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Leandro Vilar

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

O Protetorado: a ditadura de Cromwell (1653-1658)

Oliver Cromwell foi um nobre inglês que ingressou na política ao ser eleito ao Parlamento em duas ocasiões, no entanto, ele se destacou na História por sua participação na Guerra Civil Inglesa (1642-1649), o que o fez surgir como herói de guerra, depois sendo eleito Lorde Protetor, presidindo um projeto republicano do Reino Unido, que acabou se tornando uma ditadura. 

Introdução

Oliver Cromwell (1599-1658) era filho de Richard Cromwell e Elizabeth Steward. Por linhagem paterna, Oliver descendi da baixa nobreza, apesar que seu pai fosse senhor de terras, herdou dívidas de seu pai, legando-as ao filho. Muitos anos depois, já adulto, Oliver teve que vender parte de suas propriedades para quitar as dívidas da família, no entanto, em 1620 casou-se com Elizabeth Bourchier, com quem teve nove filhos. Ela era filha do rico comerciante James Bourchier, o qual abriu as portas para Oliver ao mundo dos negócios. (HILL, 1988). 

Retrato de Oliver Cromwell como Lorde Protetor. 

Graças aos contatos de seu sogro, Oliver conseguiu fazer bons negócios, recuperando parte de sua fortuna e ganhando prestígio na região. Em 1628, ano em que o Parlamento foi reestabelecido pelo rei Carlos I, Cromwell se candidatou ao Parlamento por Huntindgton, sua cidade natal. A candidatura acabou dando certo e Oliver foi eleito, na época com seus 29 anos, ele defendia ideias republicanas. No entanto, sua carreira como político foi breve, pois o rei fechou o Parlamento novamente no ano seguinte. Carlos I era conhecido por ser um monarca absolutista, sendo autoritário. (HILL, 1988). 

Com a suspensão do Parlamento em 1629, Cromwell retornou a se dedicar aos negócios, mas manteve-se presente nos debates políticos da época. Dez anos depois, durante a Guerra dos Bispos (1639-1640), conflito entre escoceses e ingleses, pois Carlos I pressionou a Escócia a adotar o credo anglicano ao invés do credo calvinista que operava naquela parte do reino, uma guerra eclodiu. Precisando de ajuda e recursos, o rei reabriu o Parlamento em 1640. Os parlamentares eleitos anteriormente, incluindo Cromwell, foram convocados. 

O rei em apuros foi pressionado por contrapropostas dos parlamentares para concordar com uma série de concessões, uma delas era que o Parlamento não poderia ser mais dissolvido pelas ordens dele, recuperaria sua autonomia e plenas funções, algo que deu certo. Porém, a contragosto, Carlos I concordou com isso, mas discordou de outras exigências, incluindo sua abdicação diante da crise gerada por ele no país que ainda continuava. O rei abandonou Londres em 1642, indo para Nottingham se reunir com seus servos leais, isso foi considerado um ato de traição pelos parlamentares. Cromwell se uniu aos políticos mais radicais, que declararam guerra ao rei. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

A Guerra Civil (1642-1649)

O país se viu dividido entre duas frentes inimigas: os realistas que formavam os exércitos fiéis ao rei Carlos I e os parlamentaristas que representavam as tropas leais ao Parlamento. Nos meses de 1642 ambos os lados trataram de reunir suas forças, iniciando alguns pequenos conflitos. Para surpresa do Parlamento o rei possuía mais apoio do que era esperado, fato esse que no ano de 1643 as batalhas travadas foram acirradas e algumas delas resultaram na vitória dos realistas. Por sua vez, o Parlamento assegurava o controle de Londres e arredores, enquanto Carlos I estabeleceu-se em Oxford(YOUNG; ROFF, 1973). 

O 3o Conde de Essex, Robert Devereux, tomou a dianteira no comando das forças parlamentares, conseguindo entre 1642 e 1643 reunir 10 mil soldados. Cromwell uniu-se ao conde para comandar também as tropas em algumas batalhas. O ano de 1643 foi favorável para os realistas, especialmente após o Príncipe Rupert do Reno (1619-1682) chegar à Inglaterra para apoiar o rei. Graças aos cavaleiros alemães que ele trouxe, a balança de guerra pendeu favorável aos realistas, que obtiveram importantes vitórias naquele ano. Cromwell notando que uma cavalaria leve e ligeira estava fazendo bastante a diferença no campo de batalha, decidiu montar uma para o exército parlamentar. 

Ainda em meados de 1643, Oliver Cromwell criou um regimento de cavalaria chamado Ironside, do qual se tornou seu principal comandante, obtendo êxito no segundo semestre daquele ano e aumentando seus números em 1644, resultando nas importantes vitórias da Batalha de Marston Moor (2 de julho) e na Segunda Batalha de Newbury (27 de outubro). Os Ironside não apenas foram cruciais para que o exército parlamentar sobrepujasse o exército realista, mas também garantiram fama a Cromwell como liderança militar e herói de guerra. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

Batalha de Marston Moor(1644). Pintura de J. Baker, 1886. 

No ano de 1645, os nobres parlamentares Thomas Fairfax e Edward Whalley, os quais comandaram tropas na guerra civil, baseados no desempenho e organização das tropas do Ironside propuseram uma reforma militar conhecida como Novo Exército Modelo (New Model Army), que consistia na reconfiguração dos regimentos, batalhões e demais divisões do Exército, além de hierarquias de comando, quantidade de tropas, táticas militares etc. Cromwell foi um dos quais contribuiu para essa reforma militar, a qual resultou em êxito com novas vitórias na Batalha de Naseby (14 de junho) e na Batalha de Langport (10 de julho). (HAYTHORNWAITE, 1994). 

A primeira parte da guerra civil entrou numa trégua em 1646, quando o rei Carlos I foi capturado e preso na Escócia, onde havia fugido para se esconder e reunir reforços. Ele seria levado a julgamento por seus crimes, porém, isso demorou meses para acontecer. O monarca ficou preso em Londres, aguardando o tribunal que o julgaria, mas ele conseguiu escapar com a ajuda de apoiadores e fugiu para a ilha Wight no sul do país, onde permaneceu protegido pelo restante do ano de 1646 e 1647. Enquanto isso, ele expediu várias cartas para seus aliados, incluindo negociar com o Parlamento Escocês, o qual acabou fechando acordo e enviou um exército chamado Engagers (ou Engagement) para invadir a Inglaterra em 1648(YOUNG; ROFF, 1973). 

No entanto, o novo exército inglês controlado pelo Parlamento, era forte, unido e eficaz, conseguindo barrar as tentativas escocesas de resgatar o rei e levá-lo vitorioso a Londres, onde ele pretendia sitiar a capital e forçar a dissolução do Parlamento. Entretanto, Cromwell e os outros parlamentares obtiveram vitórias ao longo de 1648, minando qualquer chance do rei Carlos I conseguir reassumir o trono, resultando novamente em sua captura. Dessa vez, o esquema de vigilância sobre o rei foi melhorado e ele não conseguiu escapar. O monarca foi condenado a pena de morte por seus crimes num tribunal formado por 100 juízes, sendo executado diante do Palácio Whitehall em 30 de janeiro de 1649(YOUNG; ROFF, 1973). 

Apesar da morte do rei tirânico, o país não ficou em paz. Revoltas ainda ocorriam na Escócia e na Irlanda, levando o Parlamento a ter que enviar tropas para lá. Cromwell pessoalmente viajou com alguns regimentos dos Ironside para a Irlanda, ainda em 1649, e depois entre 1650-1651 para Escócia. Em ambos os casos ele foi criticado pelo excesso de violência aplicado fora das batalhas, autorizando saques e massacres. (YOUNG; ROFF, 1973). 

Mas enquanto a guerra civil ainda não chegava ao fim, o Parlamento convocou sessões para deliberar pelo controle do país, vetando a eleição de um novo rei e criando a Comunidade da Inglaterra (Commonwealth of England), um projeto de estabelecer uma república parlamentarista, primeiramente sobre Inglaterra e Gales, mais tarde estendido para a Escócia e a Irlanda.

Brasão de armas da Comunidade da Inglaterra. 

Assim, entre 1649 e 1653, período em que a guerra civil ainda perdurava na sua terceira fase, a singela "república" inglesa ainda não havia conseguido se firmar como um poder reconhecido pelo Commonwealth. Esse período ficou conhecido como Parlamento Manco (Rump Parliament), nome dado aos desentendimentos gerados nos primeiros anos da jovem "república" inglesa, em que os parlamentares ainda se desentenderam quanto as mudanças políticas a serem implementadas, destacando-se crises políticas envolvendo uma reforma tributária e a liberdade de credo

Em 1651 participando do controverso Parlamento Manco, Cromwell presidiu a votação para aprovar o Ato de Navegação, uma medida para fortalecer a economia do país. A lei determinava que todas as mercadorias exportadas da Inglaterra somente poderiam serem feitas com navios ingleses, não por mercadores de outros países. Além disso, o ato também estipulava que se desse preferência a navios ingleses na importação. O parlamento aprovou a proposta aplicando-o ainda naquele ano, mas isso irritou bastante os holandeses, pois na época eles tinham a maior frota naval da Europa, sendo responsáveis por alugar navios, além de agirem como intermediários no transporte marítimo. A Inglaterra devido a proximidade com a Holanda, era um dos principais clientes do país. Com o Ato de Navegação, isso comprometeu a economia holandesa, levando-a a ocorrer a Primeira Guerra Anglo-Holandesa (1652-1654). Diante de tais problemas, Cromwell, um parlamentar respeitado devido aos seus serviços prestados durante a guerra civil, decidiu se concentrar na política. (WOOLRYCH, 1982). 

O Lorde Protetor (1653)

Descontente com a crise do governo do Parlamento Manco, Cromwell voltou a assumir suas funções parlamentares ainda em 1651, e no ano de 1653, valendo-se de sua autoridade e influência conquistados ao longo dos anos de guerra civil, o que o levou a ser visto como um herói de guerra por alguns, ou um comandante sanguinário por outros, de qualquer forma, Cromwell soube se valer de articulações políticas para firmar seu caminho até o poder. (HILL, 1998). 

Neste caso, com o apoio de seus aliados, foi estabelecido o Parlamento Barebone, uma referência a Praise-God Barebone, um dos parlamentares de Londres, apoiador de Cromwell. O novo parlamento contou com a eleição de novos membros no intuito de se criar uma nova gestão, dessa vez mais eficiente do que a do Parlamento Manco. Entretanto, sem chegar a um consenso quanto a isso, parte dos novos eleitos eram favoráveis a Cromwell, então decidiram sugerir seu nome para liderar o governo. (HILL, 1998). 

Assim, criou-se o cargo de Lorde Protetor, uma espécie de primeiro-ministro ou presidente, mas no caso, com autoridade acima do comum. Cromwell deliberou sobre essa oferta e fez o juramento de aceitar essa honra e missão (ele considerava tal condição como um ato divino, destinado a ele por Deus) em dezembro de 1653. Assim, ele oficialmente se tornou o Lorde Protetor da Comunidade da Inglaterra, Escócia e Inglaterra, reunindo em si autoridade civil e militar, embora ele ainda devesse governar dependente ao Parlamento. Cromwell jurava em servir o país pelo bem da nação e do povo, dedicando a protegê-lo de ameaças externas e internas. 

O Protetorado: a ditadura de Cromwell (1653-1658)

No ano de 1654, Oliver Cromwell colocou seu gabinete para trabalhar numa reforma política geral para a república, algo que levou meses para ficar pronto, começando as propostas a serem votadas apenas em setembro daquele ano. A ideia era realizar algumas mudanças na diplomacia, acordos comerciais, tributação, liberdade de credo, entre outros assuntos, mas de forma moderada. No entanto, algumas das suas propostas encontraram críticas negativas, especialmente as voltadas ao seu projeto militar no exterior na guerra contra os holandeses, além de instaurar um governo militar no país. (WOOLRYCH, 1982). 

Cromwell insatisfeito com a oposição surgida no Parlamento, em janeiro de 1655, suspendeu o mesmo, já que o cargo de Lorde Protetor permitia ele fazer isso. Tal decisão foi um sinal claro de que o autoritarismo dele estava se instalando definitivamente. Após a suspensão do Parlamento, proibindo de votar as reformas políticas e outros assuntos, Cromwell passou a governar sozinho por alguns meses. Ele dividiu o país em quinze regiões militares governadas cada uma por um major-general, os quais tinham autoridade para usar a força para manter a ordem, a paz, a justiça e o controle, e se reportavam diretamente ao Lorde Protetor. (WOOLRYCH, 1982). 


Brasão de Armas do Protetorado. 

O projeto de Cromwell foi malvisto por parte dos políticos e da população, considerado um ato e autoritarismo. Hoje tal decisão é até mesmo vista como uma prática de uma ditadura militar. Todavia, a estrutura de regiões administrativas civis-militares acabou fracassando por falta de organização, sendo suspensa em 1656, principalmente devido as críticas dos políticos e de parte da população, os quais denunciavam os abusos de poder cometidos pelos major-generais e seus homens. (HILL, 1998). 

Enquanto Cromwell saía derrotado quanto a tentativa de reorganizar a divisão administrativa do país, ele tentou uma jogada política interessante no quesito econômico. Vendo que os judeus foram responsáveis em parte por impulsionar a economia da Holanda, Cromwell decretou que os judeus poderiam retornar a Inglaterra, já que haviam sido expulsos muito tempo antes. Além de incentivar a migração judia e permitir a liberdade de credo, isso foi feito pensando no quesito econômico, já que seu interesse era atrair os ricos comerciantes judeus, não os judeus pobres. Apesar do projeto ser voltado para impulsionar a economia, a população mais conservadora e intolerante não aceitou de bom grado o retorno dos judeus ao país, vistos como um povo ardiloso e praticantes de uma fé herege. (WOOLRYCH, 1982). 

Quanto a Escócia e a Irlanda, ambos foram escanteados no governo de Cromwell, o qual não deu atenção a tais regiões, as quais ainda nutriam raiva pelo que ele mandou fazer durante o final da guerra civil. Além disso, o Lorde Protetor também gastou dinheiro com campanhas no exterior, apesar de vencida a Primeira Guerra Anglo-Holandesa (1652-1654), os acordos comerciais externos seguiam enfraquecidos, além de que a Inglaterra ainda estava desenvolvendo suas colônias na América do Norte e disputando algumas ilhas no Caribe e Antilhas

No ano de 1657 alguns parlamentares propuseram que Cromwell se tornasse rei, numa tentativa de melhorar sua reputação diante do povo, já que desde sua origem a Inglaterra sempre foi uma monarquia. A então república parlamentarista (na prática, uma ditadura civil-militar) não era bem vista pelo povo, a nobreza e os políticos. Entretanto, Cromwell recusou ser entronado como rei, no entanto, aceitou honrarias similares, ao passar por uma cerimônia que reafirmava seu cargo como Lorde Protetor. (WOOLRYCH, 1982). 

Dessa forma, dava-se início a um novo momento de seu governo autoritário e visivelmente em crise desde 1656, no entanto, Cromwell acabou adoecendo de forma inesperada em fins de agosto de 1658, vindo a falecer em 3 de setembro daquele ano. A causa de sua morte é inconclusiva. Alguns sugerem que ele adoeceu e assim morreu, outros cogitaram que ele possa ter sido envenenado, já que devido ao seu governo ditatorial, Cromwell conquistou muitos inimigos. 

Crise sucessória e a volta da monarquia (1658-1660)

A morte de Oliver Cromwell aos 59 anos tomou o país de surpresa, já que até então ela não aparentava estar doente a bastante tempo. Assim, uma crise sucessória se instaurou: o cargo de Lorde Protetor seria encerrado? Um novo protetor seria escolhido? Ou o Parlamento reassumiria sua função como visto entre 1649 e 1653? A resposta foi que os aliados da família Cromwell decidiram manter ela no poder. 

Richard Cromwell (1626-1712) era o terceiro filho de Oliver, não tendo desenvolvido uma carreira militar e política de destaque. Ele como seus irmãos, viveram à sombra do prestígio e fortuna adquiridos por seu pai. Em 1657, Richard foi nomeado reitor da Universidade de Oxford e no ano seguinte ganhou um assento no Conselho de Estado. Por ser na época o filho mais velho de Oliver, cogitou-se que ele seria seu sucessor político. (HILL, 1988). 

Richard Cromwell, o segundo Lorde Protetor do Protetorado. 

Assim, após o sepultamento de Oliver em setembro de 1658, o Parlamento do Protetorado deliberou passar o cargo de Lorde Protetor para Richard, mas isso foi questionado pelo comando militar e os políticos. Lembrando que o protetor era um chefe civil-militar. Assim, o Exército não viu de bom grado a indicação de Richard, pois ele não era militar, tampouco lutou na guerra como seu pai fez. Já os políticos também apontaram a falta de experiência de Richard na política. Apesar disso, uma assembleia foi convocada em novembro e em dezembro Richard Cromwell foi votado como novo Lorde Protetor. 

Em janeiro de 1659 ele presidiu a primeira sessão do Parlamento do Protetorado, no entanto, Richard enfrentou uma série de oposições, intrigas e problemas envolvendo desavenças entre os parlamentares civis e militares. A falta de carisma, autoridade e experiência em lhe dar com o jogo político levou Richard a pedir demissão em maio de 1659. (HILL, 1988). 

Com a saída de Richard Cromwell do poder, o Parlamento assumiu suas funções do Executivo, governando pelo restante de 1659, sendo deliberado encerrar o projeto republicano em 1660, quando o príncipe Carlos foi convocado do seu exílio na França, chegando em maio daquele ano a Londres, onde foi coroado rei Carlos II. Dessa forma, o sonho republicano na Inglaterra durou dez anos, se mostrando um fiasco, já que parte desse período, especialmente durante o governo de Oliver Cromwell, vigorou uma ditadura civil-militar. 

Referências bibliográficas

HAYTHORNWAITE, Philip. The English Civil War 1642-1651. An Ilustrated Military History. London, Brockhampton, 1994. 

HILL, Christopher. O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. 

WOOLRYCH, Austin. Commonwealth to Protectorate. Oxford, Clarendon Press, 1982. 

YOUNG, Peter; ROFF, Michael. The English Civil War. London: Osprey, 1973. 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

A Revolução Puritana (1642-1649)

Na Inglaterra do século XVII ocorreram duas revoluções importantes, as quais ficaram conhecidas como "revoluções inglesas", "revoluções liberais" e até "revoluções burguesas". Entretanto, os termos liberal e burguês são questionáveis por parte dos historiadores, pois o Liberalismo criado pelo filósofo John Locke (1632-1704), ainda estava sendo desenvolvido e inexistia na época da Revolução Puritana, por sua vez, os envolvidos nas duas revoluções não eram apenas burgueses, mas também nobres indignados com o governo dos reis, além de haver membros das classes baixas que lutaram nos conflitos. De qualquer forma, o presente texto abordou a primeira das revoluções inglesas, chamada de Puritana, marcada pela eclosão de uma sangrenta guerra civil que perdurou por seis anos. 

Motivos

Os séculos XVII e XVIII marcaram na Europa o auge da política do Antigo Regime, definida por monarquias centralizadoras e absolutistas, em que os monarcas possuíam uma grande e excessiva autoridade, sendo até considerados "eleitos por Deus" para estarem ali. Tais soberanos em muitos casos ignoravam os seus conselheiros, câmaras, senados e parlamentos, podendo inclusive passar por cima das leis pelo seu bel-prazer, gerando o descontentamento de vários setores da sociedade, assim como, fomentando problemas graves para seus reinos. Com a Inglaterra isso não foi diferente. 

Durante o reinado de Carlos I (r. 1625-1649), o monarca tomou algumas medidas bastante impopulares, a primeira mais significativa foi entrar em conflito com o Parlamento, pois esse tinha autonomia para julgar leis e tomar decisões, diminuindo a plena autoridade do soberano. Após quatro anos de embates, Carlos I numa decisão surpreendente, ordenou o fechamento do Parlamento em 1629, o que levou uma série de indignações por seus membros, mas como ele contava com apoio das forças armadas e de parte da nobreza que era favorável a isso, a situação não se complicou tanto. (YOUNG; ROFF, 1973). 

O rei Carlos I em pintura de Anton van Dyck, c. 1635. 

Em segundo lugar teve todo o jogo de interesses do rei quanto a questão religiosa da época. Os séculos XVI e XVII foram marcados pelas guerras religiosas entre católicos e protestantes, conflito ocorrido em alguns países europeus gerando verdadeiros massacres. No caso inglês, Carlos I era anglicano (protestante), mas casou-se com Henriqueta Maria em 1625, uma rainha católica, tal decisão foi desaprovada pela nobreza e aristocracia anglicana. (YOUNG; ROFF, 1973). 

A Inglaterra era uma nação protestante desde 1534 quando o rei Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica e fundou a Igreja Anglicana, tornando-a a referência para o cristianismo oficial no seu reino. Sendo assim, já fazia quase um século que essa mudança havia ocorrido, o catolicismo tornou-se estigmatizado na Inglaterra, apesar de ser tolerado, porém, o anglicanismo já era visto como uma tradição relativamente antiga, logo, um rei optar em casar-se como uma católica foi considerado afrontoso. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

A terceira medida controversa foi quanto a estratégia referente a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). O conflito havia começado na época do governo de seu pai, o rei Jaime I, o qual ainda investiu nessa guerra, mas depois que Carlos I subiu ao trono, foi perdendo interesse nessa guerra, já que os ingleses entraram nela para apoiar seus aliados. Dessa forma, os alemães e outros aliados dos ingleses passaram a ver de forma negativa a falta de interesse e compromisso do novo soberano, além de que os generais que comandavam as frentes de trabalha se queixavam da falta de envio de recursos e reforços para o front. (YOUNG; ROFF, 1973). 

A quarta decisão problemática do rei foi se intrometer na disputa política dos bispos. Desde a Antiguidade era comum haver politicagem entre os bispos, já que além de serem autoridades eclesiásticas, eles também detinham poder político. No caso do reinado de Carlos I, havia uma disputa entre os bispos de três países: os bispos anglicanos da Inglaterra, os bispos calvinistas da Escócia e os bispos católicos da Irlanda. O conflito entre os bispados já vinha ocorrendo desde o reinado de Jaime I, mas foi agravando-se em seguida. (YOUNG; ROFF, 1973). 

Durante o governo de Jaime I, o rei removeu bispos calvinistas da Escócia, colocando no lugar deles bispos católicos, o que foi desaprovado por parte da população, mais tarde a situação foi equilibrada. Vários anos depois, Carlos I tomou a decisão de unificar as igrejas da Escócia e da Inglaterra, já que ambos os países compreendiam o Reino Unido. A ideia era tornar o Anglicanismo na igreja oficial da Escócia, a qual se via dividida entre calvinistas e católicos, os bispos de ambas as igrejas não gostaram disso e se revoltaram contra o projeto do rei, havendo protestos e revoltas na Escócia. 

Carlos I indignado com a insubordinação dos bispos e seus apoiadores, enviou um exército de 20 mil soldados em 1639 para a Escócia, dando início a Guerra dos Bispos (1639-1641), a primeira parte foi marcada por algumas pequenas batalhas pelo território escocês, o qual o Parlamento Escocês reuniu soldados para combater o rei. No ano de 1640, Carlos I reabriu o Parlamento Inglês em 13 de abril para votar a respeito da proposta oferecida pelos escoceses a fim de chegar a um acordo de paz. No entanto, os parlamentares aproveitaram a situação para fazerem críticas ao monarca e cobrarem mudanças políticas, jurídicas, tributárias e eclesiásticas. Carlos I que havia restabelecido o Parlamento para que esse apenas apoiasse suas próximas medidas, se indignou com as cobranças e o fechou em 5 de maio, tal acontecimento ficou conhecido como episódio do "Parlamento Curto", pois esse ficou em funcionamento por menos de um mês. 

Revoltado, o rei decidiu fazer de seu jeito, elegendo novos comandantes e enviando-os com reforços para retomar a guerra contra os escoceses insurgentes. A guerra estendeu-se pelos meses seguintes de 1640, acarretando em várias perdas para os exércitos ingleses e altos gastos aos cofres públicos. Carlos I diante de sucessivos erros decidiu convocar novamente o parlamento para pedir ajuda. Ele tinha a expectativa que pudesse apelar a honra e bom senso da Câmara dos Lordes, para que esse os apoiassem na guerra contra os escoceses. A ideia era que os nobres injetassem dinheiro naquele conflito e enviasse suas tropas também. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

Os parlamentares ingleses viram uma grande oportunidade de contestar a autoridade absolutista do monarca, então fizeram uma série de concessões as quais fossem cumpridas, eles iriam ajudar no conflito. Por sua vez, os parlamentares escoceses cobravam do rei que ele aceitasse os termos de paz. Carlos I se viu entre a cruz e a espada, tendo que a contragosto ceder as concessões de ambos os parlamentos, enquanto isso ocorria, revoltas na Irlanda eclodiram em 1641, mobilizadas entre católicos que se indignaram que deveriam ter que adotar o Anglicanismo como igreja oficial. Porém, as revoltas irlandesas não geraram uma guerra, mas ainda assim renderam alguns pequenos massacres. Porém, o governante da Irlanda, o nobre Thomas Wentworth, 1o Conde de Strafford (1593-1641) havia evitado o pior, embora nem todos concordassem com isso. (YOUNG; ROFF, 1973). 

Conde de Strafford por Anton van Dyck, 1633. 

Durante a rebelião na Irlanda, Carlos I seguia negociando com o Parlamento inglês e escocês para encerrar a guerra, porém, parte dos nobres culparam a incompetência do Conde de Strafford em não ter evitado aqueles massacres, assim, ele foi preso e enviado a Torre de Londres. Inimigos do conde cobraram sua execução alegando que os erros dele permitiram uma revolta grave na Irlanda comprometendo a ordem e a paz do reino. Carlos I negou-se a declarar pena de morte de Strafford, mas esse disse ao rei que seria o melhor a fazer, pois reconhecia seus erros e merecia morrer por conta deles. Abalado quanto a essa escolha, o monarca autorizou a sentença, então Strafford foi decapitado em 12 de maio de 1641. Porém, sua execução foi considerada um ato cruel do rei, o qual simpatizava com o conde. (YOUNG; ROFF, 1973). 

Católicos ingleses e irlandeses se enfureceram com a execução do Conde Strafford, que era católico, acusando que sua morte foi um ato de crueldade autorizado pelo rei Carlos I. Assim, um levante popular e militar ocorreu em ambos os lugares iniciando uma guerra civil. 

A guerra civil inglesa (1642-1651)

Diante da série de problemas ocorridos ao longo de 1641, uma nova guerra estava tendo início. Carlos I encurralado por ter cedido as concessões dos dois Parlamentos, havia perdido o direito de fechar os parlamentos, o que permitiu que ambos pudessem se posicionar contrários ao monarca. Assim, os nobres que não gostavam do governo autoritário do rei aproveitaram para formar alianças e exigir a abdicação dele, mas Carlos I recusou-se a deixar o trono e abandonou Londres, dando início a uma guerra entre os parlamentos e o rei. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

O rei refugiou-se em Nottingham com seus apoiadores, enquanto o Parlamento inglês tinha suas tropas lideradas por Thomas Farifax, Oliver Cromwell, Phillip Skippon, Edward Montagu (2o Conde de Manchester), Robert Devereux (3o Conde de Essex), William Waller. Por sua vez, do lado escocês liderava Alexander Leslie (1o Conde de Leven). Tais nobres se uniram para liderar as forças opositoras contra Carlos I, considerado fugitivo da lei por ter se recusado a aceitar a denúncia pública contra seu abuso de poder e outros crimes, já que foi pedido que ele abdicasse do trono. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

A primeira parte da guerra que ocorreu entre 1642 e 1646, acabou demorando mais do que se imaginava. Inicialmente alguns parlamentares acreditavam que o rei não teria tanto apoio assim da nobreza e do povo, então em poucos meses sua resistência seria desbaratada, mas isso foi engano. O conflito estendeu-se por quatro anos. Em 1645 as tropas parlamentares lideradas por Fairfax e Cromwell venceram as tropas realistas em Naseby (14 de junho) e Langport (10 de julho), vitórias importantes que enfraqueceram consideravelmente o exército realista. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

Pintura retratando a vitória do exército parlamentarista sobre o exército realista na Batalha de Naseby. Na imagem podemos ver em destaque Fairfax a cavalo e Cromwell diante dele. 

Carlos I fugiu para Escócia no começo de 1646, mas acabou sendo traído pela sua tropa e foi preso, sendo transferido de volta a Londres, onde permaneceu três meses preso aguardando julgamento, porém, alguns aliados o libertaram e ele escapou para a Ilha Wight no sul da Inglaterra, onde permaneceu refugiado em 1647. Nesse período o país seguia em crise devido aos danos causados pela guerra, milhares de mortos, terras arrasadas, cidades invadidas, altos gastos dos cofres públicos, militares com soldo atrasado etc. No entanto, aproveitando-se dessa instabilidade, Carlos I decidiu negociar com o Parlamento escocês as escondidas tentando conquistar o apoio dele para poder contra-atacar e recuperar o trono. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

No ano de 1648 os escoceses decidiram aceitar o acordo de Carlos I, então o Parlamento escocês enviou um exército para invadir a Inglaterra e marcha rumo a Londres, para sitiar a capital, destituir o Parlamento inglês e permitir o rei reassumir o trono. O problema é que os planos fracassaram. As tropas escocesas sofreram sucessivas derrotas pelo caminho e o rei acabou sendo capturado novamente e enviado para a capital. Dessa vez reforçaram sua guarda e convocaram um tribunal para julgá-lo, incluindo a acusação de traição. 

Mais de 100 juízes foram convocados para presidir o julgamento dos crimes do rei, o processo demorou alguns meses e a votação foi acirrada, mas no final a sentença foi dada: devido aos crimes de traição, assassinato, guerra, tirania etc., o rei Carlos I foi condenado a pena de morte por decapitação. A execução ocorreu no Palácio Whitewall em 30 de janeiro de 1649. A morte do rei marcou a história inglesa do século XVII fragilizando o absolutismo da época. (HAYTHORNWAITE, 1994). 

Decapitação de Carlos I diante do Palácio Whitehall. Autoria desconhecida, 1649. 

Considerações finais

A chamada Revolução Puritana é o termo em língua portuguesa para designar a Guerra Civil Inglesa, por conta disso, alguns livros hoje em dia já não usam mais a nomenclatura puritana, optando em adotar a nomenclatura inglesa mesmo, pois o dito puritanismo que motivou a guerra civil, não foi o único fator para isso. De qualquer forma, a dita revolução marcou num primeiro momento, a queda do Absolutismo inglês representado pelo monarca Carlos I, que após anos de tirania que resultou na Guerra dos Bispos (1639-1641) e depois na Guerra Civil (1642-1651), acabou sendo condenado à morte aos 48 anos de idade. 

Ambas as guerras arruinaram a economia da Inglaterra e da Escócia, mas não o suficiente para afundar o país, no entanto, a crise legada deu brechas para que o Parlamento inglês e escocês restabelecesse seu prestígio, mas principalmente passasse a gerir ambos os reinos e foi nesse momento de crise política, econômica e social que Oliver Cromwell decidiu dar sua guinada ao poder. 

Cromwell surgindo como um herói da guerra civil, passou a manobrar seus aliados e outros parlamentares para conseguir ser nomeado Lorde Protetor e estabelecer o projeto de uma república, defendendo a suspensão indefinida da monarquia, enquanto um governo republicano parlamentar seria criado e estabelecido, mudando o curso da história inglesa. Entretanto, suas intenções bastante positivas e até apoiadas por parte dos parlamentares e do povo, acabariam se revelando desastrosas. O sonho republicano de Cromwell veio a se tornar uma ditadura. 

NOTA: Alguns autores defendem que a guerra civil não terminou com a morte do rei em 1649, mas estendeu-se até 1651 quando Oliver Cromwell foi feito Lorde Protetor, pondo fim aos conflitos restantes. 

NOTA 2: Alguns historiadores dividem a guerra civil em três fases: a primeira entre 1642 e 1646, em seguida o interlúdio da fuga do rei entre 1646-1647, a segunda fase entre 1648 e 1649, terminando com a morte do rei, mas começando a terceira fase que foi de 1649 a 1651, focada nas batalhas ocorridas na Escócia e Irlanda. 

Referências bibliográficas

HAYTHORNWAITE, Philip. The English Civil War 1642-1651. An Ilustrated Military History. London, Brockhampton, 1994. 

YOUNG, Peter; ROFF, Michael. The English Civil War. London: Osprey, 1973. 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Coolies: os "escravos" asiáticos no XIX

O termo coolie surgiu com os britânicos no século XVIII, mas passando a se normalizar no XIX e começo do XX para designar imigrantes asiáticos oriundos da China, Índia e Sudeste Asiático, que eram levados para trabalhar na América do Norte e América Central, sob a promessa de melhorarem de vida. O problema é que eles acabavam sendo marginalizados além de viverem em condições análogas à escravidão, embora a escravidão tenha sido abolida em alguns países onde trabalhavam. 

Os coolies

Palavra inglesa coolie, também grafada como cooly, culi, kuli, é uma variação gráfica da palavra hindi quli, usada para se referir a trabalhadores braçais. Como os ingleses começaram a acentuar seu contato com os indianos e mais tarde colonizaram a Índia, o termo coolie acabou se tornando comum no vocabulário deles, sendo encontrado em outros países como China, Myanmar, Bangladesh e Paquistão. Nações nas quais os ingleses mantinham contato entre os séculos XVIII e XX. 

Assim, a palavra coolie antes do XIX designava os trabalhadores braçais, os quais realizavam tarefas árduas, de baixa remuneração e até insalubres. Em algumas localidades os coolies eram tratados como serviçais, embora eles exercessem atividades diversas como carregadores, lenhadores, pedreiros, mineradores, agricultores etc. No caso das mulheres, elas realizavam mais trabalhadores domésticos como cozinhar, faxinar, lavar roupas, serem babás etc. 

Os ingleses se acostumaram a fazer uso do trabalho barato dos coolies, principalmente na Índia e em partes da China, como Hong Kong. Dessa forma, com a expansão do império britânico houve demanda por mão de obra barata. Assim, esses homens e mulheres pobres eram recrutados pelos colonizadores para servirem em seus países nativos ou enviados para as colônias inglesas.

Coolies indianos na ilha de Trinidad em 1897, na época, ainda colônia inglesa.
 
Os coolies e a semiescravidão

Se desconhece quantos coolies foram enviados para as colônias inglesas pelo mundo, mas as estimativas sugerem centenas de milhares deles, os quais foram enviados para o Sri Lanka, Austrália, África do Sul, Caribe e outras ilhas. Os coolies eram na maioria provenientes da Índia e da China, as vezes advinham dos países o Sudeste Asiático. Eram pessoas pobres e iletradas, costumadas ao trabalho braçal e/ou servil que atraídas com promessas de melhorias de vida nas colônias, eram enganadas e levadas para lá. 

Oficialmente a Inglaterra aboliu a escravidão em seu território e colônias em 1807, embora o tráfico negreiro ainda perdurou ilegalmente por alguns anos. Porém, após ele ser definitivamente interrompido, as colônias necessitavam de mão de obra barata. Uma alternativa aos africanos e indígenas foi trazer trabalhadores asiáticos. Dessa forma, ao longo do século XIX, milhares de coolies foram transportados pelo mundo para as colônias inglesas.

Mas a realidade para muitos deles era a servidão ou condições análogas à escravidão. Os coolies que migravam para as colônias, as mulheres tornavam-se empregadas domésticas e até prostitutas também; já os homens exerciam atividades mais diversas, no entanto, muitos iam trabalhar na agricultura, construção civil, minas, construção de ferroviais e ofícios portuários. Por volta da segunda metade do XIX o termo coolie deixou de designar apenas esses trabalhadores asiáticos, mas passou a ser um termo pejorativo e racista também. Asiáticos como indianos e chineses que migravam para as Américas por conta própria, passaram a serem chamados de coolies. 

Coolies indonésios numa plantação holandesa em Java, na Indonésia. 

Nos Estados Unidos, no qual ocorreu a migração chinesa no XIX, muitos chineses eram designados como coolies. Boa parte deles migrou para a Costa Oeste, indo trabalhar nas minas e ferrovias. Já a França levou coolies da Indochina (região que compreende países como Vietnã, Camboja e Laos), os quais eram levados para colônias na África e no Caribe. 

Os coolies nos Estados Unidos, Caribe, África do Sul, Sri Lanka, entre outros territórios, além da descriminação racial, também eram vítimas de maus-tratos, recebendo castigos e até abusos sexuais. Essas práticas desumanas perduraram por décadas entrando em declínio no final do XIX e sendo abandonada no começo do século seguinte. 

NOTA: Outros povos asiáticos também foram feitos coolies como coreanos, japoneses, filipinos, malaios, tailandeses, birmaneses, indonésios etc. No caso, o termo na segunda metade do XIX era usado de forma genérica para tratar qualquer asiático da Índia e do Extremo Oriente. 

Referência bibliográfica: 

VARMA, Nitin. Coolies of Capitalism: Assam Tea and the Making of Coolie Labour. De Gruyter, Oldenbourg, 2016. 


terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Erzsébet Bathory: a lenda da Condessa Sangrenta

Erzsébet Bathory entrou para a História de forma infame: ela foi acusada de ser uma serial-killer, torturadora, sequestradora e até vampira. Histórias hediondas diziam que ela tinha uma paranoia pela beleza, então tomava banho no sangue de virgens. Entretanto, muitas narrativas difamatórias e macabras foram criadas sobre essa nobre húngara, a ponto de gerar uma terrível lenda sobre ela. 

A condessa

Erzsébet Bathory nasceu em 7 de agosto de 1560 em Nyírbator, uma cidade no condado húngaro de Szabolcs-Szatmár-Bereg, região dominada a bastantes anos pela família Bathory, que remontava ainda o período medieval. Erzsébet era filha de Jorge Bathory (c. 1522-1570), que era parente do príncipe Andras da Transilvânia, e de Anna Bathory (c. 1539-1574), irmã do futuro rei Estêvão Bathory da Polônia. No caso, Jorge e Anna eram primos e pertenciam a ramos importantes da nobreza da família, o Ecsed e o Somlyó. (CRAFT, 2011). 

Retrato da condessa Erzsébet Bathory.

Ainda criança a família se mudou para o Castelo de Cachtiche (ou Csejthe), feudo de seu pai na atual Eslováquia, ali ela passou a infância até que aos 11 anos foi prometida em casamento ao seu primo, o jovem barão Ferenc Nádasdy (1555-1604), na época com seus 16 anos de idade. O casamento ocorreu apenas em 1575, quando Erzsébet completou 15 anos. Na época corriam boatos de que ela havia tido uma filha bastarda de um plebeu, a qual foi dada para camponeses criarem. De quaquer forma, os dois primos se casaram e foram viver em Sárvár, na Hungria, terra dos Nádasdy. (CRAFT, 2011). 

Em sua adolescência Erzsébet converteu-se ao Calvinismo por influência da mãe, apesar que seu pai e vários outros parentes eram católicos. A jovem nobre também foi alfabetizada, sabendo falar e ler além do húngaro, o alemão, o eslovaco, além de latim e grego, o que reflete uma educação clássica. Ela também teria aprendido equitação, além de etiqueta de corte. (CRAFT, 2011). 

Devido a tradição militar dos Nádasdy, Ferenc aos vinte e um anos assumiu o comando de tropas da família e partiu para as campanhas contra os otomanos que ocupavam a Europa oriental, querendo expandir seus domínios pela Romênia e Hungria. Como ele passava semanas ou meses fora de casa, Erzsébet era a senhora suprema do seu condado.  Do casamento com o conde Ferenc, Erzsébet gerou sua primeira filha Anna, nascida por volta de 1586, anos depois nasceram Katalina por volta de 1590 e Úrsula em 1594. No ano de 1596 nasceu Andras, mas a criança morreu ainda pequena em data incerta. Já no ano de 1598, com seus 38 anos de idade, a condessa deu à luz a um menino chamado Paulo. (CRAFT, 2011).

No começo do século XVII, Bathory era vista como uma nobre respeitada, boa esposa, mãe e administradora competente, pois o marido confiou nela em todos esses anos. Isso é atestado a partir de cartas de outros nobres que conheciam a família, o que põe em dúvida a fama de cruel que mais tarde surgiria. Boatos sobre isso começaram a despontar no ano de 1601, quando uma serva croata chamada Anna Darvolya foi acusada de sequestrar jovens mulheres, torturando-as para sua senhora. Porém, as acusações sumiram por alguns anos, o caso foi abafado, apesar de bastante estranho e sensacionalista. (CRAFT, 2011). 

O casamento de Erzsébet durou até 1604, quando Ferenc devido a ferimentos de batalha, acabou adoecendo, vindo a falecer no acampamento militar naquele ano. Erzsébet ficou viúva aos 44 anos, mãe de quatro filhos. Ela após a morte do marido mudou-se para Viena por algum tempo, além de voltar a terras da família na Hungria. 

No final de 1610, Erzsébet foi acusada de cometer crimes de assassinato contra seus criados e servos. Dessa forma, no dia 29 de dezembro, o primeiro-ministro Jorge Thúrzo, acompanhado dos condes Nicolau Zrínyi e Jorge Drugeth, e o escudeiro desse, de nome Imre Megyeri, chegaram ao castelo de Cachtiche, com uma tropa, levando um mandado de prisão contra a condessa. Uma narrativa sombria sobre isso surgiu tempos depois, dizendo que a comitiva ao chegar ao castelo, encontraram o corpo mutilado de três mulheres mortas, e em uma das salas do castelo, os quatro servos fiéis da condessa: Anna Darvolya, a ama de leite Ilona Jó, uma amiga dela de nome Katalin Beneczky, e um jovem criado de nome Janos Újváry, foram pegos em flagrante torturando uma moça. Por sua vez, a condessa estava em seus aposentos quando foi presa. (CRAFT, 2009). 

Assim, o rei Matias II da Hungria ordenou uma investigação e a prisão preventiva da condessa, que ocorreu ainda em dezembro daquele ano. O julgamento bastante manipulado, resultou no confisco de vários bens e propriedades de Erzsébet, embora parta disso ficou com seus filhos. Por sua vez, a condessa foi condenada à prisão no Castelo Cachtiche. Ali ela permaneceu até a sua morte em por volta de 21 de agosto 1614. Apesar de não se saber a causa exata. Teria sido envenenada? Teve parada cardíaca? Segundo uma carta de um primo do ministro Thrúzu que tinha acesso ao castelo, Erzsébet nos últimos meses se queixava de dores nas articulações. Ela era uma mulher de 54 anos, já considerada velha para os padrões da época. Os restos mortais dela jamais foram encontrados, mesmo tendo sido enterrados no cemitério do castelo, em dado momento foram removidos e desapareceram. (CRAFT, 2009). 

O julgamento pelos assassinatos

A advogada e historiadora Kimberly L. Craft (2009) ao estudar a vida e o julgamento de Erzsébet Bathory comenta que uma série de problemas ocorreram a respeito. Os relatos que se conhecem são contraditórios. Ora informam que 300 testemunhas foram ouvidas, um número demasiadamente exagerado. Mas depois só listam que 20 dessas testemunhas eram confiáveis. Uma parte das testemunhas disse que somente reconheciam 50 assassinatos, outras falaram em 200, mas uma criada disse ter ouvido que foram 650 vítimas. Craft apresentou uma lista de testemunhas segundo os autos do processo, mas muitos nomes são suspeitos, pois não se sabe se testemunharam de fato ou realmente existiram. Em outras palavras, armaram para incriminar a condessa. 

Além das inconstâncias quanto a quantidade de testemunhas e falsos testemunhos, Craft destaca que o julgamento de Bathory foi bastante rápido e nebuloso. Não se conhece a documentação exata, a condessa inclusive nem parece ter tido chances de se defender. Embora existam narrativas que dizem que ela confessou os crimes, enquanto outros falaram que ela se manteve calada ou negou tudo. Apesar disso, Bathory não teve um julgamento justo, sendo acusada de forma arbitrária sem direito de defesa. 

A narrativa que se difundiu na época é que o primeiro-ministro Jorge Thúrzu chegou em flagrante no castelo de Bathory, testemunhando suas três servas e o jovem criado torturando uma adolescente. Anna, Ilna, Katalin e Janos quando foram interrogados, confessaram terem matado dezenas de crianças e adolescentes, geralmente mulheres entre seus 10 e 14 anos, torturando-os e mutilando seus corpos por ordem da condessa. Porém, essa confissão como assinala Craft é bastante estranha, pois não encontramos detalhes das mesmas. (CRAFT, 2009).

Craft (2009) assinala que a condenação de Erzsébet Bathory foi um bode expiatório para justificar a indignação do rei Matias II da Hungria contra a família dela. Um dos sobrinhos de Erzsébet, chamado Gabriel Bathory, havia se manifestado publicamente contrário ao reinado de Matias II (1557-1619). Além disso, a condessa possuía muitas propriedades e rendas, boa parte advinda da família de seu marido e das conquistas militares dele. O que interessava ao monarca, e para completar, as terras dela estavam sob ameaça de invasão otomana e sem seu marido para reunir um exército e liderá-los, a região estava vulnerável. E o rei não poderia permitir isso. 

Por conta disso, Kimerberly Craft (2009) comenta que por volta de março de 1610 surgiram boatos de que a condessa Bathory era uma assassina, matando ou mandando matar jovens mulheres. Não se sabe de onde tais boatos surgiram, mas eles chegaram aos ouvidos do primeiro-ministro Thúrzu e até do próprio rei. Porém, uma medida propriamente falando somente foi tomada no final do ano, como visto anteriormente, quando o ministro invadiu o castelo da condessa em 29 de dezembro. 

Após sua prisão, o julgamento se operou de forma bastante rápida e nada justa. Testemunhas foram ouvidas sem nenhum rigor, a papelada do processo depois não foi encontrada. Bathory já por volta de fevereiro ou março tinha sido condenada a prisão domiciliar, nesse tempo ela escreveu cartas as familiares e amigos, pedindo ajuda para ser julgada de forma justa. Thúrzu cogitou lhe dar pena de morte, mas por motivos não conclusivos, o rei Matias II interviu na situação e mediante o Parlamento, ordenou que Bathory fosse sentenciada a prisão perpétua no castelo dela. Além disso, parte de suas propriedades e rendas foram confiscadas pela coroa, embora a parte já dada aos seus filhos, foi mantida. Naquela época, suas filhas e filho já estavam casados, e até tentaram provar a inocência da mãe, como consta em cartas trocadas por eles e enviadas ao primeiro-ministro, ao rei e outros nobres, mas nada adiantou. (CRAFT, 2009). 

A lenda da condessa sangrenta

Ao longo da sua vida Erzsébet Bathory não teve destaque e problemas. Viveu cuidando de suas propriedades, filhos e do marido quando esse voltava da guerra. Embora houvessem boatos de que a condessa fosse rude com os servos. Porém, também circulavam boatos de que a condessa era infiel e até teria casos com mulheres também. Entretanto, as denúncias de uma suposta série de assassinatos somente surgiu em 1610. 

As acusações e o julgamento de Erzsébet Bathory ainda são envoltas em mistérios, pois nenhuma documentação concreta a respeito foi achada, apenas recortes e menções indiretas. Não se sabe a identidade das testemunhas de acusação, além de ter ocorrido falso testemunho, já que a condessa tinha inimigos. Se desconhece o processo judicial. Embora uma das supostas provas foi um diário que pertenceria a condessa, onde ela teria escrito que mandava matar jovens mulheres virgens. Supostamente nesse diário haveria uma lista com 650 nomes das vítimas de Bathory. 

Os motivos para Bathory se tornar uma sociopata são inconclusivos. Alguns chegaram a teorizar que ela sofria de epilepsia na infância, e um tratamento da época era dar sangue para ela beber. Mas isso é bastante incoerente, pois doenças como febre reumática e epilepsia poderiam ser tratadas com sangria, ou seja, ao invés de ela ingerir sangue, seria o sangue dela a ser descartado. (CRAFT, 2009). 

Outro motivo para sua crueldade alegava-se que ela teria problemas mentais, mas nada disso foi confirmado. Bathory viveu seus 54 anos, sem apresentar indícios de problemas mentais. Não obstante, outra teoria sugeria que ela era obcecada pela beleza, então passou a tomar banho no sangue de virgens, pois isso supostamente ajudaria a manter a pele jovem. Devido a essa vaidade exacerbada, ela ao longo da vida, mandou matar centenas de jovens. Sobre isso, alguns alegavam que Bathory aprendeu essa prática sangrenta com uma bruxa, pois a condessa era afeita a bruxaria. (CRAFT, 2009). 

Quanto ao ato de ela ser cruel com os servos, mandando castigá-los, isso não era incomum, afinal, eram tempos de escravidão moderna, onde em outros lugares do mundo, coisa pior acontecia. O mais exagerado seriam as atrocidades a ela imputadas e seus criados. Dessa forma, Erszébet Bathory foi vítima da sociedade de seu tempo, condenada por crimes que não cometeu, entrando para a História como uma terrível e cruel assassina, a "condessa sangrenta". 

Mais tarde no século XIX, com a popularização da literatura gótica narrativas de terror sobre vampiros, surgiram menções de que Erzsébet Bathory teria sido uma vampira. Por essa época, as histórias de ela ter sido uma sanguinária condessa que mandou matar centenas de pessoas e torturar várias outras já tinham se tornado lendas sombrias que circulavam pela Hungria e outros países europeus. Estigma esse que inspirou livros, filmes, músicas, desenhos e jogos ao longo do século XX. 

NOTA: A Condessa Drácula (1917) e o primeiro filme conhecido sobre Bathory, tratando-se de um curta-metragem de terror. 

NOTA 2: Bathory foi o nome de uma banda sueca de metal, em atividade de 1983 a 2004. 

NOTA 3: No jogo Castlevania Bloodlines (1994), a condessa é uma das vilãs da trama. 

NOTA 4: Tivemos alguns filmes históricos e dramáticos baseados na vida da condessa como Bathory (2008) e A Condessa (2009). 

NOTA 5: O livro Dracula the Un-dead (2009) é uma continuação do romance original, escrita por Drace Stoker, descendente de Bram Stoker. Nesse livro a condessa Bathory é uma vampira e a antagonista da história. 

NOTA 6: No jogo Resident Evil Village (2021), a vilã Lady Alcina Dimitrescu é inspirada em Bathory. 

NOTA 7: Na série animada Castlevania: Noturno (2023-presente), a condessa Bathory aparece como uma poderosa vampira, sendo a antagonista da história. 

Referências bibliográficas:

CRAFT, Kimberly L. Infamous Lady: The True Story of Countess Erzsébet Báthory. Edição da autora, 2009. 

CRAFT, Kimberly L. The Private Letters of Countess Erzsébet Báthory. Edição da autora, 2011. 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Calça jeans: de farda para mineradores a ícone da moda

O jeans hoje é um dos tecidos mais usados no mundo no dia a dia, principalmente na forma de calças, mas também jaquetas, saias e bermudas. Porém, originalmente o jeans foi concebido como um tecido resistente para se produzir uniformes ou peças de roupa para o trabalho pesado, destacando-se o ofício do minerador. 

Origem do jeans

O jeans consiste num tecido feito de brim ou ganga em língua portuguesa, já em inglês usa-se o termo denim. Esse tecido é feito de algodão, linho ou fibra sintética, trançados como ligamento do tipo sarja. No caso, os fios do jeans são tingidos de azul somente a parte da urdidura, enquanto a trama permanece branca, isso gera a coloração típica dos jeans que conhecemos até hoje, o qual não é inteiramente azul como alguns pensam. 

O termo denim era de origem francesa, usado para designar um tecido feito de lã e seda, produzido na cidade de Nimes no século XVII, mas nos Estados Unidos, o termo passou a designar um tecido rústico de algodão tingido de azul. No entanto, a ideia por trás do jeans é mais antiga remontaria o final do medievo, quando cidades italianas como Gênova produziam um tecido rústico chamado gênes usado para se fazer forros, lonas e mais tarde empregado na produção de uniformes dos marinheiros. Assim, séculos antes o jeans já era conhecido por ser um tecido resistente.

Em 1872 o marinheiro e inventor russo Jacob W. Davis (1831-1908), já naturalizado americano, propôs Levi Strauss (1829-1902), um empresário e industrial teuto-americano, que fundou a Levi Strauss & Co. em 1853, empresa que produzia tecidos e roupas, a ideia de reforçar calças jeans usando rebites de cobre para os bolsos e a abotoadura. Levi Strauss se interessou pela proposta e mandou seus costureiros fazerem isso. O produto era dirigido aos trabalhadores  como operários, marinheiros, lenhadores, mas principalmente mineradores, já que na Califórnia (onde estava a sede da empresa) ocorria a febre do ouro

A venda de calças jeans deu certo a ponto que em 1873, Davis e Strauss patentearam a costura do produto, sob o número 139,121. A partir de então a empresa Levi Strauss & Co. passou a vender com exclusividade as chamadas calças Levi. Essa peça de roupa que utilizava tecido jeans, sendo tingido de azul, concedendo a coloração azul clara que conhecemos. 

Mas o diferencial estava nos cortes da peça, seus rebites de cobre para tornar os bolsos mais resistentes para carregar peso e não descosturarem (a ideia para isso estava associada ao uso dos mesmos para guardar ferramentas), além da costura reforçada e material grosso. A intenção era que a calça jeans não rasgasse facilmente e fosse resistente a água. Duas características que ela mostrou estarem corretas. 

Fotografia de 1895 mostrando mineradores da Califórnia usando calças jeans. 

Assim, ao longo do restante do século XIX, à venda de calças Levi foi se popularizando pela Califórnia entre os trabalhadores fossem mineradores, marinheiros, carregadores, vaqueiros (cowboys) etc., e depois sendo vendida em outros estados do país. Além das calças jeans, a Levi Strauss & Co. passou a produzir também macacões e casacos. O que incluiu também peças femininas mais tarde. Devido a popularidade das calças Levi, outras empresas começaram a vender produtos jeans para disputar esse crescente mercado de roupas. Fato esse que em fins do XIX, a Levi Strauss & Co. já fazia propaganda dizendo que ela "tinha o jeans azul original" e que as pessoas "evitassem comprar cópias baratas". 

Propaganda da Levi mostrando a resistência de suas calças e recomendando não usar imitações. Datação incerta, mas final do XIX. 

O jeans entra na moda

Apesar da popularização do jeans, esse tecido ainda seguiu por décadas vinculado a imagem dos operários, trabalhadores braçais e a vida rural. Nas grandes cidades americanas entre as décadas de 1900 e 1940, as pessoas não tinham o hábito de usar jeans fora do dias de trabalho. Geralmente quando se via algum homem trajando calça jeans ou macacão jeans, sabia-se que ele estava de serviço. Já na zona rural e cidades do interior era mais comum ver pessoas usando jeans mesmo que não estivessem de serviço. 

A mudança mais substancial ocorreu a partir da década de 1950 a partir do cinema. Estrelas de Hollywood como James Dean (1931-1955), o qual teve uma carreira meteórica, pois morreu jovem e famoso, costumava usar jeans azul, camisa branca e uma jaqueta vermelha ou preta, fosse em alguns filmes ou no cotidiano. O visual de jovem rebelde foi se destacando na sociedade pós-guerra, ao mesmo tempo que o movimento estudantil e culturas juvenis começavam a despontar. 

Cartaz do filme Rebel Without a Cause (Juventude Transviada), 1955. 

Nesse período, outro galã de Hollywood que também se destacava usando jeans foi Marlon Brando (1924-2004). Antes de ficar popular em filmes dramáticos e de máfia, Brando atuou em várias produções e quando começou a ganhar fama na década de 1950, começou a participar de campanhas de publicidade e ensaios fotográficos. Brando apesar de não seguir um estilo "badboy" de James Dean, ainda assim, destacava-se por ser o jovem americano de trinta anos que usava camisa branca, calça jeans e sapatos. 

Marlon Brando num ensaio fotográfico nos anos 1950. 

Na década de 1960 o jeans havia se tornado nos Estados Unidos e parte da Europa, roupa comum do dia a dia. Já não era mais vinculado a determinadas profissões e a vida rural. As pessoas iam para a escola, trabalho, passear, visitar amigos ou familiares, usando calças jeans, macacões e jaquetas. Por essa época também surgiram a saia e a bermuda jeans. Os anos 1960 com o movimento Hippie e Hipster, o desenvolvimento as culturas juvenis impulsionou a juventude entre 15 e 30 anos a passarem usar o jeans, roupa que se tornou símbolo da época.

Fato esse que que a Levi's e várias outras empresas começaram a investir em estilos diferentes de calças jeans (a principal peça vendida, ainda hoje), além de aplicar também o zíper, que antes não era comum. Assim, surgiram calças de cintura baixa ou alta, mais folgadas ou apertadas. Além de jeans baratos e outros mais caros, influenciados por estilistas famosos. 

Inclusive a partir dos anos 1970 os jeans sensuais para mulheres começaram a serem desenvolvidos, os quais realçavam a bunda e as coxas. Jeans de coloração num azul mais escuro, passando para o preto e o branco também começaram a serem produzidos. 

Propaganda de jeans feminina da década de 1970. 

Ainda nos anos 1970 muitos países desconheciam o jeans, sendo considerado uma moda praticamente exclusiva dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Embora tal tecido começou a ganhar mercados na América Latina e parte da Ásia, apesar de haver certas reações contrárias a isso. Em alguns lugares o jeans era visto como roupa apenas para jovens. Pessoas acima dos 40 anos que usassem jeans eram consideradas antiquadas, metidas a rebeldes. Somente na década de 1990 isso se normalizou de vez. Desde então a calça jeans se tornou um ícone da moda sendo vendido em quase todos os países. 

NOTA: Existem roupas de jeans de várias outras cores como verde, vermelho, marrom, bege, cinza, amarelo etc. Apesar que o azul, o preto e o branco sejam as cores mais tradicionais. 

NOTA 2: Ainda hoje os jeans Levi's são considerados os originais. A empresa utiliza tal aspecto por ter patenteado a primeira calça jeans com rebites lá em 1873. 

Referências

SULLIVAN, James. Jeans: A cultural history of an American icon. London: Gotham Books, 2006. 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

O subgênero punk na cultura pop

O termo punk é usado em vários contextos hoje em dia, incluindo como forma de insulto e depreciação de algo. Na cultura pop que engloba livros, filmes, desenhos, seriados, histórias em quadrinhos e jogos de videogame, punk é usado para designar um conjunto de subgêneros da ficção científica que apresentam passados, presentes e futuros distópicos, envolvendo a presença de tecnologia surreal para o período e suas consequências, geralmente negativas. Assim, o presente texto apresenta esses subgêneros e suas características. 

Obs: No caso, não considerei o punk como gênero musical, pois esse possui outras características que são distintas das outras mídias citadas aqui. 

A origem do punk

O punk consiste numa contracultura ou subcultura surgida na Inglaterra de meados da década de 1970, influenciado por aspectos culturais dos Estados Unidos, especialmente advindos do punk rock dos anos 1960, como parte de vários movimentos de culturas juvenis, oriundos após a Segunda Guerra (1939-1945), num período marcado pelo retorno da prosperidade dos Estados Unidos e o crescimento econômico de alguns países como Japão e Austrália, por outro lado, a economia europeia ainda demorou algum tempo para se recuperar, atingindo isso na década de 1960. Porém, as crises dos anos 70, especialmente as chamadas crises do petróleo de 1973 e 1979, além do acirramento do contexto da Guerra Fria (1945-1991), levaram a um desencantamento pela presente, algo explorado por alguns filósofos como Michel Foucault, Jean-Paul Sartre, Jean-François Lyotard, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, entre outros, que observaram a "queda da ideia" de modernidade e passaram a considerar ser tempo da pós-modernidade. (COGAN, 2008). 

Em meio a esse desencanto pelo presente surgiram movimentos culturais como os Hippies, os Hipsters, os Roqueiros, os Skatistas, os Surfistas, o próprio movimento religioso da Nova Era (New Age), entre outros. Cada um desses movimentos foram caracterizados por adotarem estilos de se vestir próprios, os quais identificavam seus membros; tais pessoas passaram a serem contrários ao conservadorismo, defendendo mais o liberalismo, ou o socialismo, ou o comunismo ou a anarquia. Alguns eram até indiferentes a política. Esses movimentos também protestavam contra o autoritarismo, a censura e o falso moralismo, inclusive eram até contrários as guerras no período (embora houvessem grupos que promovessem o radicalismo, realizando brigas de rua, vandalismo e pichação). Tais movimentos também apoiaram a terceira onda do Feminismo, outros defendiam a legalização das drogas e a liberdade de orientação sexual(COGAN, 2008). 

A música foi uma forte forma de manifestação cultural para esses grupos de contracultura, especialmente o rock n' roll, o jazz, o blues, o rap, o reggae, a bossa nova etc. No caso dos punks, o rock foi o mais influente, inclusive existe o estilo punk rock, o qual originou o termo punk adotado por essa contracultura. A palavra punk (identificava algo "rebelde") era usada para designar um estilo de rock alternativo, marcado por uma batida bastante metálica e pesada, letras de protesto, abordando temas radicais, críticas ao governo, aos costumes, a religião, defesa da liberdade de expressão etc. Grupos como The Standells, The Sonics, The Seeds e Sex Pistols são exemplos de bandas de punk rock oriundas nos anos 1960 e 1970. (COGAN, 2008). 

Devido a essa agressividade musical, os punks começaram a se vestir de preto, usarem casacos, luvas e pulseiras com espinhos; trajarem calças jeans e botas. Posteriormente adotaram brincos, pierciengs, tatuagens e os cabelos coloridos e espetados. A aparência dos punks era uma forma de protesto as regras morais de vestuário na época. No caso, uma das características das contraculturas do século XX era se vestir diferente do que era "taxado como normal", como forma de promover sua desobediência a essa "ordem civil", ao mesmo tempo que tal ato expressava a liberdade de expressão dessas pessoas. 

Visual típico de punks dos anos 80 e 90. 

Assim, essa estética dos punks acabou influenciando as produções culturais, pois os "mundos punks" costumam explorar algo subversivo, sombrio, bruto, sujo, perigoso, decadente. Inclusive a ideia de decadência, marcante em algumas produções punks é reflexo do pessimismo dessas gerações de entre 1970 a 1990, que tinham uma visão pessimista sobre o mundo marcado pelo contexto da Guerra Fria. 

Com a popularização do punk rock no Ocidente e o crescimento de grupos punks na Inglaterra, Estados Unidos, depois Austrália e até outros países europeus como Alemanha, França, Espanha e Iugoslávia, surgiram revistas dedicadas a esse movimento cultural, as quais apresentavam ilustrações caóticas, que misturavam estilos contemporâneos, exploravam temas subversivos e polêmicos, enfatizavam o grafite e a arte de rua, quebrando com os padrões da chamada "arte erudita" e arte clássica. 

Todas essas características mencionadas influenciaram artistas, fossem ilustradores, desenhistas, pintores, fotógrafos, músicos, escritores, cinegrafistas etc., a incorporarem o punk como um subgênero da cultura pop, mesclando-o principalmente com a ficção científica, especialmente a influenciada pelo subgênero do retrofuturismo. 

A estética do retrofuturismo

O retrofuturismo ou futuro retrô é uma estética surgida nas ilustrações do final do século XIX, mostrando uma tecnologia mais avançada do que havia no período. Esse tipo de ilustração foi comum nos Estados Unidos e parte da Europa, em revistas, jornais, livros de ficção científica, os quais imaginavam o progresso tecnológico. Assim é possível encontrar ideias de navios voadores, trens cruzando o mar, carros voadores, robôs, espaçonaves, prédios gigantes, dirigíveis, aviões etc. Algumas obras de Júlio Verne e H. G. Wells influenciaram esse estilo artístico por conta da presença de tecnologia sofisticada, fosse o submarino Nautilus em Vinte mil léguas submarinas (1869); ou a máquina do Viajante do Tempo em A Máquina do Tempo (1895), ou a presença dos Tripods marcianos na Terra em a Guerra dos Mundos (1898). Essa estética foi se desenvolvendo ao longo do século XX, se popularizando nas histórias em quadrinhos e em alguns filmes e séries de ficção científica

Ilustração no estilo retrofuturismo. 

Entretanto, o conceito de retrofuturismo somente surgiu na década de 1980 para designar esse estilo artístico de se representar tecnologia avançada ou não, segundo o designer retrô, ou seja, mostrar aviões, trens, submarinos, veículos de guerra, espaçonaves, robôs etc., conforme a estética geralmente entre os anos 1920 e 1970. Isso acabou originado alguns subgêneros que foram influenciados pelo punk.

Cyberpunk

O subgênero do cyberpunk surgiu durante os anos 1980 fortemente influenciado pela cultura punk em seu auge, por isso vários elementos dessa contracultura foram assimilados a esse subgênero como a rebeldia de seus personagens, a marginalização, um pessimismo de vida, a desigualdade social, a frustração com o trabalho e a realidade, a solidão, a ânsia de buscar um local de pertencimento, o gosto pelo rock, a presença de drogas lícitas ou ilícitas, ambientes urbanos das grandes cidades com sua violência, lixo, poluição e neon, e o encanto com a crescente tecnologia digital. (FRELIK, 2018).

Quando o cyberpunk surgiu, computadores e videogames já existiam, a internet ainda era algo restrito, mas nessas obras ela já era mundialmente difundida como é hoje em dia. Aqui entra uma característica do retrofuturismo: livros, filmes, desenhos, hqs e jogos cyberpunk imaginavam para os anos 1980 uma tecnologia digital inexistente como robôs, computadores portáteis, realidade virtual, espaçonaves, carros voadores, internet etc. 

Night City no jogo Cyberpunk 2077. 

O conceito cyberpunk adveio do conto Cyberpunk (1983) do escritor Bruce Bethke, publicado na revista Amazing Science Fiction Stories, v. 57, n. 4. Porém, a popularização da ideia veio com o livro Neuromancer (1984) de William Gibson, que conta a história de um ex-hacker que foi envenenado e procura uma forma de evitar sua morte. Em sua busca por uma cura ele conhece várias pessoas em Chiba City, uma cidade tecnologicamente avançada, mas moralmente decadente (por conta disso tais produções costumam passar num futuro distópico). Em Neuromancer somos apresentados a um cyberespaço parecido com a Matrix que surgiria no filme Matrix (1998). (WOLFE, 2003). 

Capa da edição original

Com o sucesso de Neuromancer, Gibson decidiu escrever uma trilogia para explorar mais desse mundo cyberpunk, marcado por guerras de megacorporações, hackers, IA avançada, espionagem, realidade virtual, violência, tráfico, corrupção, miséria, forte desigualdade social, complôs e traições, isso originou os livros Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988). Mais tarde os três livros foram chamados de Trilogia Sprawl(FRELIK, 2018). Vários aspectos dos livros de Gibson se tornaram modelos para as produções de cyberpunk ainda hoje, como o caso do jogo Cyberpunk 2077 (2020). 

Com a popularização do cyberpunk na literatura, esse subgênero também foi explorado em outras mídias como as produções audiovisuais, destacando-se filmes como Fuga de Nova York (1981), Blade Runner (1982), Tron (1982), Videodrome (1983), Exterminador do Futuro (1984), Brazil (1985), Robocop (1987), o Vingador do Futuro (1990). O Japão se interessou bastante pelo subgênero cyberpunk ainda nos anos 80, explorando-o em seus mangás e animes, destacando-se produções como Bubblegum Crisis (1987), Neo Tokyo (1987), Akira (1988) e Ghost in the Shell (1989-1997). 

Capa do mangá Ghost in the Shell.

Outras produções cyberpunk são os filmes Hardware: O Destruidor do Futuro (1990), O Passageiro do Futuro (1992), Cyberjack: Caçada ao vírus letal (1995), Assassino Virtual (1995), O Quinto Elemento (1997), a franquia Matrix (1998-2021), Pi (1998), Minority Report: A Nova Lei (2002), Tron: O Legado (2010), Blade Runner 2049 (2019). Entre alguns desenhos temos Ghost in the Shell (1995), Batman do Futuro (1999-2001), Metrópoles (2001), Cyberpunk: Mercenários (2022). Nos videogames cito a franquia Deus Ex (2000-2016), Ghostrunner 1 e 2 (2020-2023), Stray (2022). Destaca-se também o rpg de mesa Ex Machina (2004), influente na difusão desse subgênero. 

Com a popularização do cyberpunk nos anos 1980, esse continuou a crescer nas décadas seguintes, expandindo-se para os videogames, mas também originando subgêneros que passaram a investir em características mais específicas ou explorar o retrofuturismo. 

Steampunk

O chamado steampunk é um subgênero do retrofuturismo que troca a tecnologia virtual do cyberpunk, pela tecnologia a vapor e analógica. As tramas costumam ocorrer geralmente no século XIX, as vezes no começo do XX, ou em mundos ficíticios sem uma época definida, tendo como referência o período da Era Vitoriana (1837-1901), absorvendo muito do contexto, arquitetura e costumes dessa época. Dessa forma, o steampunk aproveita-se de alguns acontecimentos históricos como a Segunda Revolução Industrial, o Imperialismo Britânico, o Neocolonialismo, o otimismo pelo desenvolvimento da tecnologia da chamada "Era do Progresso", a filosofia do Positivismo, a Teosofia, o Velho Oeste etc. (NEVINS, 2020). 

A tecnologia do steampunk era marcada pelo uso das máquinas a vapor, energia elétrica, engrenagens, hidráulica, os quais se uniam para criar locomotivas, navios, veículos terrestres, aeronaves, dirigíveis etc. Inclusive em algumas obras de steampunk até mesmo existem máquinas elétricas inspiradas nos projetos de Nikola Tesla, robôs, computadores primitivos (mais voltados para se fazer cálculos), radares, sonares etc. Essa tecnologia avançada é vista nessas produções num misto de curiosidade, assombro e receio, pois embora elas tragam melhorias para a sociedade, especialmente ao tocante a indústria e o transporte, essa tecnologia também é usada para se fomentar a opressão, a censura e guerras. Assim, o steampunk é um subgênero que transita entre produções distópicas, mas também utópicas, diferente do cyberpunk, em que normalmente a tecnologia é vista com pessimismo. As produções steampunk também utilizam o vestuário do final do XIX e começo do XX, que incluem vestidos longos, terno, casaca, cartola, bengalas, chapéus, sombrinhas, botas. Normalmente os trajes são inspirados na moda inglesa e francesa do período. (NEVINS, 2020). 

Uma ilustração no estilo steampunk. 

A ideia do steampunk remonta ainda o século XIX, com livros, contos e ilustrações de ficção científica ou aventura, mostrando máquinas avançadas para aquele tempo, especialmente máquinas voadoras, bastante populares. O livro Vinte mil léguas submarinas (1869) de Júlio Verne é considerado hoje como uma referência ao steampunk produzido naquele período. O conto The Steam Man of Prairies (1868) de Edward S. Elliot, mostra um autômato movido a um motor a vapor. Já o romance A Eva Futura (1886) de Auguste Villiers de L'Isle-Adam, mostra uma androide criada por Thomas Edison no final do século XIX. 

Todavia, o conceito steampunk surgiu em 1987 com o escritor K. W. Jeter autor de livros como Morlock Night (1979) e Infernal Devices (1987), obras as quais ele as classificou como sendo steampunk. O conceito surgiu seguindo a onda de popularização do cyberpunk. O termo se popularizou na década seguinte para se referir a esses escritores do XIX, a ilustrações daquele período, mas a algumas hqs e contos publicados em revistas de ficção científica ou fantasia no século XX.(NEVINS, 2020). 

No cinema alguns filmes steampunk são: As Loucas Aventuras de James West (1999), A Liga Extraordinária (2003), Van Helsing (2004), A Bússola de Ouro (2005), A invenção de Hugo Cabret (2011), Máquinas Mortais (2018), Pobres Criaturas (2023). Os japoneses também se interessaram pelo assunto, havendo alguns animes como Castelo do Céu (1986), Nadia: The Secret of Blue Water (1990-1991), Castelo Animado (2004) e Steamboy (2004). Já nos videogames temos Bioshock Infinite (2013). 

Arte conceitual de Steamboy. 

Dieselpunk

O chamado dieselpunk é outro subgênero do retrofuturismo influenciado pela cultura punk. No caso, ao invés do foco remontar o século XIX com a revolução industrial da época, a arquitetura vitoriana e as máquinas a vapor, as produções dieselpunk já se estabeleceram num período de tempo entre 1930 e 1940, marcado pelo uso de veículos a combustão ou energia elétrica, inexistentes para o período, e até mesmo acrescentando-se outras tecnologias como espaçonaves, satélites, computadores e robôs. (PIECRAFT; OTTENS, 2008). 

O conceito dieselpunk surgiu com o jogo de rpg de mesa Children of Sun (2001), desenvolvido por Dan Ross, Joe Carl e Lewis Pollak, e lançado pela Misguided Games. Em que a trama se passa num mundo inspirado na primeira metade do século XX, mas onde a tecnologia da época era mais avançada. O termo foi concebido pelos autores para se referir ao estilo do jogo, que acabou originando todo um novo subgênero, embora que produções dieselpunk já existissem anteriormente, algo especialmente visto em hqs e alguns livros como O homem do Castelo Alto (1962). (PIECRAFT; OTTENS, 2008). 

Robôs gigantes em Capitão Sky e o mundo de amanhã (2004). O filme ocorre numa realidade alternativa da década de 1930. 

Incialmente o dieselpunk consistia em narrativas ocorridas na primeira metade do século XX, englobando o contexto das duas guerras mundiais e suas consequências. Por conta disso, algumas dessas produções fazem referência a tais guerras. Por outro lado, esse estilo também foi influenciado pelo estilo de vida americano e da Europa ocidental daquela época, a cultura do jazz e do blues, os movimentos artísticos do modernismo, do futurismo, do dadaísmo, do cubismo etc. A arquitetura ia da art décor passando pelo Bahaus, chegando aos estilos dos anos 50. (PIECRAFT; OTTENS, 2008). 

As produções dieselpunk viam o uso da tecnologia geralmente como algo positivo, não necessariamente retratando o futuro de forma pessimista ou sombrio, embora problemas existissem, especialmente o uso indevido dela por ditadores, tiranos, cientistas loucos, militares, governos corruptos etc. Por outro lado, algumas variações do dieselpunk surgiram, mostrando cenários mais degradantes e até distópicos como o caso da franquia Mad Max (1979-2024), a qual se passa numa Austrália do século XXI desolada e caótica, em que impera a lei do mais forte e as pessoas fazem uso de veículos antigos, mas modificados para o combate. 

Cena de Mad Max: Estrada da Fúria (2014), um dieselpunk distópico e pós-apocalíptico. 

Além da franquia Mad Max que já puxa mais para o lado do dieselpunk futurista e distópico, outras produções dieselpunk mais retrofuturismo são: a franquia de jogos Wolfenstein (1981-2019), a hq The Rocketeer (1982), o anime Nausicaa: O Vale do Vento (1984), o anime Porco Rosso (1992), a franquia de jogos Metal Slug (1996-2023), o filme Waterworld (1995), o filme animado O Gigante de Ferro (1999), o filme Capitão Sky e o mundo do amanhã (2004), os jogos Bioshock 1 e 2 (2007-2010), o filme Iron Sky (2012), os jogos Gravity Rush 1 e 2 (2012-2017).

Excetuando-se Nausicaa que se passa num mundo fantástico, as demais produções ocorrem em versões alternativas da Terra. Por exemplo, Wolfenstein mostra uma realidade em que os nazistas venceram a Segunda Guerra e se tornaram uma potência militar e tecnológica avançada, criando armas inexistentes para o período como robôs, grandes veículos de guerra, estações voadoras etc. Essa ideia é vista também em Iron Sky. Já os jogos Bioshock 1 e 2 mostram uma cidade utópica chamada Rapture, construída no fundo do mar na costa leste dos Estados Unidos. Ali existe uma tecnologia avançada que concede poderes para quem usa um soro inovador. Nos jogos de Gravity Rush, as pessoas vivem em cidades aéreas. 

Um capa de 1985.

Piecraft e Ottens (2008) separam as produções dieselpunk em quatro subcategorias propostas por eles. No caso, Piecraft assinala as produções com temática dieselpunk voltada para ambientações distópicas como Fahrenheit 451 (1966), 1984 (1984) e Brazil (1985), nesses livros somos apresentados a Estados autoritários que usam a tecnologia de vigilância para monitorar e controlar a humanidade. No caso de Fahrenheit 451 existem televisores mais sofisticados e até um cão-robô. A segunda categoria proposta por Piecraft são os dieselpunk pós-apocalípticos como Mad Max (1979), Diesel (1985) e Radioative Dreams (1985).

Já Ottens é mais favorável a dieselpunks baseados no contexto dos anos 1930 a 1950, tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. Sobre isso, ele concebe duas categorias: as produções esperançosas como The Rocketeer (1991), O Gigante de Ferro (1999) e Capitão Sky e o mundo do amanhã (2004). A segunda categoria refere-se a produções sombrias como Eraserhead (1977), Wolfenstein (1981), Delicatessen (1991) e The Shadow (1994). 

Atompunk

O subgênero do atompunk as vezes é confundido com o dieselpunk por conta de ambos ocorrerem em épocas coincidentes. No caso, as tramas de atompunk geralmente abarcam um período que vai de 1940 a 1970, além de se remeter a características similares como o uso da tecnologia para o progresso da humanidade, porém, a mesma também é explorada por ditadores, tiranos, governos corruptos, cientistas loucos, organizações criminosas etc., fazendo uso indevido dessa tecnologia para cometer crimes diversos. Mas enquanto as produções dieselpunk enfocam em máquinas movidas a combustíveis fósseis ou energia elétrica, o atompunk opta em enfatizar o uso da energia nuclear (ou atômica), por isso o termo atompunk (atômico + punk). 

As produções atompunk são marcadas por algumas características básicas: tecnologia nuclear, contexto da Guerra Fria, propaganda anticomunismoespionagem, medo de uma guerra nuclear, desenvolvimento de tecnologia espacial, arquitetura googie e raygun gothic, além do designer populuxe. O que mostra edificações com aspecto "futurista", além de veículos grandes com traços dos anos 1950 e 1960. A decoração também é baseada nessa época. 

Os Jetsons (1962) apesar de não abordarem a temática da Guerra Fria, possuíam um visual atompunk inspirado na arquitetura raygun gothic e no designer populuxe. 

O conceito de atompunk surgiu em 2008 a partir de um fórum de debates envolvendo escritores e fãs de ficção científica. No caso, os autores Bruce Sterling e Cory Doctorow escolheram tal termo para designar um novo subgênero punk, o qual já vinha sendo desenvolvido desde a década de 1960, principalmente influenciado pelas histórias em quadrinhos de super-heróis. Assim, o atompunk passava a designar o que Doctorow chamou de "fetichismo da era atômica", uma referência a criação de um retrofuturismo nas décadas de 1960 e 1970. 

Sobre isso, menciono algumas hqs que apresentavam características associadas ao atompunk como O Quarteto Fantástico (1961), Hulk (1962) e Homem de Ferro (1963), X-Men (1963). No caso do quarteto eles ganharam seus poderes a partir da exposição à radiação solar enquanto estavam numa estação espacial, o uso de tecnologia espacial remonta diretamente o contexto da época, já que dois anos antes Yuri Gagarin havia se tornado o primeiro humano ir ao espaço. Já em Hulk temos o físico nuclear Dr. Bruce Banner fazendo experimentos com os raios gama, mas isso acaba dando errado e ele sofre uma mutação, tornando-se um gigante verde com superforça e resistência. Em Homem de Ferro temos o herói em algumas missões atuando na Guerra do Vietnã, combatendo um grupo terrorista chamado I.M.A (inspirado na URSS). Por sua vez, nas narrativas dos X-Men temos mutantes de diferentes nacionalidades, incluindo mutantes russos, os quais estão infiltrados nos EUA por conta de espionagem. Além disso, as hqs do grupo apresenta tecnologia avançada para a época, algo visto principalmente com os Sentinelas. 

Um exemplo de atompunk é a franquia de jogos Fallout (1997-2018), a qual mostra que os Estados Unidos na década de 1950 se tornou uma potência mundial no uso da energia nuclear, que permitiu criar robôs, computadores, novos tipos de veículos e outras tecnologias como clonagem, criogenia etc. Ao mesmo tempo que essas maravilhas eram desenvolvidas, a Vaultec começou a construir uma série de bunkers pelo país temendo um ataque nuclear, que realmente ocorreu, arruinando o país. Assim, a trama dos jogos pula para décadas no futuro, mostrando um EUA distópico, arrasado pelo ataque nuclear, mas ainda possuindo tecnologia avançada, apesar que seu visual seja retrô. 

Wallpaper de Fallout 4 (2016). No caso, temos ume exemplo de atompunk pós-apocalipse nuclear. 

Já o jogo Atomic Heart (2023) mostra uma URSS avançada tecnologicamente, a qual venceu a Segunda Guerra, subjugando os nazistas e as forças aliadas. Assim, ainda na década de 1940 graças a descoberta de uma substância chamada de polímero, essa permitiu criar-se robôs, cidades aladas, computadores, máquinas de exploração e guerra, televisores melhorados etc. No jogo, a Rússia dos anos 50 vive a expectativa do anúncio de um grande projeto do governo envolvendo as máquinas, mas algo dá errado e os robôs passam atacar os humanos. 

Tela do jogo Atomic Heart (2023) mostrando uma colônia aérea em uma URSS atompunk nos anos 50. 

Alguns dos filmes do espião James Bond como 007 contra o satânico Dr. No (1962), 007 contra Chantagem Atômica (1965), 007 Só se Vive Duas Vezes (1967), 007 - O espião que me amava (1977) e 007 contra o foguete da morte (1979), neles não temos um visual estereotipado como visto nos videogames, porém, a presença da ameaça nuclear, a espionagem, a Guerra Fria e o uso de tecnologia surreal para o período são encontrados. 

Outros exemplos de produções atompunk são as séries The Twilight Zone (1959-1964), alguns episódios das primeiras temporadas de Dr. Who (1963), O Agente da UNCLE (1964-1968), Thunderbirds (1965-1966), a série animada Jonny Quest (1966-1967). O mangá Astroboy (1952), o desenho animado de Os Jetsons (1962), a franquia de jogos Destroy All Humans! (2005), a trilogia de livros e jogos Metro 2033 (2005-2015). 

Assim, o atompunk pode englobar desde produções que se passam entre as décadas de 1950 e 1970, ou que possuam referência visual a esse período, mas podendo ocorrer num futuro distante como no caso da franquia Fallout, em que alguns jogos chegam a acontecer depois de 2200. Tais produções podem mostrar um tom mais leve e cômico como os Jetsons, enfatizar a espionagem como nos filmes do 007, as séries do Agente da UNCLE, Thunderbirds e Jonny Quest. Algumas produções também podem destacar a questão do mistério, da alta ficção científica, do estranho, algo visto em The Twilight Zone e Dr. Who

Raypunk

O subgênero do raypunk é retrofuturista e combina aspectos da estética do decopunk e do atompunk, por ser inspirado em produções feitas entre 1930 e 1970, marcadas pela influência da tecnologia nuclear e da corrida espacial, além da popularização de narrativas de temática espacial como as histórias em quadrinhos do Buck Rogers (1928) e do Flash Gordon (1934), além dos livros de ficção científica de Arthur Clarke, Isaac Asimov Frank Herbert, os quais algumas dessas obras como Fundação (1951) e Duna (1965) originaram o subgênero space opera

Por fim, o raypunk também aproveitou-se do sucesso de produções audiovisuais como filmes trashs espaciais ou de terro espacial dos anos 1950 e 1960, além da série Star Trek (1966-1969) e os filmes da trilogia original de Star Wars (1977-1983). Inclusive a franquia Star Wars conserva elementos do raypunk por conta da estética retrô vista nas naves, trajes, robôs, armas, veículos e construções, apesar que isso tenha diminuído nas produções do século XXI. 

O termo raypunk foi proposto pelo escritor e editor de revistas de ficção científica Paul Di Filippo, nos anos 90, combinando a ideia de armas a laser (rayguns) com a arquitetura do raygun gothic de caráter retrofuturista, surgida na década de 1950 com a popularização da temática espacial. Logo, temos edificações, objetos, móveis e decorações que emulavam espaçonaves, foguetes, disco-voadores, trajes de astronautas etc. 

As narrativas raypunk abarcam temas geralmente associados com a aventura e a ação, mas podendo conter elementos de suspense, drama e mistério, as vezes de terror e sobrenatural. Mais tarde narrativas com críticas sociais, uma pegada mais sombria, suja, violenta, decadente e até psicodélica, sendo isso mais influenciado pelo cyberpunk, começou a surgir. 

Entre as produções raypunk temos as hqs da Barbarella (1964-1982), cuja protagonista é uma bela e sensual mulher loura, que atua como agente especial, viajando por diferentes planetas, numa ambientação retrofuturista. Além da temática de aventura e ação, Barbarella também foi influenciada pelo feminismo, o movimento hippie e a psicodelia dos anos 70, abordando temas como erotismo, liberdade sexual, consumo de drogas, opressão, revoltas etc. 

Arte promocional do filme Barbarella (1968). 

Outra produção é o filme animado Le Planet Sauvage (1973), um desenho voltado para adultos, com seu visual bizarro, inspirado no Surrealismo, que mostra um mundo estranho habitado por alienígenas azuis e animais monstruosos. Le Planet Sauvage inclui-se no raypunk por ser uma produção subversiva, voltada para causar impacto.

Cena de Le Planet Sauvage. 

Outras produções raypunk são alguns filmes como O Marechal do Universo (1952), Fantasma do Espaço (1953), Planeta Proibido (1956), Rainha do Espaço Sideral (1958), O Lodo Verde (1968), Marte Ataca! (1996). No caso dos videogames temos a franquia Borderlands (2009-presente) com seu universo violento, sujo, decadente, corrupto, zoado e louco, e o jogo The Outer Worlds (2019), inspirado na estética do raypunk dos anos 1960. 

Os jogos da franquia Borderlands combinam a estética do dieselpunk e do raypunk. 
Biopunk

O subgênero do biopunk é uma variação do cyberpunk, valendo-se da tecnologia virtual e digital, mas com a diferença de que se dar maior ênfase a questões envolvendo intervenções biológicas. Ou seja, os personagens podem ser ciborgues, possuírem implantes eletrônicos. Tais produções também podem incluir clonagem, mutações e a criação de monstros. A ideia para o biopunk surgiu inicialmente no XIX, embora não tenha ganho destaque no período. Lars Schmeink (2020) comenta que livros como Frankenstein (1818) e A ilha do Dr. Moreau (1896) podem ser considerados obras de biopunk. 

Em Frankenstein temos o médico Victor Frankenstein criando uma espécie de homúnculo feito a partir da união de partes de cadáveres, lhe dando a vida através da energia gerada por raios. Em A ilha do Dr. Moreau, o protagonista realiza experimentos numa ilha secreta, na qual ele cria quimeras, sendo um misto de humanos e animais. Ambos os livros embora tendam para o lado do terror, ainda assim, possuem elementos de ficção científica. 

Dessa forma, o biopunk inclui produções que podem se passar entre os séculos XIX e XXI, ou até além disso, mostrando o uso de algum tipo de tecnologia médica ou biotecnologia para se criar ciborgues, mutantes, clones ou monstros. Em geral as produções biopunk tendem a adotar alguns aspectos do cyberpunk como a violência, o sombrio, o sujo, o imoral, a desigualdade social, a tecnologia usada de forma irresponsável etc. 

Cartaz francês da série. 

O conceito de biopunk se desenvolveu a partir do trabalho do escritor Bruce Sterling que publicou o conto Our Neural Chernobyl (1988), inspirado no Desastre de Chernobyl (1986) e no cyberpunk, criou uma narrativa envolvendo biotecnologia e mutação. 

"No cenário futuro de Sterling, os biohackers se baseiam no sucesso revolucionário de usar uma sequência de RNA viral para inserir e cortar DNA à vontade e com facilidade lúdica, estimulando experimentos genéticos que atendem não apenas a pacientes com doenças crônicas, mas também a usos ilegais, como usuários de drogas desejando uma alta permanente. Um desses experimentos causa o ‘Chernobyl neural’, desencadeando uma explosão de crescimento em células cerebrais, o que deixa os humanos em uma alta cognitiva de “gênio excêntrico” antes de sofrer de “colapso dendrítico” e mergulhá-los em “insanidade poética e repleta de visão”. Mas mais do que apenas impactar usuários de drogas, o vírus tem um efeito colateral não intencional, pois ele salta a barreira das espécies e infecta a vida animal, essencialmente aumentando as habilidades cognitivas de animais não humanos. A história termina com uma visão de um mundo pós-humano alterado por melhorias genéticas tanto dos animais humanos quanto dos não humanos, um mundo possível onde nós “compartilhamos o planeta com uma espécie civilizada” e “uma fração da população alcançou a imortalidade física” por mutação genética". (SCHMEINK, 2020, p. 73, tradução minha). 

A partir dessa obra o escritor Lewis Shiner criou o termo "sci-fiberpunk", mas esse acabou não "pegando", então ele foi reformulado por outros autores, passando a ser conhecido como biopunk. Atualmente a temática do biopunk inclusive encontra paralelo com entusiastas do movimento do transumanismo, que defendem que o próximo passo da "evolução humana" é nos tornarmos ciborgues.  

Algumas produções biopunks incluem o filme animado Akira (1988), onde crianças passam por experimentos para desenvolverem poderes e um dos jovens se descontrola; a franquia de jogos Resident Evil (1996-presente), a qual apresenta armas biológicas como o T-Vírus, o G-Vírus, outros tipos de vírus, além de mutantes; os jogos Deus Ex: Human Revolution (2011) e Deus Ex: Mankind Divided (2016), os quais fazem uso de implantes; a série Carbono Alterado (2018-2020), baseada nos livros de Richard K. Morgan, se passando num futuro distante, no qual as pessoas com dinheiro conseguem gravar suas memórias e consciência em chips, e assim trocam de corpos, ou se clonam, viram ciborgues ou robôs. O filme Crimes do Futuro (2022) onde as pessoas passam a usar biotecnologia para alterar seus organismos e metabolismos, se tornando mais resistentes a doenças e até nem mais sentirem dor; e Pobres Criaturas (2023), baseado no livro homônimo, em que um médico e cientista transplanta cérebros de meninas para o corpo de mulheres mortas, reanimando-as, e passando-as a educá-las, enquanto elas aprendem sobre o mundo. 

O personagem Adam Jensen se torna um ciborgue. 

Nanopunk

O subgênero nanopunk surgiu como uma variação do biopunk, por conta disso, ele possui características bem parecidas com esse e o cyberpunk. No caso, o nanopunk tem esse nome por se referir a nanotecnologia, a qual passa a ser o foco dessas produções, substituindo a tecnologia digital do cyberpunk e a biotecnologia do biopunk. Assim, através de diferentes usos dados a nanotecnologia pode-se criar máquinas, robôs, veículos, trajes, implantes, doenças, tratamentos, medicamentos etc., os quais são utilizados positivamente ou negativamente na sociedade. Tais tramas podem se passar no presente ou no futuro, em épocas comuns ou distópicas. (AHKTER, 2024). 

O termo nanopunk surgiu com o escritor Nathan McGrath e seu livro Nanopunk (2013) o qual aborda um mundo num futuro apocalpítico, em que a Terra está congelada e um vírus criado em laboratório dizimou grande parte da humanidade. No caso, a criação de vírus e outras doenças é considerada nanotecnologia nesse contexto. Mas embora o termo nanopunk tenha surgido em 2013, anteriormente tivemos alguns livros que já abordavam a temática como The Invecible (1964) e Peache of Earth (1985), ambos dos escritor polonês Stanislaw Lem, cujas obras abordam nanorobôs, "poeira inteligente", inteligência artificial avançada etc. Outros livros são The Diamond Age (1995) de Neal Stephenson, Queen City Jazz (1997) de Kathleen Ann Goonan e Prey (2002) de Michael Critchton. Em todas essas obras a nanotecnologia apresenta algum uso indevido. (AHKTER, 2024). 

Capa original de The Invencible, considerado o primeiro livro sobre nanopunk. 

Algumas produções nanopunk incluem as hqs e filmes do Homem-Formiga, o qual faz uso de uma tecnologia que altera a dimensão dos corpos, fazendo ele, objetos e outras coisas crescerem ou diminuírem; a minissérie Homem de Ferro: Extremis (2005-2006), em que Tony Stark desenvolve uma nanotecnologia para seus trajes, mas que acaba se tornando uma ameaça; alguns jogos da franquia Deus Ex (2001-2016) citam nanotecnologia, já nos jogos Crisis (2007-2013), o protagonista utiliza um traje de nanotecnologia que lhe concede mais resistência, força, velocidade, camuflagem etc. 

O traje de nanotecnologia da franquia Crysis. 

Decopunk

A escritora Sara M. Harvey definiu em 2010 o decopunk como um estilo punk de futuro retrô que se passa entre o steampunk e o dieselpunk, sendo influenciado pela estética da arte déco, a qual surgiu na Europa na década de 1910 e vigorou até 1939, influenciando as artes, o designer, o desenho industrial, as decorações e a arquitetura. Na época de sua origem, a arte déco era pretendida ser um estilo de arte moderno para representar o século XX e seu progresso tecnológico e a ideia de futurismo, fato esse, que se combinou várias ideias para isso. Inclusive os ricos gostaram bastante desse estilo, construindo mansões, prédios e hotéis luxuosos, pois a arte déco se encaixa bem nesse quesito de uma decoração imponente, ostentosa e as vezes até excessiva. (MCCANNA-PORTER, 2024).

Nos Estados Unidos a arquitetura e designer da arte déco se espalhou por grandes metrópoles como Nova York, Chicago, Boston e Detroit. Fato esse que o icônico Empire State Building é nesse estilo. Assim, as produções decopunk costumam serem ambientadas entre as décadas de 1920 e 1940, geralmente em cidades americanas, como as citadas anteriormente, ou inspiradas nas mesmas. Tais produções apresentam a estética do déco mesclada como uma tecnologia avançada para sua época, que pode conter carros, navios, trens-balas, dirigíveis, aviões, robôs, computadores etc., os quais não existiam naquele período. O decopunk também foi influenciado pela estética dos filmes noir, assim, no quesito do cinema, alguns filmes decopunk apresentam uma ambientação mais noturna, com cores pastéis, ritmo lento e dramático. (MCCANNA-PORTER, 2024).

A primeira produção em decopunk foi Metropolis (1927), um filme alemão dirigido e roteirizado por Fritz Lang, o qual contou com a ajuda de sua esposa Thea von Harbou. A produção ainda em preto e branco mostrava uma grande cidade no ano de 2026, com seus arranha-céus, monotrilhos e robôs. Porém, Metrópoles é uma cidade de contrastes. Os ricos vivem nos seus luxuosos arranha-céus, enquanto os pobres moram em conjuntos habitacionais pequenos e superlotados, além de parte desse grupo trabalhar no subterrâneo, operando o maquinário que faz a cidade funcionar. 

Cartazes do filme Metrópoles com seu visual de arte déco. 

Por ser uma produção dos anos 1920, Metrópoles apresenta toda a influência da arte déco em sua arquitetura e estética, transportando-a para o século XXI. Além disso, o filme também foi influenciado por problemas sociais da época, como a falta de direitos trabalhistas, uma forte exploração do trabalho e o acirramento da desigualdade social.

O decopunk não costuma ter muitos exemplos na cultura pop, sendo mais fácil encontrá-lo em ilustrações, além de ele ser confundido com produções noir. A principal diferença é que obras decopunk devem ter elementos de retrofutirismo e uma pegada mais problemática, sombria, violenta, além de enfatizar problemas envolvendo a tecnologia e desigualdades sociais. 

Entre alguns exemplos destaco os jogos Bioshock (2007) e Bioshock 2 (2010), em que a arquitetura de Rapture é déco, mas a tecnologia remonta ao dieselpunk. Os dois jogos apresentam cenários caóticos, sombrios e degradantes. Temos as hqs do Homem-Aranha Noir (2009), cuja trama acontece em Nova York da década de 1930, contendo elementos de suspense e ficção científica também. A série animada do Batman (1992-1995) é também um exemplo de decopunk, pois combina a estética do déco na arquitetura, decoração, trajes e veículos, como se a narrativa ocorre-se entre as décadas de 1930 e 1960, com o tom de filmes noir, mesclando-os com a tecnologia da década de 1990, que inclui televisores, radares, GPS, computadores, satélites, rastreadores etc. 

Gotham City no estilo decopunk. 

Mais recentemente o filme Megalopolis (2024) de Francis Ford Coppola, apresenta a cidade de Nova Roma, cuja narrativa se passa no século XXI, combinando a estética atual com o da arte déco. Na trama o arquiteto César Catilina desenvolveu um novo material de construção chamado Megalon, que ele diz ser revolucionário, e concebeu um projeto urbanístico para modernizar Nova Roma, iniciando o próximo passo para o futuro. Porém, ele acaba encontrando entraves entre as autoridades, desenvolvendo uma disputa com o prefeito Cícero, que considera Catilina um sonhador, arrogante e subversivo. 

Inclusive nessa produção a trama aborda dilemas como o conservadorismo e o progressismo, manter a cidade do jeito que ela é, o que inclui a manutenção de suas desigualdades sociais, ou abraçar o futuro, modernizando a cidade, tornando-a urbanamente melhor, embora não se saiba se o projeto de Catilina dará certo. Além desses dilemas ligados a tecnologia, outras questões morais e sociais são tratadas no filme, as quais se inserem no subgênero do decopunk.

Clockpunk

O subgênero clockpunk é também de viés retrofuturista, voltando ainda mais no passado, antecedendo o Steampunk do século XIX. O termo é uma referência aos complexos relógios surgidos na Europa entre os séculos XVI e XVIII, além da popularização do chamado "relógio suíço" com suas várias engrenagens. Neste caso, o clockpunk como os outros estilos punk futuro retrô, imagina o passado entre 1500 e 1800 contendo tecnologia avançada para a época, o que pode incluir máquinas voadoras, veículos terrestres ou aquáticos, autômatos, produtos químicos, até mesmo antecipar algumas tecnologias como a energia elétrica, o vapor e o magnetismo. (MACKAY, 2020).

O clockpunk também foi influenciado pelas descobertas tecnológicas do Renascimento e da Revolução Científica, por conta disso, parte da sua estética é inclusive baseada nos projetos de Leonardo Da Vinci e nos inventos de Galileu Galilei e outros cientistas do período. Por sua vez, as cidades representadas nessas produções tendem a serem inspiradas em cidades reais como Londres e Paris, geralmente as versões dos séculos XVII e XVIII. (MACKAY, 2020).

Navios voadores no filme Os Três Mosqueteiros (2011). 

O termo clockpunk foi empregado nos rpgs de mesa GURPS, criado por Steve Jackson, especialmente no jogo GURPS Steampunk (2000), em que se utilizou clockpunk para se referir a tecnologia anterior ao período industrial. (MACKAY, 2020). Algumas produções que abordam esse subgênero estão: o livro Mainspring (2008) de Jay Lake que originou uma trilogia; o livro Whitechapel Gods (2008) de S. M. Peterso jogo Assassin's Creed II (2009), em que Ezio Auditore utiliza alguns dos inventos de Da Vinci;o filme Os Três Mosqueteiros (2011), onde temos navios voadores; o seriado The Da Vinci's Demons (2013-2015); o jogo Steelrising (2022) que se passa durante a Revolução Francesa, onde existem autômatos. 

Steelrising insere autômatos em Paris no contexto da Revolução Francesa. 

Pós-cyberpunk

Quanto ao subgênero pós-cyberpunk esse divide opiniões. Alguns o consideram uma atualização apenas do cyberpunk, não merecendo receber outra nomenclatura. Porém, outros assinalam que ele apresenta diferenças consideráveis, por isso ser considerado um gênero à parte. 

Em 1998 o escritor Lawrence Person no fórum online Slashdot, escreveu acerca do pós-cyberpunk, dizendo que os próximos trabalhos deveriam atualizar a tecnologia representada, mas sobretudo, mudar alguns aspectos narrativescos, deixando de lado personagens que eram sempre marginalizados, rebeldes, solitários, intrigas corporativistas, hackers e coisas do tipo. Person defendia criar novos tipos de personagens, melhor inseridos na sociedade, explorar essa tecnologia digital não apenas por seu aspecto negativo, mas também mostrar que ela teria um lado positivo. Além de sair da perspectiva de sempre produzir histórias num futuro distópico ou sombrio. Rafael Huereca também concordou com Person, realizando ume estudo acerca. (MORAIS, 2022). 

Para Person o anime Ghost in the Shell: Stand Alone Complex (2002-2005) era um ótimo exemplo do que ele definia como pós-cyberpunk, mostrando um Japão após 2030, com tecnologia virtual e cibernética avançada, existindo robôs e ciborgues, a sociedade não é necessariamente decadente, o futuro não é distópico, mas cibercrimes e ciberterrorismo seguem ocorrendo, por conta disso, os protagonistas são agentes de uma força tarefa especial especializados no combate desses crimes, não sendo personagens marginalizados, solitários, rebeldes e frustrados. Cada um possui suas próprias características, metas e problemas pessoais. Apesar que a protagonista major Motoko Kusanagi seja uma ciborgue bastante séria e estoica (diferente da versão do mangá, onde ela é bem-humorada e sarcástica). 

Para Person e Huereca, esse anime é um exemplo de pós-cyberpunk. 

"Rafael Miranda Huereca aponta que enquanto no Cyberpunk as obras exibem um 'fatalismo e determinismo' que evidenciam os efeitos da tecnologia na sociedade, o Pós-Cyberpunk realça uma atitude que, ao mesmo tempo, desconfia e confia na tecnologia, especialmente as novas tecnologias. Para o autor, o Pós-Cyberpunk é mais livre de preconceitos sobre estes extremos e seus personagens podem ser tão perturbados e torpes, quanto entusiastas que utilizam a cibernética para “melhorar o status quo e sua própria condição pessoal”. Huereca defende que os resultados das suas análises apontam que a principal transformação entre esses estilos ocorreu no campo das “descrições, usos e vantagens da rede de computadores, ciberespaço, realidades virtuais ou simuladores cibernéticos”. Enquanto os trabalhos Cyberpunk associavam esses elementos ao dinheiro, consumismo e abuso econômico, no Pós-Cyberpunk eles são inseridos em um contexto em que são utilizados em busca de múltiplos objetivos além do financeiro. Ademais, esse último faz uso de uma infinidade de tecnologias inovadoras como a nanotecnologia, wetwares e paisagens cibernéticas". (MORAIS, 2022, p. 4). 

Tailor Morais (2022) comenta que a série Black Mirror (2011-2023) apresenta em alguns episódios tramas que se encaixam no cyberpunk e no pós-cyberpunk. Por outro lado, Murphy e Schmeink (2018) consideram que o termo pós-cyberpunk seja algo mais ligado a nomenclaturas de perspectivas sociais do que um subgênero novo. Eles comentam termos como "segunda onda cyberpunk", "cyberpunk feminista", "cyberpunk pós-colonial", sendo esses dois últimos imbuídos por pautas sociais. Assim, para os autores, o pós-cyberpunk seria uma atualização de ideias do cyberpunk, não algo diferente como proposto por Person em 1998 e Huereca em 2011.

Considerações finais: como traçar os limites do punk?

Em uma busca pela internet o leitor se deparará com outras terminologias como cowboypunk, seapunk, piratepunk, solarpunk, lunarpunk, mannerpunk, elfopunk, mitopunk, entre outra variedade de termos. O problema é que tais nomenclaturas carecem de mais explicação, surgindo na maior parte das vezes em debates de fãs em fóruns, blogs e redes sociais. As pessoas no afã de querer criar categorias, acabam esquecendo de melhor definir seus critérios e tudo acaba se tornando "punk", mesmo não tendo características do tipo. 

Por exemplo, o cowboypunk também é referido como westernpunk e cattlepunk, nota-se aqui três termos distintos para a mesma coisa. Porém, quando se vai ver os exemplos desse suposto subgênero, ele lembra bastante as características do faroeste fantástico (weird western) surgido nos anos 1930 e em alta até a década de 1970. Por conta disso, o filme As Loucas Aventuras de James West (1999) é taxado como cowboypunk, embora ele seja um steampunk inserido na ambientação do Velho Oeste, o que o torna uma exceção nesse caso. 

Outro exemplo é o filme Waterworld (1995) o qual é referido em alguns fóruns e sites como sendo um seapunk, oceanpunk, waterpunk (observa-se que não há um consenso de nomenclatura), apesar que o filme seja classificado como um dieselpunk pós-apocalíptico e distópico. 

O problema de criar essas nomenclaturas é que falta consenso entre seus idealizadores e apoiadores, no tocante as definições e exemplos. Nem toda produção de weird western é punk, já que muitas dessas eram voltadas para o sobrenatural por conta da influência das produções de fantasia e terror da época; já o caso de Waterworld é interessante, mas quanto seapunks você conhece por aí? Outro problema levantado é que seapunk é o nome de um estilo inspirado no subgênero musical Vaporwave, surgido na década de 2010, cuja moda e temática estava associada com o mar. Ou seja, estão combinando termos da música para serem usados em outras mídias, mas isso não necessariamente funciona sem a devida adequação. 

Assim, devido a essa falta de critérios mais específicos, escritores, cineastas, artistas plásticos e estudiosos, não consideram tais terminologias oficiais, por conta disso, elas ficaram de fora desse texto. 

NOTA: Ainda hoje a palavra punk as vezes é usada no sentido de se referir a jovens rebeldes, algo especialmente visto nos Estados Unidos e alguns países europeus como Inglaterra, Irlanda e Alemanha. 

NOTA 2: O mangá Fullmetal Alchemist (2001-2010) divide opiniões. Alguns autores o consideram um steampunk, outros apontam elementos de dieselpunk, mas um terceiro grupo assinala que a trama não possui características suficientes para ser encaixado nesses subgêneros. 

NOTA 3: A franquia de filmes e jogos Matrix (1999-2021) combina elementos do cyberpunk e do biopunk. 

NOTA 4: Alguns jogos da franquia Metal Gear Solid que se passam entre as décadas de 1960 e 1970, possuem referências ao atompunk.

NOTA 5: Algumas histórias do Hellboy possuem elementos de dieselpunk, apesar que as hqs sejam mais voltadas para a fantasia e o terror. 

NOTA 6: A estética dieselpunk de Mad Max influenciou outras obras como o mangá Sand Land (2000) e a franquia de jogos Borderlands (2009-presente). 

Referências bibliográficas: 

AKHTER, Tawhida [et. al]. Nano-punk and Nanotecnhology Genry in Literature: A Scientific and Cultural Analysis of NealStephenson's The Diamond Age. Journal of Intercultural Communication, v. 24, n. 2, 2024, p. 103-107.

COGAN, Brian. The Encyclopedia of Punk. New York: Sterling, 2008. 

FRELIK, Pawel. "Silhouettes of Strange Illuminated Mannequins": Cyberpunk’s Incarnations of Light. In: MURPHY, Graham J; SCHMEINK, Lars (eds.). Cyberpunk and Visual Culture. New York, Routledge, 2018. 

MACKAY, Ellen. Renaissance theatre and clockpunk historiography 1. In: The Routledge Companion to Theatre and Performance Historiography. Routledge, 2020. p. 364-382.

MCCANNA-PORTER, Misti. Tea, Automatons, and Time Machines: Steampunk’s Nostalgic Re-Imagination of Contemporary Art. Leiden, Brill, 2024.

MORAIS, Tailor Gonçalves. Antologia Cyberpunk: um estudo sobre a série Black Mirror. Dissertação (Mestrado em Estudos Artísticos), Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2022. 

NEVINS, Jess. Steampunk. In: MCFARLANE, Anne; MURPHY, Graham J; SCHMEINK, Lars (eds.). The Routledge Companion to Cyberpunk Culture. New York, Routledge, 2020, p. 64-72. 

PIECRAFT; OTTENS, Nick. Discovering Dieselpunk. Gatehouse Gazette, n. 1, jul. 2008, p. 3-9. 

SCHMEINK, Lars. Biopunk. In: MCFARLANE, Anne; MURPHY, Graham J; SCHMEINK, Lars (eds.). The Routledge Companion to Cyberpunk Culture. New York, Routledge, 2020, p. 73-80.  

WOLFE, Gary K. Science fiction and its editors. In: JAMES, Edward; MENDLESOHN, Farah (eds.). The Cambridge Companion to Science Fiction. New York, Cambridge University Press, 2003, p. 96-109. 

Referências da internet:

DOCTOROW, Cory. Atompunk: fetishizing the atomic age. Boingboing. 2008. Disponível em: https://boingboing.net/2008/12/03/atompunk-fetishizing.html.

STERLING, Bruce. Here Comes "Atompunk". And it's Dutch. So there. Wired. 2008. Disponível em: https://www.wired.com/2008/12/here-comes-atom/

Links relacionados: 

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