Gênese do direito do voto feminino no Brasil: uma análise jurídica, política e educacional
Dr. Erivaldo Moreira Barbosa
Dr. Charliton José dos Santos Machado
O artigo em foco, ancorado ao Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” – (HISTEDBR-GT/PB), do Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE, da Universidade Federal da Paraíba, como parte das atividades desenvolvidas no âmbito do Pós-Doutorado, propõe-se analisar a gênese do voto feminino no Brasil, no lapso temporal – final do século XIX ao início dos anos 30, do século XX.4
Não é comum, juristas e sociólogos brasileiros se debruçarem ao
mesmo tempo sobre o direito do voto feminino no Brasil, com o intuito de
esgarçarem as teorias e argumentações que a temática comporta. Porém, é
admissível que o Direito Político cumpra uma das suas atribuições, qual seja,
funcionar como direito fundamental da pessoa humana e dar sua contribuição ao
saber, esmiuçando o assunto, o direito das mulheres de votar (capacidade
eleitoral ativa) e de serem votadas (capacidade eleitoral passiva). As duas
espécies de capacidades perfazem o sufrágio.
As fontes de pesquisa se resumem na Carta Constitucional de 1891,
Título IV, Secção I, que traz à colação a expressão “Das Qualidades do Cidadão
Brasileiro”, e nas obras de pesquisadoras(es) que debatem teorias e conceitos
acerca da temática esposada.
O objetivo é partir da hermenêutica jurídico-compreensiva e
interpretar o conceito do Direito em seu duplo movimento (positivo e histórico)
com o intuito de mostrar sua inserção nas lutas das mulheres sufragistas. Por
conseguinte, busca-se deslindar a essência das teorias feministas e jurídicas,
mostrando suas relações subjacentes. Daí em diante, fazer uma visita ao binômio
educação/imprensa com o escopo de captar as estratégias do movimento feminista
na luta pelo direito de votar. Após esse percurso, interpreta-se a Constituição
Federal de 1891, a partir do seu preâmbulo que incorpora o conceito de democracia,
enveredando progressivamente ao cerne da matéria eleitoral envolvente.
Esgota-se no interpretar a Federação Brasileira para o Progresso
Feminino, planejada na seara da vertente “feminista bem comportada”. Atente-se,
que o trajeto metodológico desta pesquisa não é linear nem trilha em um único
sentido, pois às vezes se distancia das teses feministas e em outros instantes corrobora
com as argumentações levantadas por suas seguidoras. Este trabalho adquire um panorama
diferenciado porque foi produzido pelas lentes juristas e sociológicas, muito embora
se reconheça e seja irradiado por meio dos escritos literários e acadêmicos das
feministas no desvendar do tema investigado.
Diante do exposto, há de se perguntar: quais as relações
emergentes no discurso do voto feminino no Brasil? Qual o real significado do
Direito nesse processo históricoeleitoral? Quais as informações jurídicas
subjacentes que impactam e modificam as interpretações sobre o voto feminino?
Esse encadeamento de indagações estimula o Direito Político de
cumprir sua função social e ao mesmo tempo de contribuir com a supressão de uma
lacuna na construção do saber epistemológico sufragista feminino. Assim, o
evolver da pesquisa caminhará neste compasso incomum, complexo e prazeroso.
O direito como elemento contributivo ao voto
feminino
É forçoso mostrar que o Direito não deve ser visto apenas por meio
da vertente positivista, como um conjunto de normas jurídicas aplicadas no
tempo e espaço. O direito pode ser compreendido no bojo de um processo
histórico. Conforme retrata Ihering (1991), A Luta pelo Direito, “[...] a paz é
o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o
conseguir”. Ainda com o autor, “[...] a vida do direito é uma luta: luta dos povos,
do Estado, das classes, dos indivíduos”. Assim, arremata que “[...] o direito
não é uma pura teoria, mas uma força viva” (IHERING, 1999, p.1).
Reale (1996) apresenta uma Teoria Tridimensional do Direito,
conformada por três dimensões: a norma, vista como ordem; o fato, no qual o
Direito se realiza na sociedade por meio da história, e o valor, quando o
Direito almeja a justiça. Essa tríade permite um dinamismo ao Direito
permitindo que os intérpretes possam se descolar do direito visto simplesmente
como norma jurídica.
Jungindo o Direito compreendido por Ihering ao Direito teorizado
por Reale, torna-se possível migrar de um Direito posto para outro direito
pressuposto, conforme lições de Grau (1996).
É bem verdade que o Direito não serviu como um instrumento
finalístico imprescindível ao alcance das conquistas políticas feministas,
porém, foi um elo fundamental no processo do voto das mulheres. De forma
paradoxal, o direito positivo (posto) era um obstáculo às mudanças exigidas
pelas mulheres dos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX; por
outro lado, ao mesmo tempo o direito histórico (pressuposto) emergia como
dimensão contributiva à capacidade eleitoral ativa das mulheres brasileiras.
“Teoria” da Incapacidade da Mulher, Teorias
Feministas e Teorias Jurídicas
São inúmeras as teorias que envolvem as múltiplas relações
femininas e o sufrágio. Os percursos a serem seguidos, sobre a história e
teorias, não são de “[...] biografias, de vida de mulheres específicas, mas das
mulheres em seu conjunto” (...) (PERROT, 2008, p. 13). A seguir, serão
abordadas as seguintes modalidades: a teoria da incapacidade da mulher, as
teorias feministas e as teorias jurídicas.
A teoria da incapacidade da mulher apregoava que as mulheres eram
emotivas e instáveis, e sob pressão pública não conseguiam tomar decisões
racionais. Esta teoria supunha que a inaptidão feminina na esfera pública era
natural e não cultural ou social.
Reforçava, então, que as mulheres eram inferiores aos homens, pois tomava como base princípios formulados no âmbito interpretativo masculino. Montagu, na obra A Superioridade Natural da Mulher, nos mostra como essa teoria se engendrou. Neste compasso, apresenta uma tabela (MONTAGU, 1970, p.31-32) composta por diferenças biológicas entre os sexos, a expressão funcional e as consequências sociais. Os homens, ao listarem os atributos biológicos masculinos como superiores e mais fortes, advogavam a tese da incapacidade cultural das mulheres e lhes inferiorizavam nas esferas públicas e sociais.
Barreto, em seu 2º discurso sobre a Educação da Mulher (apud,
RODRIGUES, 1993), tratou da emancipação civil e social. Demonstrou, pois, que
as mulheres não eram incapazes e começou a desmontar os argumentos das suas
inferioridades fisiológicas e anatômicas. Apesar da sua avançada visão
desconstrutiva da teoria da incapacidade biológica da mulher, Barreto não
comungava com a emancipação política feminina. A teoria da incapacidade da
mulher vigorou até início do século XX, daí em diante foi sofrendo fissuras e
perdeu força, devido em grande parte às argumentações oriundas da ciência.
As feministas brasileiras, já de posse do conhecimento científico,
ajuntaram outras argumentações do campo social e cultural ao seu modelo teórico
de explicação da luta pelo voto. Após decomporem os significados da ciência
positivista, agregaram outros caracteres retirados do campo educacional e da
imprensa.
As feministas defendiam a tese da emancipação da mulher ou apenas
uma emancipação parcial (relativa). As mulheres brasileiras que lutavam por
mais espaço no mundo público não formularam uma teoria homogênea com face
única, mas sim vertentes teóricas de múltiplos significados. As mulheres mais
influentes, que tinham mais prestígio econômico e social, se contentaram com a
luta pelo sufrágio feminino, isto é, capacidade de votar (capacidade eleitoral
ativa) e capacidade de ser eleita (capacidade eleitoral passiva). Outras
características da emancipação não foram objeto de luta, uma vez que somente no
plano formal figuravam como reivindicação feminista.
Indaga-se então: como a educação e a imprensa serviam aos
interesses das mulheres brasileiras e foram inseridas nas teorias feministas?
Um recorte do livro de Hahner, Emancipação do Sexo Feminino: a
luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850 – 1940 (2003), responde em parte
ao questionamento proposto. As primeiras defensoras dos direitos da mulher no
Brasil vislumbraram que a educação era o caminho para a emancipação feminina.
Assim, acostada ao pensamento positivista e o seu corolário, o progresso,
potencializam as feministas a “pressionarem” os formuladores de leis ao direito
à educação. Por intermédio da imprensa, as mulheres reivindicam seus interesses
educacionais, mesmo sabendo que teriam uma educação inicial frágil, uma vez que
apenas os conhecimentos básicos eram recebidos. Leia-se a seguir um trecho da
autora supracitada, in verbis:
“A educação das mulheres concentrava-se na preparação para o seu destino
último: esposas e mães. Mesmo os homens brasileiros que se consideravam
progressistas e que aprovavam a ‘igualdade universal proclamada pelo
Cristianismo’, acreditavam que o objetivo da educação feminina era a preparação
para a maternidade. Basicamente, as meninas deveriam aprender a cuidar bem de
suas casas, pois lhes cabia a obrigação de garantir a felicidade dos homens.
Todavia, alguma educação era bem acolhida, pois se tornariam melhores mães para
os filhos e melhores companheiras para os maridos. Embora o homem tradicional e
progressista assumissem juntos que as mulheres pertenciam ao lar, o segundo
admitia ampliar o papel da mulher na família, enfatizando-lhe o poder de
orientar moralmente suas crianças e fornecer bons cidadãos ao país”. (HAHNER,
2003, p. 123-124).
Muito embora em 1879 ter sido criadas instituições de ensino
superior para mulheres no Brasil, somente uma pequena parcela conseguiu se
graduar, em face do preconceito social e da falta de recursos financeiros para
custear o ensino secundário (HAHNER, 2003).
Diante do exposto, percebe-se que a educação era precária e não
resolvia, por si só, a participação da mulher no sufrágio brasileiro, mas abria
pequenas fendas na teoria da incapacidade da mulher. Frise-se, pois, que as
mulheres acostadas ao pensamento positivista/progressista eram conscientes
dessa frágil e parcial “vitória” educacional em prol do direito de votar e ser
votada (sufrágio feminino).
Nesse ínterim, surgiram teses feministas contrárias a esse
caminhar. Entretanto, não desconsideraram a estratégia utilizada por essas
mulheres privilegiadas socioeconomicamente de se valerem da educação e da
imprensa como meios para alcançar os direitos políticos. Em resumo, os grupos
divergentes (mais radicais) no seio feminista adotaram a mesma estratégia
manipulando o binômio educação/imprensa como veículo de disseminação e
amplitude do seu ideário, para além do sufrágio feminino.
As duas vertentes feministas, as radicais e as bem
comportadas, valiam-se dos jornais de grande circulação, bem como de
jornais especializados em assuntos femininos, para ampliar suas ideias e seus
projetos na busca dos direitos políticos. As feministas escreveram inúmeros
artigos em jornais na defesa do sufrágio das mulheres no Brasil. A vertente
feminista denominada de feminismo bem comportado, no dizer de Pinto
(2003) foi limitada, pois não alcançou a emancipação total da mulher. Eis uma
pergunta: quais eram as reais intenções desse grupo de mulheres? Como romper
com séculos de opressão masculina? Uma luta desigual não deverá ser vencida por
etapas?
Realmente corroboramos com o externar de Pinto (2003), isto porque
a expressão emancipar é de magnitude superior à expressão sufrágio
feminino. Emancipar é tornar-se livre, libertar-se; enquanto que sufrágio
universal é o direito de votar e ser votada. Em síntese, não basta votar e ser
eleita para a mulher alcançar a esfera pública em sua plenitude, pois essa
conquista é apenas uma das etapas de um fenômeno mais amplo.
Dito de outra forma, emancipar é ser livre em todos os sentidos; é
poder se escolarizar e trabalhar nas mesmas condições de igualdade com os
homens; é poder trilhar por caminhos próprios, ser plenamente capaz (de fato e
de direito); é poder escolher entre ser ou não ser mãe e esposa; é partilhar
direitos e deveres com os homens nas mesmas condições, sem o estigma do
preconceito.
Por outro lado, o feminismo bem comportado, além de se valer do
binômio educação/imprensa, também se utilizou do Direito, em suas duas faces:
incorporou em parte o direito positivo (legislado) imposto pelos homens,
e o direito histórico determinado por lutas ocorrentes na sociedade.
Este feminismo aceitou o direito positivo, na medida em que essa
face do direito, por ser um Direito estatal, exigia ritos e condutas
predeterminadas, inclusive valia-se da força quando não respeitado. Atestou-se
essa afirmação no momento em que o feminismo bem comportado se utilizou das
dependências da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB4 para promover suas
reuniões, bem como quando solicitou os serviços advocatícios5 para peticionar e
objetar teses masculinas contrárias ao sufrágio feminino. Esta vertente do feminismo
se beneficiou do direito histórico (consciente ou inconsciente), quando propugnou
pelo sufrágio das mulheres. Os textos veiculados na imprensa jornalística, os inúmeros
contatos com parlamentares e/ou chefes do executivo, além da arregimentação de outras
mulheres por intermédio de matérias jornalísticas ou informações individuais
“bocaboca” e passeatas, ainda que tímidas, foram manifestações de lutas; lutas
para atingir objetivos, lutas de mulheres na reivindicação de seus direitos
políticos, direitos esses que não estavam assentados, pois careciam
inexoravelmente de conflitos para emergirem no seio social. Somente após essas
aparições do Direito histórico sobreveio o Direito positivo (escrito pelos
homens).
Em resumo, a vertente do feminismo bem comportado cumpriu o seu
papel, nos limites estritamente propostos desde o seu nascedouro. Não foi além
nem aquém do planejado. Atingiu seu ápice no momento da promulgação do Texto
Constitucional de 1934 e, posteriormente, foi totalmente desmantelado.
Constituição Federal de 1891: por uma
interpretação democrática do direito feminino de votar
O Documento principal de um país denomina-se de Constituição. Esta
se perfaz com elementos normativos, axiológicos (valores) e fáticos (sociais,
econômicos, políticos, religiosos) por meio de processos históricos. As
componentes anteriormente descritas devem ser captadas pelo legislador
constituinte de forma alargada e interpretada pelos julgadores de forma
democrática. Dos diversos Textos Pátrios (total de sete) interpreta-se-á o de
1891, na busca de alcançar o sentido da Carta, referente ao sufrágio feminino.
O preâmbulo da Carta Mater (1891) afirma que a Constituinte foi
organizada em um regime livre e democrático. Questiona-se então: a Carta de
1891 assevera que a Constituinte (Assembléia dos Deputados e Senadores) fora
democrática; contudo, como ser possível, se as mulheres, praticamente metade da
população, não votavam? Ora, se houve democracia, ao menos no plano
jurídico-formal, emerge um pressuposto elástico de se estender a democracia
para a seara dos Direitos Políticos. Não existe meia democracia, pois esta não
pode ser decomposta em gênero masculino ou gênero feminino.
A democracia é uma expressão que pode ser historicamente exposta
como democracia instável, em processo de mudança da instabilidade à
estabilidade ou ainda, denominada de democracia (direta, semidireta,
participativa, deliberativa) dentre outras classificações, mas jamais ser
fatiada entre pessoas do sexo masculino e feminino. Se em algum momento histórico
de um determinado país ocorrer esse descolamento, duas situações surgirão: ou não
há democracia, ou então a democracia que existia foi totalmente desintegrada.
Atente-se que o preâmbulo de uma Constituição Federal, apesar de
funcionar nos limites da política e não do jurídico deve ser visto como uma
intenção de princípios de Estado. Se fosse “letra morta” não deveria fazer
parte da Constituição, pois uma Carta Mater tecnicamente não deve conter partes
que não apresentam funcionalidade ou efetividade jurídica. Assim, reitera-se
que a democracia prevista no preâmbulo da Constituição Federal de 1891 deverá
ser perseguida pelos intérpretes, julgadores e defensoras(es) das lutas
feministas.
Atente-se agora ao que dispõe os Arts. 69 e 70 da Constituição
Federal de 1891, ipsis litteris6:
Art. 69. São cidadãos brasileiros:
1º Os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo
este a serviço de sua nação;
2º Os filhos de pai brazileiro e os illegitimos de mãi brazileira,
nascidos em paiz estrangeiro, si estabelecerem domicilio na Republica;
3º Os filhos de pai brazileiro, que estiver noutro paiz ao serviço
da Republica, embora nella não venha domiciliar-se;
4º Os estrangeiros que, achando-se no Brasil aos 15 de novembro de
1889, não declararem, dentro em seis mezes depois de entrar em vigor a
Constituição, o animo de conservar a nacionalidade de origem;
5º Os estrangeiros, que possuirem bens immoveis no Brazil, e forem
casados com brazileiras ou tiverem filhos brazileiros, comtanto que residam no
Brazil, salvo si manifestarem a intenção de não mudar de nacionalidade;
6º os estrangeiros por outro modo naturalisados.
Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 annos, que se alistarem
na fórma da lei.
§ 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federaes, ou para
as dos Estados:
1º Os mendigos;
2º Os analphabetos;
3º Os praças de pret, exceptuados os alumnos das escolas militares
de ensino superior;
4º Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações,
ou communidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediencia, regra,
ou estatuto, que importe e renuncia da liberdade individual.
§ 2º São inelegiveis os cidadãos não alistaveis. (BRASIL apud Constituição Federal,1891, p. 586-587).
Via hermenêutica jurídico-compreensiva, apreende-se que uma
constituição é sistêmica, e dispõe de um conjunto de partes que forma o todo. O
preâmbulo, por sua vez, funciona como princípio diretor das demais componentes,
pois o constituinte o inseriu no contexto da Carta Mater com a finalidade de
respeitar seu comando, mesmo não sendo uma dimensão jurídica, e sim política,
ideológica e filosófica. O intérprete e/ou julgador da Constituição Federal de
1981 deveria respeitar o pressuposto do preâmbulo, denominado pelo legislador
constituinte de democrático. Depois de acolher esse pressuposto, aí se debruçaria
no Título IV, “Das Qualidades do Cidadão Brasileiro”.
O procedimento mostrado era imprescindível para que se alcançasse
o sentido da Carta Mater. A interpretação constitucional deveria ser extensiva,
em face da exigência democrática contida no preâmbulo constitucional.
De plano, uma interpretação extensiva ao se deparar com o caput
do Art. 69 que textualmente descreve, “são cidadãos brasileiros (...) os
nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço
de sua nação”, combinado com o Art. 70 que diz “são eleitores os cidadãos
maiores de 21 anos” (...), exigiria do intérprete-julgador os seguintes
questionamentos, no que tange ao direito do voto feminino. Quais mulheres brasileiras
se encontravam nestas situações? Afora essas exigências, existiam outras condições
impostas pela Constituição Federal de 1981 que aparentemente vedavam a participação
feminina ao sufrágio? Como os Parlamentares e a Justiça Eleitoral interpretavam
a matéria?
De acordo com as Séries Estatísticas e Séries Históricas do IBGE
(1900), somente nove anos após a promulgação da Carta Federal de 1891, tínhamos
no Brasil uma população feminina equivalente a 48,96% e no ano anterior ao
Texto promulgado, 1890 de 49,50%. Ora, o percentual de mulheres nessa época era
praticamente metade da população masculina. Por outro lado, a Constituição de
1891, conforme o Art. 70, § 2º, 2º, não permitia que analfabetos votassem.
Atente-se que em 1890 tínhamos no país uma população feminina analfabeta correspondente
ao percentual de 89,6%, e em 1920 de 80,1% (BRASIL, Diretoria Geral de
Estatística, Recenseamento do Brasil, 1872 e 1920) (apud, HARNER, 2003, p. 75).
Observe-se que esse contingente feminino não votava, uma vez que o
Texto em alusão vedava terminantemente os analfabetos de exercerem esse direito
fundamental. Do ponto de vista do direito positivo, até se aceita que o
percentual feminino analfabeto não votasse, daí estender essa proibição ao
contingente de mulheres nascidas no Brasil, maior de 21 anos e alfabetizadas,
foi um equívoco de interpretação.
O preâmbulo constitucional exigia postura “democrática”; enquanto
que o Art. 69 se expressava por meio do termo “cidadãos brasileiros”; por sua
vez, o Art. 70, primeira parte, dizia, são “eleitores brasileiros os cidadãos
brasileiros maiores de 21 anos”(...).
Contudo, a segunda parte do Art. 70 enfatizava que os cidadãos
eleitores deveriam se alistar de acordo com a lei, qual seja, uma lei federal.
Ora, a objeção ao equívoco da interpretação não deve ser analisada a partir da
segunda parte do caput do Art. 70, mas sim desde o preâmbulo da Constituição,
que já se exigia uma postura democrática de intérpretes e/ou julgadores. Depois
de ultrapassada essa exigência, aí se valendo do processo hermenêutico,
analisaria o termo “cidadão”, no contexto da frase da abertura do Título IV,
“Das Qualidades do Cidadão Brasileiro”. Neste instante é oportuna a seguinte indagação:
Qual deveria ser a interpretação constitucional mais justa?
Acostando-se aos elementos históricos, filológicos, sistêmicos e
teleológicos do processo hermenêutico, que funcionam como dimensões que aclaram
e pacificam conflitos, pode-se inferir que o termo cidadão deveria ser
interpretado de forma extensiva. Primeiro, porque o preâmbulo exigia postura
democrática dos intérpretes e julgadores, e segundo, para que o termo cidadão
ficasse em sintonia com o comando maior, que advogava pelo princípio da
democracia, impunha ao intérprete e/ou julgador a compreensão e o deferimento
do voto ao universo das mulheres brasileiras que ao mesmo tempo, atingiram a
idade de 21 anos e foram alfabetizadas.
A Constituição de 1891 não dizia textualmente que as mulheres não
podiam votar. Afirmava sim, que só podiam votar quem fosse cidadão e
adicionava, a esse requisito, ter idade acima de 21 anos e ser alfabetizado. O
Texto não permitia, contudo, que as mulheres se alistassem, alegando que para
tal intento teria que ser produzido uma lei. Ora, nestes termos a Constituição
teria estabelecido um paradoxo, pois, como introduzir a democracia (exigida no
preâmbulo) excluindo parte do universo humano do sufrágio brasileiro.
Mesmo assim, Juvenal Lamartine, incentivado por feministas, ao
interpretar a Constituição de 1891, no Art. 70, descobre que as mulheres não
estavam impedidas da prestação voluntária do serviço militar, e por essa brecha
articulou os parlamentares do seu Estado, o Rio Grande do Norte, no sentido de
aprovar uma lei estadual que garantisse do direito do voto às mulheres. Telles
(apud, SOW, 2009) ao se debruçar sobre o fato, em um trabalho monográfico,
assim se externou:
“Percebe-se aqui a exigência da prestação de serviço militar que
para as mulheres da época era classificado como voluntário, assim deu uma lacuna
na qual não se negava o direito nem o facultava ao público feminino o acesso ao
voto. O que realmente exigia-se era um ato normativo que estabelecesse essa
condição de voto para as mulheres, o que fez com que o presidente da Província
(cargo equivalente ao governador do estado de hoje), Juvenal Lamartine, fizesse
passar uma lei que permitia o direito de voto às mulheres. Em 1927
registraram-se as primeiras eleitoras de lá e, em abril de 1928, 15 mulheres
votaram no Rio Grande do Norte”. (SOW, 2009, p. 17).
Apesar de Lamartine aprovar a lei que garantiu o voto feminino, a
interpretação restritiva dos parlamentares do Senado Federal desconsiderou o
processo eleitoral realizado no Rio Grande do Norte e anulou as eleições, sob a
alegação de que não poderia permitir o sufrágio por meio de lei estadual, mas,
via lei federal.
Mais uma vez se percebe a manobra dissimulada por parlamentares
congressuais e chancelada por membros da Justiça Eleitoral da época, com o
intuito de impedir o direito do sufrágio às mulheres. Observe-se que os
parlamentares e/ou julgadores de antemão já desrespeitavam o preâmbulo
constitucional que comungava com a democracia; agora, ao invés de interpretar o
Texto extensivamente, o restringe, desfigurando princípios basilares do
Direito, sob a ótica de um moralismo insustentável. A Constituição deveria
neste caso ser auto-aplicável sem a necessidade de se exigir o alistamento
feminino, pelo simples fato das mulheres estarem inclusas no amplo conceito de
“cidadãos” e reforçarem o processo da afirmação da democracia no Brasil.
Direito e Federação Brasileira para o
Progresso Feminino
Após a exposição do processo hermenêutico, por intermédio da
interpretação extensiva, mostrar-se-á como o Direito desloca-se no tempo e no
espaço, interagindo com a vertente do feminismo bem comportado, e como ambos,
de forma sinérgica, contribuem para a aceitação do sufrágio das mulheres.
Eis o momento de perguntar: como foi criada a Federação Brasileira
para o Progresso Feminino? Quais os caracteres mais significativos do seu
aparecimento? Quais as relações ocorrentes entre o Direito e a Federação?
De plano, levanta-se aqui uma preliminar: o que quer dizer
federação? “Do latim foederatio, de foederare (unir, legar por aliança), é
empregado na técnica do Direito Público” (...). (SILVA, 2006, p. 606). A
federação permitia que as feministas, quer dizer, a vertente bem comportada do
feminismo, se fortalecesse como organização e acelerasse sua escalada rumo ao
sufrágio.
O processo federativo dessas mulheres ancorava-se em dois
pressupostos: o positivismo e o progresso.
O positivismo caracteriza-se como corrente
filosófico-político-social e em seu percurso sofre influencia do cientificismo.
Segue fielmente os ditames do conhecimento científico e o método de observação.
“O progresso, conforme redação, pode ser compreendido: Como idéia
de que o curso das coisas, especialmente da civilização, conta desde o início
com um gradual crescimento de bem-estar ou da felicidade, com uma melhora do
indivíduo e da humanidade, constituindo um movimento em direção a um objeto
desejável. A idéia de um universo em perpétuo fluxo na basta, pois, para formar
a idéia de Progresso; é necessária também uma finalidade, um objetivo último do
movimento. É na concretização deste objetivo último que se acha a medida do Progresso.
É por isso que se fala de ‘fé no Progresso”. (BOBBIO, 1999, p. 1009-1010).
Antes da Federação Brasileira para o Progresso Feminino – FBPF –
ser criada já existia uma Liga para Emancipação Intelectual da Mulher, fundada
em 1920, por Bertha Lutz7 e Maria Lacerda de Moura8. Outras feministas também
contribuíram, direta ou indiretamente, para a criação da FBPF, fora do eixo
Sudeste (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro). Exemplos marcantes dessas lutas
se encontram registrados nos jornais da época, no Nordeste em Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia, além de lutas no Sul (em especial no Rio
Grande do Sul).
A FBPF, tomando como base o positivismo-progressista e orientada
por seus estatutos, apresenta no Art. 3º os seguintes objetivos: 1. Promover a
educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina. 2. Proteger as mães
e a infância. 3. Obter garantias legislativas e práticas para o trabalho
feminino. 4. Auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha da
profissão. 5. Estimular o espírito de sociabilidade e de cooperação entre as
mulheres e interessá-las pelas questões sociais e de alcance público. 6.
Assegurar à mulher os direitos políticos que a nossa Constituição lhe confere e
prepará-la para o exercício inteligente desses direitos. 7. Estreitar os laços
de amizade com os demais países americanos, a fim de garantir a manutenção
perpétua da Paz e da Justiça no Hemisfério Ocidental.
Pergunta-se: qual o significado da palavra Objetivo?
“Diz-se do que é válido para todos, e não apenas para um
indivíduo. Diz-se de fenômeno natural que se determina conforme os critérios
científicos vigentes. (...) No método interativo, o valor final para o qual
convergem progressivamente os resultados das sucessões de interações” (NOVO DICIONÁRIO
AURÉLIO, 1999, p. 1427).
Nem todos os objetivos propostos pela FBPF foram alcançados,
todavia, serviram como marco de lutas femininas futuras, sobretudo no campo do
direito do voto das mulheres.
Eis o momento de esclarecer a participação do Direito na FBPF. Ao
formular seus estatutos e traçarem objetivos, as feministas diretamente
atrelam-se ao campo jurídico, tanto pelo prisma legal quanto da legitimidade.
Mas qual é o sentido do termo Estatuto?
Derivado do latim statutum, de statuere (estabelecer, construir,
fundar), em sentido amplo, entende-se a lei ou regulamento, em que se fixam os princípios
institucionais ou orgânicos de uma coletividade ou corporação, pública ou
particular (privada). Em qualquer aspecto ou sentido, pois, o estatuto
geralmente dito no plural estatutos, exibe o complexo de normas ou regras (...)
(SILVA, 2006, p. 559-560).
Diante do conceito alargado do termo estatuto, percebe-se que os
aspectos normativos vão se configurando com mais vigor na proposta planejada
pela vertente feminista bem comportada. É interessante comentar que o Direito, especialmente
o positivado, se apresenta no cenário social, mais das vezes por intermédio de
estatutos e objetivos.
A FBPF, talvez percebendo que apenas se valendo do Direito
histórico não alcançaria seu desiderato, lançou mão da outra face do Direito,
qual seja, o Direito positivo. A FBPF não apreendeu o Direito positivo de forma
dissimulada, ao contrário, concebia-o como meio de alcance ao sufrágio
feminino. Em resumo, qual era o real intento da FBPF? Lógico que era o direito
do voto feminino e não a emancipação plena da mulher.
Assim, bastaria se valer das suas lutas, estratégias e do direito
em seu duplo movimento (histórico e positivo) que galgaria sua finalidade
máxima: o sufrágio para todas as mulheres que se encontravam nas condições
descritas no Texto Constitucional: ser brasileira, ter 21 anos e ser
alfabetizadas, sem mais nenhuma exigência legal-condicional.
Observe-se que de antemão, no preceito número 1 dos objetivos, se
exigiu ampliar a educação feminina, pois era condição sine qua non para o êxito
da Federação. Outro preceito que merece destaque, o de número 6, que visava
assegurar à mulher os direitos políticos que a Constituição de 1891 lhe
conferia. Mais uma vez se percebe os laços de união entre a FBPF e o Direito.
Observa-se ainda a nitidez que essa vertente feminista tinha acerca dos seus
direitos constitucionais, pois nos seus objetivos não adentrara no tema do
alistamento feminino. Deduz-se, então, que a interpretação dessa vertente não
era diminuta acerca da emancipação da mulher, contudo, não fazia parte do seu
planejamento ir além da luta pelo sufrágio feminino, para não correr o risco de
se desviar por demais da sua luta específica, parcial, porém não insignificante
naquele momento histórico.
A FBPF se reduziu apenas a um marco cronológico nas lutas
feministas? Em um país marcado por colonização, escravidão e preconceitos, bem
como apenas utilizando as dimensões da educação e da imprensa, a FBPF teria
fôlego para galgar a emancipação feminina em sua totalidade?
É difícil responder aos questionamentos propostos. Que fique bem
claro, não alcançar o total do processo de emancipação da mulher não significa
obrigatoriamente abdicar das lutas, lutas que muitas vezes acontecem em etapas,
ladeando com ondular da política e da história. Uma guerra (as lutas
feministas) é vencida por batalhas, às vezes nas trincheiras (as estratégias),
às vezes se valendo das armas dos adversários (o Direito positivo da época).
Isso tudo representa o caminhar árduo da FBPF, que muitas vezes é
vilipendiada tanto por homens quanto por algumas mulheres. As diatribes
sofridas talvez sirvam de combustível para a “história da educação” lançar um
olhar mais aprofundado sobre a organização que não foi além do previamente
planejado e como teleologia alcançou resultados se não excelentes ao processo
de emancipação feminina, ao menos obteve resultados ao longo dos anos, no campo
dos Direitos Políticos, especificamente no sufrágio feminino (capacidade
eleitoral ativa – direito de votar e capacidade eleitoral passiva – direito de
ser votada, no futuro).
A FBPF atingiu seu apogeu não com o Código Eleitoral Provisório e
o Decreto nº. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, uma vez que o direito de
votar era restrito, pois as mulheres casadas só votariam com a permissão do
esposo, e as viúvas e solteiras se possuíssem renda própria. Somente com a
promulgação da Constituição Federal de 1934 e sua antecessora e produtora, a
Constituinte, se consolidou o direito do voto feminino no Brasil. Após alcançar
o ponto máximo da luta a FBPF começa, a partir de então, se arrefecer e vai
perdendo força no cenário nacional. Longe da redundância, lembre-se que a FBPF
não foi apenas um marco ao longo do processo de lutas feministas, ao contrário,
conseguiu o seu objetivo maior, permitir que as mulheres brasileiras pudessem
votar e serem votadas.
Conclusão
A História é uma expressão ampla que comporta tensões, estratégias
e articulações em torno de dimensões conflitantes. A política, o Direito, a
educação e a imprensa são dimensões que atuam em arenas movimentando-se no
fluxo e refluxo de suas teorias e argumentações. As feministas da vertente bem
comportada absorveram elementos dessas dimensões e descartaram estrategicamente
parte de informações que eram entraves ao seu intento.
Sem embargo do exposto, a FBPF despiu-se de preconceitos e assumiu
sua real identidade, captando com muita ênfase em suas lutas os seguintes
tópicos: 1. Como pressupostos filosóficos, políticos e sociais – o positivismo
e o progresso. 2. Como estratégias de lutas – a educação e a imprensa. 3. Como
meio de alcance do sufrágio feminino – o Direito em seu duplo movimento
(histórico e positivo).
À guisa de conclusão, a História permitiu mostrar que a vertente do movimento feminista bem comportado se agarrou a várias dimensões sem se preocupar com suas inevitáveis colisões. Quando necessário e/ou imprescindível se articulou e, por meio de sutileza e perspicácia, engendrou quase um sistema que se perfez por intermédio interativo da Política, do Direito, da Educação e da Imprensa rumo ao sufrágio feminino.
NOTAS:
4 Ver obra de TABAK, Fanny; TOSCANO, Moema. Mulher e Política,
p. 90.
5 Mulheres como Mirtes Campos (primeira mulher admitida na
advocacia brasileira), já pressionavam pelo voto feminino por intermédio da
imprensa e da Associação de Advogados (mais tarde, Ordem dos Advogados do
Brasil. In: HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: a luta
pelos direitos da mulher no Brasil 1850-1940.
6 Nesta citação optou-se por manter a grafia da Constituição
Federal de 1891 na forma original em que fora redigida.
7 Oriunda da elite brasileira, formada em Biologia na Universidade
Sorbonne, tempo depois se formou em Direito. Representou o Brasil na I
Conferência Pan-Americana da Mulher nos Estados Unidos da América e no Conselho
Feminino da Organização Internacional do Trabalho. Defensora da luta pelo
direito do voto feminino, no molde norte-americano.
8 Escritora, professora, que colocava suas estratégias no poder da imprensa para arregimentar seguidoras ao alcance da emancipação da mulher.
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Fonte: BARBOSA, Erivaldo Moreira; MACHADO, Charliton José dos Santos. Gênese do direito do voto feminino no Brasil: uma análise jurídica, política e educacional. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 45, p. 89-100, 2012.