos música de Gentil Puget e pontos autênticos recolhidos dos terreiros de candomblé. O resultado mereceu do poeta Tasso da Silveira este julgamento: "É um misto curioso de tragédia, opereta e ballet. O texto propriamente dito constitui, por assim dizer, simples esboço: umas poucas situações esquemáticas, uns poucos diálogos cortados, e o resto é música, dança e canto. Acontece, porém, que com tudo isso, Aruanda resulta numa realização magnífica de poesia bárbara".

Quando terminamos a temporada de Aruanda, as dezenas de tamboristas, cantores e dançarinos organizaram outro grupo para atuar especificamente nesse campo. Depois de usar vários nomes, esse conjunto se tornaria famoso e conhecido como Brasiliana, havendo percorrido quase toda a Europa durante cerca de dez anos consecutivos.

Há um autor que divide o Teatro Brasileiro em duas fases: a antiga e a moderna. É Nelson Rodrigues. Dele é Anjo negro, peça que focaliza sua trama no enlace matrimonial de um preto com uma branca. Ismael e Virgínia se erguem como duas ilhas, cada qual fechada e implacável no seu ódio. A cor produz a anafilaxia que deflagra a violenta ação dramática e reduz os esposos à condição de inimigos irremediáveis. Virgínia assassina os filhinhos pretos; Ismael cega a filha branca. É a lei de talião cobrando vida por vida, crime por crime. São monstros gerados pelo racismo que têm nessa obra a sua mais bela e terrível condenação. Ismael responde: "– Sempre tive ódio de ser negro", quando a tia o adverte sobre a mulher: "– Traiu você para ter um filho branco". Prisioneira das muralhas construídas pelo marido para afastá-la do desejo de outros homens, Virgínia ameaça: "– Compreendi que o filho branco viria para me vingar. De ti, me vingar de ti e de todos os negros".

Infelizmente, a encenação de Anjo negro (1946) não correspondeu à autenticidade criadora de Nelson Rodrigues. O diretor Ziembinski adotou o critério de supervalorizar esteticamente o espetáculo, em prejuízo do conteúdo racial. Foi usada a condenável solução de brochar um branco de preto para viver no palco o Ismael. Tal fato estava intimamente ligado a outro: Anjo negro teve muita complicação com a censura. Escolhida a peça para figurar no repertório de temporada oficial do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, impuseram as autoridades uma condição: que o papel principal de Anjo negro fosse desempenhado por um branco pintado. Temiam, naturalmente, que depois do espetáculo o Ismael, fora do palco e na companhia de outros negros, saísse pelas ruas caçando brancas para violar...

Dir-se-á uma anedota. Entretanto, não existe nem ironia nem humorismo. É fato que, aliás, se repetiu por ocasião da montagem de Pedro Mico, de Antonio Callado. A imprensa refletiu a apreensão de certas classes, achando possível a população do morro entender a representação em termos de conselho à ação direta. Os favelados, a imensa maioria de negros, desceriam dos morros para agressões à moda Pedro Mico que, por seu turno, deseja reeditar os feitos de Zumbi dos Palmares. Antonio Callado realizou obra da maior importância, sacrificada na montagem do Teatro Nacional de Comédia (órgão do Ministério da Educação e Cultura) pela caricatural figura betuminosa do Pedro Mico, ressalvando-se a excelente categoria do ator Milton Morais.

Recentemente, em 1994, houve uma encenação de Anjo negro livre dos ditames da censura institucionalizada e dotada com a feliz participação de atores e atrizes negros como Léa Garcia, Jacyra Silva, Ruth de Souza e Antonio Pompeu. Entretanto, mais uma vez o conteúdo da peça foi preterido, desta vez em favor da dimensão erótica-sensual. Houve até cortes de texto na tentativa de esvaziar a questão racial, verdadeiro âmago da obra, abordada pelo gênio de Nélson de forma tão contundente que dificilmente a sociedade brasileira, até hoje, consegue compreendê-la.

Em 1948, José de Morais Pinho escreveu para o TEN Filhos de santo, peça ambientada na sua cidade do Recife. O texto entrelaça questões de misticismo e exploradores de Xangô (o candomblé da região) com a história de trabalhadores grevistas perseguidos pela polícia. Paixão mórbida de um branco pela negra Lindalva, que se torna tuberculosa pelo trabalho na fábrica. Sério, bem construído, Filhos de santo subiu à cena no Teatro Regina (Rio de Janeiro, 1949).

Medéa sugeriu a Agostinho Olavo sua obra Além do rio (1957). O autor apenas se apóia na espinha dorsal da fábula grega e produz peça original. Conta a história de uma rainha africana escravizada e trazida para o Brasil do século XVII. Feita amante do senhor branco, ela trai sua gente, é desprezada pelos ex-súditos escravizados. Chega o dia do amante querer um lar, um casamento normal com uma esposa branca, de posição social. Rompe sua ligação com Medéa, mas quer levar os filhos. A rainha mata seus próprios filhos, no rio, e retorna a seu povo, convocando: "– Vozes, ó vozes da raça, ó minhas vozes, onde estão? Por que se calam agora? A negra largou o branco. Medéa cospe este nome e Jinga volta à sua raça, para de novo reinar!" A dinâmica visual do espetáculo baseava-se nos cantos e danças folclóricas – maracatu, candomblé – complementadas pelos pregões dos vendedores de flores, frutos e pássaros.

A fusão dos elementos trágicos plásticos e poéticos resultaria numa experiência de négritude em termos de espetáculo dramático que o TEN propunha-se a apresentar ao Primeiro Festival Mundial das Artes Negras, realizado em Dacar no ano de 1966. Com a conquista da independência do Senegal, Dacar havia se tornado a capital da négritude, movimento político-estético protagonizado pelos poetas antilhanos Aimée Césaire e Léon Damas e pelo Presidente do Senegal, poeta Léopold Senghor.

négritude proporcionara ao movimento de libertação dos países africanos grande impulso histórico e fonte de inspiração. Ao mesmo tempo, influenciou profundamente a busca de caminhos de libertação dos povos de origem africana em todas as Américas, prisioneiros de um racismo cruel de múltiplas dimensões. No Brasil, enfrentando o tabu da "democracia racial", o Teatro Experimental do Negro era a única voz a encampar consistentemente a linguagem e a postura política da négritude, no sentido de priorizar a valorização da personalidade e cultura específicas ao negro como caminho de combate ao racismo. Por isso, o TEN ganhou dos porta-vozes da cultura convencional brasileira o rótulo de promotor de um suposto racismo às avessas, fenômeno que invariável e erroneamente associavam ao discurso da négritude.

Nessas circunstâncias, era compreensível e legítima a nossa ânsia em participar do festival, conhecer de perto o Senegal e os protagonistas da négritude, e trocar experiências com os colegas no exterior, engajados que estávamos na mesma luta. Nada mais natural, aliás, do que nossa presença num festival cujo primordial sentido era o de marcar o momento da conquista da independência dos países africanos com uma homenagem ao papel de sua cultura, mundialmente difundida, como catalisadora do processo libertário – pois era exatamente nesse sentido que o TEN trabalhava a cultura negra no Brasil.

Entretanto, o festival era um acontecimento patrocinado pela Unesco, organismo intergovernamental, e as gestões para a participação das delegações eram feitas através de canais oficiais. O governo brasileiro desmereceu o trabalho do TEN como manifestação de arte negra digna de patrocínio para participar do evento. Historiando o episódio da intolerância racial do nosso Ministério do Exterior, omitindo o TEN da delegação brasileira, escrevemos uma "Carta Aberta" dirigida aos participantes do Festival, à Unesco, e ao Governo da República do Senegal, publicada em 1966 nas revistas Présence Africaine (Paris/Dacar, vol. 30, n. 58) e Tempo Brasileiro (Rio de Janeiro, ano IV, n. 9-10). Sob as mais falsas alegações, o TEN foi excluído e Além do rio ficou aguardando a oportunidade de sua revelação no palco.

Outra peça inspirada na atuação do TEN foi O castigo de Oxalá, escrita em 1961 por um dos poucos autores dramáticos afro-brasileiros da época, Romeu Crusoé, e encenada pelo grupo amadorista Os Peregrinos, no Teatro da Escola Martins Pena.

O escritor afro-brasileiro Rosário Fusco, conhecido como a enfant terrible das letras brasileiras e diretor da revista literária Verde de Cataguazes, escreveu para o Teatro Experimental do Negro, em 1946, o seu Auto da noiva, Farsa em um ato (prólogo e quatro quadros). Deliciosa paródia crítica da perversa ideologia da "democracia racial" brasileira, o Auto da noiva não chegou a ser encenado no Brasil, embora o TEN tenha trabalhado o texto em várias leituras e ensaios. Foi apenas em 1974, numa distante cidade norte-americana de Bloomington, Indiana, que a universidade daquele Estado produziu a peça em português. Tive a alegria de assistir à encenação, levada com muita competência pelos alunos do Departamento de Línguas e Letras Românicas.

Ironides Rodrigues, literato autodidata e homem culto da comunidade afro-brasileira, escreveu uma Sinfonia da favela, encenada por um grupo amador carioca na década dos 1950. Também nos deu sua versão de Orfeu negro.

De minha autoria, surge, em 1952, a Rapsódia negra, espetáculo que lançou duas artistas de grande destaque: a primeira dançarina do espetáculo foi a coreógrafa Mercedes Batista, recém-chegada de seus estudos em Nova York com Katherine Dunham, e a atriz Léa Garcia, cuja arte de interpretação continua a enriquecer a vida cultural do país.

Em 1951, já havia escrito o mistério negro Sortilégio, cuja encenação fora proibida pela censura. Durante vários anos, tentamos a liberação da obra, incriminada, entre outras coisas, de imoralidade. Finalmente, em 1957, o TEN apresentou Sortilégio no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e de São Paulo, com direção de Léo Jusi, cenário de Enrico Bianco, e música de Abigail Moura, regente da Orquestra Afro-Brasileira. O mistério tem seu nervo vital nas relações raciais brasileiras e no choque entre a cultura e a identidade de origem africana e aquela da sociedade dominante eurocentrista. A peça propõe uma estética afro-centrada como parte essencial na composição de um espetáculo genuinamente brasileiro. A respeito de Sortilégio, após falar no bailado dos orixás e dos mortos, nas cantigas das filhas-de-santo, no realismo da questão racial misturado à poesia da macumba carioca, o professor Roger Bastide comenta:

"Do ponto de vista das idéias, é o drama do negro, marginal entre duas culturas, a latina e a africana (como entre as duas mulheres, infelizmente igualmente prostitutas); pode-se discutir a solução, a volta à África... A salvação é na mecânica ligada a uma mística africana, e o Brasil pode trazer esta mensagem de fraternidade cultural ao mundo. Mas do ponto de vista teatral, esta volta à África é muito patética; através da bebida de Exu e da loucura, todo um mundo volta das sombras da alma..."


Acrescenta Nelson Rodrigues a respeito de Sortilégio: "Na sua firme e harmoniosa estrutura dramática, na sua poesia violenta, na sua dramaticidade ininterrupta, ela constitui uma grande experiência estética e vital para o espectador".

Uma segunda versão do Sortilégio resultou de minha estada de um ano na Nigéria, na cidade sagrada de Ile-Ife (1976-1977). Introduzindo na peça novos personagens e cenários, aprofundamos a dimensão da cultura africana fundamental a seu desenvolvimento. A dimensão histórica também mereceu maior destaque na segunda versão, com referência específica à saga de Zumbi dos Palmares.

Em inglês, estão publicadas as duas versões de Sortilégio, em traduções de Peter Lowndes (primeira versão, editada pela Third World Press, de Chigago, em 1976) e de Elisa Larkin Nascimento (na antologia Crosswinds, organizada por William Branch e editada pela Indiana University Press, 1993).

Quase todas as peças mencionadas estão incluídas em minha antologia de teatro negro-brasileiro, intitulada Dramas para negros e prólogo para brancos, edição do Teatro Experimental do Negro (1961); e uma seleção de críticas e textos sobre o TEN está reunida no volume Teatro Experimental do Negro – Testemunhos, editado em 1966 pela GRD.

O teatro negro como agente de ação social

O TEN visava a estabelecer o teatro, espelho e resumo da peripécia existencial humana, como um fórum de idéias, debates, propostas, e ação visando à transformação das estruturas de dominação, opressão e exploração raciais implícitas na sociedade brasileira dominante, nos campos de sua cultura, economia, educação, política, meios de comunicação, justiça, administração pública, empresas particulares, vida social, e assim por diante. Um teatro que ajudasse a construir um Brasil melhor, efetivamente justo e democrático, onde todas as raças e culturas fossem respeitadas em suas diferenças, mas iguais em direitos e oportunidades.

Dentro desse objetivo, o TEN propunha-se a combater o racismo, que em nenhum outro aspecto da vida brasileira revela tão ostensivamente sua impostura como no teatro, na televisão e no sistema educativo, verdadeiros bastiões da discriminação racial à moda brasileira. No exterior, a elite brasileira propagandeia uma imagem tão distorcida da nossa realidade étnica que podemos classificá-la como uma radical deformação. Essa elite se auto-identifica exclusivamente como branco-européia. Em contrapartida, escamoteia o trabalho e a contribuição intelectual e cultural do negro ou invoca nossas "origens africanas" apenas na medida de interesses imediatos, sem entretanto modificar sua face primeiramente européia na representação do país no mundo todo. Da mesma forma, a cultura "brasileira" articulada pela mesma elite eurocentrista invoca da boca para fora a "contribuição cultural africana", enquanto mantém inabalável a premência de sua identificação e aspiração aos valores culturais europeus e/ou norte-americanos.

Por tudo isso, era urgente uma ação simultânea, dentro e fora do teatro, com vistas à mudança da mentalidade e do comportamento dos artistas, autores, diretores e empresários, mas também entre lideranças e responsáveis pela formação de consciências e opinião pública. Sobretudo, necessitava-se da articulação de ações em favor da coletividade afro-brasileira discriminada no mercado de trabalho, habitação, acesso à educação e saúde, remuneração, enfim, em todos os aspectos da vida na sociedade.

Neste sentido, o TEN organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro para atuar a nível político, reivindicando medidas específicas para melhorar a qualidade de vida de nossa gente. O objetivo imediato do comitê era o de inserir as aspirações específicas da coletividade afro-brasileira no processo de construção da nova democracia que se articulava após a queda do Estado Novo. O comitê era composto de um núcleo de negros ativistas a que se agregaram líderes estudantis, e seu local de reunião era uma sala na sede da UNE. O comitê passou um tempo inicial lutando pela anistia aos presos políticos (na sua maioria brancos). Entretanto, quando chegou a hora de tratar das preocupações específicas à comunidade negra, o projeto foi vítima da patrulha ideológica de supostos aliados que acabou desarticulando o comitê. Invocaram o velho chavão de que o negro, lutando contra o racismo, viria a dividir a classe operária...


O Teatro Experimental do Negro não desanimou. Para concretizar seu projeto de interferir, em prol da comunidade de origem africana, no processo de elaboração da nova constituição do país, organizou a Convenção Nacional do Negro (São Paulo, 1945, e Rio, 1946). Resumindo na sua "Declaração Final" o anseio e as aspirações coletivas do grupo negro, a convenção encaminhou à Constituinte de 1946 (através do Senador Hamilton Nogueira) sua proposta de inserir a discriminação racial como crime de lesa-pátria, com uma série de medidas práticas em prol de sua eliminação. Poucos conhecidos são esses antecedentes da lei antidiscriminatória que ficou conhecida, posteriormente, como Lei Afonso Arinos, e cujos termos ficaram muito aquém do previsto no projeto de emenda constitucional patrocinada pela convenção.

Realizou ainda o TEN o histórico I Congresso do Negro Brasileiro, no Rio de Janeiro, em 1950, cujo documentário está publicado no livro O negro revoltado (segunda edição da Nova Fronteira, 1982). A fim de atingir a alienação estética da sociedade convencional, um Concurso do Cristo Negro foi realizado sob a responsabilidade do sociólogo Guerreiro Ramos, no Rio de Janeiro, em 1955. Os concursos de beleza Rainha das mulatas e Boneca de pixe foram concebidos como instrumento pedagógico buscando realçar o tipo de beleza da mulher afro-brasileira e educar o gosto estético popular, pervertido pela pressão e consagração exclusiva de padrões brancos de beleza. O Instituto Nacional do Negro, a cargo do sociólogo Guerreiro Ramos, realizava nos seus seminários de grupoterapia um trabalho pioneiro de psicodrama, visando a desenvolver uma terapia para a consciência dilacerada do negro vitimado pelo racismo.

O jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro divulgou os trabalhos do TEN em todos os seus campos de ação, entre 1948 e 1951. O jornal trazia reportagens, entrevistas, e matérias sobre assuntos de interesse à comunidade. A precariedade dos recursos financeiros do TEN, e do poder aquisitivo de seu público, não lhe permitiu uma permanência maior.

Em 1968, o TEN abriu outra frente de ação, quando lançou em exposição no Museu da Imagem e do Som a primeira coleção de seu Museu de Arte Negra. Interrompido o projeto em razão da perseguição política do regime militar, o teatro continuou em cena, já em termos internacionais, através da atuação de seu fundador, exilado, denunciando o racismo brasileiro em vários fóruns do mundo africano, da Europa, das Américas e dos Estados Unidos. Mas isto é outra história.

Conclusão

Fiel à sua orientação pragmática e dinâmica, o TEN evitou sempre adquirir a forma anquilosada e imobilista de uma instituição acadêmica. A estabilidade burocrática não constituía o seu alvo. O TEN atuou sem descanso como um fermento provocativo, uma aventura da experimentação criativa, propondo caminhos inéditos ao futuro do negro, ao desenvolvimento da cultura brasileira. Para atingir esses objetivos, o TEN se desdobrava em várias frentes: tanto denunciava as formas de racismo sutis e ostensivas, como resistia à opressão cultural da brancura; procurou instalar mecanismos de apoio psicológico para que o negro pudesse dar um salto qualitativo para além do complexo de inferioridade a que o submetia o complexo de superioridade da sociedade que o condicionava. Foi assim que o TEN instaurou o processo de revisão de conceitos e atitudes visando à libertação espiritual e social da comunidade afro-brasileira. Processo que está na sua etapa inicial, convocando a conjugação do esforço coletivo da presente e das futuras gerações afro-brasileiras.

*Abdias do Nascimento (1914-2011) foi um dos fundadores da Frente Negra Brasileira (importante movimento iniciado em São Paulo) em 1931, criou o Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944, foi secretário de Defesa da Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Rio de Janeiro, deputado federal pelo mesmo Estado em 1983 e senador da República em 1997. É autor de vários livros: SortilégioDramas para negros e prólogo para brancosO negro revoltado, entre outros. Também é Professor Benemérito da Universidade do Estado de Nova York e doutor Honoris Causa pelo Estado do Rio de Janeiro. 
Este texto foi elaborado com a colaboração de Elisa Larkin Nascimento, a partir de outros ensaios do autor. Publicado originalmente na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 25, 1997, pp. 71-81.



Link relacionado:
O Quilombismo

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Escola dos Annales: legados historiográficos de três gerações (1929-1989)

A proposta deste texto é realizar algumas considerações sobre o papel e a importância da chamada "Escola dos Annales" para a cultura historiográfica do século XX e nestes idos do século XXI, pois embora a chamada Quarta Geração, não possua o mesmo impacto paradigmático das gerações anteriores, ainda sim, a influência dessas três gerações são sentidas nos dias de hoje, principalmente da terceira em aspecto de estudos culturais, e nas duas primeiras em aspectos de estudos sociais e teóricos. 

Nesse texto procurei apresentar um pouco da história do surgimento da Revue Annales d'historie économique et sociales (Revista dos Anais de história econômica e social), mais conhecida como revista dos Annales. Assim como falar sobre os principais historiadores que representaram essa revista e a contribuição metodológica e teórica para a historiografia do século XX. 

INTRODUÇÃO:

Para compreendermos os motivos que levaram os historiadores franceses Marc Léopold Benjamin Bloch (1886-1944) e Lucien Paul Victor Febvre (1878-1956) a se unirem para criar uma revista de história a fim de publicar suas ideias e propostas teóricas, devemos conhecer o contexto da cultura histórica e da cultura historiográfica vigentes na França no final do século XIX e no começo do século XX, aspectos estes que marcaram o desenvolvimento teórico e metodológico destes dois historiadores. Na França dos anos 20, a influência do Positivismo, da "Escola Metódica" e do Historicismo ainda vigoravam. 

Auguste Comte
O Positivismo foi concebido pelo filósofo e sociólogo francês, Auguste Comte (1798-1857), consistindo numa doutrina filosófica, sociológica e política que ao longo da História tomou novos conceitos e sentidos. Daí ser recomendável usar Positivismo Comteano para se referir a doutrina original, pois hoje existem várias formas de Positivismo, e nem todas são iguais ao conceito original. Mas, na sua origem, Comte concebia o positivismo como uma doutrina que se opunha ao racionalismo cartesiano, ao idealismo, as explicações teológicas e metafísicas. Para ele, o mundo deveria ser explicado através do sentidos e do que era palpável, logo, a ideia de racionalismo de René Descartes, que considerava a razão acima da própria realidade, e que o conhecimento era nato, não era vista como fundamento empírico por Comte, assim como, o fato de você atribuir causas a questões divinas e metafísicas, que estariam relacionadas a vontade de Deus. Comte privilegiava o conhecimento empírico, assim como Francis Bacon havia escrito no começo do século XVII. Ao mesmo tempo, sua doutrina visava construir um modelo de ética, para o trabalho científico, e até mesmo para a convivência em sociedade. 

"O positivismo foi considerado por Augusto Comte como a base e o fundamento metodológico de uma nova ciência social, a 'física social' ou 'sociologia'. Mais tarde, o positivismo foi concebido por Comte como uma nova religião da humanidade". (Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, p. 4736). 

Para Comte a humanidade deveria cada vez mais, buscar a razão e o conhecimento científico, evitando explicações teológicas e metafísicas, as quais ele via como crendices e superstições de mentes ignorantes. A ciência seria a explicação para o mundo e o universo. Tais ideias foram bastante fortes no século XIX, a ponto de influenciar o meio acadêmico da época, e no caso da história não foi diferente.

Leopold von Ranke
Na Alemanha um historiador chamado Leopold von Ranke (1795-1886) influenciado por algumas das características do positivismo comteano, começou a questionar a forma de como a História vinha sendo estudada, pesquisada e escrita. Ranke ficaria conhecido como o "Pai da história moderna" ou o "Pai da história científica". Ranke tinha a preocupação de contar a história da forma mais próxima da realidade que ela foi, algo que ficou conhecido como Historicismo

"O que era novo sobre a abordagem historicista era sua generalização de que a atmosfera e a mentalidade das eras passadas tinham que ser também reconstruídas, pois só assim o registro formal dos eventos teria qualquer significado". (TOSH, 2011, p. 22). 

Um dos problemas que o historicismo apresentou, foi seu forte conservadorismo em se tratar da história política nacional, algo que inibiu o desenvolvimento da historiografia pelo restante do século, pois mesmo a história cultural, a história social e econômica que já existiam no século XIX, não tinham muito espaço no meio acadêmico, fortemente historicista, e posteriormente metodista e positivista, metodologias que possuíam em comum essa tentativa de se "resgatar o passado" ou se "refazer o passado".

Para Ranke, a história deveria ser melhor analisada através dos documentos, de forma a se evitar enganos e identificar fraudes documentais. Sua formação em filologia contribuiu para isso. Não obstante, sua ideia de cientificidade, tentava aproximar a história das ciências exatas, uma pretensão de encontrar exatidão no saber histórico, daí a referência de se escrever uma "história universal", ideia que esteve em alta no século XIX. 


O problema disso é que o passado por si só não é História, a História não chega ao historiador já pronta e finalizada nos documentos, como os positivistas e metódicos acreditavam. A História consiste numa reunião de fragmentos do passado (Certeau, 2009; Chartier, 2009), um discurso que representa o passado. Nesse aspecto, o historiador hoje, busca representar o passado, mas não reconstruí-lo ou refazê-lo, pois isso é impossível. O passado é um grande quebra-cabeça, e nem todas as peças foram encontradas e algumas talvez nunca serão achadas. Tentar contar a História plenamente como Ranke propunha, é uma questão impossível. 

Mas se por um lado o historicismo sofreu duras críticas no começo do século XX, especialmente pelos franceses e ingleses, não significa que Ranke não tivera em o que contribuir. Ranke chegou a escrever mais de 60 livros, embora muitos não são tão conhecidos e alguns até raros de se encontrar hoje, mas como Holanda [1979] dissera, sua principal contribuição não se encontra na forma de se entender a História e pensar sobre ela, mas sim na metodologia de como se estudá-la.

"Foi ele quem criou para os estudos históricos o sistema dos seminários, que aos poucos iriam proliferar em outros países  Ao mesmo tempo desenvolveu recursos de pesquisa e crítica das fontes, adaptando para isso, à História, processos já em uso, antes dele, entre filólogos e exegetas da Bíblia. (HOLANDA, 1979, p. 16).

Ranke defendia a cientificidade da História, embora não negasse que a historiografia (escrita da história) tivesse uma proximidade com a Literatura, devido a narrativa histórica, para ele a influência da linguagem romanceada deveria ser deixada de lado. Tal aspecto se fez como uma crítica a outros historiadores da época que eram influenciados pelo movimento artístico, político e filosófico do Romantismo, como foi o caso do historiador e filósofo francês, Jules Michelet (1798-1846).

Contudo, embora sua defesa de uma "historia ciência" e de um "método mais eficaz" para se escolher as fontes, analisá-las e desenvolver a crítica documental, sua tendência em se privilegiar a história política, foi um dos principais motivos de crítica ao seu trabalho, embora que é inegável que o historicismo esteve em alta na Alemanha e França no final do século XIX e começo do XX, tornando-se uma área dominante, e um dos principais motivos de crítica que Bloch e Febvre viriam fazer com sua revista futuramente. 

Unindo-se as ideias comtianas sobre o positivismo e o método de pesquisa de Ranke, surgiu na Alemanha um grupo de historiadores que passaram a serem chamados de metódicos. Ranke se tornou um dos principais expoentes dessa cultura historiográfica na Alemanha. 

"A escola metódica é criada “em torno de um axioma, o da história como “ciência positiva” (DOSSE, 2003ª, p. 39-40), fugindo do subjetivismo em nome da ciência e do respeito à verdade. Estes historiadores metódicos afirmavam, através de suas revistas não serem defensores de nenhum credo dogmático e que apenas buscavam o máximo possível de exatidão para com as fontes". (FARIAS;FONSECA;ROIZ, 2006, p. 121).

"O primeiro objetivo, deste movimento, era o de delinear maneiras claras na abordagem documental (métodos), para os historiadores profissionais. O historiador deveria estar ciente de que pertencia a uma comunidade de profissionais que zela pela objetividade, e que seu papel era apresentar seus escritos sem qualquer traço da estética literária; um discurso frio, duro e sem qualquer resquício das “paixões” pessoais do historiador; ele deveria somente descrever o que está objetivamente contido na fonte, deixando o que há de subjetivo nela. O historiador deveria rechaçar qualquer precipitação imaginativa: “o ponto de partida do ofício de historiador envolvia pesquisar documentos, reuni-los, classificá-los e, com o amparo das chamadas ‘ciências auxiliares’ da história, proceder à crítica externa, especialmente sobre a origem das fontes; em seguida passar à crítica interna visando à determinação dos fatos para, finalmente, coroar com a construção narrativa, agrupando e ordenando os fatos numa seqüência de causalidades” (SILVA, 2001, p. 196)". (FARIAS;FONSECA;ROIZ, 2006, p. 121-122).

Na França, tivemos dois notórios historiadores metodistas, Charles-Victor Langlois (1863-1929) e Charles Seignobos (1854-1942), proeminentes doutores da Universidade de Sorbonne, o qual era então o centro dos estudos de história e da formação de historiadores em França. Os dois são bastante lembrados por seu livro Introdução aos estudos históricos (1898), onde eles repensaram a metodologia da "Escola Metódica". Obra essa que se tornou de leitura obrigatória nos cursos de história na França. Tal fato levou Bloch e Febvre a chegarem ler tal livro. "Este famoso livro é tido como principal manual dos cultores desta História, por expressar o “pensamento metódico ao explorar em detalhes os procedimentos para a coleta de fontes, operações analíticas, críticas interna e externa de documentos, defendendo a compreensão do particular e do circunscrito para se chegar a conhecer o específico da história” (JANOTTI, 2005, p. 12). Apesar, dessa tênue “flexibilidade”, o manual manteve ileso os aspectos essenciais, principalmente, no trato do subjetivismo, não o negando em momento algum". (FARIAS; FONSECA; ROIZ, 2006, p. 122).


Gabriel Monod
Outro importante metodista francês, foi o historiador Gabriel Monod (1844-1912) lembrado entre algumas de suas obras, por ter criado a Revue historique (Revista histórica ou Revista de história) em 1904. Monod foi um árduo defensor da profissionalização do historiador, pois no século XIX e começo do XX, vários historiadores amadores escreviam sobre história. Monod foi mais conservador e menos flexível que Langlois e Seignobos acerca do metodismo. Para ele apenas os historiadores deveriam escrever a História, e essa escrita deveria ser isenta de qualquer influência literária e passional. Neste sentido, ele alegava que alguns temas só deveriam ser tratados muitos anos depois, para se evitar que as "paixões" do historiador interferissem em seu julgamento. 

"A grandeza do historiador estava na capacidade de controlar sua subjetividade. Segundo François Dosse, “o ‘bom historiador’ metódico é(era) reconhecível por seu amor ao trabalho, sua modéstia e critérios incontestáveis de seu julgamento científico”, rejeitando o que “Langlois e Seignobos chama[vam] de ‘a retórica’ e as aparências ou ‘micróbios literários’ que poluem o discurso histórico culto” (DOSSE, 2003ª, p. 38-41). Mas como fugir da sombra da subjetividade que tanto persegue o historiador? Convém lembrar que os processos imprescindíveis da “crítica externa” e da “crítica interna”, supramencionados, encontravam-se na obra Introdução aos Estudos Históricos, e essa foi a resposta dos autores a esta indagação. O subjetivismo estaria contido na fonte, bastaria então que o historiador virtuoso o controlasse, e, se possível, o ocultasse. Para estes autores “a história tinha como objetivo descrever por meio de documentos as sociedades passadas e suas metamorfoses". (FARIAS;FONSECA;ROIZ, 2006, p. 122).


Por essa perspectiva, os metódicos defendiam que a História deveria apenas ser escrita e ensinada por historiadores, estando recluso o seu debate ao meio acadêmico. Essa questão é importante a ser mencionada, pois na França antes de 1870 não havia um Curso de História regular nas universidades. 

No ensino fundamental e médio, a História teria um papel de doutrinação nacionalista. Em 1815 o ensino de história começou a se tornar regular nas escolas, especificamente para o ensino médio ou no caso da época, os períodos chamados de seconde, premiére e terminale. No ensino fundamental, especialmente a fase que compreendia o que hoje chamamos de sexta, sétima, oitava e nona série, o ensino de história na regular. Em 1864 durante a Segunda República Francesa, o Estado começou a cobrar o ensino da História na oitava série, chamada na época de quatrième. No final do século, o governo francês começou a propor a criação de cursos de pós-graduação para várias disciplinas, o que incluía a história. 


Em 1878 a Universidade de Paris-Sorbonne só possuía duas cátedras (disciplinas) em História e mesmo assim tais disciplinas eram realizadas no Departamento de Geografia. Em 1912, o número de cátedras subiu para 12 e dois anos depois já eram 55, o que levou a criação de um Departamento de História. Ao longo do século XIX a história nas universidades era ensinada nos cursos de Letras ou Geografia.  A partir de 1880 com a criação do agregátion para o ensino superior, vários historiadores do ensino fundamental e médio, começaram a fazer essas provas para ingressar nas universidades. Mas, além de historiadores, outros estudiosos de outras áreas também fizeram tal prova para o cargo de professor de história, pois a profissão de historiador como apontara Prost (2008, p. 34-35) ainda não era regularizada na França Oitocentista. 


Além da questão de tentar transformar a História numa ciência "exata", e deliberar que a escrita e a pesquisa da mesma fosse feita apenas por profissionais. A "Escola Metódica" e o pensamento positivista comteano, também refletiam no aspecto que a "história presente" deveria ser posta de lado, pois devido a brevidade dos acontecimentos, e dependendo da sua ordem, isso poderia influenciar no seu estudo. Os metódicos falavam que o historiador que escrevia sobre a "história presente", estava sob a influência de "ideias" ou "paixões" que poderiam afetar sua imparcialidade e juízo de valores. Pelo fato do historicismo ser a principal área de estudo nessa época, falar sobre política sempre foi algo polêmico, logo, recomendava-se que tais assuntos fossem postos de lado, e se espera-se o tempo passar, para se "apagar" eventuais "paixões" sobre estas causas. Tal repercute quando vemos que a maioria dos historiadores dessa época estudavam a Antiguidade, o Medievo e a Modernidade, limitando-se a Contemporaneidade a pelo menos uns 30 anos antes da data que estavam vivendo. 


O pensamento metódico de certo modo contribuiu para essa necessidade de se melhorar o ensino de História na França e a formação acadêmica dos historiadores. O Estado francês tomou como exemplo o modelo alemão, o qual até então era o melhor em termos universitários da época. Assim de 1870 a 1930, a influência da "Escola Metódica" e do historicismo foram preponderantes na formação acadêmica e escolar francesa. 

PRIMEIRA GERAÇÃO (1929-1946)

"A primeira geração, liderada por Marc Bloch e Lucien Febvre, compreende o período entre 1929 e 1946. É marcada por alianças entre história, economia, sociologia, geografia e demografia, pelos conceitos de compressão, história-problema, história global e pelo trabalho de superação dos princípios que regiam a história tradicional como a história política e a história dos eventos". (PORTO, 2010, p. 133). 

Os fundadores:

Se na introdução conhecemos a cultura historiográfica vigente na França em fins do XIX e começo do XX, passamos para conhecer um pouco da formação dos fundadores dos Annales

"O movimento dos Annales, em sua primeira geração, contou com dois líderes: Lucien Febvre, um especialista no século XVI, e o medievalista Marc Bloch. Embora fossem muito parecidos na maneira de abordar os problemas da história, diferiam bastante em seu comportamento. Febvre, oito anos mais velho, era expansivo, veemente e combativo, com uma tendência a zangar-se quando contrariado por seus colegas; Bloch, ao contrário, era sereno, irônico e lacônico, demonstrando um amor quase inglês por qualificações e juízos reticentes. Apesar, ou por causa dessas diferenças, trabalharam juntos durante vinte anos entre as duas guerras". (BURKE, 1992, p. 28).


Marc Bloch
Marc Léopold Benjamin Bloch nasceu em 6 de julho de 1886 em Lyon, sendo filho de Gustave Bloch (1848-1923) o qual também foi um historiador, sendo especializado em Idade Antiga e Idade Média. Marc ingressou no Liceu Louis-le-Grand, e em 1904 passou para a Escola Normal Superior de Paris, onde quatro anos depois, prestou o agregátion, e foi aprovado como professor de história e geografia. Viajou por um breve tempo a Berlim e Leipzig, até que foi aprovado em 1909 na Fundação Thiers, onde estudou por quatro anos como bolsista. Atuou como professor de história no ensino médio até a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Bloch foi convocado a servir o país, atuando na infantaria, onde recebeu as patentes de sargento, tenente e capitão. Liderou tropas, foi ferido em batalha, e também ganhou duas honrarias: a Legião de Honra e a Cruz Militar. Em 1919 casou-se com Simone Vidal, com quem teve seis filhos. No mesmo ano foi aceito para se tornar professor de história na Universidade de Estrasburgo. Mudou-se com a família para essa importante cidade no leste da França, próximo a fronteira com a Alemanha. 


Bloch se especializou em história medieval, tornando-se um respeitado medievalista em seu tempo. Em 1924 publicou Os reis taumaturgos (Les rois thaumaturges: Étude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale particulièrement en France et en Angleterre). Tal livro foi bem peculiar para a época, pois Bloch abordou crendices populares ligadas a ideia do "toque de cura dos reis", pois entre a Idade Média e a Idade Moderna, havia a crendice em França e Inglaterra que os reis possuíam dons de cura. 


"Em segundo lugar, o livro era uma contribuição ao que Bloch denominava “psicologia religiosa”. O núcleo central do estudo era a história dos milagres e concluía com uma discussão explicita do problema de como explicar que o povo pudesse acreditar em tais “ilusões coletivas” (Idem, p. 420 ss). Observou ainda que alguns doentes retornavam para serem tocados uma segunda vez, o que sugere que sabiam ter o tratamento fracassado, mas que o fato não destruía sua fé". (BURKE, 1992, p. 37).

Uma edição de Os reis taumaturgos, prefaciada por Jacques Le Goff. 
"Um terceiro aspecto que enfatiza a importância do estudo de Bloch é o que seu autor chama de “história comparativa”. Algumas comparações são feitas com sociedades distantes da Europa como a Polinésia, embora sejam feitas de passagem e com extrema cautela: (“não transfiramos os Antípodas para Paris ou Londres”) (Bloch, 1924, pp. 52ss, 421n.). A comparação entre a França e a Inglaterra, porém, é central no livro, os dois únicos países em que o toque real era praticado. Acrescente-se, porém, que a comparação é feita de maneira a permitir a constatação das diferenças". (BURKE, 1992, p. 38).

Bloch realizou uma análise não política como tradicionalmente era feito devido a forte influência historicista, mas procurou abordar outros tipos de fontes, e chegou a realizar um estudo social e cultural. Uma das grandes questões que ele quis mostrar com esse livro, era que o poder dos reis também poderia está ligado a causas "sobrenaturais", milagrosas, ou como chamava-se na época supersticiosas, crendice popular, mas uma crendice que assegurava a autoridade real. 

Em 1931 ele publicou Les caractères originaux de l'histoire rurale française, onde abordara uma história rural social e econômica da França, conotando o estudo do desenvolvimento agrícola no país no período medieval e moderno. Para este livro, Bloch usou informações do campo da demografia, botânica, economia, agronomia, etc. A obra é importante no sentido que mostrou um uso interdisciplinar da história com outros saberes, algo que comumente não era feito na época.


"Les caractères originaux de l’histoire rurale française é mais famoso, talvez, pela aplicação do “método regressivo”. Bloch encarecia a necessidade de ler a “ história ao inverso”, pois conhecemos mais a respeito dos últimos períodos e deve proceder-se de maneira a ir do conhecido ao desconhecido (Idem, p. xii). Bloch trabalha de maneira eficiente o método, contudo não reclama sua criação. Sob o nome de “método retrogressivo” havia já sido empregado por F.W. Maitland – um estudioso admirado por Bloch – em sua obra clássica Domesday Book and Beyond (1897); o “além” do título refere-se ao período anterior à realização do Domesday Book, em 1086". (BURKE, 1992, p. 45).


Em 1939, ele publicou seu último livro ainda em vida, intitulado A sociedade feudal (Le Société féodale). Nessa obra, Bloch procurou estudar as características do feudalismo como suas origens, formação, desenvolvimento, consolidação, estruturas de poder, estruturas sociais, etc. Ainda hoje, é um livro recomendável para se compreender o feudalismo, embora que hoje já tenhamos trabalhos mais atualizados sobre o assunto. 

"La societé féodale, é o livro pelo qual Bloch é mais conhecido. É uma ambiciosa síntese que abrange mais de quatro séculos de história européia, vai de 900 a 1300, enfocando uma grande variedade de tópicos, muitos dos quais discutidos em outras obras: servidão e liberdade, monarquia sagrada, a importância do dinheiro e outros. Por isso, pode-se afirmar que se trata de uma obra que sintetiza o trabalho de toda a sua vida. Diferentemente de seus primeiros estudos sobre o sistema feudal, não se restringe à análise das relações entre a propriedade agrária, a hierarquia social, a guerra e o estado. Preocupa-se com a
sociedade feudal como um todo, com o que hoje designaríamos “a cultura do feudalismo”. Como também, ainda uma vez, com a psicologia histórica, com o que o autor chamava de “modos de sentir e de pensar”". (BURKE, 1992, p. 46).

Foi durante essa longa fase em Estrasburgo de 1919 a 1936 que Bloch conviveu com outros historiadores, e entre eles, Lucien Febvre, seu grande amigo. 


Lucien Febvre
Lucien Paul Victor Febvre nasceu em 22 de julho de 1878 em Nancy (Meurthe-et-Moselle). Estudou no Liceu de Nancy, posteriormente mudou-se para o Liceu Louis-le-Grand, onde por dois anos estudou retórica superior. Em 1897 com 21 anos, ingressou na Escola Normal Superior e depois por um tempo na Universidade Paris-Sorbonne, até que em 1902 prestou o agregátion em história e geografia. Passou a trabalhar como professor no ensino médio e a escrever sua tese de doutorado, tendo sido orientado por Gabriel Monod. Em 1911 defendeu sua tese intitulada Phillipe II et la Franche-Comté: la crise de 1567, ses origines et ses conséquences, étude d'historie politique, religieuse et sociale. No ano seguinte a Editora Champion publicou sua tese. Nessa obra como aponta no longo título, Febvre procurou analisar essa crise no reinado do rei espanhol, Filipe II, não apenas sob uma óptica política, mas religiosa e social. Aqui podemos notar que o seu estudo sobre essa crise ocorrida no Franco-Condado partiu de um viés triplo, e não do tradicionalismo historicista. Além disso, o foco também não foi estudar a pessoa do rei, mas suas decisões governamentais. Novamente rompia-se com o estudo dos "grandes homens". 

Tornou-se professor na Faculté de Lettres de Dijon (1912-1914), acabou servindo na guerra, onde chegou a patente de capitão, ao ponto de comandar umas das baterias de artilharia. Em 1919 ingressou na Universidade de Estrasburgo onde ficaria até 1931, quando no ano seguinte tornou-se professor no Collège de France, onde manteve-se trabalhando até 1953. 

"Essa fase de sua carreira iniciou-se com quatro conferências sobre os primórdios do Renascimento francês, uma biografia de Lutero e um artigo polêmico sobre as origens da Reforma francesa, a qual descreveu como “uma questão mal posta”. Todos esses trabalhos referiam-se à história social e à psicologia coletiva". (BURKE, 1992, p. 39).

"Escreveu mais de uma dezena de livros e mais de dois mil artigos em revistas especializadas. Participou como fundador da Revue d'Histoire Moderne (1926), da Revue d'Historie de la Seconde Guerre Mondiale, dos Cahiers d'Historie Mondiale. [...]. Colaborou, principalmente, na Revue de Synthèse Historique, na Revue Historique, na Revue de Histoire Moderne e na Revue de Critique d'Historie et Littérature. Dirigiu a Encyclopédie Française (1935-1940), onde pode pôr em prática as suas ideais contra a especialização em história e a favor do espírito de colaboração entre as ciências humanas e sociais". (CORDEIRO JR, 2010, p.71).

Um dos livros que publicou nessa época foi Martinho Lutero, um destino (1928). Talvez, o seu segundo trabalho mais importante se tratando de estudos sobre a Idade Moderna, até então feitos por ele. A temática do Renascimento, da Reforma, das mentalidades modernas, seriam objetos de estudo de Febvre em outras de suas obras. 

Febvre também foi membro de dezenas de instituições científicas e históricas, como também dirigiu algumas delas, além de atuar como consultor e conselheiro. Alguma das instituições que ele atuou estiveram Centre Nationale de Recherche Scientifique (CNRS), Comité Français de sciences historiques, Comission internationale pour i'Histoire de développement scientifique et culturel de i'humanité, e até mesmo na UNESCO.

"Pois o Febvre universitário, predominante aqui, houve um outro, o Febvre militante e cidadão do Socialiste Comtois ou do Comitê de vigilância dos intelectuais antifascista, o Febvre conferencista e organizador, homem de palavra e de ação, enfim um dos últimos espécimes destes historiadores românticos habitados pelo passado para melhor viver no presente, como Michelet, este mestre reconhecido e amado do historiador do Franco-Condado". (CORDEIRO JR, 2010, p. 72 apud CHARLE, 1991, p. 1488). 

Influência das ciências sociais:


Émile Durkheim
No campo das ciências sociais, a sociologia, filosofia, geografia, antropologia, psicologia, etc., haviam se modificado em relação ao século anterior. Na sociologia, o notório sociólogo francês, Émile Durkheim (1858-1917) ainda no final do século XIX começou a publicar importantes trabalhos que redefiniriam o rumo da Sociologia, rompendo com o positivismo de Comte, propondo um novo método para se estudar sociologia, algo visto em seu livro Regras do método sociológico (1895). Em 1896 ele criou a revista L'Année Sociologique que contribuiu para difundir suas ideias pela França e depois Europa e América do Norte. Os trabalhos de Durkheim tiveram grande influência na formação de Bloch. Ainda na sociologia também tivemos os trabalhos do sociólogo, jurista e economista alemão, Max Weber (1864-1920), que ficou mundialmente conhecido com a publicação de seu livro, A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904). Obra essa que Burke [2010] disse que além de tratar de sociologia também possui aspectos culturais. 

Na filosofia tivemos os trabalhos de Henri Berr (1863-1954) que especialmente influenciaram Lucien Febvre, o qual chegou a manter contato e desenvolver uma amizade com esse filósofo francês. Berr em 1900 criou a Revue de synthèse historique, a qual influenciou Febvre quase três décadas depois, a criar sua própria revista. No campo da filosofia também não poderíamos esquecer de Karl Marx (1818-1883). Embora o marxismo não teve uma grande influência na historiografia dos Annales, mas teve uma influência bastante significativa em outros países como Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Brasil. Mas, o pensamento de Marx contribuiu para moldar a Sociologia do início do século XX, juntante com Durkheim e Weber.  


Vidal de La Blache
Da geografia tivemos a influência de Paul Vidal de La Blache (1845-1918), o qual fundou a Escola Francesa de Geografia. Em 1893 em parceira com Lucien Gallois, criou a revista Annales de Géographie, o qual se tornou uma importante revista acadêmica do gênero no país. O geógrafo alemão, Friedrich Ratzel (1844-1904) teve bastante destaque no século XIX, principalmente por seu conceito de "determinismo geográfico". Embora fosse mais conservador do que La Blache, a obra destes dois geográfos influenciaram Febvre, o qual mostrava interesse em unir a geografia a história. Por sua vez, Bloch, visava fazer essa união entre a história e a sociologia. O filósofo, sociólogo e antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) foi um estudioso do qual algumas de suas ideias como "pensamento pré-lógico" e "mentalidade primitiva" influenciaram Febvre nos anos 30. Além disso, Lévy-Bruhl chegou a ser professor Marc Bloch. 

O historiador francês, Émile Mâle (1862-1954) começou a desenvolver trabalhos de ordem cultural, estudando as artes. Sua atenção dada ao estudo das artes no meio social, também influenciou Febvre, assim como os trabalhos do linguista Antoine Meillet (1866-1936) um dos discípulos de Durkheim. 

"Febvre reconheceu também seu débito para com inúmeros historiadores anteriores. Durante toda a vida expressou sua admiração pela obra de Michelet. Reconheceu Burckhardt como um de seus “mestres”, juntamente com o historiador da arte Louis Courajod. Confessa também uma surpreendente influência, a do político de esquerda Jean Jaurès, através de sua obra Histoire socialiste de la révolution française (1901-3), “tão rica em intuições sociais e econômicas” (Febvre, 1922, p.vi. Cf. Venturi, 1966, 5-70)". (BURKE, 1992, p. 30).

Uma das características marcantes dos Annales seria sua tendência a interdisciplinaridade, em se combinar o desenvolvimento metodológico, teórico e técnico de outras ciências sociais para ampliar os horizontes da pesquisa história e seu debate no passado e no presente, de forma a romper com o historicismo.

"O grupo ampliou o território da história abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e do desenvolvimento de novos métodos para explorá-los. Estão também associadas à colaboração com outras ciências ligadas ao estudo da humanidade, da geografia à linguística, da economia à psicologia. Essa colaboração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta anos, um fenômeno sem precedentes das ciências sociais (BURKE, 1997, p. 126-7)".

Uma "crise da história": 

"Durante quase toda primeira metade do século XX, a mentalidade metódica, baseada nas regras da erudição, atingiu de maneira tão ampla e profunda a historiografia que se manteve hegemônica. Entretanto, isto não impediu que a disciplina histórica tivesse sofrido mudanças significativas, especialmente no que concerne ao alargamento do campo de atuação dos historiadores, bem como da expansão das temáticas e das abordagens até então desprezadas ou desconhecidas no século XIX". (CORDEIRO JR, 2010, p. 74).

Após a Primeira Guerra a educação em França sofreu alguns abalos. Parte dos investimentos foram reduzidos, o acesso as universidades ficou mais difícil; o ensino de história nas escolas começou a ser questionado, especialmente na fase do ensino fundamental, pois alguns políticos alegavam que não havia necessidade de ensinar as crianças a História; no campo historiográfico, ao se estudar as causas que levaram ao desencadeamento da guerra, alguns historiadores começaram a observar que apenas fatores de ordem política não justificavam o início daquele conflito. Havia mais por trás de tudo aquilo. Isso levou a uma "crise da história", ou pelo menos, a uma das "várias crises" que a história vivenciou no século XX. Pois de acordo com Chartier [2010] até os anos 90 ainda vivenciava-se uma "crise da história".

"Neste momento, podem-se verificar duas dimensões diferentes e ao mesmo tempo complementares da crise da história: no âmbito das ciências humanas, vive-se de fato uma forte tensão intelectual concernente às limitações da história metódica, que por sua vez revela uma dimensão macro-histórica da problemática social e política das primeiras décadas do século XX. O esforço em garantir objetividade à história, mas se limitando à história política, não mais atendia aos interesses das novas gerações de historiadores que percebiam com certa preocupação, alentadas pelo otimismo frente ao avanço das ciências sociais, a instabilidade de que se estabelecia na historiografia". (CORDEIRO JR, 2010, p. 75).

"Eis que nos permite notar que a crise da história, a incontestável crise que atravessa a história no nosso mundo contemporâneo, os ataques ao mesmo tempo de vários flancos opostos dos quais ela é o objeto, as incerteza e os torvelinhos sobre ela mesma de quem ela dá o espetáculo cotidiano, tudo isto não a sequela de um mal próprio a esta velha Clio; tudo isto é o aspecto especificamente histórico de uma grande crise do espírito, melhor, ela é somente um dos signos, e ao mesmo tempo uma das consequências, de uma transformação muito recente da atitude dos homens de ciência diante da ciência". (CORDEIRO JR, 2010, p. 76 apud FEBVRE, 1955, p. 306). 

"Baseada nas críticas formuladas desde a aurora do século XX, o movimento dos Annales vem com o objetivo de revolucionar o trabalho e o universo científico do historiador. Será dessas críticas que a escola dos Annales extrairá seu caráter inovador, da história-problema à promoção de pesquisas coletivas (DOSSE, 2003ª, p. 48). A “escola” dos Annales sacramentaria a guerra à história tradicional tendo “como alvo essencial a escola metódica, chamada pejorativamente de “história historicizante (...) tratava-se, portanto, de se afastar o sujeito para quebrar o relato historicizante e fazer prevalecer a cientificidade do discurso histórico renovado pela ciências sociais” (FARIAS;FONSECA;ROIZ, 2006, p. 123 apud DOSSE, 2003b, p. 327).

Bloch e Febvre em sua residência em Estrasburgo testemunharam essa crise pós-guerra, mas principalmente essa "crise da história", e tal condição foi preponderante para o surgimento da revista deles, como uma resposta a essa crise teórico-metodológica. 

Os anos em Estrasburgo:

"Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, Estrasburgo era efetivamente uma nova universidade, pois a cidade vinha de ser recentemente desanexada da Alemanha, criando um ambiente favorável à inovação intelectual e facilitando o intercâmbio de idéias através das fronteiras disciplinares". (BURKE, 1992, p. 34).

"Quando Febvre e Bloch se encontraram em 1920, logo após as suas nomeações como professor e maitre de conférences respectivamente, rapidamente tornaram-se amigos (Febvre, 1945, p. 393). Suas salas de trabalho eram contíguas, e as portas permaneciam abertas (Febvre, 1953, p. 393). Em suas infindáveis discussões participavam colegas como o psicólogo social Charles Blondel, cujas idéias eram importantes para Febvre, e o sociólogo Maurice Halbwachs, cujo estudo sobre a estrutura social da memória, publicado em 1925, causou profunda impressão em Bloch". (BURKE, 1992, p. 34).


Vista do Palácio universitário da Universidade de Estrasburgo, um dos principais prédios do campus universitário.
"Outros membros da faculdade de Estrasburgo participaram, ou vieram a participar, das preocupações de Febvre e Bloch. Henri Bremond, autor da monumental Histoire littéraire du sentiment religieux en France depuis la fin des guerres de religion (1916-1924), lecionou em Estrasburgo durante o ano de 1923. Sua preocupação com a psicologia histórica inspirou Febvre em sua obra sobre a Reforma. O historiador da Revolução Francesa, Georges Lefebvre, cujo interesse pela história das mentalidades era muito próximo do dos fundadores dos Annales, aí lecionou de 1928 a 1937. Não é gratuito sugerir que a idéia do famoso estudo de Lefebvre sobre “o grande medo de 1789” deve alguma coisa ao ensaio anterior de Bloch sobre o rumor. Lecionaram também em Estrasburgo: Gabriel Le Bras, um pioneiro da sociologia histórica das religiões, e André Piganiol, cujo ensaio sobre os jogos romanos, publicado em 1923, revela um interesse pela antropologia semelhante ao de Bloch na sua obra Les Rois Thaumaturges, editada um ano depois". (BURKE, 1992, p. 35). 


Henri Pirenne
Em 1920 Lucien Febvre havia planejado criar uma revista de história econômica, a qual seria dirigida pelo renomado historiador belga Henri Pirenne (1862-1935), mas devido a algumas dificuldades, entre elas, a recusa de Pirenne a aceitar a direção, Febvre acabou abandonando a ideia. Oito anos depois, Bloch tentou retomar esse antigo plano. Febvre concordou, e no ano seguinte criaram os Annales d'historie économique et sociale

"Novamente, foi solicitado que Pirenne dirigisse a revista; contudo, em virtude de sua recusa, Febvre e Bloch tornaram-se os editores. Originalmente chamada Annales d’histoire économique et sociale, tendo por modelo os Annales de Géographie de Vidal de la Blache, a revista foi planejada, desde o seu início, para ser algo mais do que uma outra revista histórica. Pretendia exercer uma liderança intelectual nos campos da história social e econômica. Seria o porta-voz, melhor dizendo, o alto-falante de difusão dos apelos dos editores em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da história". (BURKE, 1992, p. 42).

Uma revista de combate:

"O primeiro número surgiu em 15 de janeiro de 1929. Trazia uma mensagem dos editores, na qual explicavam que a revista havia sido planejada muito tempo antes, e lamentavam as barreiras existentes entre historiadores e cientistas sociais, enfatizando a necessidade de intercâmbio intelectual. O comitê editorial incluía não somente historiadores, antigos e modernos, mas também um geógrafo (Albert Demangeon), um sociólogo (Maurice Halbwachs), um economista (Charles Rist), um cientista político (André Siegried, um antigo discípulo de Vidal de la Blache)". (BURKE, 1992, p. 42).


"Os historiadores econômicos predominaram nos primeiros números: Pirenne, que escreveu um artigo sobre a educação dos mercadores medievais; o historiador sueco Eli Heckscher, autor do famoso estudo sobre o mercantilismo; e o americano Earl Hamilton, muito conhecido por suas obras sobre as finanças americanas e sobre a revolução dos preços na Espanha. Nessa ocasião, a revista tinha a feição de um equivalente francês, ou de uma rival, da Economic History Review inglesa. Contudo, em 1930, declarava-se a intenção de a revista estabelecer-se “sobre o terreno mal amanhado da história social”. Preocupava-se também com o problema do método no campo das ciências sociais, tal como a Revue de Synthèse Historique". (BURKE, 1992, p. 41-42).

"Entre o ano de sua fundação (1929) e 1945, quando esteve em mãos do “duo de Estrasburgo” (Lucien Febvre e Marc Bloch), cerca de 60% dos trabalhos por ela publicados estiveram dedicados à história econômica. De 1946 a 1969, período em que mais se fez sentir o peso da influência de Fernand Braudel, tal porcentagem oscilou ao redor de 40%". (FRAGOSO; FLORENTINO, 1997, 53).

Em 1933 Bloch mudou-se com sua família para Paris, para ingressar como professor no Collège de France, renomada instituição a qual por duas vezes lhe foi negado trabalho. Três anos depois, foi a vez de Febvre se mudar para a capital francesa, pois foi nomeado professor de história econômica na Sorbonne, e presidente do comitê da Enclyclopèdie Française. Essa mudança do centro "aberto" de Estrasburgo para as instituições mais conservadoras e tradicionais na capital, não interferiu no modo de pensar dos "annalistes" como ficariam conhecidos seus membros e colaboradores. A partir desse posicionamento na capital, Bloch, Febvre e seus colaboradores aproveitaram para intensificar suas propostas e debates.

"Pouco a pouco os Annales converteram-se no centro de uma escola histórica. Foi entre 1930 e 1940 que Febvre escreveu a maioria de seus ataques aos especialistas canhestros e empiricistas, além de seus manifestos e programas em defesa de “um novo tipo de história” associado aos Annales – postulando por pesquisa interdisciplinar, por uma história voltada para problemas, por uma história da sensibilidade, etc. (Febvre, 1953, pp. 3- 43, 55-60, 207-238)". (BURKE, 1992, p. 49).

Essa ideia de crítica e combatividade, levou alguns como o historiador Antoine Prost a chamar os Annales de uma "revista de combate". Um "combate" a "Escola Metódica", ao historicismo e ao positivismo comteano. Castro [1997] fala que o surgimento dos Annales, e sua abordagem a história econômica e social, pode ser considerado como uma ruptura e um confronto a cultura historiográfica vigente, daí ela falar que a ideia que hoje temos de "história social", começou com o Annales, embora essa área já existisse antes. 

"Com os Annales a história se renovou reformulando suas regras, impondo o tríptico “economia-sociedade-civilização” em detrimento do binômio metódico “história factual-história política”. Esse tríptico manterá juntos sociólogos, geógrafos, psicólogos e historiadores dos Annales, em prol da rejeição comum do historicismo. Assim os Annales propõem o alargamento da história, orientando o interesse dos historiadores para outros horizontes: a natureza, a paisagem, a população e a demografia, as trocas, os costumes. Ampliam-se as fontes e os métodos, os quais devem incluir a estatística, a demografia, a linguística, a psicologia, a numismática e a arqueologia". (FARIAS; FONSECA; ROIZ, 2006, p. 124 apud DOSSE, 2003ª, p. 83).

"Há dois eixos gerais que subentendem a experiência dos Annales: a reivindicação de uma história experimental científica (mais do que culta) por um lado; e, por outro, a convicção de uma unidade em construção entre a história e as ciências sociais. Os dados acerca destes dois pontos eram, à partida, abertos; e continuaram a ser reformulados desde os primórdios do movimento, ao mesmo tempo que se transformavam as próprias condições do trabalho histórico". (CORDEIRO JR, 2010, p. 77 apud REVEL, 1989, p. 12).

"Sob o signo mais forte dos Annales, desenvolvia-se, desde a década de 1930, uma “história econômica e social”. Apesar da maior ênfase na história econômica, nos primeiros anos da revista, a “psicologia coletiva” e as hierarquias e diferenciações sociais também encontravam-se presentes. A oposição à historiografia rankiana e a definição do social se construía, assim, a partir de uma prática historiográfica que afirmava a prioridade dos fenômenos coletivos sobre os indivíduos e das tendências a longo prazo sobre os eventos na explicação histórica, ou seja, que propunha a história como ciência social". (CASTRO, 1997, p. 79). 

Repensando a história:

Duas ideias fundamentais dessa primeira geração, foram a chamada "história total" e a "história-problema". Durante o VI Congresso Internacional de Ciências Históricas ocorrido em Oslo, Dinamarca em 1928; Marc Bloch defendeu a concepção de "história total" a qual compartilhava com Febvre. E que viria a ser desenvolvida na revista dos Annales

A ideia de "total" não referia-se a um pensamento positivista de se tentar contar a História em sua totalidade, mas no princípio de contar a História não limitada apenas a história política, ao Estado-nação, aos "grandes homens", aos "grandes acontecimentos", mas abordar os aspectos sociais, econômicos e posteriormente culturais; em se construir uma interdisciplinaridade com a sociologia, geografia, filosofia, arqueologia, antropologia, psicologia, etc. Contar a História sob várias perspectivas que de tal forma pudessem responder as perguntas e questões que a história política não era capaz de responder. 

A partir desse princípio, Febvre concebeu o que ele chamou de "história-problema". Para ele o fato histórico não existia por si só, ele não se encontrava "pronto" nos documentos aguardando ser descoberto por um historiador, como o pensamento positivista passou a expor. Pelo contrário, os fatos históricos são "construções" que o historiador elabora a partir da crítica das fontes e suas investigações. Não devemos entender aqui o conceito de "construção" como criar uma mentira ou inventar, não. A ideia aqui é que nem todos os fatos são importantes para a História, que o passado por si só não faz a História. 

Para Febvre o historiador inicia sua investigação a partir de um "problema", onde ele irá procurar nas fontes a solução para esse "problema", de forma a confirmá-lo ou desmenti-lo. Aqui Febvre reforça sua concepção que os fatos históricos não são inatos, não residem "prontos" nos documentos, pois um documento pode ter muito a dizer, ou pelo contrário, pouco a dizer. E além disso, nem todo documento possui uma significância para a História. Uma fonte tem serventia para a História, quando um historiador concede a ela uma cadeia de significados que a permitam ser encaixada num conjunto de significância maior em sua pesquisa que leve a alguma contribuição para algum aspecto da História. É a partir do "problema" proposto pelo historiador que se inicia a pesquisa histórica. 

"Pois é exatamente em face de um novo entendimento da relação do passado/presente e da noção de que a história é um conhecimento produzido a partir das exigências do contexto de vida do historiador, que Febvre vai aos poucos construindo seu pensamento historiográfico. Suas obras históricas são orientadas pelo princípio da problematização, observada na própria montagem do seu relato histórico, obedecendo a uma lógica de elaboração de perguntas ou hipóteses dirigidas ao passado. Assim, a história, como toda produção científica, independente do campo disciplinar ao qual pertence, tem como motivo fundante de seu exercício racional a busca por respostas a problemas que são postos à partida do trabalho de pesquisa". (CORDEIRO JR, 2010, p. 89).

"A novidade dos Annales não está no método, mas nos objetos e nas questões. As normas da profissão foram integralmente respeitadas por L. Febvre e M. Bloch: o trabalho a partir dos documentos e a citação das fontes. Eles haviam aprendido o ofício na escola de Langlois e Seignobos, sem deixar de criticar a estreiteza das indagações e a fragmentação das pesquisas; rejeitam a história política factual que, nessa época, era dominante em uma Sorbonne que, além de se isolar, estava corroída pelo imobilismo". (PROST, 2008, p. 39). 

Além dessa tendência de ruptura com o tradicionalismo historiográfico vigente na época, e além de propor uma interdisciplinaridade com as ciências sociais, e repensar o estudo e a pesquisa da História, Febvre e Bloch também propuseram uma aproximação da sua revista com o público leigo. O Annales nessa primeira geração procurou dar atenção ao fato que a História não tratava apenas do passado, mas também do presente, e também procurou levar dar acesso a esses debates ao público "não iniciado", ao público não acadêmico, de forma que os aproximassem não necessariamente dos embates teóricos, mas da ciência histórica. 

Nos Annales, o estudo da história passou a ser tratado de fato como uma ciência, fosse ela chamada de "ciência humana" ou "ciência social", mas de qualquer forma, eles queriam mostrar que havia essa identidade científica no saber histórico. Não obstante, uma característica que reforça essa tendência, foi o uso de uma temporalidade relativa, baseada na Relatividade de Albert Einstein. Com essa ideia, o tempo não era visto como algo homogêneo e monolítico, mas o tempo passou a ser visto como sendo interpretado de diferentes formas pelos povos, de que a ideia de progresso não era unânime, que o tempo da História não é igual ao tempo natural. Sobre isso, voltaremos a ver durante a Segunda Geração, onde Braudel desenvolveu essa questão de temporalidade.

Outro aspecto que os Annales defenderam foi uma maior atenção para o estudo da materialidade histórica (não confundir com o materialismo histórico proposto por Marx e Engels), ou seja, estudar o papel do desenvolvimento tecnológico nas sociedades, e a importância do consumo e da produção para a economia e o desenvolvimento das sociedades. Pelo fato dos Annales de se proporem e escrever sobre história econômica, esse viés da materialidade histórica foi bastante empregado nessa área.

Contudo, Vainfas [1997] também assinala que ainda nessa primeira geração, podemos destacar a produção de artigos ligados a "história das mentalidades", tendência que aumentaria na segunda geração, mas principalmente na terceira geração. A "história das mentalidades" como Chartier [1997] fala, consiste num termo difícil de ser conceituado fora da língua francesa, daí de se haver confusões para se identificar o início desses estudos. 

"Bloch e Febvre inauguraram, pois, nos primórdios dos Annales, o estudo das mentalidades, delas fazendo um legítimo objeto de investigação histórica. Mas não se pense que foram eles os primeiros a se dedicarem ao estudo de sentimentos, crenças e costumes na historiografia ocidental. Para citar apenas alguns autores que lhes antecederam ou foram deles contemporâneos nessas preocupações, vale lembrar o próprio Michelet, autor de La sorcière, em 1862 (traduzido em Portugal), e o importante Georges Lefebvre, autor de La grande peur, livro sobre a onda de pânico que varreu a França rural no contexto revolucionário francês. E se for o caso de dar exemplos fora da França, não se pode esquecer do grande historiador holandês Johan Huizinga, autor de O outono da Idade Média (de que há várias traduções), obra publicada em 1919 sobre sentimentos, costumes e religiosidades na França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV, nem de Norbert Elias, sociólogo e historiador alemão que, antecipando-se a Foucault em décadas, publicou em 1939 o seu 0 processo civilizador, livro sobre a sociedade de corte e o surgimento da etiqueta na Europa moderna". (VAINFAS, 1997, p. 197). 

Mudanças de nome na revista e o adeus de Bloch:

Em 1939 a revista mudou de nome para Annales d'historie sociale. Nesse caso, os diretores e seus colaboradores visavam focar o desenvolvimento da revista apenas no campo social, pois antes havia o campo econômico também incluso, mas isso não significa que a história econômica saiu de pauta, não; ela apenas deixou de ter um maior espaço no material publicado nessa revista. Ao mesmo tempo, Marc Bloch aos seus 53 anos de idade, alistou-se voluntariamente ao Exército francês para lutar na Segunda Guerra. Assim, Febvre nesse período cuidou da direção da revista quase que sem o apoio de seu amigo e sócio. 

"Enquanto isso, Febvre continuava a editar a revista, primeiramente com o nome de ambos, mais tarde apenas sob o seu. Muito velho para lutar, passou a maior parte da guerra em sua casa de campo escrevendo artigos e livros sobre a Renascença Francesa e a Reforma. Diversos desses estudos são sobre indivíduos, como Marguerite de Navarre e François Rabelais, não são, porém, biografias estritamente falando. Fiel aos seus preceitos, Febvre elaborava seus estudos tendo por centro problemas. Como pode, por exemplo, Marguerite , uma princesa letrada e piedosa, escrever uma série de histórias, L’Heptameronalgumas das quais extremamente obscenas? Era ou não Rabelais um ateu?". (BURKE, 1992, p. 51).

Em 1942, a revista voltou a mudar de nome, agora para Mélanges d'historie sociale. Nessa época, Bloch havia retornado do campo de batalha, após duras derrotas para a França, e também por ter sido ferido. Contudo com o avanço do nazismo sobre a França, e a consolidação do Regime de Vichy (1940-1944) imposto pela marechal francês Phillipe Pétain, o mesmo começou a adotar a tendência antissemitista do Estado alemão nazista. Bloch que vinha de uma família judia, se tornou alvo do Estado ditatorial francês. Ao mesmo tempo, embora tenha retornado a vida acadêmica, ainda manteve-se ligado a grupos de resistência, mas isso não viria a lhe dá bons resultados. O governo francês cobrou que os judeus deixassem seus cargos na instituições públicas, de ensino, militar, etc., Bloch foi sentenciado a deixar sua função no Collège de France e na direção dos AnnalesMarc Bloch a partir de 1942 entrou na clandestinidade. Em 1943 aliou-se a Resistência em Lyon, motivo a mais para se tornar um foragido do Estado. Posteriormente acabou sendo capturado e preso pelos alemãs ainda em 1943. Nesse período que também acabou sendo capturado e mantido preso, escreveu dois livros: L’Étrange défaite, obra essa iniciada em 1940, onde ele tentou dar seu parecer e opinião sobre a Primeira Guerra Mundial e a recém iniciada Segunda Guerra Mundial, como também encontrar motivos para a derrota francesa. 

O segundo livro foi o Apologia da história ou o ofício do historiador, obra publicada postumamente com o apoio de um dos seus filhos Étienne Bloch e Lucien Febvre. Tal livro acabou ficando incompleto e apresenta comentários, notas e dúvidas do autor, pelo fato de não ter tido acesso a suas fontes. Apologia da história consiste numa obra de teor teórico, onde Bloch procurou debater o papel da história e a profissão do historiador. Ainda hoje é considerado um livro importante para se compreender o papel do historiador na sociedade.

Marc Bloch acabou sendo torturado pela Gestapo (a polícia secreta do Estado alemão), a fim de delatar informações sobre a Resistência, e em em 16 de julho de 1944 em Saint Didier de Formans, perto de Lyon, foi fuzilado pelos nazistas. Bloch recebeu honrarias por parte dos familiares, amigos e do próprio Estado. Sendo lembrado não apenas como um grande historiador, mas como um francês que serviu e lutou por sua pátria durante duas guerras mundiais. 

Pós-guerra:

"Depois da guerra, Febvre teve finalmente sua chance. Foi convidado a auxiliar na reorganização de uma das instituições mais prestigiosas no sistema francês de educação superior, a École Pratique des Hautes Étudesfundada em 1884. Foi eleito membro do Instituto e tornou-se também o delegado francês na UNESCO, participando da organização da coleção sobre a “História Cultural e Científica da Humanidade”. Em razão dessas múltiplas atividades, sobrou-lhe pouco tempo para escrever com vagar, e os projetos de seus últimos anos jamais foram concluídos (como o volume sobre o “Pensamento ocidental e a crença”, de 1400 a 1800), ou, então, foram terminados por outros". (BURKE, 1992, p. 56).

Em 1945, a revista voltou a assumir o nome de Annales d'historie sociale, embora que duraria pouco esse nome, pois viria a sofrer uma nova mudança em breve. Mas, devido a suas outras ocupações e a sua idade de 67 anos, Febvre viu que era hora de pedir ajuda para manter os negócios na revista, enquanto cada vez mais, estava ocupado com o trabalho na Escola Prática de Altos Estudos (École Pratique des Hautes Études), onde em 1947 viria a fundar a Seção VI e tornar-se seu presidente, assim como também o diretor do Centro de Pesquisas Históricas, criado dentro da Seção VI. 

"Os Annales começaram como uma revista de seita herética. “É necessário ser herético”, declarou Febvre em sua aula inaugural, Oportet haereses esse (Febvre, 1953, p.16)46. Depois da guerra, con tudo, a revista transformou-se no órgão oficial de uma igreja ortodoxa. Sob a liderança de Febvre os revolucionários intelectuais souberam conquistar o establishment histórico francês. O herdeiro desse poder seria Fernand Braudel". (BURKE, 1992, p. 57).


A SEGUNDA GERAÇÃO (1946-1968)

"A segunda geração, dirigida por Fernand Braudel, compreende o período entre 1946 e 1968 e é marcada pelo tema das civilizações e temas demográficos. Constitui-se como escola, ao aportar conceitos (estrutura e conjuntura) e métodos (história serial das mudanças na longa duração) definidos. O estudo das utensilagens mentais (ou psicologia histórica dos anos 30), ao lado de fontes massivas, representativas e temporalmente comparáveis e com certa regularidade, os leva a utilizar os conceitos de regularidades, quantificação, séries, técnicas, abordagem estrutural, tendo como centro de um projeto intelectual oferecer certa dinâmica às estruturas trabalhadas pelas ciências sociais e ainda tentar articular a longa duração como acontecimento". (PORTO, 2010, p. 133).

O historiador do mar: 

Foto de Braudel tirada no Brasil.
Fernand Paul Achille Braudel (1902-1985) nasceu em Lumeville-en-Ormis em 24 de agosto. Seu pai Charles-Hilaire Braudel era professor e lecionava em Paris, contudo o pequeno Fernand foi enviado para a casa de sua avó e lá passou o início da vida vivendo no campo. Braudel já na sua maturidade escreveria que tivera uma origem camponesa. Posteriormente, ele sua mãe e irmãos se mudaram para os subúrbios de Paris. Braudel chegou a dizer que a distância onde os subúrbios se encontravam, lembrava muito uma zona rural. Em 1913 ingressou no Liceu Voltaire onde permaneceu até 1920. Pelo fato de ser uma criança, não foi convocado para a Primeira Guerra Mundial. Enquanto a guerra se desenrolava, na qual Febvre e Bloch estavam lutando, Braudel estava na escola estudando e começou a mostrar grande interesse pela História. Na adolescência decidiu que queria se tornar historiador. Após se formar, ingressou no mestrado na Universidade de Sorbonne, onde em pouco tempo conquistou sua pós-graduação, tendo escrito uma dissertação sobre o impacto da Revolução Francesa (1789-1799) na região de Bar-le-Duc, local onde ficava a vila onde nasceu. Inicialmente, Braudel cogitava se tornar professor em Bar-le-Duc, mas após ser aprovado no agregátion em 1922, no ano seguinte surgiu uma oportunidade de emprego. 

Naquela época a Argélia ainda era uma colônia francesa, e havia a necessidade de professores para lecionar principalmente em Argel, a capital do país, vista como um "modelo de cidade francesa" em solo africano. Braudel se mudou para a colônia ainda em 1923 e permaneceria até 1932

"Seu primeiro artigo importante, publicado nesse período, tinha por tema a presença dos espanhóis no Norte da África, no século XVI. Esse estudo, cujas dimensões são a de um pequeno livro, merece ser resgatado de seu imerecido esquecimento. Era, ao mesmo tempo, uma crítica a seus predecessores no tema pela ênfase que haviam atribuído aos grandes homens e às batalhas; uma discussão sobre a “vida diária” das guarnições espanholas; e também uma demonstração da estreita relação, embora invertida, entre a história africana e européia, isto é, quando estourava a guerra na Europa as campanhas africanas eram suspensas, e vice-versa (Braudel, 1928)". (BURKE, 1992, p. 58-59).

Entre 1925 e 1926 tivera que servir no Exército, já que não havia prestado serviço militar anteriormente. Ele atuou um ano na região da Renânia na Alemanha, local do qual achou bastante belo. Em 1927 seu pai morreu, Braudel retornou para a França, buscou sua mãe a qual passou a morar com ele e ainda no mesmo ano, casou-se com Paule Valier. Retornou para a Argélia e continuou com sua carreira como professor de história nas escolas, além de também coordenar eventos e comissões científicas. 

Nesses nove anos que passou transitando entre a Europa e a África, Braudel se encantou com o deserto do Saara, mas principalmente com o Mar Mediterrâneo, o qual cruzou várias vezes em suas jornadas de idas e vindas. Ainda em 1927 ele começou a planejar sua tese de doutorado, estava interessado em abordar o governo do rei de Espanha e Portugal, Filipe II (Filipe tornou-se rei de Portugal e suas colônias a partir de 1580, e manteve-se como soberano das duas coroas até o fim da sua vida em 1598). Ele chegou a se corresponder com Febvre, pois esse havia escrito sua tese sobre o rei espanhol. Febvre lhe respondeu com uma carta: "Mais que Filipe II, seria apaixonante conhecer o Mediterrâneo dos povos berberes".

Com o apoio do historiador francês, Georges Pagès (1867-1939), Braudel conseguiu contatos na Espanha para lá viajar e iniciar suas pesquisas sobre o rei Filipe II. Tivera que agir por conta própria, pois como ele lembra, nessa época não havia bolsas de pesquisa disponíveis. Em Simancas na Espanha ele iniciou suas visitas aos arquivos, e tendo comprado uma máquia fotográfica de segunda mão de um operário e cineasta americano, Braudel realizou fotos de milhares de documentos.

"Deixei os arquivistas e buscadores de Simancas cheios de inveja e admiração ao fazer, por rolos de trinta metros, duas a três mil fotos por dia. Usei e abusei do expediente na Espanha e na Itália. Graças a esse cineasta engenhoso, fui sem dúvida o primeiro utilizador de verdadeiros microfilmes, que eu próprio revelava e lia, ao longo de dias e noites, com uma simples lanterna mágica". (FLORES, 2010, p. 97-98 apud BRAUDEL, 2002, p. 8-9). 

A medida que investigava os arquivos e bibliotecas, aproveitou para escrever alguns artigos sobre assuntos e documentos que foi descobrindo. Em 1931 assistiu em Argel a apresentação de Henri Pirenne sua tese sobre o fechamento do Mediterrâneo pelos árabes. Fernand Braudel começou a se especializar na Idade Moderna e até mesmo, escreveu artigos sobre a África do Norte, região a qual visitou vários dos países. A partir de suas pesquisas nos arquivos e contato com as obras de outros historiadores crescera nele a ideia de escrever sobre o Mediterrâneo.

"Eu havia na cabeça a ideia de descobrir o passado desse mar que via todos os dias e do qual os hidroaviões de então, que voavam baixo, me proporcionavam imagens inesquecíveis. Ora, as séries ordinárias de arquivos falavam sobretudo dos príncipes, das finanças, dos exércitos, da terra, dos camponeses. De depósito de arquivos em depósito de arquivos, eu me embrenhava, então, através de uma documentação fragmentária, mal explorada, por vezes mal ou não classificada. Lembro-me de meu deslumbramento ao descobrir, em Dubrovnik, m 1934, os maravilhosos registros de Ragusa; finalmente, barcos, fretes, mercadorias, seguros, tráficos... Pela primeira vez, eu via o Mediterrâneo do século XVI". (FLORES, 2010, p. 98 apud BRAUDEL, 2002, p. 9-10). 

Em 1932 foi convidado a se tornar professor em Paris, atuando em algumas escolas como o Liceu Pasteur e o Liceu Condorcet. Ainda no mesmo ano, separou-se de sua esposa, mas no ano seguinte reataram o casamento. De 1932 a 1934 continuou com suas pesquisas nos arquivos espanhóis e até mesmo viajou para a Itália, para consultar alguns arquivos. Ao mesmo tempo tivera contato com a revista dos Annales, e com a historiografia que estava sendo desenvolvida por Bloch e Febvre. Braudel na época de seus estudos universitários, tivera influência da geografia e um pouco da sociologia, embora tenha sido educado num ambiente tradicional do metodismo e do historicismo, sua visão da História ia para além da ideia política. 


Foto de Lévi-Strauss no Brasil.
Em 1934 recebeu o convite do Ministério das Relações Exteriores da França para participar de uma missão diplomática que seria enviada ao Brasil, para auxiliar no desenvolvimento dos cursos de sociologia, história, geografia e filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Junto a sua comitiva de jovens professores seguiram também o recém sociólogo e futuro antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), o filósofo Jean Maugüe (1904-1990), o geógrafo especialista na América do Sul, Pierre Monbeig (1908-1987) entre outros. Após o nascimento de sua filha em 1935, Braudel seguiu viagem com sua família para São Paulo, onde residiriam pelos dois anos seguintes. Em sua estada no Brasil, visitou os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. Aproveitou para conhecer obras brasileiras como Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha, Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freire, livro esse o qual Braudel escreveu uma resenha para os Annales. Nessa época o historiador e economista Caio Prado Júnior havia publicado em 1933, a obra Evolução Política do Brasil, uma obra de caráter marxista. 

Ele também chegou a escrever um pequeno trabalho sobre a Bahia, como também mostrou interesse pelos cangaceiros (em geral grupo de homens que usavam a violência, força e medo para combater o Estado, mas também causavam problemas a sociedade devido a seus crimes. Hobsbawm os comparou com uma espécie de banditismo). Na Bahia, Braudel chegou a comprar peças do traje dos cangaceiros e a ouvir histórias sobre Lampião (1898-1938) notório chefe cangaceiro. 

Durante sua permanência no Brasil ele ainda continuou a realizar suas pesquisas e estudos para sua tese embora de forma mais restrita devido a distância e o tempo de férias, pois aproveitava as férias de verão para retornar a Europa. Braudel chegou a dizer que os quase três anos que viveu no Brasil foram seus anos mais felizes de sua vida. Embora ele não tenha voltado a morar no país, realizou viagens para o mesmo posteriormente. 

Acabado seu contrato, em 1937 enquanto ele e sua família embarcavam no navio que os levaria a França, Braudel se encontrou com Lucien Febvre o qual retornava de uma viagem feita a Argentina. Febvre havia viajado para a Argentina e o Chile, apresentar e participar de congressos. Ambos seguiram viagem de volta a França, e isso contribuiu muito para a visão histórica de Braudel e a sua aproximação ainda mais com os Annales, pois ele passaria a se tornar colaborador da revista. 

"Foi no retorno de sua viagem ao Brasil que Braudel conheceu Lucien Febvre, que o adotou como um filho intelectual e persuadiu-o – se é que ainda necessitava de persuasão – de que o título da tese deveria ser realmente “O Mediterrâneo e Felipe ll”, e não “Felipe II e o Mediterrâneo” (Braudel, 1953, especialmente p. 5; conf. (Febvre, 1953, p. 432)". (BURKE, 1992, p. 59).

Contudo o retorno para a França lhe traria momentos difíceis e perigosos. Em 1938 seu nome foi escolhido para compor uma lista de soldados, devido a eminência de problemas militares com a Alemanha nazista de Adolf Hitler. No ano seguinte os alemães invadiram a Polônia e a Segunda Guerra se iniciou. Em 1940 Braudel foi oficialmente convocado para a guerra. 

"Ele participa da guerra, na fronteira do Reno, na Linha Maginot, um conjunto de fortificações construído na década de 1930, na condição de oficial francês. Nessa condição, Braudel se torna prisioneiro na Alemanha e é deslocado para duas prisões: Mogúncia, até 1942, onde recebia soldo mensal e tinha direito 'a cantina e distrações intelectuais' lendo livros alemães  de geografia sobre o Mediterrâneo e ministrando aula aos demais prisioneiros; depois foi transferido para Lübeck, 'um campo disciplinar' considerado 'aterrorizante', permanecendo prisioneiro até 1945, mas continuava a 'ler, ensinar e escrever". (FLORES, 2010, p. 101-102 apud LIMA, 2009, p. 143-163). 

Embora tenha ficado cinco anos preso, diferente dos quase dois anos que Bloch ficou preso, o cárcere de Braudel foi menos danoso do que o de Bloch. Com o fim da guerra ele foi libertado com seus companheiros e retornou para casa. Acabou se unindo a Febvre para pedir conselhos e orientação na conclusão de sua tese. Em 1946 a apresentou na Seção IV da Escola Prática de Altos Estudos, e no ano seguinte, a defendeu na Sorbonne, sob o título de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II (La Méditerranée et le monde méditerranéen à l'époque de Philippe II), livro que o consagraria.


Uma edição de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II
"O Mediterrâneo é um livro de grandes dimensões, mesmo que consideremos os padrões da tradicional tese de doutoramento francesa. Sua edição original continha aproximadamente 600.000 palavras, o que perfaz seis vezes o tamanho de um livro comum. Dividido em três partes, cada uma das quais – como o prefácio esclarece – exemplifica uma abordagem diferente do passado. Primeiramente, há a história “quase sem tempo” da relação entre o “homem” e o ambiente; surge então, gradativamente, a história mutante da estrutura econômica, social e política e, finalmente, a trepidante história dos acontecimentos". (BURKE, 1992, p. 60).

"Braudel superou, de fato, a concepção cronológica da história política que contava os eventos a partir de datas sucessivas num ritmo mais ou menos previsível de causa e efeito". (FLORES, 2010, p. 103). 

Braudel dedicou sua obra a seu amigo e mentor, Lucien Febvre. Ele tentou publicar sua volumosa tese, mas as editoras se recusaram a financiar esse livro, pois consideraram a obra demasiadamente cara e com baixo público de leitura, no que renderia péssimos ganhos. Ele teve que juntar dinheiro para vim a publicar seu livro dois anos depois. Ainda em 1947 viajou para o Brasil, Argentina e Chile para participar de conferências e congressos.

A era Braudel:


"Após a guerra, os Annales - cuja revista passou a ter o título de Annales, Économies, Sociétés, Civilisations - perseguiram essa dupla estratégia em um contexto diferente. Em primeiro lugar, em 1947, com o apoio de fundações americanas e da diretoria do ensino superior, a criação de uma VI section na École pratique des hautes études direcionada para as ciências econômicas e sociais, cuja presidência foi entrega a L. Febvre. No início da década de 50, o revezamento foi assumido por Fernand Braudel que vinha de ser consagrado por sua tese sobre La Méditerranée à l' époque de Phillippe II (1949)". (PROST, 2008, p. 40-41). Em 1950, Braudel se tornou professor do Collège de France e na sua aula inaugural como de obrigatório para todos aqueles que entram nesta instituição, ele explanou um pouco da sua vida, mas principalmente da sua opinião sobre como a História estava sendo vista e estudada. 

"A história se encontra, hoje, diante de responsabilidades temíveis, mas também exultantes. Sem dúvida porque jamais cessou, em seu ser e em suas mudanças, de depender de condições sociais concretas. (...) E se seus métodos, seus programas, suas respostas mais precisas e mais seguras ontem, se seus conceitos estalam todos de uma só vez, é sob o peso de nossas reflexões, de nosso trabalho e, mais ainda, de nossas experiências vividas. Ora, essas experiências, durante estes últimos quarenta anos, foram particularmente cruéis para todos os homens: elas nos lançaram, violentamente, no mais profundo de nós mesmos e, além no destino conjunto dos homens, isto é, nos problemas cruciais da história. Ocasião de nos apiedar, de sofrer, de pensar, de recolocar forçosamente tudo em questão. Aliás, por que a frágil arte de escrever a história escaparia à crise geral de nossa época? Abandonamos um mundo sem sempre termos tido tempo de conhecer ou mesmo de apreciar seus benefícios, seus erros, suas certezas e seus sonhos - diremos o mundo do primeiro século XX? Nós o deixamos, ou antes, ele se subtrai inexoravelmente, diante de nós". (FLORES, 2010, p. 106-107 apud BRAUDEL, 1992, p. 17-18). 

De 1950 a 1952, Braudel cooperou com Febvre não apenas nos Annales, mas também no Centro de Pesquisas Históricas na Escola de Altos Estudos. Eles publicaram três séries entre os anos de 1951-1952: A primeira série intitulava-se “Portos-Rotas-Tráficos"; a segunda, “Negócios e Gente dos Negócios”; e a terceira, “Moeda-Preço-Conjuntura”.Visivelmente aqui nota-se a presença da história econômica a qual retomou um lugar de destaque nas publicações dos Annales nesta época, como atesta também a mudança do nome da revista. 

Além disso, um dos membros e colaboradores da revista era o historiador francês Ernest Labrousse (1895-1988), especialista em história econômica e social, que desde a primeira geração dos Annales vinha cooperando com Bloch e Febvre. Prost (2008) salienta que entre as décadas de 40 e 50, as obras de Labrousse estiveram em alta no meio econômico e historiográfico. Sua metodologia de estudo e pesquisa era benquista nestas áreas. Outro importante nome foi o historiador francês Georges Duby (1919-1996) que por vários anos colaborou com os Annales, especialmente durante a segunda geração e a terceira. 


Robert Mandrou
Em 1954 o historiador francês Robert Mandrou (1921-1984), especialista em história moderna e história da França, discípulo de Lucien Febvre, tornou-se secretário da revista, cargo esse que manteve até 1962, quando se demitiu devido a desavenças com Braudel. Em 1956 com a morte de Febvre, Braudel se tornou de fato o diretor dos Annales, contudo, ele não se dava bem com Mandrou e outros dos membros e colaboradores da revista. Isso ficaria mais visível nos anos 60. Mandrou também é lembrando como tendo sido ao lado de Duby, iniciador do campo de pesquisa chamado "história das mentalidades", o qual hoje é visto como sendo história cultural. Mandrou e Duby apresentaram interesse para se estudar o comportamento, as representações, as opiniões, a compressão das classes sociais e das sociedades na História. A "história das mentalidades" se popularizaria na terceira geração. Phillipe Àries e Michel Vovelle ainda no final da segunda geração, também passariam a estudar o lado cultural da história. 

"Braudel também sucedeu Febvre como presidente da VI Seção da École. Em 1963, criou uma nova entidade dedicada à pesquisa interdisciplinar, a Maison des Sciences de l’Homme. No seu tempo, a Seção, o Centro e a Maison, todos se mudaram para o 54, Boulevard Raspail, onde a convivência com antropólogos e sociólogos da qualidade de Claude Lévi-Strauss e Pierre Bourdieu, disponíveis para as conversas de café e para seminários conjuntos, manteve e continuou a pôr os historiadores dos Annales em contato com as novas idéias e desenvolvimentos das ciências vizinhas". (BURKE, 1992, p. 75).

"Tendo conservado em suas mãos, durante os seus anos de direção, o controle dos fundos para a pesquisa, publicações e nomeações, guardou para si um grande poder, que usou para promover o ideal de um “mercado comum” das ciências sociais, onde a história era um membro dominante. (Braudel, 1968b, p.349). As bolsas de estudo concedidas a jovens historiadores estrangeiros, como os poloneses, para estudar em Paris ajudaram a difundir no exterior o novo estilo francês, de fazer história. Por outro lado, era notório que Braudel destinava os recursos preferentemente aos historiadores que se dedicavam à época moderna (1500-1800). Se seu império não foi tão vasto quanto o de Felipe II, tinha, porém, um dirigente mais decidido". (BURKE, 1992, p. 75-76).

Além desse controle, poder e autoridade sobre os Annales, Braudel também influenciou com seu trabalho, historiadores velhos e novos como Pierre Chaunu (1923-2009), Emmanuel Le Roy Ladurie, Jacques Le Goff, Pierre Goubert (1915-2012), Pierre Vilar (1906-2003), etc. Como será visto adiante, alguns destes nomes como Le Roy Ladurie e Le Goff, se tornariam diretores e secretários dos Annales durante a terceira geração. Braudel se manteria na direção até 1968, quando devido a uma onda de acontecimentos, pediria afastamento do cargo.

A longa duração e os "três tempos":

Um dos maiores legados da segunda geração foi o desenvolvimento da temporalidade realizado por Braudel, sua ideia de dividir o tempo histórico-processo em três durações e velocidades, algo marcante em seu livro O Mediterrâneo e nas suas demais obras após esse livro. 

Para entendermos esse legado, é preciso conhecer um pouco dessa teoria braudeliana. Primeiro, é importante saber que o "tempo histórico" não é igual ao "tempo natural", ou seja, para o estudo da História, em muitos casos o historiador ele "recorta" o tempo, a fim de determinar fronteiras pelas quais ele guiará a pesquisa histórica. Não obstante, foram também os historiadores que criaram a divisão temporal da História, por exemplo, o que chamamos de Pré-história, Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea é uma temporalização na qual dividi-se certas épocas da História humana (vale lembrar que a geografia possui divisões temporais para o que ela chama de eras geológicas), de forma a facilitar e guiar a compreensão do mundo e das sociedades no tempo. Se não fosse essa construção do "tempo histórico" ficaria complicado as pessoas localizarem os acontecimentos históricos.

No caso de Braudel sua teoria temporal não foi concebida para nomear períodos históricos como mencionado acima, mas sim tornar-se uma metodologia para a pesquisa e a escrita da história. Braudel concebeu dividir o tempo em três durações: curta, média e longa durações, sendo a última a mais famosa, pois foi a qual ele usava e desenvolveu o conceito, embora que a partir da conceitualização da longa duração, ele chegou a repensar as outras duas temporalidades também.

"Entendamo-nos: não há um tempo social com uma única e simples corrente, mas um tempo social com mil velocidades, com mil lentidões que quase nada têm a ver com o tempo jornalístico da crônica e da história tradicional. Creio assim na realidade de uma história particularmente lenta das civilizações, nas suas profundezas abissais, nos seus traços estruturais e geográficos. [...]. Além disso, há, ainda mais lenta que a história das civilizações, quase imóvel, uma história dos homens e suas relações estreitas com a terra que os suporta e os alimenta; é um diálogo que não cessa de repetir-se, que se repete, que pode mudar e muda na superfície, mas prossegue, tenaz, como se estivesse fora do alcance e da mordedura do tempo". (FLORES, 2010, p. 108 apud BRAUDEL, 1992, p. 25-26).

Braudel dizia que certas mudanças históricas só seriam apenas perceptíveis após se passarem dezenas de anos, pois tais mudanças agiriam de forma lenta, que em determinado momento chegariam ser quase que "imóveis", e quase passariam despercebidas, mas para se notar que elas transcorreram, o historiador deveria olhar para a História a partir de um ponto de vista da longa duração, abrangido um século ou mais. 

A partir dessa ideia de se estudar a História de um recorte extenso, Braudel adentrou a área da "história das civilizações", campo surgido no século XIX, mas que ganhou novas diretrizes no século XX, tendo com história britânico Arnold J. Toynbee (1889-1975) um dos seus expoentes. Braudel chegou a dizer que certas questões de ordem econômica, política, social, cultural, religiosa, etc., só seriam visíveis ao se estudar as civilizações, as comparando, procurando levantar semelhanças e diferenças, destrinchando seus processos formadores e de mudança. 

Por exemplo, para se entender a disseminação do cristianismo ou do capitalismo, seria necessário estudar tais acontecimentos sob uma óptica de longa duração, pois foram acontecimentos que levaram séculos para se adaptarem e se consolidar em diferentes cantos do mundo, em diferentes épocas, sob diferentes contextos e em diferentes velocidades. Nesse âmbito, Braudel dizia que a história tradicional: "atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa precipitada, dramática, de fôlego curto". (BRAUDEL, 1978, p. 44).

Se lembrarmos que a história tradicional era de vertente historicista, que focava a História ao relatar os governos, os feitos dos soberanos, dos generais, dos políticos, dos grandes nomes, dos grandes acontecimentos, logo, tínhamos uma história bastante limitada e reduzida a acontecimentos e as ações destes homens, o que levava a deixar de fora outros aspectos da História. Na longa duração, não se estuda sujeitos e nem as ações, mas sim as transformações  daí, quando Braudel dissera que no seu primeiro volume de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo, ele escrevera uma geo-história. um "tempo geográfico", onde enfatizava o espaço geográfico e sua influência sobre as sociedades, ao mesmo tempo, nessa geo-história que fazia parte da longa duração, Braudel não dava atenção aos "grandes homens" e aos "grandes acontecimentos", mas o "sujeito" era o lugar e as pessoas. 

"Será Braudel, o historiador das águas, montanhas, planícies, barcos e carros de boi (e seus usuários e modificadores), e não a primeira geração dos Annales, a libertar o século XX historiográfico das prisões biográficas oitocentistas". (FLORES, 2010, p. 105).


"Águas mais calmas, que correm mais profundamente, são o objeto da segunda parte do Mediterrâneo, denominada “Destinos coletivos e movimentos de conjunto”; sua preocupação, a história das estruturas-sistemas econômicos, estados, sociedades, civilizações e formas mutantes de guerra. Esta história se movimenta a um ritmo mais lento do que a dos eventos. As mudanças ocorrem no tempo de gerações, e mesmo de séculos, por isso os contemporâneos dos fatos nem sempre se apercebem delas. Mas, mesmo assim, eles são carregados pela corrente. Numa de suas mais famosas análises, Braudel examina o império de Felipe II como uma “colossal empresa de transporte terrestre e marítima”, que “se exauriu por sua própria dimensão”, e não poderia ser diferente numa época em que “cruzar Mediterrâneo de norte a sul levava uma ou duas semanas”, enquanto atravessá-lo de leste a oeste “dois ou três meses” (Ibid., p. 363). A observação lembra o veredicto de Gibbon sobre o Império Romano destruído pelo seu próprio peso e suas afirmativas sobre geografia e comunicações, no primeiro capítulo do Declínio e Queda". (BURKE, 1992, p. 62-63).

Por sua vez, seu primeiro volume, ele dedicou a abordar a média duração, ou pelo menos referir-se a ela, pois essencialmente o livro como um todo, tende a longa duração, mas ao mesmo tempo, mescla essas três temporalidades. Braudel comparou a média duração ou "tempo social", com a chamada "história ocorrencial" ou "história conjectural", onde estuda-se um tempo que varia de uma década a décadas, mas jamais se passando de um século. 

"Aparece uma nova forma de narrativa histórica, digamos o 'recitativo' da conjuntura, do ciclo, até mesmo do 'interciclo', que propõe à nossa escolha uma dezena de anos, um quarto de século e, no limite extremo, o meio século do ciclo clássico de Kondratieff. Por exemplo, sem levar em conta acidentes breves e de superfície, os preços sobem, na Europa, de 1791 a 1817; baixam de 1817 a 1852: esse duplo e lento movimento de elevação e de recuo representa na época um interciclo completo da Europa e, ou menos, do mundo inteiro". (BRAUDEL, 1978, p. 47-48).

Pelo fato da aproximação de Braudel com a história econômica e com os trabalhos de historiadores econômicos como Ernst Labrousse, sua concepção de média duração está bastante influenciada pela historiografia econômica, a qual trabalhava essa questão de "ciclos" e "intercliclos". Devemos nos lembrar que no início, os Annales estivera bastante voltado para a história econômica, pois a possibilidade do uso de dados e da quantificação, na visão de alguns historiadores era uma forma de apresentar um respaldo "científico" para a história, pois estaria-se trabalhando com números e dados quantitativos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o foco da revista passou para a história social, mas a partir de 1946 ela foi recobrando o espaço dado a história econômica.

Por fim, a curta duração ou o "tempo individual", foi chamada de história factual ou história pessoal. Aqui Braudel dizia que se encontrava a "história tradicional", uma história voltada para contar os "grandes acontecimentos" (factual) e os "grandes homens" (pessoal). O tempo dessa história se passa de forma breve e rápida, podendo durar horas, dias, semanas, meses ou anos. Revoltas, revoluções, guerras, invasões, atentados, declarações, decretos, discursos, etc., seriam acontecimentos que exprimem essa ideia de brevidade, de se tratar a História como um "conjunto de eventos" costurados numa colcha temporal.

"A parte mais tradicional, a terceira, parece corresponder à idéia original de Braudel de uma tese sobre a política exterior de Felipe II. Ele oferece aos seus leitores um trabalho altamente profissional de história política e militar. Traça breves mas incisivos esboços do caráter dos atores principais da cena histórica, do Duque de Alba, “esse falso grande homem”, “de mente estreita e curta visão política”, ao seu senhor Felipe II, lento, “solitário e discreto”, cauteloso e perseverante, um homem que “via sua tarefa como a sucessão infindável de pequenos detalhes”, mas ao qual faltava uma visão do todo. São descritos com vagar a batalha de Lepanto, o cerco e a libertação de Malta, e as negociações de paz do final da década de 1570". (BURKE, 1992, p. 60-61).

"Para mim, a história e a soma de todas as histórias possíveis - uma coleção de misteres e de pontos de vista, de ontem, de hoje, de amanhã. O único erro ao meu ver, seria escolher uma dessas histórias com a exclusão das outras. Foi e seria o erro historizante". (BRAUDEL, 1978, p. 53).

"Como poucos livros anteriores, se é que algum o fez, O Mediterrâneo torna seus leitores conscientes da importância do espaço na história. Braudel consegue isso fazendo do mar o herói de seu épico, e não uma unidade política como o Império Espanhol, deixando abandonada uma personagem como Felipe II – e também pela constante repetição da importância da distância e da comunicação". (BURKE, 1992, p. 71).

As ideias sobre temporalidade de Braudel foram bastante atrativas por vários anos, mas hoje em dia, sua noção de longa duração está praticamente em desuso. Os historiadores hoje preferem trabalhar com a curta duração e a média duração, mas sob metodologias diferentes das quais eram aplicadas na época de Braudel. Além disso, há também o fato que recortes menores ajudam a se aprofundar mais nos temas, pois um dos problemas dos recortes em longa duração, é que não se tem como realizar um trabalho profundo e específico, pois o torna inviável devido a abrangência de informações e possibilidades a se levar em consideração.

"A segunda, bem mais útil, é a palavra estrutura. Boa ou má, ela domina os problemas da longa duração. Por estrutura, os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida uma articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas por viverem muito tempo tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações: atravancam a história, incomodam-na, portanto, comandam-lhe o escoamento". (BRAUDEL, 1978, p. 49). 

Não obstante, a ideia de estrutura concebida por Braudel e posteriormente adotada também do estruturalismo antropológico, especialmente de Claude Lévi-Strauss, fato esse que levou a um distendimento entre os dois, pois Lévi-Strauss passara a alegar que o conceito de estrutura utilizado por Braudel advinha do campo da antropologia, e ao mesmo tempo, a sua teoria da longa duração não era algo claro. Braudel em resposta, escreveu História e Ciências Sociais: a longa duração (1958) em resposta a esse questionamento de Lévi-Strauss.

Contudo o estruturalismo, seja ele braudeliano ou straussiano, limitava a ação de estudo, pois a macro-abordagem em muitos casos torna inflexível a pesquisa do historiador ou do antropólogo, embora que Braudel defendesse que essas estruturas pelo contrário, auxiliariam na pesquisa história, contudo nem todos os temas, objetos de estudos se encaixam nessas estruturas, nestas macro-abordagens. Quando adentrarmos a terceira geração ficará mais claro o porque dessa gradativo abandono da longa duração.

A cultura material:

Vimos que Braudel foi um adepto da "história das civilizações", assim como Duby, Vouvelle e Mandrou escreveram acerca da "história das mentalidades", mas outro aspecto que também marca essa segunda geração, é o aumento dado a cultura material, algo iniciado na primeira geração com estudos econômicos, mas apenas realmente salientado a partir da segunda geração. Braudel ora e outra faz referências a cultura material em seus livros e artigos.


"Durante esses anos dedicados às atividades de organizador, 1949-1972, Braudel trabalhou num segundo estudo ambicioso. Muitos historiadores franceses, depois dos longos anos de pesquisa e de elaboração necessários para escrever a exaustiva tese doutoral, instrumento fundamental de sucesso acadêmico, optam por uma vida comparativamente pacífica, nada produzindo anão ser artigos e textos escolares. Não Braudel. Logo depois da publicação de O Mediterrâneo, Lucien Febvre convidou-o a participar de um outro grande projeto. A idéia era escreverem uma história da Europa, em dois volumes, abrangendo o período de 1400 a 1800. Febvre responsabilizar-se-ia pelo “pensamento e crença” e Braudel ficaria com a história da vida material. Febvre ainda não escrevera sua parte quando de sua morte em 1956; Braudel escreveu a sua em três volumes, entre 1967 e 1979, sob o título Civilization matérelle et capitalisme". (BURKE, 1992, p. 77).

"Sua preocupação nos três volumes está mais ou menos concentrada nas categorias econômicas do consumo, distribuição e produção, nessa ordem, mas ele prefere caracterizá-las de maneira diferente. A introdução ao primeiro volume descreve a história econômica como um edifício de três andares. No andar térreo, está a civilização material – a metáfora não está longe da “base” de Marx – definida por “ações recorrentes, processos empíricos, velhos métodos e soluções manipuladas desde tempos imemoriais”. No andar intermediário, há a vida econômica “calculada, articulada, emergindo como um sistema de regras e necessidades quase naturais”. No andar superior – para não dizer superestrutura – existe o “mecanismo capitalista”, o mais sofisticado de todos (Braudel, 1979a, pp. 23-26)". (BURKE, 1992, p. 78).



"Existe paralelo óbvio entre as estruturas tripartites de O Mediterrâneo e da Civilisation et Capitalisme. Em ambos os casos, a primeira parte trata da história quase imóvel, a segunda, das mudanças estruturais institucionais lentas e a terceira, de mudanças mais rápidas – eventos no primeiro livro, tendências no outro". (BURKE, 1992, p. 78).

Essa volumosa obra dividida em três volumes procura contar a história do capitalismo desde o chamado "capitalismo mercantilista" do século XV até chegar ao "capitalismo industrial" do século XVIII, durante a Revolução Industrial na Inglaterra. Embora o foco da obra se der sobre a Europa, Braudel explorou bastante as relações econômicas com a Ásia, passando pelo Oriente Médio, Índia e China. Nestes livros, ele aborda vários aspectos dos mercados europeus, asiáticos e um pouco dos africanos, mostrando as relações de consumo e produção e o uso desses produtos na sociedade. 


"Como em relação ao espaço, Braudel em seus temas subverte as fronteiras tradicionais da história econômica. Deixa de lado as categorias tradicionais de “agricultura”, “comércio” e “indústria”, e observa, substituindo-as, “a vida diária”, o povo e as coisas, “coisas que a humanidade produz ou consome”, alimentos, vestuários, habitação, ferramentas, moeda, cidades... Dois conceitos básicos subjazem a esse primeiro volume, um deles, “vida diária”, o outro, “civilização material”". (BURKE, 1992, p. 79-80). 

"Na introdução à segunda edição, declara que o objetivo de seu livro era nada menos do que “a introdução da vida cotidiana no domínio da história”. Não foi, é claro, o primeiro historiador a tentar. La civilization quotidienne era o título de um dos volumes da Encyclopédie Française de Lucien Febvre, para o qual Bloch contribuiu com um ensaio sobre a história da alimentação". (BURKE, 1992, p. 80).

Braudel além de ser chamado de o "historiador do mar", também pode ser chamado de o "historiador do capitalismo". Além de seu livro Civilização Material, Economia e Capitalismo (1979), ele também escreveu A Dinâmica do Capitalismo (1985), como também alguns artigos sobre o assunto. 

A história quantitativa - economia e demografia nos Annales:


Ernest Labrousse
Peter Burke [1992] chama atenção do papel da história econômica na segunda geração dos Annales, especialmente os trabalhos de Ernest Labrousse como já mencionado aqui. Burke fala que os estudos ligados ao preço ("história dos preços"), taxas, câmbios, ciclos econômicos, dados demográficos, foram determinantes para essa "revolução quantitativa"

"Foi com Labrousse que o marxismo começou a penetrar no grupo dos Annales. O mesmo ocorreu com os métodos estatísticos, pois Labrousse foi incentivado pelos economistas Albert Aftalion e François Simiand a empreender um rigoroso estudo quantitativo da economia francesa do século XVIII, publicado em duas partes: Esquisse (1933), sobre os movimentos dos preços de 1701 a 1817, e La crise de l’économie française à la fin de l’Ancien Régime et au début de la Revolution (1944), sobre o fim do antigo regime. Estes livros, saturados de gráficos e tabelas, referem-se a movimentos de longa duração e a ciclos de curta duração, “crises cíclicas” e “interciclos”. Labrousse, muito engenhoso em encontrar maneiras de mensurar as tendências econômicas, utilizou conceitos, métodos e teorias de economistas como Juglar e Kondratieff, preocupados respectivamente com os ciclos econômicos de curta e longa duração; e de seu professor Albert Aftalion, que escrevera sobre crises econômicas". (BURKE, 1992, p. 91).

"A história da população foi a segunda grande conquista da abordagem quantitativa, depois da história dos preços. O surgimento da história demográfica deu-se na década de 50, e isso se deve à consciência da explosão populacional mundial, da mesma forma que a história dos preços na década de 30 está intimamente relacionada ao craque financeiro. O desenvolvimento dessa área de estudo foi, pelo menos na França, o resultado tio trabalho conjunto de demógrafos e historiadores. Louis Henry, por exemplo, que trabalhava no Institut National d’Études Demographiques (INED), transferiu, na década de 40, sua atenção dos estudos da população atual para a população do passado. Desenvolveu o método da “reconstituição familiar”, que vincula os registros de nascimentos, casamentos e mortes, investigando uma região e um período, através do estudo de casos de famílias em Gênova, Normandia, e outras partes". (BURKE, 1992, p. 94). 


Pierre Goubert
No campo da história demográfica, Pierre Chaunu e Pierre Goubert foram seus principais representantes ligados aos Annales. Como vimos, Chaunu teve influência das obras de Labrousse, Simiand e de Braudel, no caso de Goubert, seu trabalho Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730, embora tenha sido uma obra de história social, influenciou as perperctivas demográficas, sociais e econômicas de Braudel, Labrousse e outros estudiosos do século XX. Goubert se tornou colaborador dos Annales durante as três gerações. É considerado por alguns como um dos principais responsáveis pela introdução dos estudos demográficos durante a primeira geração. 

"Ele fez mais, contudo, do que demonstrar a relevância para os beauvisianos do que veio a se tornar a interpretação ortodoxa da recessão econômica e da crise demográfica, no século XVII. Deu considerável ênfase no que chamou “demografia social”, isto é, no fato de que as chances de sobrevivência variavam de um grupo social para outro. Considerou seu estudo uma contribuição à “história social”, uma história preocupada com todos, não somente com o rico ou com o poderoso, um aspecto reiterado em sua obra posterior, Louis XIV et vingt millions de français (1966)". (BURKE, 1992, p. 96).

"A parte mais interessante do livro, a meu ver, são os capítulos sobre a sociedade rural e a sociedade urbana, sobre o mundo da produção têxtil em Beauvais, por exemplo, ou sobre os camponeses ricos, médios e pobres. Esse cuidadoso estudo das diferenciações sociais e das hierarquias sociais, que Goubert, posteriormente, ampliou num ensaio sobre o campesinato francês do século XVII, é um excelente corretivo para qualquer visão simplista da sociedade do antigo regime (Goubert, 1982)". (BURKE, 1992, p. 96-97).

Unindo-se a ideia de estrutura e geografia (geo-história) de Braudel, com o conceito de conjectura de Labrousse, também adotado por Chaunu, agora somando-se aos estudos demográficos e ruralistas de Goubert, vemos na segunda geração um crescimento de estudos geográficos e demográficos, algo que de certa forma surpreende alguns, pois geralmente pensamos que a segunda geração foi marcada apenas pela "história das civilizações", tendo Braudel como principal representante nos Annales

Braudel e Labrousse orientaram vários trabalhos relacionados a Idade Moderna, se estudando o social, o econômico e o demográfico. No caso de Georges Duby, ele realizou trabalhos desse caráter, mas voltado para a Idade Média, pois devemos nos lembrar que Braudel, Labrousse e Goubert eram especialistas na Idade Moderna, mas Duby era um medievalista assim como foi Bloch. 


"A maioria desses estudos locais foi orientada por Braudel ou Labrousse, e tinham por objeto o início da época moderna. Houve exceções, contudo, a essas regras. O medievalista Georges Duby foi um dos primeiros a escrever uma monografia sobre a propriedade, a estrutura social e a família aristocrática na área de Mâcon nos séculos XI e XII. A monografia de Duby era supervisionada por Charles Perrin, um antigo colega de Bloch, e tinha como fonte a geografia histórica". (BURKE, 1992, p. 98).

Nesse aspecto como Burke [1992] dissera, os anos 60 nos Annales foram marcados por trabalhos monográficos de cunho regional e local, relacionados a história econômica e demográfica. Além dos nomes citados acima, Ladurie, Vovelle e Vilar também foram alguns membros dos Annales que produziram obras regionalistas nestes aspectos por essa época, embora que a obra de Ladurie rompeu com algumas características tradicionais vigentes na época, e a obra de Vilar teve foco não na França, mas sim na Catalunha e na Espanha em si. 


Pierre Vilar
Pierre Vilar (1906-2003) escreveu sobre economia, política e sociedade na Espanha moderna, tornando-se um dos principais historiadores em seu tempo em referência aos estudos. De vertente marxista, ele introduziu em suas obras a influência dessa vertente, ao mesmo tempo, influenciado pela longa duração braudeliana e a "história total" de Febvre, Vilar escreveu livros abordando séculos de extensão, estudando estruturas econômicas e sociais na Espanha, na Europa, no Mediterrâneo e no Atlântico. O seu livro Ouro e Moeda na História: 1450-1920 (Oro e Moneda en la Historia: 1450-1920), esboça o uso das metodologias assimiladas dos Annales

"Se vamos às atas do Primeiro Congresso de História Econômica, realizado em Estocolmo em 1960, nos defrontamos com a afirmação de Pierre Vilar, segundo a qual “o crescimento humano, seus saltos, suas hesitações, suas desigualdades, seus conflitos, requerem, pois, na verdade, uma análise histórica global, não uma análise muito segura de si mesma no que se refere aos mecanismos econômicos ‘puros’ (...)”. A observação de Vilar adquire todo seu sentido quando
identificamos seu interlocutor nesta passagem dos anos 50 para a década seguinte: a então emergente tendência que, já o vimos, no interior da história econômica, privilegiava de forma unilateral e atemporal as pesquisas acerca de fatores como capital, força de trabalho e tecnologia. Dito de outro modo, o alvo aqui era uma quantificação sistemática de aspectos que, embora parciais em si mesmos, prestavam-se à elaboração de teorias pretensamente globalizantes". (FRAGOSO; FLORENTINO, 1997, p. 61-62). 

Nos estudos regionais produzidos pelo círculo dos Annales, há uma importante exceção na ênfase atribuída às estruturas socioeconômicas e à conjuntura. A tese doutoral de Emmanuel Le Roy Ladurie, Les paysans de Languedoc (1966), engaja-se na “aventura”, como diz seu autor, “da história total”, num período de mais de duzentos anos (Le Roy Ladurie, 1966, p.11).



"Aceite-se ou não o modelo explicativo do autor, Les paysans de Languedoc impõe admiração por sua vitoriosa e incomum combinação de meticulosa história quantitativa e econômica com uma história política, religiosa e psicológica, brilhantemente impressionista. Vendo esse estudo vinte anos depois de sua publicação, agora está claro que Le Roy foi o primeiro a notar as insuficiências do paradigma braudeliano e a trabalhar para modificá-lo. Essas modificações, em grande parte obra da terceira geração dos Annales, são o tema do próximo capítulo". (BURKE, 1992, p. 105-106). 

A crise de 1968:

Os anos 60 foram uma década conturbada do breve século XX. Durante esses dez anos alguns acontecimentos de nível regional e mundial causaram impactos nos âmbitos sociais, políticos, legais, econômicos, culturais, ideológicos, etc. Enumerar todos os acontecimentos importantes é algo extenso, mas citarei alguns destes. 
  • Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ir ao espaço (1961);
  • Início da construção do Muro de Berlim (1961);
  • Guerra colonial portuguesa (1961-1974);
  • Fim da Guerra da Argélia (1956-1962): Os franceses perderam sua colônia africana, e a Argélia se tornou independente;
  • Concílio Vaticano II (1962): Presidido por João XXIII e Paulo VI;
  • Crise dos misseis de Cuba (1962): por pouco não se iniciou uma Terceira Guerra Mundial;
  • Movimento pan-africanista pela independência das colônias europeias em África (1950-1980);
  • Embargo econômico de Cuba feito pelos Estados Unidos (1963);
  • Assassinato de John F. Kennedy (1963);
  • Discurso "I have a dream" de Martin Luther King Jr. (1963);
  • Nelson Mandela é preso por liderar e organizar grupos contra o Apartheid (1963);
  • Instauração de ditaduras militares nas América Latina, Europa, África e Ásia;
  • Assassinato de Malcom X (1965);
  • Revolução Cultural Chinesa de Mao Tsé-tung (1966-1976);
  • Assassinato de Che Guevara (1967);
  • Guerra dos Seis Dias (1967): Conflito que pois Israel contra o Egito, Síria, Jordânia, Iraque, etc. 
  • Guerra Civil na Nigéria (1967-1970): mais de um milhão de mortos;
  • Massacre de Tlateloco (1967): Vários estudantes foram assassinados durante uma passeata nesta cidade mexicana;
  • Assassinato de Martin Luther King Jr (1968);
  • Primavera de Praga (1968): Revolta para se libertar a Checoslováquia do domínio da URSS;
  • Chegada do homem à Lua (1969);
  • França e Estados Unidos abandonam a Guerra do Vietnã (1956-1975) ainda nos anos 60;
  • Festival de Woodstock (1969);
  • Movimento hippie;
  • Onda de protestos pelos Estados Unidos, Europa e América Latina contra as políticas neoliberalistas, a crise do sistema capitalista, a opressão das ditaduras, etc.;
  • Aumento de movimentos estudantis na América Latina e Europa: Brasil, Argentina, Chile, México, França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Polônia, Iugoslávia e Ucrânia são tomados por várias manifestações estudantis;
  • A China rompe com a URSS;
  • Judeus voltam a ser expulsos da Polônia;
  • Movimento literário e cultural indiano chamado "Geração com Fome";
  • Greves universitárias na América Latina e Europa;
  • Lutas pelos direitos humanos em todo mundo, em resposta aos crimes de guerra e aos crimes cometidos pelas ditaduras;
  • Lutas pelos direitos civis em todo o mundo;
  • Expansão da televisão em cores;
  • Popularização do cinema hollywoodiano no Ocidente;
Após essa breve lista podemos ver como os anos 60 foram conturbados, foram uma fase de mudanças, algumas eu diria mesmo que extremas. No caso da França, o ano de 1968 foi marcado por vários protestos estudantis principalmente em Paris, onde universidades como a Sorbonne e Nantarre chegaram a ter suas atividades paralisadas. Grupos de estudantes chegaram a fazerem barricadas na rua e entrar em conflito com a polícia. Os estudantes protestavam pelo fim da Guerra do Vietnã, protestavam por melhorias na educação, nos direitos civis, na oportunidade de emprego, por condições sociais; por liberdade de expressão (movimento de contracultura, algo visto em vários outros países), etc.

"O furacão de maio de 1968 atingia os Annales. Os combates eram históricos: confrontava-se com o Governo em torno de reformar educacionais; de outro, contra os estudantes e os professores secundários". (SILVEIRA, 2010, p. 39).

"Mas, especificamente a VI Seção da HPHE houve fraturas internas diante do acontecimento. Braudel via no movimento como iconoclasta e libertário, denotando não uma revolução política, mas uma crise da civilização, que desvalorizava o trabalho, a cultura, os valores. Não aceitava a imputação à cultura vigente de equivalência aos valores das classes dominantes e nem a imputação à universidade de aparelho ideológico de Estado, perspectiva essa derivada da concepção althusseriana. Reconhecia a esclerose da universidade quanto ao ensino, mas temia que o movimento estudantil pudesse impedir sua renovação". (SILVEIRA, 2010, p. 39 apud DAIX, 1991, p. 501-502).

Embora tenha sido ligado ao governo francês pelo menos no âmbito das políticas de educação, Silveira [2010] fala que Braudel nem por isso se mostrou engajado nas manifestações de maio de 1968. Ele meio que se manteve neutro nesses protestos, pois via que as revoltas não eram organizadas, não aparentavam ter uma ordem, mas apenas um surto caótico de estudantes enfurecidos ou se deixados por levar pela efervescência do momento. Embora se mostra-se opositor ao controle do governo sobre as universidades, Braudel reivindicava maior autonomia das universidades perante o Estado, mas não negava sua atenção a uma sociedade hierarquizada não no sentido de classes sociais, mas numa estrutura de poder.


Fernand Braudel
No mesmo ano diante dessas mudanças vistas ao longo de 1968 em França e ocorridas no mundo nestes últimos anos, Braudel discordando do futuro dos estudos históricos, pois havia uma crise não apenas na história política, mas agora também na história social e na história econômica, Braudel viu que as tendências cambiavam para um aspecto já explorado pelos Annales nesta segunda geração, mas que cresceria muito a partir dos anos 60, a história cultural. Pelo fato dele não ser muito chegado a história cultural, preferiu se afastar da direção dos Annales. Braudel passaria os anos seguintes escrevendo novos livros, artigos, além de ainda trabalhar como professor e participar de eventos acadêmicos. 

Com a saída dele da direção, os Annales iniciava sua terceira geração a qual seria bastante marcada pela história cultural. 


TERCEIRA GERAÇÃO (1968-1989)

"A terceira geração se constitui a partir de 1968 e foi dirigida por vários pesquisadores, não apresentando assim uma marca pessoal, tal como nas anteriores fases. Uma de suas formas mais visíveis foi como história das mentalidades, que terá seduzido uma geração com seus acenos de profundezas: a 'reconstituição de comportamentos, expressões e silêncios que traduzem concepções do mundo e as sensibilidades coletivas, as representações de imagens (da natureza, da vida e das relações humanas, deus) mito e valores, todos parte de uma psicologia coletiva', tal como expressa por R. Mandrou [1988]". (PORTO, 2010, p. 134). 

"O surgimento de uma terceira geração tornou-se cada vez mais óbvio nos anos que se seguiram a 1968. Em 1969, quando alguns jovens como André Burguière e Jacques Revel envolveram-se na administração dos Annales, em 1972, quando Braudel aposentou-se da Presidência da VI Seção, ocupada, em seguida, por Jacques Le Goff; e em 1975, quando a velha VI Seção desapareceu e Le Goff tornou-se o Presidente da reorganizada École des Hautes Études en Sciences Sociales, sendo substituído, em 1977, por François Furet". (BURKE, 1992, p. 107).

Uma geração policêntrica:

Muitos historiadores que estudam ou estudaram a terceira geração dos Annales praticamente são unânimes em se dizer que embora a história cultural tema crescido bastante nessa fase, não significa que todos os "annalistes" compartilhassem esse mesmo ponto de vista. Silveira [2010] e Burke [1992] apontam que havia diferentes segmentos de estudos históricos na "Escola dos Annales" da terceira geração, onde alguns historiadores eram mais conservadores em relação as tendências adotadas pelas gerações anteriores, enquanto outros eram mais "flexíveis" a se enveredar-se por novas tendências, essas ligadas a história cultural a qual começava a despontar nos anos 60 e nas duas décadas seguintes como alegara Burke [2008].

"Deve-se admitir, pelo menos, que o policentrismo prevaleceu. Vários membros do grupo levaram mais adiante o projeto de Febvre, estendendo as fronteiras da história de forma a permitir a incorporação da infância, do sonho, do corpo e, mesmo, do odor. Outros solaparam o projeto pelo retorno à história política e à dos eventos. Alguns continuaram a praticar a história quantitativa, outros reagiram contra ela". (BURKE, 1992, p. 108).

Parte dos novos "annalistes" não viviam em França, mas viviam nos Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha, etc., viveram por poucos anos ou há bastante tempo, mas se tornaram colaboradores da revista e até mesmo seus membros. A partir destes distintos lugares, estes historiadores propuseram ampliar a interdisciplinaridade dos estudos históricos realizados nos Annales. Procuraram se aproximar da psico-história e da "nova história econômica" ambas desenvolvidas nos Estados Unidos; a história da cultura popular em evidência na Inglaterra, a antropologia simbólica, em evidência na própria França; a história das mulheres, praticada em várias locais da Europa, etc. 

"O centro de gravidade do pensamento histórico, porém, não está mais em Paris, como seguramente esteve entre os anos 30 e 60. Inovações semelhantes acontecem mais ou menos simultaneamente em diferentes partes do globo". (BURKE, 1992, p. 109). 

A historiadora brasileira Rosa Maria Godoy Silveira, a quem tive a oportunidade de conhecer e assistir algumas palestras, redigiu uma breve análise das tendências adotadas pelos "annalistes" dessa terceira geração:
  • Constante busca da interdisciplinaridade, na direção de outras ciências sociais, resultando em alianças com novos campos do saber: linguística, literatura, arte, ciências (naturais), cinema, multiplicando os objetos. O próprio tempo presente se torna objeto, assim como a prática dos historiadores, seus condicionantes epistemológicos, a relação com o seu tempo, as repercussões da produção historiográfica, em suma, a própria história-conhecimento ou cultura historiográfica é teorizada; 
  • Interesse da pesquisa histórica deslocado para o estudo das estruturas mentais, em sua multiplicidade, heterogeneidade e dispersão;
  • Busca de foros de cientificidade à história, dando continuidade à posição da 1a e 2a gerações, agora alimentado pelo uso do computador na pesquisa histórica e uma aproximação com as ciências naturais. Mantém-se a rejeição às filosofias da História como racionalização do social; recusam-se as finalidades marxistas, as abstrações weberianas e as intemporalidades estruturalistas straussianas; 
  • Abandono da orientação para a construção da totalidade histórica, inacessibilidades. Desliza-se para o que Foucault, denomina de história geral, abordada por parte, conceitualmente, e (pretensamente) sem juízo d valor de sentido teleológico ("dever ser"), que introduziam um futuro no passado;
  • A pluralidade dos sistemas explicativos: não há um denominador ideológico comum. É mantida em comum a concepção de uma História inscrita na longa duração. Le Goff arvora uma história escrita por homens livres para homens livres ou em busca de liberdade (REIS, 2000, p. 120);
  •  A memória, de suporte à operação histórica, passa a ser, ela própria, um dos seus objetos, sobre o qual elabora, a partir das proposições foucaultianas, o conceito de documento-monumento. A penetração da história pela antropologia implica em certa recusa ao documento escrito, derivada da recusa à tirania do evento e da linearidade de perspectiva; 
  • Temporalização dos fatos históricos orientada pela história estrutural e a história serial: a recusa ao evento se radicaliza ao ponto de uma 'história imóvel', de uma 'História sem os homens', levando - como um Ladurie (história do clima) - ao paroxismo a orientação original dos fundadores: do tempo longo e da estrutura: desliza-se para o imobilismo, a exacerbação das continuidade e permanências, o estudo cientificamente conduzido à ciência exata, quantificada, lógica, capaz de previsões;
  • A estruturalização da História implica no descentramento do Homem, posto desde os fundadores, ampliado na 2a geração com Braudel e ainda mais aprofundado na 3a fase, com o estruturalismo. 
A partir desses apontamentos feitos por Rosa Godoy podemos notar a ideia de policentrismo sugerida anteriormente. Para Dosse [1992] foi a partir dessas tendência acima mencionada que Braudel teria pedido afastamento dos Annales, declarando sua aposentadoria, pois a ideia de estrutura e conjuntura foi gradativamente sendo abandona por parte dos "annalistes", assim como a longa duração foi sendo substituída pela média duração e a curta duração, sendo essa última influenciada pela micro-história, da qual falarei mais a frente. Ao mesmo tempo, Burke [1992] e Vainfas [1997] assinalam que com a mudança na diretoria das revista, tendo Jacques Revel e André Burguière na direção, e posteriormente em 1972, Le Goff assumiria a direção da Seção VI da Escola Prática de Altos Estudos, instituição ligada aos Annales, a tendência aos estudos das "história das mentalidades" foi apenas crescer, daí usar-se a expressão "do porão ao sótão", pois anteriormente a "história das mentalidades foi marginalizada nas gerações anteriores, agora se tornava o centro das atenções. 

Além disso, houve também o que Rosa Godoy chamou de "retorno ao político", neste caso, trataria-se de um interesse pela história política, renegada pelas duas gerações anteriores. Não obstante, a tendência de uma história quantitativa embora tenha sido tentada a ser adaptada a história cultural, os historiadores preferiram manter a tendência de uma "história serial", mas com base nas perspectivas de Michel Foucault, assim como um apoio conceitual na antropologia histórica, especialmente na conceituação da palavra cultura.

Velhas e novas caras nos Annales:

Para entendermos melhor essa característica policêntrica e dispersa, ao ponto de François Dosse dizer que a terceira geração escreveu uma "história em migalhas", devido a esse caráter pouco coeso e até mesmo como ele sugerira, certa indiferença entre os "annalistes", pois como foi dito, uns preferiram se manter mais fiéis as gerações anteriores e seus métodos e teorias, enquanto outros alegavam a necessidade de se investigar e estudar as novas tendências vigentes, especialmente nesse período conhecido como "virada cultural", ou "virada linguística", ou "virada antropológica" como falara Burke [1992; 2008] e entre outros. 

Nessa "virada" mencionada por Burke, ele apontara que entre os nomes da antropologia da época, o que causou grande impacto para essa nova perspectiva foi Clifford Geertz (1926-2006). Anteriormente tal lugar era ocupado por Lévi-Strauss, fato esse que Le Goff e Duby foram influenciados pelo seu trabalho sobre mitologia dos povos ameríndios. Contudo, o conceito de cultura proposto por Geertz além de outros conceitos por ele desenvolvidos influenciou uma nova leva de historiadores em estudos sociais e culturais.


Emmanuel Le Roy Ladurie
Um dos primeiros historiadores a se mencionar aqui diz respeito a Emmanuel Le Roy Ladurie que atualmente ainda estar vivo. Ladurie como vimos, uniu-se aos Annales ainda durante a segunda geração, tendo sido orientando de Braudel, além de realizar trabalhos de "história quantitativa" sob a orientação e supervisão de Braudel, a quem ele admirava. Alguns desses trabalhos já foram mencionados aqui, contudo, embora fosse um adepto da história social, econômica e demográfica, estas representadas pela "história quantitativa", Ladurie também realizou trabalhos envolvendo a longa duração, como sua "história do clima", mas durante a terceira geração ele decidiu ingressar no estudo da "história das mentalidades" depois que descobriu fontes que permitiram mudar sua proposta inicial de pesquisa. No início dos anos 70, já ciente das mudanças ocorridas nos Annales e na cultura histórica e historiográfica da época, Ladurie procurava por fontes para um estudo de caráter quantitativo sobre a região de Languedoc no sul da França, mas acabou se deparando com os relatos inquisitoriais do bispo Jacques Fournier (c. 1285-1342) o qual se tornaria o papa Bento XII. 

"Montaillou é uma aldeia em Ariége, sudoeste da França, região em que a heresia cátara teve influência considerável, em princípios do século XIV. Os heréticos locais foram processados, interrogados e punidos pelo bispo local, Jacques Fournier. Os registros dos interrogatórios sobreviveram e foram publicados em 1965. Foi, sem dúvida, o interesse de Le Roy pela antropologia social que lhe permitiu ver o valor dessa fonte, não somente para o estudo dos cátaros, mas também para a história rural francesa". (BURKE, 1992, p. 130-131).

A partir dos relatos inquisitoriais de Fournier que revelavam aspectos sociais e culturais da vila de Montaillou em Languedoc, Ladurie fascinado com aquele "pequeno mundo medieval" de um vilarejo occitânico, decidiu mudar sua pesquisa e analisar os documentos inquisitoriais assim como conhecer o contexto social e cultural daquele povoado, e porque pelo menos vinte cinco pessoas foram investigadas pela Inquisição Episcopal da região. O resultado dessa pesquisa tornou-se público em 1975 com o livro: Montaillou village occitan de 1294 à 1324. Um livro que fizera bastante sucesso na época, e também foi considerado por Burke [2008] como a primeira obra ligada aos Annales com tendência a micro-história. 



"Ele notou que vinte e cinco indivíduos, cerca de um quarto dos suspeitos arrolados, procediam da mesma aldeia. Sua inspiração foi tratar os registros como se fossem gravações de um conjunto de entrevistas com esses vinte e cinco indivíduos, mais ou menos dez por cento da população da aldeia. Tudo o que tinha de fazer, diz-nos Ladurie, era re-ordenar a informação fornecida aos inquisidores, pelos suspeitos sob a forma de um estudo de comunidade do tipo que os antropólogos escrevem freqüentemente. Dividiu-o em duas partes. A primeira trabalha com a cultura material de Montaillou, as casas, por exemplo, construídas de pedras sem argamassa, permitindo aos vizinhos observar e ouvir uns aos outros, através das fendas. A segunda parte do livro se preocupa com as mentalidades dos aldeões – seu sentido de tempo e espaço, infância e morte, sexualidade, Deus e natureza". (BURKE, 1992, p. 131). 

"Montaillou é também um estudo de história social e cultural ambicioso. Sua originalidade não reside nas questões postas, que, como já vimos, são as questões propostas por duas gerações de historiadores franceses, incluindo Febvre(sobre o ateísmo) e Braudel (sobre a casa), Ariès (sobre a infância), Flandrin (sobre a sexualidade) e tantos outros. Le Roy foi um dos primeiros a usar os registros da inquisição para a reconstrução da vida cotidiana e suas atitudes, mas não estava sozinho nisso. A novidade de sua abordagem está em sua tentativa de escrever um estudo histórico de comunidade no sentido antropológico – não a história de uma aldeia particular, mas o retrato da aldeia, escrita nas palavras dos próprios habitantes, e o retrato de uma sociedade mais ampla, que os aldeãos representam. Montaillou é um primeiro exemplo do que viria a se chamar de “microhistória”. Seu autor estudou o mundo através de um grão de areia, ou, em sua própria metáfora, o oceano através de um gota de água". (BURKE, 1992, p. 131). 

Podemos notar que o livro de Ladurie estudou um período da Idade Média, mas ele não foi o único a dedicar obras ao medievo; Le Goff e Duby também fizeram isso. Assina-lo tal aspecto, pois durante a segunda geração, Braudel prezou muito pesquisar-se a Idade Moderna, especialmente os séculos XVII e XVIII. Além dele, Labrousse e outros annalistes como o próprio Ladurie também dedicaram-se a modernidade. Le Goff e Duby que já também adentraram os Annales nos anos 60, mantiveram-se ligados ao medievo, assim como Bloch fizera anteriormente. No caso dos dois como já mencionado, o foco dado foi a "história das mentalidades". 

"A partir do maio de 1968 catalisaram-se posições que vinham se desenvolvendo pelo menos desde meados dos anos 60, e autores como Jacques Le Goff e outros, atuando de dentro dos próprios Annales, puseram em dúvida o predomínio desses princípios. Mesmo profissionais que, no início de suas carreiras, haviam se transformado em historiadores econômicos de peso, como Georges Duby e Emmanuel Le Roy Ladurie, autores de clássicos como Guerreiros e camponeses e Os camponeses do Languedoc, acabaram por voltar-se integralmente para outros campos de estudo, como o das estruturas mentais". (FLORENTINO, 1997, p. 56). 


Jacques Le Goff
Le Goff sofisticou as generalizações de Febvre, elas mesmas um pouco imprecisas, e discutiu o conflito entre as concepções do clero e as dos mercadores. Sua contribuição mais substancial, contudo, para a história das mentalidades, ou à história do “imaginário medieval”, como agora denomina, foi realizada vinte anos depois com a publicação do La naissance du Purgatoire, uma história das mudanças das representações da vida depois da morte. Segundo Le Goff, o nascimento da idéia de Purgatório fazia parte da “transformação do cristianismo feudal”, havendo conexões entre as mudanças intelectuais e as sociais. Ao mesmo tempo, insistia na “mediação” de “estruturas mentais”, de “hábitos de pensamento”, ou de “aparatos intelectuais”, em outras palavras, de mentalidades, observando que, nos séculos XII e XIII, surgiram novas atitudes em relação ao tempo, espaço e número, inclusive o que ele chamava do “livro contábil da vida depois da morte”.

Le Goff também foi um admirador de Braudel e até mesmo seu "discípulo" como foi Ladurie. Além disso, ambos chegaram a serem diretores da revista ou pertencerem ao grupo da direção. São dois nomes bastantes conhecidos da terceira geração. 


Georges Duby
No caso de Georges Duby (1919-1996), assim como Le Goff e Ladurie, ele ingressou durante a segunda geração, tendo como influência nem tanto Braudel, mas sim Bloch. Duby escreveu artigos e outros trabalhos seguindo uma ideia parecida com a vista em A sociedade feudal e em As características originais da sociedade rural francesa, ambas obras escritas por Bloch e já mencionadas neste texto. Contudo Duby começou a se enveredar mas para o lado da história cultural como Burke [1992], procurando pensar o "imaginário social", a cultura material, as ideologias, etc. 

"Seu mais importante livro, Les trois ordres, em muitos aspectos, caminha paralelamente ao livro de Le Goff, O Purgatório. Sua investigação recai sobre o que autor denomina “as relações entre o mental e o material no decorrer da mudança social, através do estudo de caso, a saber, o da representação coletiva da sociedade dividida em três grupos, padres, cavaleiros e camponeses, isto é, os que rezam, os que guerreiam e os que trabalham (ou lavram – o verbo latino laborare é convenientemente ambíguo)". (BURKE, 1992, p. 118).

Duby foi um dos grandes nomes da terceira geração dos Annales, embora tenha sido um medievalista  escreveu sobre a Idade Moderna, e até mesmo atuou em parceria em trabalhos sobre história urbana e história das mulheres. 

Ainda na tendência dos estudos da "história das mentalidades" e "imaginário social", Philippe Ariès (1914-1984) foi um dos nomes importantes nesta terceira geração. Ariès estudou a educação, ensino, a ideia de infância no medievo e na modernidade, o Antigo Regime, a família, etc. 

"Foi realmente um historiador da geração de Braudel que despertou a atenção pública para a história das mentalidades, através de um livro notável, quase sensacional, publicado em 1960. Philippe Ariès era um historiador diletante, “um historiador domingueiro”, como ele próprio se chamava, que trabalhava num instituto de frutos tropicais, devotando seu tempo de lazer à pesquisa histórica. Demógrafo histórico por formação, Ariès veio a rejeitar a perspectiva quantitativa (da mesma maneira que rejeitou outros aspectos do mundo burocrático-industrial moderno). Seus interesses direcionaram-se para a relação entre natureza e cultura, para as formas pelas quais uma cultura vê e classifica fenômenos naturais tais como a infância e a morte". (BURKE, 1992, p. 110). 


Philippe Ariès
"Seus últimos anos foram dedicados a estudos sobre as atitudes perante a morte, focalizando de novo um fenômeno da natureza refratado pela cultura, a cultura ocidental, e atendendo a um famoso reclamo de Lucien Febvre, em 1941, “Nós não possuímos uma história da morte” (Febvre, 1973, p. 24). Seu alentado livro, L’Homme devant la mortdistingue, num panorama de seu desenvolvimento sob uma muito longa duração, quase mil anos, uma seqüência de cinco atitudes, que vão desde a “morte domada” da baixa Idade Média, uma visão definida com um “compósito de indiferença, resignação, familiaridade e ausência de privacidade”, ao que ele chama “morte invisível” (la mort inversée), de nossa própria cultura, na qual, subvertendo as práticas vitorianas, tratamos a morte como um tabu e discutimos abertamente o sexo (Ariès, 1977). L’Homme devant la mort tem os mesmos méritos e defeitos do livro L’Enfant et la vie familiale sous l’Ancien Regime. Nele se encontram a mesma audácia e a mesma originalidade, o mesmo uso de uma ampla variedade de evidências, que inclui literatura e arte, mas não a estatística, e a mesma vontade de não traçar cartas regionais ou sociais de diferenças". (BURKE, 1992, p. 112).


Jean Delumeau
Nesse âmbito de se estudar a morte, um historiador que começou a despontar nesta geração foi Jean Delumeau, pois até aqui, os nomes citados acima, já estavam ligados a revista desde a segunda geração. Delumeau seguiu um caminho compartilhado por Ariès e Mandrou, o que Burke [1992] chamara de "psicologia histórica". Mandrou havia deixado os Annales após desentendimentos com Braudel, mas acabou posteriormente retornando e seguindo nos estudos culturais, tendo a psicologia como referência em seus estudos. No caso de Delumeau, ele estudou a Idade Média e a Idade Moderna, estudando as "mentalidades" e representações culturais ideológicas e o impacto destas nas sociedades europeias. Um dos seus livros mais famosos é A história do medo no ocidente: 1300-1800 (1978), obra na qual Delumeau estudou o medo e suas representações culturais e ideológicas: Delumeau aborda o medo do mar, da escuridão, das florestas, de monstros, de fantasmas, de demônios, da peste negra, do Apocalipse cristão, etc. Ele realizou um trabalho sobre uma "psicologia do medo", mostrando que em muitos casos o medo é uma tendência mais cultural do que natural. 

"Outros membros do grupo dos Annales iam na mesma direção, especialmente Alain Besançon, um especialista na Rússia do século XIX, que escreveu um longo ensaio na revista sobre as possibilidades do que ele denominava “história psicanalítica”. Tentou pôr em prática essas possibilidades num estudo sobre pais e filhos. O estudo focalizava dois tzares, Ivã, o Terrível, e Pedro, o Grande, o primeiro matou seu filho, e o segundo condenou o seu à morte (Besançon, 1968, 1971)". (BURKE, 1992, p. 116).


Marc Ferro
Na terceira geração também não podemos esquecer de antigos nomes como Michel Vovelle e Pierre Nora, ambos já citados, contudo, temos também novos nomes a citar, como Marc Ferro o qual tivera seu talento descoberto por Braudel, e na terceira geração ganhou destaque, chegando a ser co-diretor da revista. Ferro é principalmente lembrado neste período por sua empreitada em se unir o cinema e a história, em se usar a cinematografia como fonte de estudo, assim como, meio para se compreender a retratação do mundo e da História. Além de trabalhar com cinema, Ferro também trabalha com a Segunda Guerra Mundial, Revolução Russa, história da Rússia soviética, movimentos sociais, o papel da mídia na sociedade, etc. Marc chegou a ter um programa de televisão semana chamado Histórias Paralelas (Historie parallèle) onde abordava temas sobre o século XX. O programa era transmitido aos sábados no pela emissora FR3, e se tornou um sucesso na época. Ferro ainda hoje é uma referência para quem estuda cinema e história.

Enumerar todos os historiadores da terceira geração é algo extenso e demandaria um texto próprio apenas para debater suas contribuições, contudo, preferi citar os mais conhecidos, mas isso não significa que os outros não tenham suas contribuições para não apenas os Annales, mas também a historiografia contemporânea. Contudo, um aspecto a salientar é o fato que foi a partir da terceira geração que tivemos o ingresso de historiadoras aos Annales


"A terceira geração é a primeira a incluir mulheres, especialmente Christiane Klapisch, que trabalhou sobre a história da família na Toscana durante a Idade Média e o Renascimento; Arlette Farge, que estudou o mundo social das ruas de Paris no século XVIII; Mona Ozouf, autora de um estudo muito conhecido sobre os festivais durante a Revolução Francesa; e Michèle Perrot, que escreveu sobre a história do trabalho e a história da mulher (Klapisch, 1981; Farge, 1987, Ozouf, 1976, Perrot, 1974)". (BURKE, 1992, p. 108). 


Michelle Perrot
Além do ingresso de historiadoras, a terceira geração também passou a tratar acerca da história das mulheres, gênero, sexualidade, família, trabalho, etc., envolvendo em muitos casos o papel e o lugar das mulheres na História, de forma a revelar que elas não eram e não são coadjuvantes do processo histórico como se pensou por muito tempo. A obra mais ousada dessa produção feminista dos Annales, foi o livro organizado por Michelle Perrot e Georges Duby, Histoire des femmes en Occident (1990-1991) lembrando que tal coleção em cinco volumes foi publicada por uma editora italiana, a Laterza, pois as editoras francesas na época não mostraram interesse por publicar uma história das mulheres, mesmo estando na década de 90. Além disso, a própria Perrot e Duby foram convidados para organizar essa extensa obra que ainda hoje é referência para a "história das mulheres". Nesta coleção a qual traça a trajetória das mulheres da Antiguidade ao tempo presente, procurou mostrar sob vários aspectos o papel e o lugar das mulheres nas sociedades ocidentais: a mulher como esposa, filha, mãe, dona de casa, concubina, escrava, trabalhadora, governanta, etc. Analisou aspectos culturais e sociais, e até mesmo o machismo sobre elas. 

A nova história (nouvelle historie):


"O movimento da Nouvelle Histoire, inaugurado na França pela Escola dos Annales, constitui certamente uma das influências mais emblemáticas e duradouras sobre a Historiografia Ocidental. A expressão “Nouvelle Histoire” aqui estará sendo empregada em seu sentido ampliado, que inclui tanto a Escola dos Annales propriamente dita como a corrente a que, a partir dos anos 1970, muitos se referem também como Nouvelle Histoireem sentido mais restrito. A acepção ampliada da expressão Nouvelle Histoire é utilizada por José Carlos Reis no seu ensaio “O surgimento da Escola dos Annales e o seu programa”, incluído na coletânea de textos deste autor sobre A Escola dos Annales (2000). Em outros âmbitos de reflexão, a expressão também tem sido criticada e relativizada por alguns historiadores, sendo este o caso de Le Roy Ladurie em seu texto “Quelques orientations de la Nouvelle Histoire”, publicado em 1987". (BARROS, 2010, p. 2).

De acordo com François Dosse em seu livro História em migalhas (1987) a "nova história" no sentido de movimento, ingressa nos Annales durante a terceira geração, logo após a saída de Braudel da direção, contudo Barros [2010], lembra que Iggers enfatizava que a "nova história" já tivesse começado bem antes, ainda na segunda geração, nessa perspectiva, se lembrarmos o que foi lido neste texto, a "história das mentalidades", os estudos de cultura material, a "história das civilizações", etc., sob este ponto de vista, já eram estudadas na segunda geração, embora a "história das mentalidades" não possuísse naquela época tanto espaço como as outras formas de estudo, mas mesmo assim, ela estava presente. 

Burke [1992] assinala que o termo "nova história" já existia desde pelo menos 1912, tendo sido utilizado por um estudioso americano chamado James Harvey Robinson. Além disso, Burke também ressalva que para ele, os Annales surgidos em 1929, de certa forma propunham uma "nova história", embora que ele acabe concordando com o uso do termo para referir-se a cultura historiográfica da terceira geração. Para Barros [2010], a "nova história" nos Annales representa um paradigma difícil de ser conceituado e temporalizado.

"Os Annales constituem um paradigma, como propõem Gemelli (1987) ou Stoianovitch (1976) em seus ensaios? Estão imersos no conjunto de variações e contribuições atinentes a um paradigma mais amplo, como propõe Ciro Flamarion Cardoso ao integrar a Escola dos Annales a um moderno paradigma iluminista? Existiria apenas um único paradigma dos Annales, ou mais de um, como propôs Jacques Revel em um artigo escrito em 1979 para a própria Revista dos Annales, com o título “Os paradigmas dos Annales”? Ou será que, ao invés de um “paradigma” ou conjunto integrado de paradigmas, os Annales constituem um Movimento ou Escola, tal como sugerem François Dosse e Peter Burke em perspectivas bem diferenciadas um do outro? Se é uma Escola, até que ponto existirão inovações suficientemente decisivas para que se possa atribuir aos Annales uma contribuição realmente transformadora para a Historiografia Ocidental, tal como propõe José Carlos Reis nas suas diversas análises sobre as radicais e inovadoras contribuições que emergem da instituição pelos Annales de um novo Tempo Histórico (REIS, 1994)?". (BARROS, 2010, p. 3). 

"Como vimos, na geração de Braudel, a história das mentalidades e outras formas de história cultural não foram inteiramente negligenciadas, contudo, situavam-se marginalmente ao projeto dos Annales. No correr dos anos 60 e 70, porém, uma importante mudança de interesse ocorreu. O itinerário intelectual de alguns historiadores dos Annales transferiu-se da base econômica para a “superestrutura” cultural, “do porão ao sótão"." (BURKE, 1992, p. 110).


Pierre Nora
A "nova história" dos Annales começou a se tornar mais evidente com a publicação da coleção organizada por Pierre Nora e Jacques Le Goff, intitulada Fazer a História (Faire de i'historie) em 1973. Nesta obra dividida em três volumes: Novos Problemas, Novas Abordagens e Novos Objetos, os dois "annalistes" e seus colaboradores, entre eles Vovelle e Ariès, apresentaram a cultura historiográfica vigente na terceira geração. Tal cultura historiográfica já teve vários de seus aspectos assinalados no tópico acima, mas tentarei enumerar algumas de suas características, embora pondere que não seja algo fácil, e alguns historiadores acharão divergências em minha opinião.

A "nova história" no contexto teórico expressava algumas das seguintes características:
  • Renegação a história tradicional historicista. Embora houvesse alguns "annalistes" na época que estavam tentando retomar a história política, mas sob outras formas de estudo;
  • Renegação a ideia tradicional de fontes históricas. Nesse caso a ideia tradicional enfatizava muito o documento escrito, e de preferência relacionado a órgãos do Estado, ou escrito pelos "grandes homens";
  • Ampliação no conceito de fontes históricas, especialmente pelo lado dos estudos sobre cultura;
  • Afastamento da longa duração braudeliana;
  • Retorno ao recorte monográfico;
  • Aproximação da micro-história (isso em alguns casos);
  • Influência da antropologia histórica;
  • Aumento nos estudos ligados as mentalidades, ideias, representações, performances, ritos, etc.;
  • Influência dos trabalhos de Michel Foucault, especialmente no que concerne na questão teórica, envolvendo conceitos;
  • Aumento na interdisciplinaridade, especialmente com a psicologia e a antropologia;
  • Indecisão acerca do papel da narrativa histórica. Roger Chartier, Eric Hosbawm, Michel de Certeau, Peter Burke e Hayden White foram alguns que questionaram o papel da narrativa histórica nesse período, mostrando que parte do movimento negava a narrativa histórica, pelo menos a de tendência tradicional, contudo, outra parte defendia um "retorno a narrativa histórica", mas não de caráter tradicional;
  • Afastamento do conceito de estruturalismo braudeliano e straussiano;
  • Ampliação da ideia de "história total" proposta por Lucien Febvre. Dosse questiona essa ideia, e sugere o oposto, uma fragmentação;
  • Afastamento da história quantitativa, embora essa ainda se manteve nessa geração;
  • Adoção da perspectiva de uma "história vista de baixo", ou seja, estudar não apenas as classes dominantes, mas as classes marginalizadas;
  • Reinterpretação sobre o conceito de fato histórico;
  • Aproximação do estudos memorialistas;
  • Influência dos estudos pós-coloniais;
  • Influência do feminismo;
"De acordo com François Dosse, a Interdisciplinaridade renovadora dos primeiros annalistas teria sido deturpada e perigosamente exagerada pelos historiadores da Nouvelle Histoire, que com isto ameaçavam sacrificar a identidade da história e pulverizaram a produção historiográfica em uma quantidade desconexa de novos objetos e modalidades historiográficas, sem ligação umas com as outras (REIS, 2000, p.188). Além disto, para este novo modelo historiográfico, teria sido rompido o modelo annalista original, que para além de analisar o Passado a partir de uma problematização do Presente, buscava considerar o Passado como uma instância que poderia beneficiar a compreensão do Presente e mesmo a sua transformação. Desta maneira, traindo essa interação entre temporalidades que fora a marca da historiografia anterior, com os historiadores da História em Migalhas o diálogo entre Presente e Passado estaria rompido, e o Passado começaria a ser cultuado como campo de análise a ser contemplado unidirecionalmente, sem o benefício que poderia ser trazido pelo retorno ao Presente da reflexão sobre os tempos históricos anteriores para o vivido atual. De alguma maneira, a História teria voltado a ser objeto de análise para colecionadores, tal como na história antiquaria que havia sido condenada pelos próprios fundadores dos Annales". (BARROS, 2010, p. 6).

"Para além da análise de Dosse sobre a Nouvelle Histoire como descontinuidade, e mesmo como traição, em relação aos fundamentos que unificaram as duas primeiras gerações dos Annales, há certamente as leituras da continuidade, ou as que ficam a meio caminho. Peter Burke (1989) assume o próprio discurso dos historiadores dos Annales sobre si mesmos e adota a classificação da Nouvelle Histoire como “terceira geração dos Annales”. José Carlos Reis (2000) procura fazer um balanço crítico para dar conta do período que faz a passagem “Da História Total à História em Migalhas”. Entre estes dois momentos, enumera algumas mudanças de perspectivas, entre as quais (1) passagem da Síntese à Especialização, (2) passagem do todo (holismo) para o tudo (micro); (3) passagem do homogêneo (mudança) para o heterogêneo (conservação); (4) passagem da explicação/conceito à descrição/constatação/relativismo; (5) passagem da estrutura ao indivíduo, do social objetivo ao individual/subjetivo; e, sucessivamente, a passagem (6) do material ao imaginário; (7) do Racional ao Irracional; (8) da revolução ao imobilismo; (9) da memória à desmemoria; (10) da História-Ciência social à História-Literatura; e (11) da Identidade Epistemológica à não-identidade (REIS, 2000, p.204)". (BARROS, 2010, p. 7).



Vou me deter apenas a comentar isso sobre a nouvelle historie, devido a complexidade deste assunto, que eu particularmente não domino muito, como também, demandaria um texto próprio, além de ser um texto de sentido mais específico para os historiadores; aqui, estou escrevendo também para o público leigo. Contudo, adiante, já caminhando para a conclusão desse trabalho, falarei um pouco da influência da micro-história nos Annales e no movimento da "nova história", assim como o as contribuições de Foucault, até aqui já referidas, mas ainda não apresentadas.


Também é importante lembrar que nem todos os países adotaram a "nova história" neste período. A mesma surgida em França, influenciou alguns historiadores ingleses, especialmente o caso da Revista Past and Present; no caso da Itália, houve influência conjunta a surgida micro-história. Outros países ainda demorariam a adotar tais perspectivas, e no caso dos Estados Unidos, nos anos 80, surgiria a chamada "nova história cultural", herdeira dessas mudanças vigentes nos anos 60 e 70.

Todavia, se algumas dúvidas ainda perduraram, recomendo relerem o tópico anterior sobre alguns dos trabalhos publicados nessa época, de forma que isso facilitará a compreensão e assimilação do conteúdo e das características da "nova história", a partir de vermos como isso foi posto em prática na época.



A influência da micro-história: 

Carlo Ginzburg
A micro-história surgiu nos anos 70 com dois historiadores italianos, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, ambos ainda estão vivos. Os dois historiadores passariam a ficarem bastante conhecidos no mundo a partir da abordagem de pesquisa e estudo, posteriormente chamada micro-história. Aqui é importante ressalvar que a micro-história é uma abordagem, uma metodologia de estudo e não uma área de estudo como a história política, social, econômica, etc. No início, tal metodologia foi confundida com a história das mentalidades, estudos de cultura material, história cultural, história descritiva, etc. Porém, o certo é que a micro-história é uma metodologia de estudo que visa estudar acontecimentos em um recorte temporal de curta duração, ao mesmo tempo aprofundar o máximo que for possível a pesquisa, pois uma das críticas que estes historiadores fizeram, era que os estudos históricos estavam "superficiais", exploravam pouco as possibilidades, assim como, certas fatos só poderiam ser conhecidos a partir de uma análise mais meticulosa, daí Burke [2008] referir-se a micro-história como "um estudo da História sob a lente do microscópio". Burke também dá três motivos para o surgimento da micro-história:

"Em primeiro lugar, a micro-história foi uma reação contra um certo estilo de história social que seguia o modelo da história econômica, empregando métodos quantitativos e descrevendo tendências gerais, sem atribuir muita importância à variedade ou à especificidade das culturas locais". (BURKE, 2008, p. 61).

"Em segundo, a micro-história foi uma reação ao encontro com a antropologia. Os antropólogos ofereciam um modelo alternativo, a ampliação do estudo de caso onde havia espaço para a cultura, para a liberdade em relação ao determinismo social e econômico, e para os indivíduos, rostos na multidão. O microscópio era uma alternativa atraente para o telescópio, permitindo que as experiências concretas, individuais ou locais, reingressassem na história". (BURKE, 2008, p. 61). 

"Em terceiro lugar, a micro-história era uma reação à crescente desilusão com a chamada 'narrativa grandiosa' do progresso, da ascensão da moderna civilização ocidental, pela Grécia e Roma antigas, a Cristandade, Renascença, Reforma, Revolução Científica, Iluminismo, Revolução Francesa e Industrial. Essa história triunfalista passava por cima das realizações e contribuições de muitas outras culturas, para não falar dos grupos sociais do Ocidente que não haviam participado dos movimentos acima mencionados". (BURKE, 2008, p. 62). 


Três livro merecem ser destacados no contexto da micro-história, o primeiro, foi escrito por Ginzburg e publicado em 1976, intitulado O queijo e os vermes: o quotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição ( Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500). O moleiro em questão chamava-se Domenico Scandella, conhecido mais pelo seu apelido Mennocchio (diminutivo de Domenico). Mennocchio foi acusado pela Inquisição Romana durante o século XVI, de acreditar e espalhar ideias heréticas  especialmente no que concernia sobre a origem do universo, do mundo, dos seres vivos, etc. Embora fosse um camponês, ele sabia ler e escrever, algo raro mesmo na época, e tal fato é atestado, pois em seus interrogatórios ele cita os livros e autores que leu, de onde veio as ideias que o levaram a questionar as "verdades" postas pela Igreja Católica.

"O título do livro deve-se a explicação de Mennocchio de que no princípio tudo era o caos, e os elementos formavam uma massa 'exatamente como o queijo faz com o leite, e naquela massa apareceram alguns vermes, que eram os anjos'". (BURKE, 2008, p. 62).

A partir dos documentos inquisitoriais do caso de Mennocchio, Ginzburg começou a explorar esse momento da vida deste simples moleiro italiano de Friuli, assim como também entender a sociedade e o mundo onde ele vivia. O livro recebeu críticas mistas na época, sendo negativado por alguns, mas aplaudido por outros. Hoje é um dos marcos para se entender a abordagem da micro-história.

"O queijo e os vermes pode ser descrito como uma 'história de baixo', porque se concentra na visão de mundo de um membro do que o marxista italiano Antonio Gramsci chamava de 'classes subalternas'. O herói do livro, Menocchio, pode ser descrito como um 'extraordinário homem comum', e o autor explora suas ideias sob diferentes ângulos, tratando-o algumas vezes como um indivíduo excêntrico que deixava seus interrogadores desconcertados porque não se encaixava no estereótipo de herege, e em outras ocasiões como porta-voz da cultura camponesa, tradicional e oral". (BURKE, 2008, p. 63).

Giovanni Levi
A segunda obra, foi escrita por Giovanni Levi, lançada em 1985intitulada A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII (L'eredità immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del seicento). Nesse livro, Levi estudou as práticas mágicas de um exorcista chamado Giovan Battista Chiesa, habitante do pequeno povoado de Santena. Assim como Ginzburg fizera com Mennocchio em seu estudo sobre a vida e as ideias daquele moleiro, aqui vemos algo parecido, mas agora voltado para um exorcista. Contudo, o grande marco da obra de Levi, não foi nem tanto estudar a trajetória de Giovan Battista, mas sim a cultura imaterial de sua época. Levi deu grande atenção para se estudar as práticas sociais e culturais vigentes em Santena e na região de Piemonte, como forma de compreender o mundo em que Giovan Battista vivia e atuava. A cultura imaterial se defere basicamente da cultura material, pois trata-se de algo não palpável, não se trata de objetos, mas sim de práticas, costumes, ritos, performances. Festas, cerimônias, ritos, música, cantos, poesia oral, etc., são aspectos que pertencem a cultura imaterial. No caso do livro, Levi procurou analisar como se dava as relações ligada a herança imaterial, a transmissão de costumes, de saberes comunitários. 

O terceiro livro a ser mencionado já foi comentado anteriormente aqui; trate-se de Montaillou: vilarejo occitânico do "annaliste" Emmanuel Le Roy Ladurie publicado em 1975. Na época a obra não chegou a ser identificada por todos como sendo uma abordagem micro-histórica, mas a medida que tal abordagem italiana ficava mais conhecida, principalmente após o lançamento de O queijo e os vermes, e nos anos 80 com a coleção intitulada Microhistória (Microstorie), organizada por Ginzburg e Levi, o livro de Ladurie passou a ser reconhecido como exemplar dessa abordagem, e o mesmo chegou a fazer outras obras nesta perspectiva. 

Hoje em dia, a maioria dos historiadores da micro-história se concentram na Itália, França, Inglaterra e Estados Unidos. No Brasil há um ligeiro aumento ainda tímido nesse campo, pois embora a micro-história adote a curta duração, não podemos confundir qualquer trabalho que aborde um tempo curto, sendo esse escrito a partir da abordagem micro-histórica. 

Voltando aos Annales, além de Ladurie, Jacques Revel, um dos nomes importantes da atual quarta geração também é adepto da micro-história. Embora a micro-história tenha surgido no campo da história social, Burke [2008] salientara que ela contribuiu muito nos estudos culturais, e na consolidação da "nova história cultural" nos anos 80. 

O pensamento foucaultiano:

Michel Foucault
O filósofo e historiador francês Michel Foucault (1926-1984), tivera uma grande influência nos estudos filosóficos e históricos nos anos 60 e 70. Embora não tenha sido historiador de formação, mas dedicou-se vários anos a lecionar história, assim como também escreveu livros de história cultural, e para mim, isso o torna historiador, ainda mais, pelo fato dele estudar filosofia da história e pensar em forma de se repensar o estudo da História. Foucault por algum tempo foi negligenciado ela historiografia francesa, de fato, ele viveu alguns anos fora da França, retornando em 1960 para concluir seu doutorado, tendo publicado sua tese intitulada História da Loucura na Idade Clássica (1961) obra a qual Vainfas [1997] dissera que "custou a ser assimilada pela historiografia francesa". De fato, a História da Loucura só viria a ser reconhecida como um trabalho importante, mais de dez anos depois. Em 1966 ele publicou outro de seus importantes livros, A ordem das coisas, que na época fez sucesso, tendo sido recebido bem pela crítica, contudo, Foucault acabou sendo chamado de estruturalista, algo que não lhe agradava. 

"A ordem das coisas (1966) trata das categorias e dos princípios subjacentes e organizadores de tudo o que possa ser pensado, dito ou escrito em um dado período, no caso, os séculos XVII e XVIII; em outras palavras, os 'discursos' do período. Nessa obra, Foucualt sugeriu que tais discursos coletivos, mais que os escritores individualmente, são o objeto adequado de estudo, o que chocou alguns leitores, mas inspirou outros". (BURKE, 2008, p. 75). 

Em 1968 se envolveu nos movimentos estudantis em Túnis, capital da Túnisia, cidade onde residia desde 1966, atuando como professor universitário. Em 1969 retornou a França e publicou mais um livro, Arqueologia do Saber (1969) o qual para Vainfas [1997] definitivamente colocou Foucault no centro das atenções historiográficas francesas na época. Neste livro, Foucault procurou apresentar o que ele chamava de "método arqueológico" para se estudar as ciências sociais, o que incluiria também a História. Três livros anteriores, História da Loucura (1961), O nascimento da clínica (1963) e A ordem das coisas (1966), segundo ele expressaram sua ideia de "arqueologia" posta em prática. O seu livro de 1969, consistiu num trabalho teórico e metodológico para explicar sua metodologia empregada nestas três obras. 

"Michel Foucault que, ao publicar sua L’archeologie du savoir (Arqueologia do saber), em 1969, pôs em xeque os paradigmas ocidentais do conhecimento científico, o racionalismo e o próprio saber histórico. Poder-se-ia objetar que Foucault custou a ser assimilado pela historiografia francesa, lembrando que sua Histoire de la folie (História da loucura), del961, ficou quase despercebida por muito tempo. Mas o fato é que pouco a pouco sua obra filosófica e “historiográfica” foi penetrando nas pesquisas dos historiadores profissionais, fazendo renascer antigas preocupações de Febvre e de Bloch com os discursos e rituais, e estimulando novos temas, como o da sexualidade, das prisões, dos micropoderes, da doença etc". (VAINFAS, 1997, p. 202). 

"Foucault encarava os sistemas de classificação, chamados por ele de 'epistemes' ou 'regimes de verdade, como expressões de uma dada cultura e, ao mesmo tempo, forças que lhe dão forma. Ele se definia como 'arqueólogo', porque achava a obra dos historiadores superficial, sendo necessário cavar mais fundo para chegar às estruturas intelectuais ou, como preferia chamar, 'redes' (réseaux) e 'grades' (grilles)". (BURKE, 2008, p. 75).

A sua ideia de "arqueologia" era chamar atenção para a necessidade de se rever as metodologias de pesquisa, pois como Burke assinalou, Foucault dizia que os historiadores estavam trabalhando apenas na "superfície do problema", com tudo a História "é feita de várias camadas", e cada "camada possui seu tempo e suas características", daí ele defender uma descontinuidade temporal e uma historia seriada. De forma que assim pudessem estudar assuntos que normalmente eram ignorados. Ao mesmo tempo, ele criticou os "annalistes" da terceira geração acerca dos seus estudos sobre a "história das mentalidades", dizendo que eles tinham uma "ideia pobre do real", pois ainda estavam limitando seus estudos. 

Neste caso, Foucault realizou algumas obras bastante importantes na época, dentre algumas irei mencionar aqui: A já mencionada História da Loucura, analisa como a loucura era interpretada pela medicina e pela sociedade, assim como os loucos eram tratados socialmente; neste caso, Foucault chama a atenção que em diferentes épocas a loucura era concebida de forma diferente, e não consistia numa ideia imutável. O nascimento da clínica e outros livros também voltam analisar essa questão de saúde e psicológica, pois a psicologia teve influência nos estudos foucaultianos. 

Em sua coleção História da Sexualidade, ele também analisa a recepção da sociedade moderna e contemporânea ocidental acerca da sexualidade, do sensualismo, do gênero, das relações sexuais, do corpo, das representações sociais, culturais sobre esse assunto, etc. Para ele entre os séculos XVII e XIX no Ocidente, houve uma repressão da sexualidade, algo que deveria ser analisado, e também servir para entender o porque da "liberdade sexual" iniciada nos anos 60, seja com o movimento hippie, os movimentos homossexuais e os movimentos feministas, pois a ideia de sexo que ele remete-se aqui não diz apenas na relação carnal, mas nas ideias de masculinidade, feminilidade, orientação sexual, etc. 

Em Vigiar e Punir (1973) Foucault analisou o papel do Estado e suas instituições (polícia, escolas, hospitais, quartéis, fábricas, presídios, sanatórios, etc) no controle da população, agindo como um órgão de vigilância, punição, e disciplinarização, a fim de controlar a vida social. Em seu livro ele analisa estas instituições e seu papel na sociedade moderna e contemporânea, e até mesmo criticando a ideia de "disciplina" e "punição" na época. Aqui Foucault também questiona a questão de liberdade, individualismo, submissão, controle, etc. 

Em seu livro Microfísica do poder (1979) outra de suas famosas obras, ele encara o "poder" estando dividido em várias camadas e lugares, e não apenas centralizado nas mãos de alguns. Para ele, cada camada, lugar, grupo, etc., possuía suas hierarquias, seus chefes, suas ordens, seus deveres, etc. Novamente, vemos aqui a ideia de descontinuidade e ruptura, assim como o seu conceito de "epistemes". 

Burke [2008] falara que a reação de alguns "annalistes" as críticas de Foucualt, foi criar os estudos chamados de "imaginário social", o qual passou a estudar alguns dos assuntos trabalhados por Foucault. Ao mesmo tempo, Burke fala que isso começou a ficar mais nítido no decorrer dos anos 70 e 80, com a "nova história cultural", da qual, segundo Burke, foi influenciada por Foucault. Embora ela não tenha se unido a Escola dos Annales, suas críticas contribuíram para gerar mudanças, pelo menos em alguns dos membros dessa escola. 

Considerações finais: 

Atualmente a Escola dos Annales vivencia sua quarta geração desde 1989, quando novas rupturas levaram ao início de uma nova geração, pois lembrando os dizeres de Roger Chartier, um dos membros da atual quarta geração: a História vem vivenciando uma crise de identidade desde os anos 30, que vai se transformando ao longo do tempo. Ele chega a dizer que nos anos 80 e 90 vivenciamos alguns aspectos dessa crise, e isso levou a novos rumos nos Annales. Em 1994 a revista mudou de nome para Annales. Historie, Sciences sociales, título que conserva até hoje. 

Pelo fato de não dispor de material para falar acerca da quarta geração, me prendi a comentar as outras três, as quais são mais abordas pelos historiadores. Futuramente acho que haverá um maior número de análises sobre a atual quarta geração, embora das quatro, ela seja a menos paradigmática. Além de Chartier, outros nomes que se mantêm ligados direta ou indiretamente a quarta geração estão: Jacques Revel, Emmanuel Le Roy Ladurie, Jacques Le Goff, Marc Ferro e André Burguière. 

Todavia o que podemos concluir nesse extenso texto é que de fato a Escola dos Annales foi um movimento como defende Revel, foi uma mudança paradigmática, como sustentam Burke, Chartier, Barros, Vainfas, Reis, Porto, entre outros; as mudanças historiográficas, ou melhor dizendo os debates sobre a forma de como estudar e pesquisar a História realmente foram pertinentes a ponto de não apenas influenciar a França no século XX, mas outras nações como visto, embora que é necessário lembrar que nem todos os historiadores franceses foram adeptos aos Annales

Uma questão também a se deixar clara é que embora os Annales tenham evitado de se trabalhar com a história política, não significa que ela seja algo ruim ou errado, mas sim foi fruto de uma momento, de uma crise de conceitos no início do século XX. A história política hoje em dia não é igual a daquela época. 

Outra questão a se ressalvar é que embora Bloch e Febvre tenham criticado o historicismo, a Escola Metódica, Leopold von Ranke, o Positivismo Comteano, não podemos desmerecer seus trabalhos, pois eles tiveram o que contribuir, e se não fossem as falhas deles, não haveria ruptura para novos caminhos. 

Também é necessário salientar que os Annales não foram perfeitos em tudo, Burke, Chartier, Dosse, entre outros assinalam problemas nas teorias e ações dos "annalistes", pois como Burke [1992, p. 168-169] mencionara: "A contribuição dos Annales pode ter sido profunda, mas foi também profundamente desigual. Uma das críticas feitas aos annalistes foi sua grande atenção dada ao Antigo Regime Francês, cerca de 1600 a 1789, pois embora houvessem trabalhos no período medieval como visto alguns aqui, a Idade Antiga e a Idade Contemporânea ficaram de fora dessas pesquisas. Aqui podemos notar que após Bloch e Febvre a ideia de "história total" acabou se tornando limitada em um espaço (a França) e em um tempo (o Antigo Regime). A segunda geração foi o auge dos estudos modernos, já na terceira vemos mudanças nesse âmbito, mas o direcionamento para outros temas, mas ainda mantendo a questão temporal da modernidade. 

Mas, mesmo com esse problemas e outros dos quais alguns aqui mencionados, é inegável que os Annales tiveram a contribuir para moldar a historiografia ocidental nestas últimas oito décadas, pois embora a quarta geração não tenha o mesmo impacto das gerações anteriores, alguns de seus membros como Chartier, Le Goff e Ferro ainda continuam a contribuir para a historiografia atual. 

"Da minha perspectiva, a mais importante contribuição do grupo dos Annales, incluindo-se as três gerações, foi expandir o campo da história por diversas áreas. O grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estão também associadas à colaboração com outras ciências, ligadas ao estudo da humanidade, da geografia à linguística, da economia à psicologia. Essa colaboração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta anos, um fenômeno sem precedentes na história das ciências sociais". (BURKE, 1992, p. 173).

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LINKS:
Revue Annales. Historie, Sciences sociales
École Pratique des Hautes Studes - Sorbonne